Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quarta-feira, 29 de maio de 2019
Guiné 61/74 - P19840: Antropologia (33): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China, 2015 (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2018:
Queridos amigos,
Longa foi esta viagem de memórias e sobre a memória, o antes, o durante e o depois, e o depois é marcado pelo regresso à vida, estudos, constituição de família, uma linha profissional. Casos houve de muita dor, o stresse pós-traumático. Anos depois de cada um partir para a sua vida, deu-se o reencontro com o passado, a CART 3313 reúne-se anualmente, segue um ritual, há conversas que dispõem bem, há interpretações de factos em que nem todos são concordantes.
A antropóloga assiste a tudo, entrevistou muitos, leu documentação, conhece a obra do escritor Lobo Antunes. E adverte: "Todos os que ali estão sabem que ninguém quer cruzar a fronteira que separa o que deve ser lembrado do que deve ser esquecido. Mas estes encontros não são isentes de risco. A presença dos pares implica o confronto de versões nem sempre coincidentes e que podem expor pedaços indesejados do passado. O passado existe na representação que sobre ele constroem, nas imagens e nos episódios que compõem a história que é contada e repetida, ano após ano.".
Um trabalho de valor excecional, direi sem hesitar tratar-se de leitura obrigatória.
Um abraço do
Mário
Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (3)
Beja Santos
Aqui se conclui a digressão pelo espantoso trabalho antropológico de Maria José Lobo Antunes centrado na memória de combatentes que fizeram parte de uma Companhia de Artilharia, a 3313, que esteve no Leste de Angola, na região de Gago Coutinho, e mais tarde na região de Malanje. "Regressos quase perfeitos", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China Edições, 2015, é um ensaio invulgar, onde se questiona o género e o modo de vida daqueles mancebos, como lhes foram chegando as representações da guerra colonial, como partiram e viram Angola, como regressaram e se reencontraram, a antropóloga acompanhou-os nesses almoços de confraternização onde há uma nova busca de sentido para interpretar aquela experiência que lhes mudou a vida.
Acabada a guerra, mesmo tendo voltado diferentes, condutores ou escriturários, atiradores ou mecânicos, eram homens feitos que iriam retomar as vidas interrompidas. Alguns traziam exames escolares aprovados, outros sonhavam em fazer um curso universitário, outros pegaram logo em ofícios como motoristas ou voltaram à agricultura. Muitos casaram nos anos seguintes. Ouvidos os seus testemunhos, observa a antropóloga: “O que sobressai nestes relatos é o reconhecimento da inadequação das respostas pessoais às circunstâncias que os rodeavam. A guerra ainda os rondava. Mas só na década de 1980 é que surgiu a categoria nosológica de desordem de stresse pós-traumático". Dos entrevistados, só um frequentou sessões psicoterapêuticas de grupo e temos novo comentário da investigadora: “O tempo do regresso foi sobretudo um momento para se agarrarem ao que de novo lhes ia acontecendo. A família e o trabalho vieram preencher o que antes fora ocupado pelo quotidiano militar. Dos 26 meses em Angola restaram fotografias guardadas em álbuns, episódios e imagens que persistiam apesar da distância, uma vaga revolta que se foi dissolvendo. Os camaradas com quem viveram durante dois anos desapareceram nas suas vidas retomadas”.
Veio o 25 de Abril, uns acolheram-no entusiasticamente, outros não, questionou-se tanto sacrifício em vão. Dá-se nova palavra à antropóloga, depois de analisar as memórias dos entrevistados: “Deslizando entre dois momentos do tempo (o do passado perdido e o da sua convocação do presente), elas evidenciam a falta de alternativas contemporâneas a um discurso identitário herdado do Estado Novo. É esta ausência que traça as fronteiras nos interiores das quais os sujeitos reconfiguram as suas memórias da guerra de Angola”.
Demoraram a reencontrar-se, a primeira vez foi no final de julho de 2001, 30 anos depois do embarque no "Vera Cruz" para Angola, encontraram-se em Fátima.
Houve um trabalho anterior de encontros ou contactos, cada um tinha seguido a sua vida e a investigadora observa: “O fim da ditadura implicou a criação de atos de demarcação inequívocos, pelos quais o passado foi remetido para um vasto território impronunciável. O Império Português, reimaginado durante o Estado Novo deixou de existir com a descolonização. Mesmo o vocabulário ultramarino se viu transformado no vestígio anacrónico de um passado tornado impossível com o 25 de Abril”. Houve como que um período de nojo em que uma parte significativa do passado recente desapareceu do debate público. A guerra tornou-se um tabu existencial e discursivo, tema incómodo. Mas foi silêncio breve, logo a seguir começaram a ouvir-se vozes, caso de "Os Cus de Judas", publicado em 1979, era a catarse literária. Maria José Lobo Antunes enumera publicações de toda a ordem, desde livros a trabalhos jornalísticos, edições em fascículos, a guerra voltava ao palco, e com polémica, basta lembrar o inflamado debate sobre o Monumento aos Combatentes do Ultramar em Lisboa, a RTP também se interessou em fazer documentários sobre a guerra colonial, foram os 42 episódios da série "A Guerra", de Joaquim Furtado, apareceram depois filmes e séries de ficção, muitos romances nostálgicos, o contraponto a essa vaga saudosista passa pelos romances de Dulce Maria Cardoso e Isabela Figueiredo.
Prossegue o ritual dos encontros, estamos em Coimbra numa manhã de um sábado de junho de 2012. “No meio das caras conhecidas, sou apresentada a uma pequena comitiva que se estreia nos almoços.
Organizado por Valdemar Mendes, antigo furriel do primeiro pelotão, o almoço de 2012 estendeu os habituais convites à família de outro furriel do mesmo pelotão. Mário Alberto Ferreira morreu há 19 anos e nunca chegou a reencontrar a Companhia com quem esteve em Angola. Convidar a família e homenagear o camarada foi a forma encontrada de prolongar para além da morte a ligação que une todos aqueles que partilharam a mesma guerra. O convite foi recebido, e a família apareceu em peso. A viúva, dois filhos, uma nora e duas netas distribuem sorrisos e cumprimentos”. O ritual dos almoços segue um mesmo guião de sempre: convite com a hora e o ponto de encontro, o restaurante, a ementa, o preço da refeição e do transporte. Começam a chegar e abraçam-se, apresentam a família, trazem filhos e netos, afinal o que está a acontecer ali é uma festa de família. A autora fala de Licínio Macedo, um guardador de memória. “Na garagem do seu apartamento, em Vila Praia de Âncora, montou um pequeno museu da guerra. Dossiês cheios de recortes de jornal, ementas e convites de almoços anuais, crónicas de Lobo Antunes sobre Angola, álbuns fotográficos, livros e séries documentais sobre a guerra colonial, esculturas africanas. Reformado dos estaleiros de Viana do Castelo, este antigo eletricista dedica uma boa parte do seu tempo livre a organizar os vários objetos materiais que começou a colecionar quando regressou de África”.
Este almoço anual é o único contacto social que têm com o passado de guerra. Todos fazem por estar presentes, quem tem dificuldades económicas e não pode ir, sofre muito. Nas conversas, há por vezes azedume por não se dar mais apoio aos antigos combatentes, pensões válidas, ajuda psicológica e muito mais. A autora dedica um capítulo aos livros de Lobo Antunes e assim chegamos às últimas entrevistas que fez para esta investigação. O apaixonante deste trabalho é saber de antemão que é impossível reaver o instante vivido na sua inteireza, o que é possível é compor reproduções aproximadas e imperfeitas, são revisitações narrativas em que os seres humanos tendem a contar histórias sobre si mesmos. Há muitas incomodidades, como observa a antropóloga:
“A memória de guerra não foi apenas alvo do natural desgaste imposto pelo tempo. Nos discursos de alguns entrevistados é possível distinguir uma intervenção pessoal destinada a apagar os aspetos incómodos do passado. Há quem revele não falar sobre a guerra com a família, há quem mencione ter feito um esforço para não se lembrar. Um de entre estes foi apenas três vezes aos almoços e, das suas palavras, depreende-se a improbabilidade de regressar. O incómodo é mais forte do que o prazer de reencontrar os camaradas. O tempo de guerra é, ao mesmo tempo, a dolorosa memória de um desterro hostil e da juventude despreocupada. É precisamente esta ambiguidade que faz regressar estes homens, ano após ano. O passado que ali se celebra não é o da violência: é o da camaradagem, da união que sobrevive ao tempo, da alegria e do riso, da coragem e resistência”.
Estes pontos de encontro, estas encruzilhadas da memória são, como observa Maria José Lobo Antunes, um mapa possível de um mundo que já não existe, evocado pelas narrativas dos homens que nele viveram. Talvez haja tantas guerras quantos os soldados que os combateram.
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19817: Antropologia (32): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (2) (Mário Beja Santos)
quarta-feira, 22 de maio de 2019
Guiné 61/74 - P19817: Antropologia (32): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2018:
Queridos amigos,
Temos um ano da CART 3313 no Leste, depois seguem para o setor de Malanja, a Baixa do Cassanje é, ao tempo, uma zona de descanso, situam-se ali interesses económicos vitais, o colonialismo está vivo, os militares fazem patrulhas, ação psicológica, aborrecem-se, por ali circulam os aliados do colonialismo e a vigilância da PIDE não faz tréguas. Até que um dia, em março de 1973, regressam a casa, vêm todos de avião, na bagagem, muitos trouxeram pedaços de Angola: fotografias, peles curtidas de animais, máscaras, tapetes, recordações exóticas. Têm pela frente o regresso à vida interrompida.
Vai começar a terceira e última parte deste estudo antropológico, a memória é a rainha da festa.
Um abraço do
Mário
Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (2)
Beja Santos
Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola, por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china Edições, 2015, é um trabalho científico de excecional qualidade. Recapitulando, durante cinco anos, Maria José Lobo Antunes entrevistou dezenas de antigos militares da Companhia de Artilharia 3313, assistiu aos seus almoços anuais, pesquisou arquivos e cruzou estas memórias com o retrato que o seu pai, o escritor António Lobo Antunes, médico do batalhão, deixou nas cartas de guerras que escreveu à mulher e nalguns dos seus livros. Há conivências e silêncios, há relatos interditos, durante décadas, a camaradagem só pode ser compreendida por quem passou pela guerra: “Uma pessoa tem irmãos de sangue, nós somos irmãos de alma”.
António Lobo Antunes e a mulher, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, pais de Maria José Lobo Antunes.
A investigação rondou a infância e a juventude destes mancebos, falou-se na ideologia do Estado Novo, agora vão para Angola, passarão doze meses no Leste, é o primeiro ano da sua comissão de serviço, é o confronto com novas paisagens, com etnias angolanas, descobre-se Luanda e naquele Leste há histórias de mergulhos nos rios, batuques nas aldeias, namoros com negras. “A recordação está envolta em saudade e riso, histórias de rapazes jovens à aventura no desconhecido. Por outro lado, o medo e a tensão, os ataques e rebentamentos de minas, a invisibilidade do inimigo sem cara enchem as narrativas de quem viveu o ano de 1971 na planura do Leste angolano”.
A autora procede ao enquadramento deste Leste de Angola, um dos principais focos de subversão e luta armada nos seus quatro distritos (Moxico, Lunda, Bié e Cuando Cubango) e pela parte sul do distrito de Malanje. Leste é sinónimo da Diamang, a Companhia Mineira do Lobito (minas de Cassinga) e o Caminho-de-Ferro de Benguela. Neste Leste há conflitos intensos: a Zâmbia acolheu os movimentos nacionalistas angolanos, Costa Gomes criará em 1971 a Zona Militar Leste que uniu os três ramos da Forças Armadas portuguesas e as autoridades civis da região. Há muitos testemunhos sobre Luanda, deslumbramento, conversas com militares de outras unidades, o contraste entre a zona moderna e os musseques. E abala-se para as terras do fim do mundo, há êxodos populacionais, o MPLA está então muito ativo, descreve-se Gago Coutinho, Sessa e Mussuma, alguém comenta para a autora: “Em Gago Coutinho o ambiente era pesado. Aquilo era uma zona muito intensa de guerra e de vez em quando apareciam helicópteros carregados de pessoal, feridos e o carago, que vinham para ser tratados em Gago Coutinho”.
Há a barreira linguística, o choque de mentalidades, a vida quotidiana do quartel feita de rotinas, a curiosidade com os batuques, os curandeiros e feiticeiros, o choque com as condições laborais dos negros, a curiosidade com a relação dos africanos face ao corpo e à sexualidade. Enfim, anuncia-se a guerra, o BART 3835 sofreu 52 baixas ao longo de 12 meses: 32 feridos ligeiros, 14 feridos graves e 6 mortos. Todos recordam o batismo de fogo, Lobo Antunes logo escreve à mulher quando começou a guerra séria. Há a picagem das estradas, as minas anticarro irão fazer os seus estragos, a picagem a passo de caracol é por vezes monótona, desenvolve tensões. E surge uma experiência nova: os estranhíssimos aliados, Os Fiéis, nome de código de antigos apoiantes de Moisés Tchombé, eram gendarmes da província do ex-Congo Belga, a colaboração de forças sul-africana, sobretudo ao nível de helicópteros, estava já em vigor o Alcora, nome de código da aliança secreta político-militar que uniu Portugal, a África do Sul e a Rodésia entre 1970 e 1974, os Grupos Especiais iam aos locais mais remotos, eram implacáveis. Patrulhamentos infindáveis, descobre-se a tortura da sede. Em Sessa, procura-se recuperar civis que vivessem nas matas e oferecer-lhes proteção, saúde e educação nos aldeamentos construídos junto dos quarteis, os pelotões rodam de destacamento em destacamento. A PIDE trabalha à luz do dia.
Maria José Lobo Antunes lança um largo comentário sobre memória, esquecimento e silêncio:
“Todas as histórias contadas nas páginas anteriores resultam da reconstrução de acontecimentos passados através da utilização de um mesmo léxico: o da guerra. É este idioma que preside à formulação da história do BART 3835, relato oficial de uma comissão de serviço onde o inimigo é repelido pela ‘pronta reação das NT’ e de onde estão ausentes os aliados secretos, as armas proibidas, mas também os pequenos deslizes de uma guerra feita por homens de carne e osso. É também este idioma que dá forma às memórias dos homens que viveram a guerra colonial no Leste angolana em 1971. É através dos seus valores (a camaradagem, a coragem, o heroísmo), dos seus resultados (vitórias, derrotas, fugas), dos seus acasos de sorte ou azar e das suas fraquezas (medo, cobardia) que cada um dos indivíduos reconstitui no presente os episódios vividos décadas antes”.
São descontinuidades, como seguramente se podem encontrar na Guiné ou em Moçambique, e daí este trabalho de elaborar uma tessitura entre os excessos e pecados da memória, entre o que cada um lembra e esqueceu, solta-se o lugar-comum para observar que o que resta do passado no presente é uma pequena parte do que aconteceu.
Depois da tempestade vem a bonança, ao fim de um ano na imensidão do Leste angolano, o BART 3835 seguirá para Malanje, pouca ou nenhuma guerra, era uma zona de descanso. Observa a autora, falando da atividade de guerrilha, que os mais ativos eram o MPLA e a UPA/FNLA, a UNITA tinha a sua ação limitada ao sul do setor de Malanje. “A missão das unidades resumia-se à vigilância da fronteira com o Congo, por onde poderiam infiltrar-se grupos inimigos, à manutenção de segurança nas áreas urbanas e rurais, e à acção psicológica junto das populações brancas e negras. O ano de 1972 surge nas narrativas dos homens da CART 3313 como uma imensa planície feita de rotinas e de espera pelo regresso a Portugal. Sem minas, ataques ou acções de combate, estes 14 meses tornaram-se indistintos, dominados pela monotonia dos dias quase sempre iguais. Compreende-se, por isso, que vários entrevistados se refiram ao segundo ano de comissão como umas férias”.
O distrito de Malanje em nada se assemelhava à aridez económica do Leste e a autora descreve minuciosamente a Baixa do Cassange. Agora privilegia-se a ação psicológica, em Marimba, Mangando e Marimbanguengo. “Foi entre estas três povoações que os homens da CART 3313 passaram a segunda parte da comissão de serviço em Angola”. Fazem-se patrulhas, os testemunhos referem o trabalho da PIDE, mas são meses de tédio em que os jogos de futebol desandam em pancadaria, fazem-se caçadas, os militares são confrontados com explorações agrícolas vastíssimas, ali o colonialismo está bem vincado, o preto obedece, é de uma docilidade resignada.
Temos agora a terceira e última parte deste extraordinário documento antropológico: Os anos depois da guerra.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19789: Antropologia (31): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
quarta-feira, 15 de maio de 2019
Guiné 61/74 - P19789: Antropologia (31): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2018:
Queridos amigos,
É uma investigação antropológica de alto gabarito, a investigadora, filha de António Lobo Antunes, sentiu-se motivada pelas cartas de guerra que o pai escrevera à mulher e por sinais da sua obra literária que percorriam a guerra angolana.
Trata-se de um inédito ensaio sobre a memória da guerra que articula documentos oficiais, episódios pessoais e recordações partilhadas nos almoços de confraternização, é uma busca de sentido, haverá momentos dolorosos, vêm à tona episódios cruéis, choques culturais avassaladores, aquele fim do mundo podia-se medir por milhares de quilómetros, por populações deslocadas à força, era então o Leste de Angola antes de se ter quebrado o ânimo ao MPLA.
Uma investigação exemplar que devia ter paralelos na Guiné e em Moçambique. A autora dá uma razão de tomo: "No caso da memória de guerra, a dimensão pública da recordação ocupa um lugar central. É em nome das nações que as guerras são habitualmente combatidas. É a lealdade nacional que convoca todos aqueles que a ela são chamados. É aqui que se joga a possibilidade da recordação ou do esquecimento, da celebração ou do silenciamento públicos".
Um abraço do
Mário
Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (1)
Beja Santos
"Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015, é um documento avassalador, original, ao permitir conhecer o itinerário de antigos militares de uma companhia de Exército, desde as memórias mais remotas das suas vidas, a comissão, o regresso, os encontros anuais. É a tese de doutoramento de Maria José Lobo Antunes, durante cinco anos entrevistou dezenas de antigos militares da CART 3313, assistiu aos seus almoços anuais, pesquisou os arquivos oficiais e cruzou estas memórias com o retrato que António Lobo Antunes, médico do batalhão, deixou nas cartas de guerra que escreveu à mulher na sua obra literária.
O fulcro da questão é o trabalho da memória, a antropóloga ciranda, num sábado de junho de 2011, num restaurante de Almeirim, convive com a CART 3313 do BART 3835, pela décima primeira vez estes homens juntam-se e reveem-se durante uma tarde à volta da mesa. A estudiosa anota nomes, descreve o cerimonial do encontro onde estão mulheres e filhos, numa mesa já se fala em Mussuma, um destacamento do Leste de Angola junto à fronteira com a Zâmbia. Dois furriéis lembram episódios, muitos outros não se lembram de coisa nenhuma. Temos depois o almoço, corta-se o bolo no final, e depois começa a festa, segue-se o lanche, há um grande cartaz onde está escrito: “Somos quem fomos”. Já não há guerra colonial, Angola já não é nossa, os anos transformaram aqueles rapazolas em homens que caminham para a velhice. Como observa a investigadora, a memória do que foram sobrevive ainda, na partilha de recordações que pertencem a todos.
Maria José é filha desse alferes médico que escreveu “Os Cus de Judas”, um romance que lhe deu rapidamente notoriedade. Era uma criança quando foi com a mãe para a sede da Companhia, em Marimba, faz pois parte da geração da pós-memória e justifica-se:
“Foi a memória emprestada da guerra (esse passado que de alguma forma também é o meu, mas do qual não me lembro) que criou vontade de ir para além daquilo que conhecia (as histórias, as fotografias, pedaços soltos de um tempo perdido no tempo). O primeiro passo do diálogo possível com a memória alheia foi dado em 2005, no momento em que a minha irmã e eu começámos a trabalhar na edição das cartas enviadas de Angola à nossa mãe. Cinco anos depois da sua morte, tinha chegado o tempo de cumprir a vontade, tantas vezes repetida, de as publicar. Em novembro de 2005, o livro foi lançado. Os antigos militares da Companhia foram convidados e houve uma camioneta que transportou os que viviam no Norte do país. Mais de três décadas após o embarque para a Angola, uma multidão de camaradas reencontrou-se no sítio de onde tinha partido para a guerra. Depois desse dia, comecei a ir aos almoços da companhia”.
Assim se abriram as portas para a sua investigação que culminou na tese de doutoramento que defendeu em 2015. E de novo justifica os seus propósitos:
“O meu objectivo era construir uma etnografia da memória da guerra colonial que articulasse as diversas escalas em que a memória vive: as memórias pessoais, as narrativas que circulam na esfera pública e a representação oficial do conflito. Em vez de estudar esta guerra na sua imensa complexidade, a etnografia que construí propunha outro olhar, um olhar que reduzia a observação e a análise a uma pequena parte do todo: a CART 3313”.
E escreve mais adiante:
“Subjacente a esta investigação está a constatação de que o desaparecimento do passado condena o seu conhecimento à construção de suposições impossíveis de provar. O que me interessa não é o que aconteceu, mas sim de que forma se recorda e se esquece aquilo que aconteceu. Aquilo que se recorda e se esquece não é estanque e imutável. A memória resulta de um processo complexo de negociação das condições da sua possibilidade. O tempo é, aqui, um factor fundamental. Tivesse esta investigação sido feita no ano seguinte à desmobilização da CART 3313 ou dez anos depois do 25 de Abril, os resultados seriam certamente outros. A etnografia da memória de guerra que aqui se apresenta parte, precisamente, deste contexto de evocação narrativa generalizada do passado colonial português e da guerra que o defendeu”.
E discreteia sobre o trabalho da memória nas Ciências Sociais, sobre a reconstrução do passado, a memória de guerra. E assim se inicia a viagem do BART 3835, mobilizado em julho de 1970, e daquela Companhia cuja sede de Batalhão vai ser Gago Coutinho.
O pano de fundo da educação daqueles jovens era a retórica imperial, retórica essa já bem fermentada no constitucionalismo monárquico, aquele império africano sucedia aos tempos em que o Brasil era sinónimo de múltiplas riquezas. A investigadora conversa com os militares, como eles se aperceberam da guerra, o que aprendiam na escola, que noções colhiam da pátria, dos heróis, dos valores. Os depoimentos são claros: havia o respeito, a disciplina, a ideia da grandeza do país.
Mas há que dar o seu a seu dono:
“Nos anos 1960, a educação era um luxo a que nem todos podiam aceder. Seis dos 31 entrevistados não chegaram a cumprir o ensino obrigatório e saíram no final da 3.ª classe. As razões foram as mesmas: residentes em freguesias rurais do Norte do país, provenientes de famílias com poucos recursos económicos, foram forçados a contribuir com o seu trabalho para a frágil economia familiar. Veja-se o caso de José Gomes, nascido numa aldeia no concelho de Sátão, em Viseu. A mãe, filha de pai incógnito, engravidou do patrão da casa onde servia. José Gomes cresceu longe da mãe, também ele filho de pai incógnito, entregue aos cuidados da avó e dos tios-avós. Quando tinha quatro anos, a mãe engravidou de novo patrão. O caixão branco do irmão que morreu pouco depois de nascer é uma das suas recordações mais antigas. Ainda criança, começou a guardar o gado da família. A entrada na escola foi mais um peso na sua vida, a acrescentar ao trabalho que já fazia na agricultura”.
Um contexto de pobreza em grande angular, nas memórias de todos os que concluíram a escola primária e começaram a trabalhar ainda crianças, o trabalho na agricultura ou aprendizagem no ofício fazia parte da ordem natural da vida. A autora faz um esboço histórico da vida do Estado Novo e das decisões de Salazar, nomeadamente a partir de 1961, como aqueles rapazes começam a presenciar partidas e regressos, mobilizações, ofertas em dinheiro e alimentos para quem partia, atiçou-se o fervor nacionalista a partir dos primeiros embarques de tropas para Angola. Mas a guerra era um mundo distante a que só acediam homens feitos. Aqueles rapazolas não podiam prever que o conflito se prolongasse por longos anos. Abriram-se novas frentes, a guerra instalou-se na rotina nacional das partidas e chegadas de contingentes militares. São tempos também de emigração, irá crescendo a falta de comparência às juntas de recrutamento. E um dia aqueles jovens partem para a tropa, abriram-se oportunidades, caso daquele pastor que se tornou condutor militar. Estamos em 1970, um momento crítico para as Forças Armadas, é tempo de um envio médio de 105 mil homens para Angola, Guiné e Moçambique, reduz-se o número de candidatos à Academia Militar, recrutas e especialidades tornam-se numa fábrica gigantesca. Onde, no passado, para ser aspirante a oficial miliciano era imperativo a frequência de um curso universitário passa somente a ser exigido o 7.º ano completo ou até dar provas de competência no curso para sargentos milicianos.
Vai começar a vida da CART 3313.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19763: Antropologia (30): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2) (Mário Beja Santos)
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Guiné 61/74 - P18011: (In)citações (112): A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje.
Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]
1. Em mensagem datada de 22 de Novembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:
A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente
Alegram-me os 10 milhões de visualizações do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, a Tabanca Grande tornou-se numa espécie de país virtual, com população superior à da Catalunha, uma nação sem exército e uma promessa de “libertação”, segundo os métodos de Gandhi ou de Mandela, com a consciente exclusão dos de Lenine, de Mao ou… de Amílcar Cabral.
Louvores ao seu “Homem grande” Luís Graça, ao seu mouro de trabalho Carlos Vinhal, extensivos aos co-editores Virgínio Briote e Magalhães Ribeiro. Um caso especial de sucesso do voluntarismo, de entranhada camaradagem, de pluralismo e do “dever de memória”.
No tocante a ex-combatentes expedicionários nos seus teatros, invoco os testemunhos do Dr. Albuquerque, especialista do setresse pós-traumático, de que a guerra ultramarina ficou colada à vida dos seus combatentes; do escritor Lobo Antunes “Não sei explicar, mas a maior parte do que sou, continua lá”; e do Coronel-Comando José Manuel Belchior, Presidente do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes, de que, como participante em várias tertúlias, nenhuma outra se mantém tão ligada à terra e à sua gente como as dos ex-combatentes da Guiné.
As emoções que vivemos foram tantas e tais, que se cristalizaram em sentimentos – digo eu.
Em suma: Não há cura para a guerra da Guiné, enquanto maleita nossa; e a “guerra de libertação” da Guiné tarda a acabar, para mal dos bissau-guineenses.
E quanto à sua história, sou recorrente na metáfora da prédica do Padre António Vieira, referida à relação da substância com a forma.
Em rigor histórico, o PAIGC nem conquistou nem ocupou Guileje. Mas no entender do historiador Fernando Rosas, esse acontecimento foi uma derrota militar portuguesa e uma ocupação vitoriosa do PAIGC; para o historiador Rui Ramos, por exemplo, seria fruto de uma desobediência e de uma retirada do Major Coutinho e Lima, aliás bem comandada e sucedida. Algo susceptível de acontecer cá por casa, com o mesmo que entra pelo “orifício” do pensar do António Graça Abreu e do pensar do A. J. Pereira da Costa – aproveito e protesto a ambos a minha mais elevada consideração.
Em rigor histórico, Madina do Boé e Guileje, duas tabancas fronteiriças e as únicas tabancas “libertadas” da Guiné, não o foram nem por conquista nem por ocupação: o PAIGC limitou-se a explorar o sucesso do seu abandono pelos portugueses. Uma oferta do General Spínola, rumo à sua vitória – digo eu.
A guerra de libertação dos bissau-guineenses só terminará quando forem superadas a sua orfandade de Amílcar Cabral e da administração portuguesa.
Amílcar Cabral foi responsável pela quimera do “absolutismo despótico” da Guiné (sob o nome de Socialismo), pela quimera da unidade com Cabo Verde, por recusar, pela violência, o pluralismo político aos seus concidadãos, por ter antecipado a fundação da sua nacionalidade, sem sustentação na nação, mas num exército desproporcional – o mesmo que a independência transformará de simples guerrilheiros em casta de oficiais superiores… sem soldados.
Portugal é responsável por ter enformado a Guiné, por a ter conservado contra ventos e marés, mas, sobretudo, por os seus militares a terem abandonado, consciente de que cediam a uma solução imposta do exterior, extemporânea e não adequada à sua consolidação como nação, tendo apenas como atenuante as tentativas de uma força de guerrilha, com o efectivo de menos de 10% da sua guarnição militar e com o apoio de cerca de 10% da sua população de 600 000 mil almas, porfiada em os correr a tiro.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 14 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17765: (In)citações (111): Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)
1. Em mensagem datada de 22 de Novembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:
A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente
Alegram-me os 10 milhões de visualizações do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, a Tabanca Grande tornou-se numa espécie de país virtual, com população superior à da Catalunha, uma nação sem exército e uma promessa de “libertação”, segundo os métodos de Gandhi ou de Mandela, com a consciente exclusão dos de Lenine, de Mao ou… de Amílcar Cabral.
Louvores ao seu “Homem grande” Luís Graça, ao seu mouro de trabalho Carlos Vinhal, extensivos aos co-editores Virgínio Briote e Magalhães Ribeiro. Um caso especial de sucesso do voluntarismo, de entranhada camaradagem, de pluralismo e do “dever de memória”.
No tocante a ex-combatentes expedicionários nos seus teatros, invoco os testemunhos do Dr. Albuquerque, especialista do setresse pós-traumático, de que a guerra ultramarina ficou colada à vida dos seus combatentes; do escritor Lobo Antunes “Não sei explicar, mas a maior parte do que sou, continua lá”; e do Coronel-Comando José Manuel Belchior, Presidente do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes, de que, como participante em várias tertúlias, nenhuma outra se mantém tão ligada à terra e à sua gente como as dos ex-combatentes da Guiné.
As emoções que vivemos foram tantas e tais, que se cristalizaram em sentimentos – digo eu.
Em suma: Não há cura para a guerra da Guiné, enquanto maleita nossa; e a “guerra de libertação” da Guiné tarda a acabar, para mal dos bissau-guineenses.
E quanto à sua história, sou recorrente na metáfora da prédica do Padre António Vieira, referida à relação da substância com a forma.
Em rigor histórico, o PAIGC nem conquistou nem ocupou Guileje. Mas no entender do historiador Fernando Rosas, esse acontecimento foi uma derrota militar portuguesa e uma ocupação vitoriosa do PAIGC; para o historiador Rui Ramos, por exemplo, seria fruto de uma desobediência e de uma retirada do Major Coutinho e Lima, aliás bem comandada e sucedida. Algo susceptível de acontecer cá por casa, com o mesmo que entra pelo “orifício” do pensar do António Graça Abreu e do pensar do A. J. Pereira da Costa – aproveito e protesto a ambos a minha mais elevada consideração.
Em rigor histórico, Madina do Boé e Guileje, duas tabancas fronteiriças e as únicas tabancas “libertadas” da Guiné, não o foram nem por conquista nem por ocupação: o PAIGC limitou-se a explorar o sucesso do seu abandono pelos portugueses. Uma oferta do General Spínola, rumo à sua vitória – digo eu.
A guerra de libertação dos bissau-guineenses só terminará quando forem superadas a sua orfandade de Amílcar Cabral e da administração portuguesa.
Amílcar Cabral foi responsável pela quimera do “absolutismo despótico” da Guiné (sob o nome de Socialismo), pela quimera da unidade com Cabo Verde, por recusar, pela violência, o pluralismo político aos seus concidadãos, por ter antecipado a fundação da sua nacionalidade, sem sustentação na nação, mas num exército desproporcional – o mesmo que a independência transformará de simples guerrilheiros em casta de oficiais superiores… sem soldados.
Portugal é responsável por ter enformado a Guiné, por a ter conservado contra ventos e marés, mas, sobretudo, por os seus militares a terem abandonado, consciente de que cediam a uma solução imposta do exterior, extemporânea e não adequada à sua consolidação como nação, tendo apenas como atenuante as tentativas de uma força de guerrilha, com o efectivo de menos de 10% da sua guarnição militar e com o apoio de cerca de 10% da sua população de 600 000 mil almas, porfiada em os correr a tiro.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17765: (In)citações (111): Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)
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segunda-feira, 3 de julho de 2017
Guiné 61/74 - P17540: Agenda cultural (570): Ciclo temático: A Guerra Colonial - 6 de Julho pelas 18h00 - Obras de António Lobo Antunes, Biblioteca Municipal Almeida Faria, Montemor-o-Novo (José Brás)
1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) com data de 28 de Junho de 2017:
Bom dia, caríssimo Carlos
Junto-te texto que não necessita de explicação, uma vez que ele se explica sozinho.
Faço parte do Clube de Leitura.
Grande abraço e cumprimentos à família
José Brás
O Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Almeida Faria, de Montemor-o-Novo, organizou e concretizará nos próximos três meses (Julho, Agosto e Setembro), um ciclo de debate a partir da chamada Literatura da Guerra Colonial.
A primeira sessão desse ciclo, a 6 de Julho, será dedicado a Lobo Antunes e terá apresentação pela Dra. Elsa Ligeiro.
A segunda sessão, a 4 de Agosto, sob o título “África na Literatura Portuguesa – Um tema de uma geração”, terá como apresentador o Coronel Carlos Matos Gomes (Carlos Vale Ferraz).
A terceira sessão, em Setembro e ainda sem data concreta, com referência em “Cartas Vermelhas”, será conduzida por Ana Cristina Silva, autora da obra.
As sessões, como é prática mensal do Clube de Leitura, decorrerão no Auditório da Biblioteca com início às 18 horas e com entrada e participação livre.
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Nota do editor
Último poste da série de 3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17539: Agenda cultural (569): Sessão de lançamento do segundo volume do livro do José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra" (Lisboa, Chiado Editora, 2017), a realizar no sábado, dia 8, pelas 10h30, na Quinta Choupal dos Melros, Fânzeres, Gondomar. Apresentação a cargo do nosso editor, Luís Graça
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
Guiné 61/74 - P17056: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (51): Pelo mundo, ninguém aprecia os nossos Generais, só os nossos Santos... (A propósito do bisavô materno do escritor e nosso camarada Antónioo Lobo Antunes, o gen José Joaquim Machado, 1847-1925)
1. Mensagem de António Rosinha:
[Foto à esquerda, Angola, 1961
(i) acaba de ultrapssasr as 100 referência no blogue, este beirão;
(ii) é um dos nossos 'mais velhos';
(iii) andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado;
(iv) fez o serviço militar em Angola, foi fur mil, em 1961/62;
(v) diz que foi 'colon' até 1974;
(vi) 'retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência';
(vii) o seu patrão, o dono da TECNIL, era o velho africanista Ramiro Sobral;
(viii) é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho'';
(ix) pelo seu bom senso, sensibilidade, perspicácia, cultura e memória africanistas, é merecedor do apreço e elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, mesmo quando as nossas opiniões podem divergir;
(x) Ao Antº Rosinha poderá aplicar-se o provérbio africano, há tempos aqui citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado em baixo da árvore a fumar o seu cachimbo". ]
Data: 16 de fevereiro de 2017 às 21:54
Assunto: Pelo mundo, ninguém aprecia os nossos Generais, só os nossos Santos.
Grandes africanistas portugueses, principalmente militares, eternizaram os seus nomes em vilas e cidades, baias e promontórios e fortalezas. pelas várias colónias portuguesas.
Penso que foi errado porque essa eternização foi errada…não foi eterna, teve um fim.
Teve um fim porque os militares não eram santos.
Se fossem usados nomes de Santos como se fazia antigamente, ainda hoje tínhamos muitos santos espalhados pelo mundo.
Por exemplo na Guiné, já não há Teixeira Pinto,(Canchungo) mas ainda temos bairro de Santa Luzia, jangada de São Vicente.
Até mesmo cá, se a ponte de Lisboa, se fosse ponte Santo António de Lisboa, não seria preciso arrancar a placa do outro António.
Dá a ideia que só se começou a usar nomes militares em vez de santos, com o aparecimento de Pombal e a maçonaria e a independência do Brasil.
No Brasil ainda hoje temos lá desde a Baia de todos os Santos, São Salvador, São Sebastião do Rio de Janeiro, Santos do Pélé, São Paulo, São Bernado, Santo André, São Caetano, Santa Cruz (várias), São Januário, Estado do Espírito Santo, etc. etc.
Conheço várias cidades brasileiras, não vi nenhuma cidade ou rua Pedro Alvares Cabral, nem Padre António Vieira.
Então no Cao de Angola quetirando a Vila Salazar que caíu este porque não era santo e ficou Dalatando, e nem era africanista nem lá pôs os pés, e a cidade de Carmona, que hoje é Uige, todos os outros nomes foram em geral militares e grandes africanistas. E com um grande espírito colonialista.
Mas já não há nenhum desses nomes porque nenhum era santo. Ele era Vila Pereira d'Eça, (N'Giva), vila Roçadas, (Humbe), Vila Henrique Carvalho, (Saurimo), cidade Serpa Pinto, (Menongue), Vila Paiva Couceiro, (?) e para ficar por aqui termino com a vila geograficamente mais central de Angola, Vila General Machado que ficou com o nome indígena Camacupa..
Nesta Vila General Machado (Camacupa) há, ou havia, no fim da guerra MPLA/UNITA, nunca se sabe o que sobrou, um marco geodésico que é considerado o centro de Angola.
E quem foi o General Machado [, José Joaquim Machado, Lagos, 1847 - Lisboa, 1925] ? Vem muita coisa na Wikipédia, mas um pormenor que soube lá, é que foi o português que chefiou parte da construção do Caminho de Ferro de Benguela que leva o comboio ao Leste de Angola ("Cús de Judas") e segue para o Katanga e Zâmbia, inicitiva dos ingleses e que Portugal assumiu
E é por causa desta Vila de Camacupa, ex- General Machado, que para mim é muito célebre, como outros generais que deram nomes a outras vilas, mas este especialmente, é que me deu na cabeça para escrever sobre esta dos nomes de generais espalhados pelas colónias.
Então não é que este homem que dedicou parte da sua vida colonial no comboio que levaria um pouco de modernidade às terras do fim do mundo aos "Cus de Judas", é um dos avós de António Lobo Antunes, o nosso escritor que várias vezes já foi referido nesta tertúlia?
Fiquei surpreendido e inspirado para este post, ao ler a revista Visão desta semana que termina [vd. crónica de António Lobo Antunes, "A minha família^", Visão, nº 1250, de 16/2 a 22/2/2017, pp. 6-7)
Luís Graça, se houver espaço e tenha interesse fica ao teu dispor.
Boa noite e um abraço,
Antº Rosinha
2. Comentário do editor CV:
E os topónimos, Rosinha, os nomes das nossas terras (do "Puto"...) que levámos para as terras de além-mar ? Na Guiné, não havia muitos, mas lembro-me de alguns (onde nunca estive); Nova Lamego, Nova Sintra... Já em Angola, que tu conheceste bem, eram mais, a começar por Nova Lisboa (hoje Huambo)...Mas isso aconteceu em todo o lado: veja-se o Brasil, veja-se a América, que foram grandes colónias... Os europeus chamavam Novo Mundo às terras que estavam do outro lado do Atlântico: por exemplo, New York / Nova Iorque, Também havia uma Nova Lamego (em Angola) e uma Nova Sintra (em Cabo Verde)...Há um município de Santarém, no Pará (Brasil)... E por aí fora.
_________________
Nota do editor:
Últimos poste da série, do ano de 2016 > :
22 de dezembor de 2016 > Guiné 63/74 - P16868: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (50): Mandela não mentiu
9 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16468: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (48): O filme das cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, realizado por Ivo M. Ferreira
25 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16331: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (46): Quando Bismarck, Leopoldo II e as outras potências, Inglaterra e França (Cecil Rodhes e outros) dividiram África em Berlim, estavam-se nas tintas para os africanos... Ensaiaram depois o neocolonialismo a que chamaram independência
12 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16079: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (45): A brutal emboscada do dia 22/3/1974, na estrada (alcatroada, construida pela TECNIL ) Piche-Nova Lamego: só por negligência, propositada ou intencional ou casual, estes casos podiam acontecer... É coincidência apenas, ou as Forças Armadas só já estavam preocupadas com outros valores?...
3 de maio 2016 > Guiné 63/74 - P16044: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (44): Os desentendimentos constantes entre alguns PALOP e Portugal... A luta continua.!...
30 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15913: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (43): Os receios europeus de um antigo colonialista português, gen Norton de Matos, em dezembro de 1943
22 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15781: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (42): A unidade que os cabo-verdianos ajudaram a criar
5 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15748: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (42): As riquezas das matéria primas africanas e as fantasias criadas
16 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15623: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (41): o que foi mais devastador para o PAIGC foi precisamente a campanha psicológica spinolista por uma "Guiné Melhor"
[Foto à esquerda, Angola, 1961
(i) acaba de ultrapssasr as 100 referência no blogue, este beirão;
(ii) é um dos nossos 'mais velhos';
(iii) andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado;
(iv) fez o serviço militar em Angola, foi fur mil, em 1961/62;
(v) diz que foi 'colon' até 1974;
(vi) 'retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência';
(vii) o seu patrão, o dono da TECNIL, era o velho africanista Ramiro Sobral;
(viii) é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho'';
(ix) pelo seu bom senso, sensibilidade, perspicácia, cultura e memória africanistas, é merecedor do apreço e elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, mesmo quando as nossas opiniões podem divergir;
(x) Ao Antº Rosinha poderá aplicar-se o provérbio africano, há tempos aqui citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado em baixo da árvore a fumar o seu cachimbo". ]
Data: 16 de fevereiro de 2017 às 21:54
Assunto: Pelo mundo, ninguém aprecia os nossos Generais, só os nossos Santos.
Grandes africanistas portugueses, principalmente militares, eternizaram os seus nomes em vilas e cidades, baias e promontórios e fortalezas. pelas várias colónias portuguesas.
Penso que foi errado porque essa eternização foi errada…não foi eterna, teve um fim.
Teve um fim porque os militares não eram santos.
Se fossem usados nomes de Santos como se fazia antigamente, ainda hoje tínhamos muitos santos espalhados pelo mundo.
Por exemplo na Guiné, já não há Teixeira Pinto,(Canchungo) mas ainda temos bairro de Santa Luzia, jangada de São Vicente.
Até mesmo cá, se a ponte de Lisboa, se fosse ponte Santo António de Lisboa, não seria preciso arrancar a placa do outro António.
Dá a ideia que só se começou a usar nomes militares em vez de santos, com o aparecimento de Pombal e a maçonaria e a independência do Brasil.
No Brasil ainda hoje temos lá desde a Baia de todos os Santos, São Salvador, São Sebastião do Rio de Janeiro, Santos do Pélé, São Paulo, São Bernado, Santo André, São Caetano, Santa Cruz (várias), São Januário, Estado do Espírito Santo, etc. etc.
Conheço várias cidades brasileiras, não vi nenhuma cidade ou rua Pedro Alvares Cabral, nem Padre António Vieira.
Então no Cao de Angola quetirando a Vila Salazar que caíu este porque não era santo e ficou Dalatando, e nem era africanista nem lá pôs os pés, e a cidade de Carmona, que hoje é Uige, todos os outros nomes foram em geral militares e grandes africanistas. E com um grande espírito colonialista.
Mas já não há nenhum desses nomes porque nenhum era santo. Ele era Vila Pereira d'Eça, (N'Giva), vila Roçadas, (Humbe), Vila Henrique Carvalho, (Saurimo), cidade Serpa Pinto, (Menongue), Vila Paiva Couceiro, (?) e para ficar por aqui termino com a vila geograficamente mais central de Angola, Vila General Machado que ficou com o nome indígena Camacupa..
Nesta Vila General Machado (Camacupa) há, ou havia, no fim da guerra MPLA/UNITA, nunca se sabe o que sobrou, um marco geodésico que é considerado o centro de Angola.
José Joaquim Machado [Lagos, 1847 - Lisboa, 1925], bisavô materno do escritor e nosso camarada António Lobo Antunes Fonte:Cortesia de Wikipédia |
E é por causa desta Vila de Camacupa, ex- General Machado, que para mim é muito célebre, como outros generais que deram nomes a outras vilas, mas este especialmente, é que me deu na cabeça para escrever sobre esta dos nomes de generais espalhados pelas colónias.
Então não é que este homem que dedicou parte da sua vida colonial no comboio que levaria um pouco de modernidade às terras do fim do mundo aos "Cus de Judas", é um dos avós de António Lobo Antunes, o nosso escritor que várias vezes já foi referido nesta tertúlia?
Fiquei surpreendido e inspirado para este post, ao ler a revista Visão desta semana que termina [vd. crónica de António Lobo Antunes, "A minha família^", Visão, nº 1250, de 16/2 a 22/2/2017, pp. 6-7)
Luís Graça, se houver espaço e tenha interesse fica ao teu dispor.
Boa noite e um abraço,
Antº Rosinha
2. Comentário do editor CV:
E os topónimos, Rosinha, os nomes das nossas terras (do "Puto"...) que levámos para as terras de além-mar ? Na Guiné, não havia muitos, mas lembro-me de alguns (onde nunca estive); Nova Lamego, Nova Sintra... Já em Angola, que tu conheceste bem, eram mais, a começar por Nova Lisboa (hoje Huambo)...Mas isso aconteceu em todo o lado: veja-se o Brasil, veja-se a América, que foram grandes colónias... Os europeus chamavam Novo Mundo às terras que estavam do outro lado do Atlântico: por exemplo, New York / Nova Iorque, Também havia uma Nova Lamego (em Angola) e uma Nova Sintra (em Cabo Verde)...Há um município de Santarém, no Pará (Brasil)... E por aí fora.
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Nota do editor:
Últimos poste da série, do ano de 2016 > :
12 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16079: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (45): A brutal emboscada do dia 22/3/1974, na estrada (alcatroada, construida pela TECNIL ) Piche-Nova Lamego: só por negligência, propositada ou intencional ou casual, estes casos podiam acontecer... É coincidência apenas, ou as Forças Armadas só já estavam preocupadas com outros valores?...
3 de maio 2016 > Guiné 63/74 - P16044: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (44): Os desentendimentos constantes entre alguns PALOP e Portugal... A luta continua.!...
30 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15913: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (43): Os receios europeus de um antigo colonialista português, gen Norton de Matos, em dezembro de 1943
22 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15781: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (42): A unidade que os cabo-verdianos ajudaram a criar
5 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15748: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (42): As riquezas das matéria primas africanas e as fantasias criadas
16 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15623: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (41): o que foi mais devastador para o PAIGC foi precisamente a campanha psicológica spinolista por uma "Guiné Melhor"
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
Guiné 63/74 - P16816: Notas de leitura (909): “Conhecimento do Inferno", por António Lobo Antunes, Editorial Vega - O Chão da Palavra, 1980 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2015:
Queridos amigos,
Entrei na loja daquele vendedor de livros em segunda mão, imaginem, à procura de uma certa história de África, nisto vi várias pilhas de livros com a indicação de dois euros e meio cada. Sentei-me num banquinho, é habito de pesquisador, sem esperanças prévias, se coisa boa aparecer é dádiva dos céus. E dádiva houve, uma das primeiras edições deste terrível
"Conhecimento do Inferno", li-o com um misto de prazer e de náusea, nunca fui curioso da doença mental, neste romance é fantasia que não se esgota.
Trata-se de um simulacro de viagem de um médico que regressa à casa dos pais, é mais uma peregrinação que uma viagem, peregrinação à guerra em Angola, às coisas da infância, inapagáveis.
Ao findar esta trilogia de obras que abarcam uma vida de médico que teve infância, que amou perdidamente e tudo se esvaiu, volta-se à guerra e fica-se com a ideia de que tudo aquilo se passou é uma dor no limbo, um compasso de espera em que os atores estão adormecidos a aguardar sinal para a última viagem. Escrevi um dia que esta literatura de guerra se finará só quando o último combatente exalar o suspiro derradeiro. Até lá, é certo e seguro, podemos esperar grandes surpresas como este "Conhecimento do Inferno".
Um abraço do
Mário
"Conhecimento do Inferno", por António Lobo Antunes
Beja Santos
“Memória de Elefante”, “Os Cus de Judas” e “Conhecimento do Inferno” aparecem como uma trilogia, a primeira grande viagem de um escritor à volta de amores perdidos, das recordações familiares, da vivência de um tenente-médico na guerra colonial e a experiência do psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, um antes, um durante e um depois, rememorados em puzzle, em pungentes monólogos, em viagens aturdidas, numa duríssima crítica a certa prática psiquiátrica: mesmo no inferno dos loucos, a África da guerra colonial é omnipresente, é termo de comparação, é sempre um grito de revolta.
O autor, neste ciclo da sua vida, aparecia acampado em Angola. Logo uma descrição do país dos Luchazes, no arranque de “Conhecimento do Inferno”:
“O país dos Luchazes é um planalto vermelho, mil e duzentos metros acima do mar, em que o pó cor de tijolo atravessa a roupa para nos aderir à pele, se nos enredar nos cabelos, nos obstruir as narinas do seu odor da terra, próximo do odor ácido e seco dos mortos. O país dos Luchazes, quase despovoado de árvores, é um país de leprosos e trevas, um país de vultos inquietos, de rumorosos fantasmas, de gigantescas borboletas emergindo dos seus casulos do escuro para cambalearem, em busca das lâmpadas. É o país onde os defuntos assistem sentados aos batuques. É um país magro de mandioca e de caça”.
A guerra está muito próximo, é incontornável entre o presente e o futuro:
“Em 1973, eu regressei da guerra e sabia de feridos, do latir de gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento do inferno”.
Dentro da carpintaria do romance, tudo se passa ao volante numa viagem entre o Algarve e a Praia das Maças. É nesta longa e tortuosa deambulação que vamos enfrentar o local onde funciona o inferno dos loucos:
“O Hospital Miguel Bombarda, ex-convento, ex-colégio militar, ex-Manicómio Rilhafoles do Marechal Saldanha, é um velho edifício decrépito perto do Campo Santana, das árvores escuras e dos cisnes de plástico do Campo Santana, perto do casarão húmido da Morgue, onde, em estudante, retalhara ventres em mesas de pedra num nojo imenso”.
A memória viaja em ziguezague, há um recuo até ao tempo em que num Alentejo de calor insuportável, o médico veio examinar os mancebos apresentados nas sortes, isto passava-se num ginásio, em que desfilavam os ditos mancebos “que o Exército convocara, arregimentara para defenderem em África os fazendeiros do café, as prostitutas e os negociantes de explosivos, os que mandavam no país em nome de ideais confusos de opressão, sentado à secretária, desfilar em diante de mim os rapazes de Elvas no ginásio fechado, que o fedor das virilhas, do excesso de pessoas e das roupas abandonadas no chão empestava como o um de curro trágico e triste”.
Há como que um remoço permanente para este ofício de médico-psiquiatra obrigado, de acordo com o diagnóstico, enjaular certos pacientes:
“Crescia em mim uma espécie de vergonha, ou de aflição, ou de remorso, sempre que preenchia um boletim de internamento e aferrolhava no manicómio as íris surpreendidas e tímidas que me fitavam. Ninguém tem culpa e eu preciso de comer, obtive este emprego do Estado, procedi a exames, concursos, testes de cruzinhas, provas públicas, pago renda de casa e justifico os vinte contos que ganho aprisionando pessoas no asilo, escutando desatento as suas inquietações e as suas queixas”.
Em dado passo, ouvimos psicanalistas conversarem entre si, falam no seio materno, na pré-genitalidade, no desejo consciente de união com a mãe, mamilo ameaçador, a fúria do escritor não tem limites, não sei se alguma vez alguém desancou nestes profissionais de saúde como o faz Lobo Antunes:
“De todos os médicos que conheci, os psicanalistas, congregação de padres laicos com bíblia, ofícios e fiéis, formam a mais sinistra, a mais ridícula, mais doentia das espécies. Enquanto os psiquiatras da pílula são pessoas simples, sem veredas, meros carrascos ingénuos reduzidos à guilhotina esquemática do eletrochoque, os outros surgem armados de uma religião complexa com divãs por altares, uma religião rigidamente hierarquizada, com os seus cardeais, os seus bispos, os seus cónegos, os seus seminaristas já precocemente graves e velhos, ensaiando nos conventos dos institutos um latim canhestro de aprendizes”.
É neste fundo dos fundos, a dar consultas ou a visitar enfermarias que o assaltam recordações devastadoras, as passadas em África:
“Recebeu o estetoscópio do enfermeiro, introduziu as olivas nos ouvidos, experimentou o diafragma raspando-o com a unha do indicador, e ao aplica-lo no peito do doente veio-lhe de súbito à memória o dia 13 de Outubro de 1972, em Marimba, na Baixa do Cassanje, Angola, quando os oficiais empurraram os três negros para o posto de socorros e os obrigaram a estender-se no chão. Eram os três negros que roubavam a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes ao longo desse comprido segundo ano de guerra. Os relâmpagos estalavam de contínuo num fedor acre de enxofre. Os três negros levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes, murros, chibatadas, insultos da companhia inteira, exausta por muitos meses de guerra, dos soldados a quem se haviam tirados as armas para que se não assassinassem uns aos outros na caserna, depois das últimas cervejas. Faltava dinheiro, faltavam calças, faltavam camisas, apodrecíamos de parasitas, de paludismo, de água choca, de medo, e os três negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços das pauladas, eram os culpados dos tiros, da angústia, da estupidez da guerra, e como tal desatamos a deixar tombar sobre os seus peitos, sobre os ventres, sobre as coxas, pontas acesas de cigarro, fósforo a arder, morrões de cinza, que pregueavam a pele de bolhas translúcidas que se elevavam e estalavam”.
Quando a viagem caminha para o fim, outra memória traiçoeira o assalta, desta vez o quartel de Mangando:
“- Porque é que as pessoas se matam? – perguntou o alferes.
Estávamos no quartel de Mangando, junto à fronteira com o Congo: mais alguns quilómetros e via-se sobre o rio o acampamento do MPLA do outro lado. Mangando é uma pequena povoação sem importância, tão sem importância que nenhum mapa, nenhuma carta a refere, composta por uma sanzala miserável, um renque de palmeiras desdentadas e calvas, a casa onde o chefe de posto escondia a sua amante negra, e o círculo de arame farpado em torno das barracas de madeira da tropa, onde um pelotão seminu, trémulo de sezões, apodrecia. Eram cinco horas da manhã e o suicida acabara de morrer depois de muitas e desesperadas convulsões diante dos nossos olhos espantados. O suicida acabara de morrer e jazia, tapado com um lençol, num cubículo vizinho”.
Mas havia mais lugares de desespero naquela latitude de Angola, como ele recorda:
“Eu conhecia o Mussuma, a dez quilómetros da Zâmbia. Fora lá muitas vezes, de avioneta, levar comida fresca e medicamentos a um grupo de homens maltrapilhos, de espingarda, metidos num buraco como ratos. De longe, os telhados de zinco cintilavam ao sol: era uma cova de caixão do tamanho de um corpo inerte, de um corpo fatigado. Entrava-se no arame e a boca enchia-se de terra como a dos defuntos, que se mastigam a si próprios no silêncio de mogno dos caixões”.
É uma das recordações mais dramáticas e mais pungentes, à volta de um suicídio de quem não se conhecem os porquês. É assim o espanto da vida, da profissão de médico, dos sulcos vincados que perduram no ex-combatente, que perduram até no conhecimento do inferno.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 5 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16801: Notas de leitura (908): “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, pela jornalista Sarah Adamopoulos e pelo biografado, Editora: Ler Devagar, 2016 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Entrei na loja daquele vendedor de livros em segunda mão, imaginem, à procura de uma certa história de África, nisto vi várias pilhas de livros com a indicação de dois euros e meio cada. Sentei-me num banquinho, é habito de pesquisador, sem esperanças prévias, se coisa boa aparecer é dádiva dos céus. E dádiva houve, uma das primeiras edições deste terrível
"Conhecimento do Inferno", li-o com um misto de prazer e de náusea, nunca fui curioso da doença mental, neste romance é fantasia que não se esgota.
Trata-se de um simulacro de viagem de um médico que regressa à casa dos pais, é mais uma peregrinação que uma viagem, peregrinação à guerra em Angola, às coisas da infância, inapagáveis.
Ao findar esta trilogia de obras que abarcam uma vida de médico que teve infância, que amou perdidamente e tudo se esvaiu, volta-se à guerra e fica-se com a ideia de que tudo aquilo se passou é uma dor no limbo, um compasso de espera em que os atores estão adormecidos a aguardar sinal para a última viagem. Escrevi um dia que esta literatura de guerra se finará só quando o último combatente exalar o suspiro derradeiro. Até lá, é certo e seguro, podemos esperar grandes surpresas como este "Conhecimento do Inferno".
Um abraço do
Mário
"Conhecimento do Inferno", por António Lobo Antunes
Beja Santos
“Memória de Elefante”, “Os Cus de Judas” e “Conhecimento do Inferno” aparecem como uma trilogia, a primeira grande viagem de um escritor à volta de amores perdidos, das recordações familiares, da vivência de um tenente-médico na guerra colonial e a experiência do psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, um antes, um durante e um depois, rememorados em puzzle, em pungentes monólogos, em viagens aturdidas, numa duríssima crítica a certa prática psiquiátrica: mesmo no inferno dos loucos, a África da guerra colonial é omnipresente, é termo de comparação, é sempre um grito de revolta.
O autor, neste ciclo da sua vida, aparecia acampado em Angola. Logo uma descrição do país dos Luchazes, no arranque de “Conhecimento do Inferno”:
“O país dos Luchazes é um planalto vermelho, mil e duzentos metros acima do mar, em que o pó cor de tijolo atravessa a roupa para nos aderir à pele, se nos enredar nos cabelos, nos obstruir as narinas do seu odor da terra, próximo do odor ácido e seco dos mortos. O país dos Luchazes, quase despovoado de árvores, é um país de leprosos e trevas, um país de vultos inquietos, de rumorosos fantasmas, de gigantescas borboletas emergindo dos seus casulos do escuro para cambalearem, em busca das lâmpadas. É o país onde os defuntos assistem sentados aos batuques. É um país magro de mandioca e de caça”.
A guerra está muito próximo, é incontornável entre o presente e o futuro:
“Em 1973, eu regressei da guerra e sabia de feridos, do latir de gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento do inferno”.
Dentro da carpintaria do romance, tudo se passa ao volante numa viagem entre o Algarve e a Praia das Maças. É nesta longa e tortuosa deambulação que vamos enfrentar o local onde funciona o inferno dos loucos:
“O Hospital Miguel Bombarda, ex-convento, ex-colégio militar, ex-Manicómio Rilhafoles do Marechal Saldanha, é um velho edifício decrépito perto do Campo Santana, das árvores escuras e dos cisnes de plástico do Campo Santana, perto do casarão húmido da Morgue, onde, em estudante, retalhara ventres em mesas de pedra num nojo imenso”.
A memória viaja em ziguezague, há um recuo até ao tempo em que num Alentejo de calor insuportável, o médico veio examinar os mancebos apresentados nas sortes, isto passava-se num ginásio, em que desfilavam os ditos mancebos “que o Exército convocara, arregimentara para defenderem em África os fazendeiros do café, as prostitutas e os negociantes de explosivos, os que mandavam no país em nome de ideais confusos de opressão, sentado à secretária, desfilar em diante de mim os rapazes de Elvas no ginásio fechado, que o fedor das virilhas, do excesso de pessoas e das roupas abandonadas no chão empestava como o um de curro trágico e triste”.
Há como que um remoço permanente para este ofício de médico-psiquiatra obrigado, de acordo com o diagnóstico, enjaular certos pacientes:
“Crescia em mim uma espécie de vergonha, ou de aflição, ou de remorso, sempre que preenchia um boletim de internamento e aferrolhava no manicómio as íris surpreendidas e tímidas que me fitavam. Ninguém tem culpa e eu preciso de comer, obtive este emprego do Estado, procedi a exames, concursos, testes de cruzinhas, provas públicas, pago renda de casa e justifico os vinte contos que ganho aprisionando pessoas no asilo, escutando desatento as suas inquietações e as suas queixas”.
Em dado passo, ouvimos psicanalistas conversarem entre si, falam no seio materno, na pré-genitalidade, no desejo consciente de união com a mãe, mamilo ameaçador, a fúria do escritor não tem limites, não sei se alguma vez alguém desancou nestes profissionais de saúde como o faz Lobo Antunes:
“De todos os médicos que conheci, os psicanalistas, congregação de padres laicos com bíblia, ofícios e fiéis, formam a mais sinistra, a mais ridícula, mais doentia das espécies. Enquanto os psiquiatras da pílula são pessoas simples, sem veredas, meros carrascos ingénuos reduzidos à guilhotina esquemática do eletrochoque, os outros surgem armados de uma religião complexa com divãs por altares, uma religião rigidamente hierarquizada, com os seus cardeais, os seus bispos, os seus cónegos, os seus seminaristas já precocemente graves e velhos, ensaiando nos conventos dos institutos um latim canhestro de aprendizes”.
É neste fundo dos fundos, a dar consultas ou a visitar enfermarias que o assaltam recordações devastadoras, as passadas em África:
“Recebeu o estetoscópio do enfermeiro, introduziu as olivas nos ouvidos, experimentou o diafragma raspando-o com a unha do indicador, e ao aplica-lo no peito do doente veio-lhe de súbito à memória o dia 13 de Outubro de 1972, em Marimba, na Baixa do Cassanje, Angola, quando os oficiais empurraram os três negros para o posto de socorros e os obrigaram a estender-se no chão. Eram os três negros que roubavam a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes ao longo desse comprido segundo ano de guerra. Os relâmpagos estalavam de contínuo num fedor acre de enxofre. Os três negros levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes, murros, chibatadas, insultos da companhia inteira, exausta por muitos meses de guerra, dos soldados a quem se haviam tirados as armas para que se não assassinassem uns aos outros na caserna, depois das últimas cervejas. Faltava dinheiro, faltavam calças, faltavam camisas, apodrecíamos de parasitas, de paludismo, de água choca, de medo, e os três negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços das pauladas, eram os culpados dos tiros, da angústia, da estupidez da guerra, e como tal desatamos a deixar tombar sobre os seus peitos, sobre os ventres, sobre as coxas, pontas acesas de cigarro, fósforo a arder, morrões de cinza, que pregueavam a pele de bolhas translúcidas que se elevavam e estalavam”.
Quando a viagem caminha para o fim, outra memória traiçoeira o assalta, desta vez o quartel de Mangando:
“- Porque é que as pessoas se matam? – perguntou o alferes.
Estávamos no quartel de Mangando, junto à fronteira com o Congo: mais alguns quilómetros e via-se sobre o rio o acampamento do MPLA do outro lado. Mangando é uma pequena povoação sem importância, tão sem importância que nenhum mapa, nenhuma carta a refere, composta por uma sanzala miserável, um renque de palmeiras desdentadas e calvas, a casa onde o chefe de posto escondia a sua amante negra, e o círculo de arame farpado em torno das barracas de madeira da tropa, onde um pelotão seminu, trémulo de sezões, apodrecia. Eram cinco horas da manhã e o suicida acabara de morrer depois de muitas e desesperadas convulsões diante dos nossos olhos espantados. O suicida acabara de morrer e jazia, tapado com um lençol, num cubículo vizinho”.
Mas havia mais lugares de desespero naquela latitude de Angola, como ele recorda:
“Eu conhecia o Mussuma, a dez quilómetros da Zâmbia. Fora lá muitas vezes, de avioneta, levar comida fresca e medicamentos a um grupo de homens maltrapilhos, de espingarda, metidos num buraco como ratos. De longe, os telhados de zinco cintilavam ao sol: era uma cova de caixão do tamanho de um corpo inerte, de um corpo fatigado. Entrava-se no arame e a boca enchia-se de terra como a dos defuntos, que se mastigam a si próprios no silêncio de mogno dos caixões”.
É uma das recordações mais dramáticas e mais pungentes, à volta de um suicídio de quem não se conhecem os porquês. É assim o espanto da vida, da profissão de médico, dos sulcos vincados que perduram no ex-combatente, que perduram até no conhecimento do inferno.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16801: Notas de leitura (908): “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, pela jornalista Sarah Adamopoulos e pelo biografado, Editora: Ler Devagar, 2016 (Mário Beja Santos)
sábado, 8 de outubro de 2016
Guiné 63/74 - P16577: Vídeos da guerra (13): Documentário "Cartas da Guerra - Making of" (, produção O Som e a Fúria, 2016) passou na RTP2, dia 14 de setembro de 2016, e pode ser visto "on line"
Três fotogramas do documentário "Cartas da Guerra - Making Of" (Com a devida vénia..., à produtora e à RTP2)
CARTAS DA GUERRA - MAKING OF > RTP2, dia 14 de Setembro, às 21h. Está disponível aqui (para quem o quiser ver e rever):
http://www.rtp.pt/play/p2791/cartas-de-guerra-making-of
Sinopse:
O processo por detrás das câmaras. Como Ivo Ferreira construiu esta obra dramática, segundo um argumento seu e de Edgar Medina que se inspira em "D´Este Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas da Guerra", uma compilação de cartas que António Lobo Antunes (na altura um jovem alferes destacado para Angola) escreveu à mulher.
Ano de 1971. António (Miguel Nunes), de 28 anos, é incorporado no exército português para servir como médico numa das piores zonas da Guerra Colonial, no Leste de Angola. Longe de Maria José (Margarida Vila-Nova), a mulher amada que se viu obrigado a deixar, ele vai matando as saudades através de longas cartas que durante dois anos lhe escreve. Através delas, o espectador vai conhecendo o homem solitário por detrás do soldado, as suas angústias, desejos e esperanças. Com o passar do tempo, António apaixona-se por África e toma posições políticas?
1. “Cartas da Guerra – Making Of”, da produtora O Som e a Fúria, revela-nos aquilo que habitualmente não se vê no ecrã, quando vamos ao cinema ver um filme: os bastidores, os atores "sem maquilhagem", os exteriores, a construção de cenários, os técnicos, os intervalos das filamgens, as entrevistas com diferentes elementas das equipas, o processo por detrás das câmaras da realização, enfim, o filme do filme.
1. “Cartas da Guerra – Making Of”, da produtora O Som e a Fúria, revela-nos aquilo que habitualmente não se vê no ecrã, quando vamos ao cinema ver um filme: os bastidores, os atores "sem maquilhagem", os exteriores, a construção de cenários, os técnicos, os intervalos das filamgens, as entrevistas com diferentes elementas das equipas, o processo por detrás das câmaras da realização, enfim, o filme do filme.
Neste caso trata-se de um filme ("making of") sobre o filme português "Cartas da Guerra", do realizador Ivo M. Ferreira, com argumento do próprio e de Edgar Medina. Inspira-se em "D’ Este Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas da Guerra", uma compilação de cartas que António Lobos Antunes escreveu à sua mulher em Luanda, Huambo, Moxico e Malanje ( e que as filhas do casal Maria José e Joana Lobo Antunes publicaram depois da morte da mãe, mas com o consentimento desta em vida e naturalmente do pai), bem como nos primeiros romances do autor ("Os Cus de Judas", "Memória de Elefante").,,,
O filme é protagonizado por Margarida Vila-Nova e por Miguel Nunes, e passado no ano de 1971, no leste de Angola. António (Miguel Nunes), de 28 anos, alferes miliciano médico, é mobilizado para a guerra do ultramar/guerra colonial. Longe de Maria José (Margarida Vila-Nova), a mulher que ele ama, que espera um/a filho/a dele e que se vê obrigado a deixar, em Lisboa, vai matando o tempo e as saudades através do único meio de que de que dispõe: a carta, o aerograma... Lisboa fica a muitos milhares de quilómetros de distância...
O filme é protagonizado por Margarida Vila-Nova e por Miguel Nunes, e passado no ano de 1971, no leste de Angola. António (Miguel Nunes), de 28 anos, alferes miliciano médico, é mobilizado para a guerra do ultramar/guerra colonial. Longe de Maria José (Margarida Vila-Nova), a mulher que ele ama, que espera um/a filho/a dele e que se vê obrigado a deixar, em Lisboa, vai matando o tempo e as saudades através do único meio de que de que dispõe: a carta, o aerograma... Lisboa fica a muitos milhares de quilómetros de distância...
Para além de uma poderosa história de amor, vamos descobrindo um homem, que é militar e é médico (, licenciado em 1969), com as suas angústias, os seus desejos e as suas esperanças, e que se vai transformando na maneira como vê a guerra, a camaradagem, a solidão, a vida, a África e o mundo. Ver aqui o trailer do filme.
2. Título Original: Cartas da Guerra – Making Of (26' 05'')
"Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, estreado comercialmente entre nós, em 1 de setembro passado, é o filme português candidato à nomeação para Óscar de melhor filme estrangeiro e para Goya de melhor filme Ibero-Americano, de acordo com a Academia Portuguesa de Cinema. Esta também na lista dos 50 filmes, de trinta e tal países, selecinados pela Academia Europeia de Cinema para o prémio do melhor filme europeu.
O filme está em exibição nos cinemas e deve em breve chegar aos 15 mil espectadores.
"Cartas da Guerra" teve estreia mundial no Festival de Cinema de Berlim de 2016 e já foi apresentado nos festivais de Sidney, Hong Kong, Thessaloniki, entre outros.
O filme já tem estreia comercial assegurada para França, Espanha, Bélgica, Holanda e Brasil, entre finais de 2016 e 2017.
O filme contou com apoios portugueses (por ex., o exército, além do dinheiro dos contribuintes..,) e de Angola (em particular, das Forças Armadas Angolanas, bem como das populações e do ex-governador do Cuando Cubango, gen Francisco Higino Lopes Carneiro, e um dos homens fortes do MPLA, recentemente nomeado para governador da província de Luanda). O Cuando Cubango é conhecido como as "terras do fim do mundo"...
O projeto do filme remonat a 2009. A rodagem em Angola teve também as suas peripécias e contratempos. O “décor” principal, o aquartelamento de Chiúme, foi construído de raiz, com a paricipação ativa da população local. O filme conta com um mão cheia de jovens atores e técnicos talentosos, portugueses e angolanos. O realizador diz explicitamenet que não quis fazer um "filme convencional" de guerra. É mais uma história de amor em tempo e espaço de guerra.
A opinião dos antigos combatentes que já viram o filme está longe de ser consensual. No nosso blogue já aqui opinaram alguns dos nossos camaradas.
Já na altura, a publicação das cartas e posteriores declarações de A, Lobo Antunes também levantaram polémica. Mas o filme não é do escritor António Lobo, é de um jovem e talentoso realizador Ivo M. Ferreira que quis assumir o risco de fazer um filme a partir de material literário (cartas, aerogramas, e não um conto, uma novela ou um romance...) que não é o mais moldável... Pode-se perguntar se os autores do argumento conseguiram ou não libertar-se do formato imposto pelo escritor ? Conseguiram ou não escrever um bom guião ?
Uma das várias cenas tocantes do filme (e visível no documentário sobre o "making of") é a relação "que se estabelece com a pequena actriz de cinco anos e o seu avô, da comunidade nómada Khoisan, que iria representar o papel de Tchihinga, a menina que Lobo Antunes salva, após uma operação militar, e apresenta à mulher Maria José numa das suas cartas. “Ontem trouxe uma miúda da mata. Os pais digamos que partiram para um mundo melhor. É de raça kamessekele, tem cerca de 3/4 anos e chama-se Tchihinga. Fiquei com ela. É muito bonita (…). Devo dizer que já gosto muito dela”, (António Lobo Antunes, Chiúme, 30.11.71). Este era um momento importante na narrativa do filme. “Tchihinga é uma história a que António Lobo Antunes volta frequentemente, nas crónicas, de vez em quando lá vem a personagem”, diz o realizador (cit por Cláudia Aranda - O filme das cartas do fim do mundo, Pontop Final, (Macau), 7 de agosto de 2015).
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"Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, estreado comercialmente entre nós, em 1 de setembro passado, é o filme português candidato à nomeação para Óscar de melhor filme estrangeiro e para Goya de melhor filme Ibero-Americano, de acordo com a Academia Portuguesa de Cinema. Esta também na lista dos 50 filmes, de trinta e tal países, selecinados pela Academia Europeia de Cinema para o prémio do melhor filme europeu.
O filme está em exibição nos cinemas e deve em breve chegar aos 15 mil espectadores.
"Cartas da Guerra" teve estreia mundial no Festival de Cinema de Berlim de 2016 e já foi apresentado nos festivais de Sidney, Hong Kong, Thessaloniki, entre outros.
O filme já tem estreia comercial assegurada para França, Espanha, Bélgica, Holanda e Brasil, entre finais de 2016 e 2017.
O filme contou com apoios portugueses (por ex., o exército, além do dinheiro dos contribuintes..,) e de Angola (em particular, das Forças Armadas Angolanas, bem como das populações e do ex-governador do Cuando Cubango, gen Francisco Higino Lopes Carneiro, e um dos homens fortes do MPLA, recentemente nomeado para governador da província de Luanda). O Cuando Cubango é conhecido como as "terras do fim do mundo"...
O projeto do filme remonat a 2009. A rodagem em Angola teve também as suas peripécias e contratempos. O “décor” principal, o aquartelamento de Chiúme, foi construído de raiz, com a paricipação ativa da população local. O filme conta com um mão cheia de jovens atores e técnicos talentosos, portugueses e angolanos. O realizador diz explicitamenet que não quis fazer um "filme convencional" de guerra. É mais uma história de amor em tempo e espaço de guerra.
A opinião dos antigos combatentes que já viram o filme está longe de ser consensual. No nosso blogue já aqui opinaram alguns dos nossos camaradas.
Já na altura, a publicação das cartas e posteriores declarações de A, Lobo Antunes também levantaram polémica. Mas o filme não é do escritor António Lobo, é de um jovem e talentoso realizador Ivo M. Ferreira que quis assumir o risco de fazer um filme a partir de material literário (cartas, aerogramas, e não um conto, uma novela ou um romance...) que não é o mais moldável... Pode-se perguntar se os autores do argumento conseguiram ou não libertar-se do formato imposto pelo escritor ? Conseguiram ou não escrever um bom guião ?
Uma das várias cenas tocantes do filme (e visível no documentário sobre o "making of") é a relação "que se estabelece com a pequena actriz de cinco anos e o seu avô, da comunidade nómada Khoisan, que iria representar o papel de Tchihinga, a menina que Lobo Antunes salva, após uma operação militar, e apresenta à mulher Maria José numa das suas cartas. “Ontem trouxe uma miúda da mata. Os pais digamos que partiram para um mundo melhor. É de raça kamessekele, tem cerca de 3/4 anos e chama-se Tchihinga. Fiquei com ela. É muito bonita (…). Devo dizer que já gosto muito dela”, (António Lobo Antunes, Chiúme, 30.11.71). Este era um momento importante na narrativa do filme. “Tchihinga é uma história a que António Lobo Antunes volta frequentemente, nas crónicas, de vez em quando lá vem a personagem”, diz o realizador (cit por Cláudia Aranda - O filme das cartas do fim do mundo, Pontop Final, (Macau), 7 de agosto de 2015).
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Nota do editor:
Último poste da série > 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15291: Vídeos da guerra (12): "A ternura dos 20 anos", de Armando Ferreira, natural de Alpiarça, escultor de profissão, ex-fur mil cav, CCAV 8353 (Cumeré, Bula, Pete, Ilondé, Bissau, 1973/74): uma emocionante e emocionada homenagem aos seus camaradas mortos e feridos, há 42 anos, no "batismo de fogo", em 5/5/1973, em Bula, em que "deixei de ser eu" (sic)
Último poste da série > 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15291: Vídeos da guerra (12): "A ternura dos 20 anos", de Armando Ferreira, natural de Alpiarça, escultor de profissão, ex-fur mil cav, CCAV 8353 (Cumeré, Bula, Pete, Ilondé, Bissau, 1973/74): uma emocionante e emocionada homenagem aos seus camaradas mortos e feridos, há 42 anos, no "batismo de fogo", em 5/5/1973, em Bula, em que "deixei de ser eu" (sic)
sexta-feira, 16 de setembro de 2016
Guiné 63/74 - P16495: Notas de leitura (880): Os Cus de Judas, por António Lobo Antunes (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2015:
Queridos amigos,
Aqui se põe termo a esta narrativa que foi tão galvanizante, é tão reconhecida a sua importância que até ao ano passado já tinha conhecido 33 edições, em Portugal, narrativa autobiográfica, há para ali dores que não se apagam, embaraços na alma que não encontram ancoradouro como Lobo Antunes em determinada altura escreve: "Flutuo entre dois continentes que me repelem" ou "O medo de voltar ao meu país comprime-me o esófago, porque estive longe demais, tempo demais para pertencer aqui". E por fim: "O avião que nos traz a Lisboa transporta consigo uma carga de fantasmas que lentamente se materializam, oficiais e soldados amarelos de paludismo, atarraxados nos assentos, de pupilas ocas, observando pela janela um espaço sem cor, de útero, do céu" e tudo termina assim: "E separámo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas num redemoinho civil da cidade".
Temos aqui obra-prima no top da nossa literatura de guerra.
Um abraço do
Mário
Os Cus de Judas (2), por António Lobo Antunes
Beja Santos
Estamos num bar, as horas escorrem sossegadas, o narrador beberrica e tem por assistência uma mulher que nunca será definida. Em certos momentos, sobrelevando a exaltação pela soma de tantos silêncios, pelo absurdo de tantos corpos cozidos ou metidos em urnas, como que num relâmpago de ternura iluminam-se episódios como o do nascimento da primeira filha, Lobo Antunes nunca nos iludiu com a vertigem autobiográfica:
“Eu tinha-me casado, sabe como é, quatro meses antes de embarcar, em Agosto, numa tarde de sol a que o som do órgão, as flores nos altares e as lágrimas da família emprestavam um não sei quê de filme de Buñuel enternecido e suave, depois de breves encontros de fim de semana em que fazíamos amor numa raiva de urgência, e despedimo-nos sob a chuva, no cais, de olhos secos, presos um ao outro num abraço de órfãos. E agora, a 10 mil quilómetros de mim, a minha filha, massa do meu esperma, a cujo crescimento de toupeira sob a pele do ventre eu não assistira, irrompia de súbito no cubículo das transmissões, entre recortes de revistas e calendários de atrizes nuas”.
Mas o que pesa, o que domina toda a narrativa anda pela agonia da espera, como o autor verbera:
“A lenta, aflita, torturante agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a espera do paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso, a espera do jipe da Pide que semanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo consigo três ou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam lá dentro, fechavam os olhos com força, e amoleciam depois da bala como um suflé se abate, de flor vermelha de sangue a crescer as pétalas na testa”.
E há as descrições, por vezes alucinantes, como aquele louco na mata, é um horrível epitáfio do colonialismo. Ainda não chegou a manhã, o narrador e a sua ouvinte mantêm de pé todo este monólogo plangente, e o autor grita:
“Foda-se, vim para aqui porque me expulsaram do meu país a bordo de um navio cheio de tropas desde o porão à ponte e me aprisionaram em três voltas de arame cercadas de minas e de guerra, me reduziram às garrafas de oxigénio das cartas da família e das fotografias da filha, Angola era um retângulo cor-de-rosa no mapa da instrução primária, freiras pretas a sorrirem no calendário das Missões, mulheres de argolas no nariz, Mouzinho de Albuquerque e hipopótamos. Um amigo negro da Faculdade levou-me um dia ao seu quarto no Arco do Cego, e mostrou-me o retrato de uma velha esquelética, em cujo rosto se adivinhavam gerações e gerações de petrificada revolta:
- É a nossa Guernica. Queria que a visses antes de me vir embora porque me chamaram na tropa e fujo amanhã para a Tanzânia”.
Recordações é o que não falta neste relato vivo mas atribulado, amor por empréstimo, a peste da solidão. As horas passam, a ouvinte seguiu o narrador até à sua casa, despem-se e toda aquela dor sufocante que ele traz desde Angola assoma com carga poética, é uma intocável lembrança:
“Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: em Mangando e Marimbanguengo a tropa estacionada tiritava de paludismo e de aflição, soldados seminus cambaleavam no calor insuportável da caserna, que o relento do suor e dos corpos por lavar entontecia como os hálitos nauseabundos dos cadáveres, se nos inclinarmos para eles à espera das tristes palavras apodrecidas que os mortos legam as vivos num borbulhar de sílabas informes. Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções, espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de 20 anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel enfermeiro, que desinfetava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não tenhamos por aqui uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de 20 anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar do rádio: Um tipo deu um tiro em Mangando”.
E esta vibração poética atinge aqui o seu auge:
“Penso que quando eu morrer a África colonial voltará ao meu encontro, e procurarei em vão os negros da sanzala ao longe, a manga da pista de aviação acenando escarninhamente para ninguém. De novo será noite e apear-me-ei do Unimog a caminho do posto de socorros, onde o tipo sem rosto agoniza, aclarado pelo petromax que um cabo segura à altura da cabeça e contra o qual os insetos se desafazem num ruidozinho quitinoso de torresmos. O tipo sem rosto agoniza numa agitação incontornável, amarrado à marquesa de ferro que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões. As ampolas de morfina sucessivamente injetadas no deltóide parecem esporear cada vez mais o corpo amarrado que se rebola e torce, e o petromax múltipla nas paredes em sombras que confluem, se sobrepõem e se afastam, formando uma dança frenética de manchas na geometria suja do estuque. Apetece-me abrir a porta de golpe, abandoná-lo, sair dali, tropeçar ao acaso, sentar-me nos degraus de uma velha casa de colono, de mãos no queixo, vazio de indignação. Os grilos de Mangando enchem a noite de ruídos, um dilatado e suave som contínuo sobe a terra e canta, as árvores, os arbustos, a miraculosa flora de África solta-se do chão e flutua, livre, na atmosfera espessa de vibrações e de cicios, o tipo amarrado à marquesa agoniza a um metro de mim, e queria estar a 13 mil quilómetros dali, a vigiar o sono da minha filha nos panos do seu berço.
Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: o sujeito imobilizou-se por fim num estremeção derradeiro, o que restava da garanta cessou o seu borbulhar ansioso, o cabo do petromax deixou pender o braço e as sombras estenderam-se no soalho, subitamente imóveis. Ficámos muito tempo a contemplar o cadáver agora em sossego, as mãos molemente cavadas sobre as coxas, as botas que se afiguravam dilatadas de um recheio de palha, quietas na placa de ferro branco, mal pintada, da marquesa. O pequeno grupo apinhado dissolveu-se devagar num murmúrio indistinto, e eu dava o cu para estar longe dali, longe do gajo morto que mudamente me acusava, longe das ampolas de morfina que se amontoavam, vazias, no balde pensos”.
A comissão caminha para o fim e começa a tripa-forra dos disparates, como em todas as guerras que vivemos:
“Trazíamos 25 meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas tripas, de modo que nos divertíamos mordendo-nos como os animais se mordem nos seus jogos, nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos, furibundos, numa raiva invejosa de cães, misturávamos comprimidos para dormir no uísque da Manutenção e circulávamos a cambalear pela parada, entoando em coro obscenidades de colégio”.
É raro um escritor lançar-se primigenamente junto do público com tão palpitante escrita, já se anunciavam aqui as suas obras-primas.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 12 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16476: Notas de leitura (879): Os Cus de Judas, por António Lobo Antunes (1) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Aqui se põe termo a esta narrativa que foi tão galvanizante, é tão reconhecida a sua importância que até ao ano passado já tinha conhecido 33 edições, em Portugal, narrativa autobiográfica, há para ali dores que não se apagam, embaraços na alma que não encontram ancoradouro como Lobo Antunes em determinada altura escreve: "Flutuo entre dois continentes que me repelem" ou "O medo de voltar ao meu país comprime-me o esófago, porque estive longe demais, tempo demais para pertencer aqui". E por fim: "O avião que nos traz a Lisboa transporta consigo uma carga de fantasmas que lentamente se materializam, oficiais e soldados amarelos de paludismo, atarraxados nos assentos, de pupilas ocas, observando pela janela um espaço sem cor, de útero, do céu" e tudo termina assim: "E separámo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas num redemoinho civil da cidade".
Temos aqui obra-prima no top da nossa literatura de guerra.
Um abraço do
Mário
Os Cus de Judas (2), por António Lobo Antunes
Beja Santos
Estamos num bar, as horas escorrem sossegadas, o narrador beberrica e tem por assistência uma mulher que nunca será definida. Em certos momentos, sobrelevando a exaltação pela soma de tantos silêncios, pelo absurdo de tantos corpos cozidos ou metidos em urnas, como que num relâmpago de ternura iluminam-se episódios como o do nascimento da primeira filha, Lobo Antunes nunca nos iludiu com a vertigem autobiográfica:
“Eu tinha-me casado, sabe como é, quatro meses antes de embarcar, em Agosto, numa tarde de sol a que o som do órgão, as flores nos altares e as lágrimas da família emprestavam um não sei quê de filme de Buñuel enternecido e suave, depois de breves encontros de fim de semana em que fazíamos amor numa raiva de urgência, e despedimo-nos sob a chuva, no cais, de olhos secos, presos um ao outro num abraço de órfãos. E agora, a 10 mil quilómetros de mim, a minha filha, massa do meu esperma, a cujo crescimento de toupeira sob a pele do ventre eu não assistira, irrompia de súbito no cubículo das transmissões, entre recortes de revistas e calendários de atrizes nuas”.
Mas o que pesa, o que domina toda a narrativa anda pela agonia da espera, como o autor verbera:
“A lenta, aflita, torturante agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a espera do paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso, a espera do jipe da Pide que semanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo consigo três ou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam lá dentro, fechavam os olhos com força, e amoleciam depois da bala como um suflé se abate, de flor vermelha de sangue a crescer as pétalas na testa”.
E há as descrições, por vezes alucinantes, como aquele louco na mata, é um horrível epitáfio do colonialismo. Ainda não chegou a manhã, o narrador e a sua ouvinte mantêm de pé todo este monólogo plangente, e o autor grita:
“Foda-se, vim para aqui porque me expulsaram do meu país a bordo de um navio cheio de tropas desde o porão à ponte e me aprisionaram em três voltas de arame cercadas de minas e de guerra, me reduziram às garrafas de oxigénio das cartas da família e das fotografias da filha, Angola era um retângulo cor-de-rosa no mapa da instrução primária, freiras pretas a sorrirem no calendário das Missões, mulheres de argolas no nariz, Mouzinho de Albuquerque e hipopótamos. Um amigo negro da Faculdade levou-me um dia ao seu quarto no Arco do Cego, e mostrou-me o retrato de uma velha esquelética, em cujo rosto se adivinhavam gerações e gerações de petrificada revolta:
- É a nossa Guernica. Queria que a visses antes de me vir embora porque me chamaram na tropa e fujo amanhã para a Tanzânia”.
Recordações é o que não falta neste relato vivo mas atribulado, amor por empréstimo, a peste da solidão. As horas passam, a ouvinte seguiu o narrador até à sua casa, despem-se e toda aquela dor sufocante que ele traz desde Angola assoma com carga poética, é uma intocável lembrança:
“Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: em Mangando e Marimbanguengo a tropa estacionada tiritava de paludismo e de aflição, soldados seminus cambaleavam no calor insuportável da caserna, que o relento do suor e dos corpos por lavar entontecia como os hálitos nauseabundos dos cadáveres, se nos inclinarmos para eles à espera das tristes palavras apodrecidas que os mortos legam as vivos num borbulhar de sílabas informes. Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções, espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de 20 anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel enfermeiro, que desinfetava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não tenhamos por aqui uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de 20 anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar do rádio: Um tipo deu um tiro em Mangando”.
E esta vibração poética atinge aqui o seu auge:
“Penso que quando eu morrer a África colonial voltará ao meu encontro, e procurarei em vão os negros da sanzala ao longe, a manga da pista de aviação acenando escarninhamente para ninguém. De novo será noite e apear-me-ei do Unimog a caminho do posto de socorros, onde o tipo sem rosto agoniza, aclarado pelo petromax que um cabo segura à altura da cabeça e contra o qual os insetos se desafazem num ruidozinho quitinoso de torresmos. O tipo sem rosto agoniza numa agitação incontornável, amarrado à marquesa de ferro que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões. As ampolas de morfina sucessivamente injetadas no deltóide parecem esporear cada vez mais o corpo amarrado que se rebola e torce, e o petromax múltipla nas paredes em sombras que confluem, se sobrepõem e se afastam, formando uma dança frenética de manchas na geometria suja do estuque. Apetece-me abrir a porta de golpe, abandoná-lo, sair dali, tropeçar ao acaso, sentar-me nos degraus de uma velha casa de colono, de mãos no queixo, vazio de indignação. Os grilos de Mangando enchem a noite de ruídos, um dilatado e suave som contínuo sobe a terra e canta, as árvores, os arbustos, a miraculosa flora de África solta-se do chão e flutua, livre, na atmosfera espessa de vibrações e de cicios, o tipo amarrado à marquesa agoniza a um metro de mim, e queria estar a 13 mil quilómetros dali, a vigiar o sono da minha filha nos panos do seu berço.
Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: o sujeito imobilizou-se por fim num estremeção derradeiro, o que restava da garanta cessou o seu borbulhar ansioso, o cabo do petromax deixou pender o braço e as sombras estenderam-se no soalho, subitamente imóveis. Ficámos muito tempo a contemplar o cadáver agora em sossego, as mãos molemente cavadas sobre as coxas, as botas que se afiguravam dilatadas de um recheio de palha, quietas na placa de ferro branco, mal pintada, da marquesa. O pequeno grupo apinhado dissolveu-se devagar num murmúrio indistinto, e eu dava o cu para estar longe dali, longe do gajo morto que mudamente me acusava, longe das ampolas de morfina que se amontoavam, vazias, no balde pensos”.
A comissão caminha para o fim e começa a tripa-forra dos disparates, como em todas as guerras que vivemos:
“Trazíamos 25 meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas tripas, de modo que nos divertíamos mordendo-nos como os animais se mordem nos seus jogos, nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos, furibundos, numa raiva invejosa de cães, misturávamos comprimidos para dormir no uísque da Manutenção e circulávamos a cambalear pela parada, entoando em coro obscenidades de colégio”.
É raro um escritor lançar-se primigenamente junto do público com tão palpitante escrita, já se anunciavam aqui as suas obras-primas.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16476: Notas de leitura (879): Os Cus de Judas, por António Lobo Antunes (1) (Mário Beja Santos)
segunda-feira, 12 de setembro de 2016
Guiné 63/74 - P16476: Notas de leitura (879): Os Cus de Judas, por António Lobo Antunes (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2015:
Queridos amigos,
Se pretendermos ser sinceros, dentro do rol de obras consagradas que poderão vir a ser lidas como textos indispensáveis da literatura de guerra, atrevia-me a adiantar dois nomes por cada um dos teatros africanos: "Os Cus de Judas", de António Lobo Antunes, e "Autópsia de Um Mar de Ruínas", de João de Melo, quanto a Angola; "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz, e "Olhos de Caçador", de António Brito, quanto a Moçambique; "Estranha noiva de guerra", de Armor Pires Mota e "O Diário do soldado Inácio Maria Góis", quanto à Guiné.
Este livro de Lobo Antunes, de que corre aí uma edição popular a menos de seis euros, é uma obra prodigiosa, preferi citá-lo a comentá-lo, verão como é tumultuosa, inebriante, asfixiante toda esta narrativa inventada entre um bar em ponto indeterminado e uma casa ali perto da Picheleira, com vista para o Tejo e o cemitério do Alto de S. João.
Um abraço do
Mário
Os Cus de Judas (1), por António Lobo Antunes
Beja Santos
As incursões por outras literaturas da guerra colonial, que não a da Guiné, trazem múltiplas vantagens: identificar paralelismos e reconhecer as diferenças advenientes da natureza do território, do poder do inimigo, por exemplo. António Lobo Antunes foi oficial médico em Angola. Estreou-se na literatura em 1979 com “Memória de Elefante” onde aflora algumas das questões suscitadas pela guerra e trava-se diretamente de razões em “Os Cus de Judas” sobre a sua comissão.
Tal como Memória de Elefante, temos aqui mais um livro declaradamente autobiográfico, recordações do meio familiar, a preparação, a viagem, estamos agora em Luanda. Esta narrativa não é linear, trata-se de um pungente monólogo em que a assistência é alguém que ele encontrou num bar, a quem se apresenta e revela a proveniência: ~
“Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e refletem umas às outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, por que o céu é feito de pombos próximos. Nasci e cresci num acanhado universo de croché, croché da tia-avó e croché manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram-me à pequenez do bibelô, proibiram-me o Canto IX de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me o espírito e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculos horários de amanuense cuja caravela de aportar às índias se metamorfoseou numa mesa de fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua”.
E começa uma enorme viagem, com caraterização dos lugares:
“Gago Coutinho, a trezentos quilómetros do Luso e junto à fronteira com a Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Português obrigava a fantasias carnavalescas de estrelas e de fitas ridículas, o posto da Pide, a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos: "Uma vez por semana eu sacudia o badal do sino de capela pendurado no meio de um círculo de cubatas aparentemente desertas, no silencia carregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores, das palhotas, dos contornos indecisos das sombras, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos do remédio”.
No bar, a narrativa prossegue com a apresentação de uma nova localidade:
“Ninda. Os eucaliptos de Ninda nas demasiadamente grandes noites do Leste, formigantes de insetos, o ruído de maxilares sem saliva das folhas secas lá em cima, tão sem saliva como as nossas bocas tensas no escuro: o ataque começou no lado da pista de aviação, no extremo oposto à sanzala, luzes móveis acendiam-se e apagavam-se na chana num morse de sinais. A lua enorme aclarava de viés os pré-fabricados das casernas, os postos de sentinela protegidos por sacos e toros de madeira, o retângulo de zinco do paiol. À porta do posto de socorros, estremunhado e nu, vi os soldados correrem de arma em punho na direção do arame, e depois as vozes, os gritos, os esguichos vermelhos que saíam das espingardas a disparar, tudo aquilo, a tensão, a falta de comida decente, os alojamentos precários, a água que os filtros transformavam numa papa de papel cavalinho indigesta, o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra, me fazia sentir na atmosfera irreal, flutuante e insólita, que encontrei mais tarde nos hospitais psiquiátricos”.
O tom do narrador não esconde a ansiedade, quer companhia, uma audiência específica para a rememoração daquela guerra:
“Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, um morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meio quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei: Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada. Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quer que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho, caralho, caralho com pronúncia do Norte”.
A rememoração retrocede, é uma ferida aberta que volta à crise académica de 1962, e depois há o mistério daquela guerra colonial de quem ninguém quer falar, deverá ser muito incómoda, muito traumatizante:
“Começo a pensar que o milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não existiram nunca e lhe estou contando uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar, uma história inventada”.
No entretanto, surgiu um acontecimento extraordinário:
“Como na tarde de 22 de Junho de 71, no Chiúme, em que me chamaram ao rádio para me informar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da minha filha, rómio, alfa, papá, alfa, rómio, índia, golf, alfa, paredes forrada de fotografias de mulheres nuas para a masturbação da sesta, mamas enormes que começaram de súbito a avançar e a recuar, segurei com força as costas da cadeira do carro de transmissões e pensei Vai-me dar qualquer merda e estou fodido".
O Chiúme era o último dos cus de Judas do Leste, o mais distante da sede do batalhão e o mais isolado e miserável:
"Os soldados dormiam em tendas cónicas na areia, partilhando com os ratos a penumbra nauseabunda que a lona segregava como um fruto podre, os sargentos apinhavam-se na casa em ruína de um antigo comércio, quando antes da guerra os caçadores de crocodilos por ali passavam a caminho do rio, e eu dividia com o capitão um quarto do edifício da chefia de posto, através de cujo teto esburacado os morcegos vinham rodopiar por sobre as nossas camas espirais cambaleantes de guarda-chuvas rasgados. Sessenta pessoas encerradas na sanzala alimentavam-se em latas ferrugentas dos restos de comida do quartel, mulheres acocoradas sorriam para a tropa o riso vazio das efígies das canecas de loiça, a que as bocas sem incisivos conferiam uma profundidade inesperada, e o soba, septuagenário em farrapos reinando sobre um povo côncavo de fome, trazia-me à lembrança uma velha amiga aristocrática da minha mãe que vivia com os cães e as filhas num andar desabitado de móveis, de pegadas retangulares dos quadros nas paredes desertas e a falta das terrinas assinalada por uma ausência de pó nas prateleiras dos armários”.
Um romance único, no olhar impiedoso sobre a crueldade dos resultados de todo aquele absurdo, a dor de nada poder esquecer, naquela noite de Valpurgia em que todos os fantasmas acenam e alguém tem que nos ouvir, tão incontinente é a nossa dor.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16467: Notas de leitura (878): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Se pretendermos ser sinceros, dentro do rol de obras consagradas que poderão vir a ser lidas como textos indispensáveis da literatura de guerra, atrevia-me a adiantar dois nomes por cada um dos teatros africanos: "Os Cus de Judas", de António Lobo Antunes, e "Autópsia de Um Mar de Ruínas", de João de Melo, quanto a Angola; "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz, e "Olhos de Caçador", de António Brito, quanto a Moçambique; "Estranha noiva de guerra", de Armor Pires Mota e "O Diário do soldado Inácio Maria Góis", quanto à Guiné.
Este livro de Lobo Antunes, de que corre aí uma edição popular a menos de seis euros, é uma obra prodigiosa, preferi citá-lo a comentá-lo, verão como é tumultuosa, inebriante, asfixiante toda esta narrativa inventada entre um bar em ponto indeterminado e uma casa ali perto da Picheleira, com vista para o Tejo e o cemitério do Alto de S. João.
Um abraço do
Mário
Os Cus de Judas (1), por António Lobo Antunes
Beja Santos
As incursões por outras literaturas da guerra colonial, que não a da Guiné, trazem múltiplas vantagens: identificar paralelismos e reconhecer as diferenças advenientes da natureza do território, do poder do inimigo, por exemplo. António Lobo Antunes foi oficial médico em Angola. Estreou-se na literatura em 1979 com “Memória de Elefante” onde aflora algumas das questões suscitadas pela guerra e trava-se diretamente de razões em “Os Cus de Judas” sobre a sua comissão.
Tal como Memória de Elefante, temos aqui mais um livro declaradamente autobiográfico, recordações do meio familiar, a preparação, a viagem, estamos agora em Luanda. Esta narrativa não é linear, trata-se de um pungente monólogo em que a assistência é alguém que ele encontrou num bar, a quem se apresenta e revela a proveniência: ~
“Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e refletem umas às outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, por que o céu é feito de pombos próximos. Nasci e cresci num acanhado universo de croché, croché da tia-avó e croché manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram-me à pequenez do bibelô, proibiram-me o Canto IX de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me o espírito e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculos horários de amanuense cuja caravela de aportar às índias se metamorfoseou numa mesa de fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua”.
E começa uma enorme viagem, com caraterização dos lugares:
“Gago Coutinho, a trezentos quilómetros do Luso e junto à fronteira com a Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Português obrigava a fantasias carnavalescas de estrelas e de fitas ridículas, o posto da Pide, a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos: "Uma vez por semana eu sacudia o badal do sino de capela pendurado no meio de um círculo de cubatas aparentemente desertas, no silencia carregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores, das palhotas, dos contornos indecisos das sombras, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos do remédio”.
No bar, a narrativa prossegue com a apresentação de uma nova localidade:
“Ninda. Os eucaliptos de Ninda nas demasiadamente grandes noites do Leste, formigantes de insetos, o ruído de maxilares sem saliva das folhas secas lá em cima, tão sem saliva como as nossas bocas tensas no escuro: o ataque começou no lado da pista de aviação, no extremo oposto à sanzala, luzes móveis acendiam-se e apagavam-se na chana num morse de sinais. A lua enorme aclarava de viés os pré-fabricados das casernas, os postos de sentinela protegidos por sacos e toros de madeira, o retângulo de zinco do paiol. À porta do posto de socorros, estremunhado e nu, vi os soldados correrem de arma em punho na direção do arame, e depois as vozes, os gritos, os esguichos vermelhos que saíam das espingardas a disparar, tudo aquilo, a tensão, a falta de comida decente, os alojamentos precários, a água que os filtros transformavam numa papa de papel cavalinho indigesta, o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra, me fazia sentir na atmosfera irreal, flutuante e insólita, que encontrei mais tarde nos hospitais psiquiátricos”.
O tom do narrador não esconde a ansiedade, quer companhia, uma audiência específica para a rememoração daquela guerra:
“Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, um morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meio quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei: Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada. Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quer que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho, caralho, caralho com pronúncia do Norte”.
A rememoração retrocede, é uma ferida aberta que volta à crise académica de 1962, e depois há o mistério daquela guerra colonial de quem ninguém quer falar, deverá ser muito incómoda, muito traumatizante:
“Começo a pensar que o milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não existiram nunca e lhe estou contando uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar, uma história inventada”.
No entretanto, surgiu um acontecimento extraordinário:
“Como na tarde de 22 de Junho de 71, no Chiúme, em que me chamaram ao rádio para me informar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da minha filha, rómio, alfa, papá, alfa, rómio, índia, golf, alfa, paredes forrada de fotografias de mulheres nuas para a masturbação da sesta, mamas enormes que começaram de súbito a avançar e a recuar, segurei com força as costas da cadeira do carro de transmissões e pensei Vai-me dar qualquer merda e estou fodido".
O Chiúme era o último dos cus de Judas do Leste, o mais distante da sede do batalhão e o mais isolado e miserável:
"Os soldados dormiam em tendas cónicas na areia, partilhando com os ratos a penumbra nauseabunda que a lona segregava como um fruto podre, os sargentos apinhavam-se na casa em ruína de um antigo comércio, quando antes da guerra os caçadores de crocodilos por ali passavam a caminho do rio, e eu dividia com o capitão um quarto do edifício da chefia de posto, através de cujo teto esburacado os morcegos vinham rodopiar por sobre as nossas camas espirais cambaleantes de guarda-chuvas rasgados. Sessenta pessoas encerradas na sanzala alimentavam-se em latas ferrugentas dos restos de comida do quartel, mulheres acocoradas sorriam para a tropa o riso vazio das efígies das canecas de loiça, a que as bocas sem incisivos conferiam uma profundidade inesperada, e o soba, septuagenário em farrapos reinando sobre um povo côncavo de fome, trazia-me à lembrança uma velha amiga aristocrática da minha mãe que vivia com os cães e as filhas num andar desabitado de móveis, de pegadas retangulares dos quadros nas paredes desertas e a falta das terrinas assinalada por uma ausência de pó nas prateleiras dos armários”.
Um romance único, no olhar impiedoso sobre a crueldade dos resultados de todo aquele absurdo, a dor de nada poder esquecer, naquela noite de Valpurgia em que todos os fantasmas acenam e alguém tem que nos ouvir, tão incontinente é a nossa dor.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16467: Notas de leitura (878): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (3) (Mário Beja Santos)
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