quarta-feira, 29 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19840: Antropologia (33): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,
Longa foi esta viagem de memórias e sobre a memória, o antes, o durante e o depois, e o depois é marcado pelo regresso à vida, estudos, constituição de família, uma linha profissional. Casos houve de muita dor, o stresse pós-traumático. Anos depois de cada um partir para a sua vida, deu-se o reencontro com o passado, a CART 3313 reúne-se anualmente, segue um ritual, há conversas que dispõem bem, há interpretações de factos em que nem todos são concordantes.
A antropóloga assiste a tudo, entrevistou muitos, leu documentação, conhece a obra do escritor Lobo Antunes. E adverte: "Todos os que ali estão sabem que ninguém quer cruzar a fronteira que separa o que deve ser lembrado do que deve ser esquecido. Mas estes encontros não são isentes de risco. A presença dos pares implica o confronto de versões nem sempre coincidentes e que podem expor pedaços indesejados do passado. O passado existe na representação que sobre ele constroem, nas imagens e nos episódios que compõem a história que é contada e repetida, ano após ano.".
Um trabalho de valor excecional, direi sem hesitar tratar-se de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (3)

Beja Santos

Aqui se conclui a digressão pelo espantoso trabalho antropológico de Maria José Lobo Antunes centrado na memória de combatentes que fizeram parte de uma Companhia de Artilharia, a 3313, que esteve no Leste de Angola, na região de Gago Coutinho, e mais tarde na região de Malanje. "Regressos quase perfeitos", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China Edições, 2015, é um ensaio invulgar, onde se questiona o género e o modo de vida daqueles mancebos, como lhes foram chegando as representações da guerra colonial, como partiram e viram Angola, como regressaram e se reencontraram, a antropóloga acompanhou-os nesses almoços de confraternização onde há uma nova busca de sentido para interpretar aquela experiência que lhes mudou a vida.

Acabada a guerra, mesmo tendo voltado diferentes, condutores ou escriturários, atiradores ou mecânicos, eram homens feitos que iriam retomar as vidas interrompidas. Alguns traziam exames escolares aprovados, outros sonhavam em fazer um curso universitário, outros pegaram logo em ofícios como motoristas ou voltaram à agricultura. Muitos casaram nos anos seguintes. Ouvidos os seus testemunhos, observa a antropóloga: “O que sobressai nestes relatos é o reconhecimento da inadequação das respostas pessoais às circunstâncias que os rodeavam. A guerra ainda os rondava. Mas só na década de 1980 é que surgiu a categoria nosológica de desordem de stresse pós-traumático". Dos entrevistados, só um frequentou sessões psicoterapêuticas de grupo e temos novo comentário da investigadora: “O tempo do regresso foi sobretudo um momento para se agarrarem ao que de novo lhes ia acontecendo. A família e o trabalho vieram preencher o que antes fora ocupado pelo quotidiano militar. Dos 26 meses em Angola restaram fotografias guardadas em álbuns, episódios e imagens que persistiam apesar da distância, uma vaga revolta que se foi dissolvendo. Os camaradas com quem viveram durante dois anos desapareceram nas suas vidas retomadas”.

Veio o 25 de Abril, uns acolheram-no entusiasticamente, outros não, questionou-se tanto sacrifício em vão. Dá-se nova palavra à antropóloga, depois de analisar as memórias dos entrevistados: “Deslizando entre dois momentos do tempo (o do passado perdido e o da sua convocação do presente), elas evidenciam a falta de alternativas contemporâneas a um discurso identitário herdado do Estado Novo. É esta ausência que traça as fronteiras nos interiores das quais os sujeitos reconfiguram as suas memórias da guerra de Angola”.

Demoraram a reencontrar-se, a primeira vez foi no final de julho de 2001, 30 anos depois do embarque no "Vera Cruz" para Angola, encontraram-se em Fátima.
Houve um trabalho anterior de encontros ou contactos, cada um tinha seguido a sua vida e a investigadora observa: “O fim da ditadura implicou a criação de atos de demarcação inequívocos, pelos quais o passado foi remetido para um vasto território impronunciável. O Império Português, reimaginado durante o Estado Novo deixou de existir com a descolonização. Mesmo o vocabulário ultramarino se viu transformado no vestígio anacrónico de um passado tornado impossível com o 25 de Abril”. Houve como que um período de nojo em que uma parte significativa do passado recente desapareceu do debate público. A guerra tornou-se um tabu existencial e discursivo, tema incómodo. Mas foi silêncio breve, logo a seguir começaram a ouvir-se vozes, caso de "Os Cus de Judas", publicado em 1979, era a catarse literária. Maria José Lobo Antunes enumera publicações de toda a ordem, desde livros a trabalhos jornalísticos, edições em fascículos, a guerra voltava ao palco, e com polémica, basta lembrar o inflamado debate sobre o Monumento aos Combatentes do Ultramar em Lisboa, a RTP também se interessou em fazer documentários sobre a guerra colonial, foram os 42 episódios da série "A Guerra", de Joaquim Furtado, apareceram depois filmes e séries de ficção, muitos romances nostálgicos, o contraponto a essa vaga saudosista passa pelos romances de Dulce Maria Cardoso e Isabela Figueiredo.

Prossegue o ritual dos encontros, estamos em Coimbra numa manhã de um sábado de junho de 2012. “No meio das caras conhecidas, sou apresentada a uma pequena comitiva que se estreia nos almoços.
Organizado por Valdemar Mendes, antigo furriel do primeiro pelotão, o almoço de 2012 estendeu os habituais convites à família de outro furriel do mesmo pelotão. Mário Alberto Ferreira morreu há 19 anos e nunca chegou a reencontrar a Companhia com quem esteve em Angola. Convidar a família e homenagear o camarada foi a forma encontrada de prolongar para além da morte a ligação que une todos aqueles que partilharam a mesma guerra. O convite foi recebido, e a família apareceu em peso. A viúva, dois filhos, uma nora e duas netas distribuem sorrisos e cumprimentos”. O ritual dos almoços segue um mesmo guião de sempre: convite com a hora e o ponto de encontro, o restaurante, a ementa, o preço da refeição e do transporte. Começam a chegar e abraçam-se, apresentam a família, trazem filhos e netos, afinal o que está a acontecer ali é uma festa de família. A autora fala de Licínio Macedo, um guardador de memória. “Na garagem do seu apartamento, em Vila Praia de Âncora, montou um pequeno museu da guerra. Dossiês cheios de recortes de jornal, ementas e convites de almoços anuais, crónicas de Lobo Antunes sobre Angola, álbuns fotográficos, livros e séries documentais sobre a guerra colonial, esculturas africanas. Reformado dos estaleiros de Viana do Castelo, este antigo eletricista dedica uma boa parte do seu tempo livre a organizar os vários objetos materiais que começou a colecionar quando regressou de África”.

Este almoço anual é o único contacto social que têm com o passado de guerra. Todos fazem por estar presentes, quem tem dificuldades económicas e não pode ir, sofre muito. Nas conversas, há por vezes azedume por não se dar mais apoio aos antigos combatentes, pensões válidas, ajuda psicológica e muito mais. A autora dedica um capítulo aos livros de Lobo Antunes e assim chegamos às últimas entrevistas que fez para esta investigação. O apaixonante deste trabalho é saber de antemão que é impossível reaver o instante vivido na sua inteireza, o que é possível é compor reproduções aproximadas e imperfeitas, são revisitações narrativas em que os seres humanos tendem a contar histórias sobre si mesmos. Há muitas incomodidades, como observa a antropóloga:
“A memória de guerra não foi apenas alvo do natural desgaste imposto pelo tempo. Nos discursos de alguns entrevistados é possível distinguir uma intervenção pessoal destinada a apagar os aspetos incómodos do passado. Há quem revele não falar sobre a guerra com a família, há quem mencione ter feito um esforço para não se lembrar. Um de entre estes foi apenas três vezes aos almoços e, das suas palavras, depreende-se a improbabilidade de regressar. O incómodo é mais forte do que o prazer de reencontrar os camaradas. O tempo de guerra é, ao mesmo tempo, a dolorosa memória de um desterro hostil e da juventude despreocupada. É precisamente esta ambiguidade que faz regressar estes homens, ano após ano. O passado que ali se celebra não é o da violência: é o da camaradagem, da união que sobrevive ao tempo, da alegria e do riso, da coragem e resistência”.

Estes pontos de encontro, estas encruzilhadas da memória são, como observa Maria José Lobo Antunes, um mapa possível de um mundo que já não existe, evocado pelas narrativas dos homens que nele viveram. Talvez haja tantas guerras quantos os soldados que os combateram.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19817: Antropologia (32): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Parabéns!... 50/60 anos não faríamos aquela guerra...por razões demográficas... Eros o país mais jovem da Europa.

antonio graça de abreu disse...

As melhores palavras, e entendimentos, são as da Maria José Lobo Antunes:

"O passado que ali se celebra não é o da violência: é o da camaradagem, da união que sobrevive ao tempo, da alegria e do riso, da coragem e resistência."

Quase tudo o mais é Mário Beja Santos, para esquecer.

Abraço,

António Graça de Abreu

JD disse...

Também gostei da síntese, dos que olham o passado com a pesada indiferença para o esquecer, até aos se abraçam como as crianças que foram durante o embarque para a guerra, e verdadeiramente confraternizam, riem, notam as diferenças físicas, e por vezes descobrem diferenças morais e opinativas, tantas vezes condicionadas por novos desequilíbrios de ordem social.
Casados, descasados, com famílias organizadas ou solitários, oferecem um manancial de condições marcadas pela experiência ultramarina, ainda que se caia no exagero de falar do ultramar, sem o ter conhecido ou estudado.

JD disse...

Também gostei da síntese, dos que olham o passado com a pesada indiferença para o esquecer, até aos que se abraçam como as crianças que foram durante o embarque para a guerra, e verdadeiramente confraternizam, riem, notam as diferenças físicas, e por vezes descobrem diferenças morais e opinativas, tantas vezes condicionadas por novos desequilíbrios de ordem social.
Casados, descasados, com famílias organizadas ou solitários, oferecem um manancial de condições marcadas pela experiência ultramarina, ainda que se caia no exagero de falar do ultramar, sem o ter conhecido ou estudado.