1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2019:
Queridos amigos,
Já temos território de combate, refregas onde se gera a confusão, Companhias que se enfrentam por acasos da topografia, há gente que se perde, em breve Santos Andrade vai começar a falar de baixas, é um bardo que dedilha a dor das perdas.
Deu-se atenção a dois aspetos transversais à vida de todos os combatentes: a chegada do correio, e nada se encontrou de mais enquadrador e de alta qualidade literária que um texto de Álamo Oliveira, e chegou a hora de falar de Alpoim Calvão que emparceirará com os seus fuzileiros na Operação Tridente, e antes dela falarmos aqui se faz referência a uma tortura que a todos irmanou, a todos aqueles que andaram com arma na mão: o lodo, tão mais infernal quanto é a cama daquele tarrafo onde rasgamos a farda e perdemos o equipamento.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (8)
Beja Santos
“Até chegarem ao local,
ficaram fartos de andar.
Uns contra os outros lutaram
mas não houve nenhum azar.
Nas viaturas se montaram
até ao ponto de reunião.
E depois desceram para o chão
e muito tempo a pé andaram.
Houve moços que desmaiaram
mais ou menos às dez e tal.
E começou a sentir-se mal
o Zézinho, nosso amigo,
e deu a todos um bom castigo
até chegarem ao local.
Para os locais indicados
começou tudo a avançar
e começaram a atirar
para cima dos malvados.
Houve tiros por todos os lados
e a aviação a bombardear.
Houve ordem para retirar
porque avançar não podiam
e todos os militares que iam
ficaram fartos de andar.
Perdeu-se uma secção
no meio daquele matagal
e ao passar de um certo vale
houve uma precipitação:
Em frente de uma povoação
duas companhias se enfrentaram,
até que se certificaram.
Aquilo foi um castigo!
E sem ser contra o inimigo
uns contra os outros lutaram.
O comandante das operações
todo o caso estava a ver.
Pensou em comunicação fazer
sem ter excitações.
Se não fossem as comunicações
não sei o que se poderia dar.
Os soldados vieram contar
que ele é que tudo defendeu.
E o Pécurto uma G3 perdeu,
mas não houve nenhum azar.”
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A gente da BCAV 490 entrou em funções, estes versos são eloquentes. Mas voltemos atrás, às coisas do espírito e depois a adaptação ao terreno. Quem diz coisas do espírito fala no correio, aquela linha mágica que une a identidade, o passado ao presente, verbos de consolação, por vezes de angústia, por vezes por mão alheia falam os pais, a namorada ou a mulher, deitam-se contas à vida, chegam trivialidades, até insinuações e calúnias.
Recorde-se ao livro de Álamo Oliveira intitulado “Até Hoje (Memória de Cão)”, já referenciado, para falar da chegada do correio, texto belíssimo:
“Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos, macacos eufóricos, doentes. Doentes da alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentido expostos, uterinos os desejos quando se aproxima o calor da mãe. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e que se amparam nos mil dedos que os agarram. Visse-os Fernão que diria Lisboa pequenina a aclamar o D. João, todo rei de Portugal. Dois ídolos triunfantes, os sacos são levados em braços até à casota onde funciona a secretaria. As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias de tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho, recados e apreensões, mortes, doenças e vidas – um caudal de palavras jorradas no desafio das emoções. Algumas cartas trariam o carimbo do ‘visado pela censura’ militar, para que todos soubessem que ela existia, actuava, mexia, não fossem fazer revelações que comprometessem o sério segredo do Estado que tresandava de dúvidas malcheirosas. Estão todos à porta, os da frente espremidos de encontro aos batentes, alguns escapulindo lá para dentro disparados por gatilho informe. Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionada metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração. O sargento ordena que se afastem e esperem. Obedecem sem pragas, controlando os movimentos do cabo demasiado lentos para a sua impaciência. São chamados pelo acaso de cada subscrito. ‘Pronto!’, um grito, mais um, duas chamadas, três, sete, a voz febril, alegre também, o braço de ânsia esticado sobre cabeças, a carta presa por encanto entre os dedos da comoção. Ao último envelope desapareceram, dispersos por todos os sentidos, poalha que a varinha-mágica semelha, mutação do raio, o diabo a esfregar um olho. O silêncio pode cortar-se à faca, o calor bate de encontro à terra, nem um corpo para bronzear. Agarrados a cartas e a aerogramas, embiocados no confessionário do seu recanto, estão com a vida dos parentes, dos amigos, dos vizinhos nas mãos, devorando-a desenhada em letras, linha sobre linha, lâminas sobrepostas que o destino empilha até que saltam de emoção para emoção, o filho já diz papá, a cria nova da vaca, a trombose do pai, as obras na casa, a morte da avó, chove, faz sol, as saudades, a colheita, o jantar da chegada, os abraços, o dia aprazado do casamento, o ciúme e a fuga, os beijos que são muitos, o vazio da cama, receio pela vida e pela sorte, o diabo da solidão, sem mais tempo para pensar no carbúnculo da guerra”.
Álamo Oliveira
Nada encontrei de aproximado em toda a literatura da guerra deste texto da chegada do correio. E temos a adaptação, há a fornalha do sol, a floresta-galeria, a saída para a operação com o capim orvalhado, a folhagem que corta as mãos, o imprevisto de uma chuvada que lambuza a lama, e depois o tarrafo.
Pegue-se num curto texto de Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira, em “Contos de Guerra”, Chaves, 1994, é o quanto baste:
“Quem já andou na Guiné, quer por prazer cinegético, quer por obrigação militar, sabe o que significa andar no lodo. Põe-se o pé com toda a cautela na superfície escura e escorregadia e afundamo-nos até à coxa. Sente-se uma ventosa que suga as pernas e as prende ciosamente. O esforço necessário para dar um passo é violentíssimo e muitas vezes a prisão do lodo apodera-se das botas e há que caminhar descalço. Se, por acaso, o lodo é mais fluido e o homem se enterrar até ao peito, é preciso desatolá-lo e ensinar-lhe a nadar no lodaçal que se agarra à roupa e à pele, cobrindo-o de uma estranha película que o calor do sol transforma em carapaça quebradiça e a água tem dificuldade em lavar”.
Alpoim Calvão irá fazer-nos companhia na Operação Tridente, que aqui merece ser contada, terá sido aqui que se forjou a amizade entre ele e o Coronel Fernando Cavaleiro, comandante do BCAV 490.
Já estamos a falar de uma guerra muito violenta, é tempo de aqui rever o inultrapassável “Nó Cego” de Carlos Vale Ferraz.
(continua)
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Notas do editor
Poste anterior de 24 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19821: Notas de leitura (1180): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (7) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 27 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19833: Notas de leitura (1181): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (2) (Mário Beja Santos)
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