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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26686: Notas de leitura (1789): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Há algo de emocionante nos depoimentos de um punhado de convocados para falar de Rui Alexandrino Ferreira, da vida no Quebo, daquelas emboscadas duríssimas no chamado corredor de Guileje e suas variantes, nos patrulhamentos ininterruptos junto da fronteira; trata-se de gente de dois batalhões, de companhias de intervenção que conviveram com a CCAÇ 18, que jamais esqueceram que para além dos riscos de toda aquela operacionalidade chamada contrapenetração havia a vida na tabanca militar, alugaram-se junto da população civil habitações onde houve introduzir algum conforto, desviou-se cimento, tirou-se uma baixada de eletricidade, ninguém esqueceu o quarto do então capitão Rui Alexandrino que tinha um ambiente de casa de diversão noturna, não faltavam fotografias da Playboy, três ventoinhas, um gira-discos, uma pequena geleira, encontrou-se algum mobiliário de quarto, fez-se uma zona de balneário, instalou-se uma sanita, todos recordam aquele quarto como ponto turístico da Aldeia Formosa, uma vulgar e mísera palhota tornou-se um lugar de refúgio para muitos, ninguém esqueceu este ousado capitão que, como escreveu Pezarat Correia, aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom-senso.

Um abraço do
Mário



Memórias do Quebo, da CCAÇ 18, o testemunho de amigos (2)

Mário Beja Santos

"Quebo, Nos confins da Guiné", Palimage (palimage@palimage.pt), 2014, é o segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) que fez duas comissões na Guiné. 

A primeira deu origem a uma obra de consulta obrigatória para quem estuda a literatura da guerra colonial, "Rumo a Fulacunda", Palimage, 2000; a segunda é "Quebo" que nos leva à sua segunda comissão, é já capitão e comanda uma companhia de tropa guineense, a CCAÇ 18. Começa por justificar as razões que o levaram, já na disponibilidade, em dezembro de 1967, e tendo regressado a Sá da Bandeira, onde pensa que iria encontrar readaptação, veio a descobrir que não era numa repartição de fazenda pública que sonhava viver, e decidiu então regressar à vida militar. 

Na primeira comissão recebera a condecoração da Cruz de Guerra de 1.ª Classe, descobrira o sentido da liderança e a vocação para comandar homens.

Arribou à Guiné, andou no Pelundo, recebeu ordem de ir formar uma companhia de caçadores africanos, a 18. E partiu para Aldeia Formosa, conviveu com dois batalhões, resolveu passar ao papel as recordações da segunda comissão, o relato tem singularidade de convocar amigos e camaradas desta segunda comissão, é o caso do capitão Horácio Malheiro, comandante da CCAÇ 3399, estacionada no Quebo entre agosto de 1971 e agosto de 1973, por curiosidade já tinham ambos feito comissão em 1967 e casualmente percorreram as mesmas estradas e trilhos. Lembra que os oficiais não tinham residência dentro do aquartelamento, alugavam na tabanca casas dos indígenas, punham algum conforto como telhados de chapa de zinco, portas e janelas, a luz vinha do gerador do quartel, fizeram-se latrinas e balneário. 

Não esqueceu os acontecimentos da noite de 24 de dezembro de 1971, houve tiroteio entre tropa metropolitana e guineense, tudo nasceu de um desacato, os guineenses puxaram pelas armas, houve um morto e feridos, Spínola apareceu prontamente, arengou, quis conhecer os autores do desacato, houve expressões azedas entre Spínola e Rui Alexandrino, Spínola deu umas bofetadas e mandou conduzir sob prisão para o avião um conjunto de militares, aplicando uma pesada pena ao comandante do batalhão, foi automaticamente removido do cargo.

Recorda as atividades da CCAÇ 18 e os seus sucessos nas emboscadas; dá especial ênfase à Operação Muralha Quimérica, previa-se a entrada na Guiné de elementos da ONU que vinham verificar a existência de zonas libertadas, a CCAÇ 3399 e a CCAÇ 18, bem como os paraquedistas, os comandos africanos e o grupo especial do Marcelino da Mata percorreram a região do Cantanhez, foi uma operação que durou 12 dias, não houve encontro com as forças do PAIGC e os visitantes. 

Refere Horácio Malheiro que comandou a companhia operacional que esteve mais tempo em intervenção em toda a guerra da Guiné, com missões no corredor de Guileje, em múltiplos patrulhamentos na fronteira, oito meses de proteção à abertura de uma estrada alcatroada dirigida a uma das principais bases do PAIGC no Sul, Unal-Salancaur e colunas de reabastecimento entre Aldeia Formosa e Buba. A guerra tinha evoluído, abrira-se uma nova frente de atividades com a construção de uma nova estrada, Mampatá-Colibuia-Cumbijã-Nhacobá, e de três novos quartéis em Colibuia, Cumbijã e Nhacobá, foi um período de atividade muito intensa e desgastante. Diz-se que o quartel de Nhacobá foi ocupado em 21 de maio de 1973 e abandonado a 25 de maio, por não oferecer condições de segurança mínimas e ter ataques contínuos com duração de horas.

O autor recorda a morte de Virgolino Ribeiro Spencer na já referida noite de 24 de dezembro de 1971 e dá a palavra a um conjunto de intervenções de amigos e camaradas, como Alexandre Valente, Aristóteles Tomé Pires Nunes, Carlos Naia, Carlos Santos, Eduardo Roseiro, Hélder Vaz Pereira, João Manuel Marcelino e Joaquim dos Reis Martins, há neste acervo observações muito curiosas, dão para perceber como ia evoluindo a guerra, Aldeia Formosa passou a ser flagelada, conta-se a história do sargento Hélder Vaz Pereira que foi graduado em alferes dada as suas qualidades de combatente e chefe, traz-nos um belo depoimento, dizendo a dada altura: 

“Com a partida do capitão Rui, em setembro de 1972, a tabanca da 18 perdeu todo o encanto que tinha e foi desativada.” 

E despede-se com agradecimentos: 

“Aos que comigo se alegraram nos bons momentos e aos que me ajudaram a suportar e superar as dores dos maus momentos, as angústias, os temores, as incertezas, os medos, os pesadelos e as desilusões que muito me ensinaram, a todos manifesto o meu mais profundo reconhecimento, do capitão Rui Ferreira ao último dos soldados, a todos, fico devedor para toda a vida.”

Rui Alexandrino despede-se rememorando histórias rocambolescas da guerra que escaparam ao seu primeiro livro "Rumo a Fulacunda", recorda a sua participação na Operação Muralha Quimérica, guarda muitas perguntas sem resposta, tais como: 

  • Estaria a Guiné em condições de se tornar independente? 
  • Quem mandou matar Amílcar Cabral? 
  • Foi apurada a responsabilidade de alguém sobre a tragédia do Corubal onde morreram 47 militares portugueses? 
  • Por que não se realizou, relativamente ao abandono de Guileje, o julgamento de Coutinho e Lima? 
  • Por que não prosseguiu o julgamento todo o caminho que lhe faltava?

 Pedro Pezarat Correia tece um grande elogio ao autor no seu depoimento:

“Há uma característica da liderança que considero o tempero decisivo capaz de se conferir virtude a determinados atributos de comando que, sem ela, podem tornar-se excessivos e transformar-se em defeitos perversos. Refiro-me ao bom-senso, o equilíbrio moderador que impede que a coragem resvale para temeridade gratuita empurrando os seus homens para riscos desnecessários, que evita o culto da disciplina pelo lugar ao autoritarismo desumano, que a tolerância resvale para o laxismo, que o gosto pela decisão rápida caia na precipitação, que o excesso de ponderação conduza à hesitação. O bom-senso confere sangue-frio a situações de pressão emocional, presença de espírito quando à volta se instala a ansiedade. É uma virtude que, normalmente, se adquire com a idade, com a experiência, com a dimensão da responsabilidade. Apesar da sua juventude, o capitão Rui Alexandrino Ferreira aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom-senso, o que lhe permitiu aplicar a usa coragem, o seu sentido de disciplina, o seu gosto pela decisão, na medida e no sentido convenientes.”

Que fique a boa memória do coronel Rui Alexandrino Ferreira.

Aldeia Formosa, 1973, fotografia de José Mota Veiga já publicada no nosso blogue
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Nota do editor

Último post da série de 11 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26678: Notas de leitura (1788): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26678: Notas de leitura (1788): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Escapara-me a leitura do segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira, referente precisamente à sua segunda comissão na Guiné, passou-a maioritariamente em Aldeia Formosa, emboscou com bastante sucesso os corredores de abastecimento do PAIGC na região, caso do chamado corredor de Missirã; é o relato de memórias para a qual o falecido coronel convocou amigos, como o major-general Pedro Pezarat Correia, a deporem sobre a vida e a atividade operacional na região e os laços de camaradagem, há depoimentos tocantes. Constata-se que o malogrado coronel guarda a amargura de não ter sido condecorado com a Torre e Espada, atendendo ao acervo de condecorações e louvores, considero uma anomalia o despacho do Conselho Superior de Justiça e Disciplina ter decidido que não era oportuno por extemporânea, e reflete amargamente o corporativismo nas Forças Armadas, era o que faltava um miliciano com a mais alta condecoração das Forças Armadas.

Um abraço do
Mário



Memórias do Quebo, da CCAÇ 18, o testemunho de amigos (1)

Mário Beja Santos

"Quebo, Nos confins da Guiné", Palimage (palimage@palimage.pt), 2014, é o segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) que fez duas comissões na Guiné. A primeira deu origem a uma obra de consulta obrigatória para quem estuda a literatura da guerra colonial, "Rumo a Fulacunda", Palimage, 2000; a segunda é Quebo que nos leva à sua segunda comissão, é já capitão e comanda uma companhia de tropa guineense, a CCAÇ 18. 

Começa por justificar as razões que o levaram, já na disponibilidade, em dezembro de 1967, e tendo regressado a Sá da Bandeira, onde pensa que iria encontrar readaptação, veio a descobrir que não era numa Repartição de Fazenda Pública que sonhava viver, e decidiu então regressar à vida militar. Na primeira comissão recebera a condecoração da Cruz de Guerra de 1.ª Classe, descobrira o sentido da liderança e a vocação para comandar homens.

O autor pediu ao Major-general Pedro Pezarat Correia que abordasse o contexto da sua comissão passada sobretudo em Aldeia Formosa. Antes, porém, conta-nos que chegou ao CIM em Bolama para a formação da CCAÇ 18, e cabe a Pezarat Correia falar-nos do BCAÇ 2892 e o Setor S-2, no Sul da Guiné. 

Este batalhão estacionava em Aldeia Formosa, em Nhala e em Buba, reforçado com mais três companhias operacionais que já se encontravam no Setor sob o comando do COP 4; o batalhão passou também a contar com o apoio de várias subunidades. Tinha sob controle operacional o Destacamento dos Fuzileiros Especiais 3, sediado em Buba, duas companhias de milícias em Empada e Mampatá, e um grupo de caçadores nativos.

O batalhão assumiu a responsabilidade operacional em novembro de 1969, assumia quatro tarefas prioritárias:

  •  proteção aos trabalhos de construção na pista de aterragem em Aldeia Formosa (concluída em março de 1970);
  •  contrapenetração nos eixos usados pelo PAIGC para reabastecer e rodar efetivos das suas bases no interior em Injassane (norte do Rio Grande de Buba) e em Xitole; 
  • controlo da região de Contabane, fronteiriça com a República da Guiné; condução da Ação Psicossocial.

 Na prática, e de acordo com a Ideia de Manobra, havia que proceder a ações de contrapenetração em corredores que constituíam os principais eixos de abastecimento do PAIGC para o interior sul, proceder a uma constante nomadização e emboscadas nas imediações das zonas mais favoráveis aos grupos do PAIGC para instalação de base de fogos para flagelações. F

Foi neste ambiente geográfico, humano e operacional que, em janeiro de 1971, se integrou a CCAÇ 18, acabada de formar, e comandada pelo capitão Rui Alexandrino, veio render a CART 2521.

A CCAÇ 18 era constituída por Fulas, parte deles oriundos da região do Quebo, tinham experiência operacional, haviam pertencido a pelotões de milícias e caçadores nativos. Mal chegados a Quebo, e no período de sobreposição, atuaram no corredor de Missirá, foi uma estreia com emboscada, desbarataram a coluna do PAIGC, Rui Alexandrino reorganizou as suas tropas e transferiu a emboscada para outro local, uma hora mais tarde novo contacto, causou baixas e capturou armamento.

 Depois o BCAÇ 2892 foi rendido pelo BCAÇ 3852, a CCAÇ 18 continuou a reforçar o novo batalhão, com bons resultados em novos contactos no corredor de Missirá.

 Ao terminar a sua comissão, em finais de 1972, Rui Alexandrino foi condecorado com uma Cruz de Guerra de 2.ª Classe.

Voltemos à narrativa pessoal do autor, como ele foi encontrar a Guiné após dois anos de ausência. Ele descreve a personalidade de Spínola e o que procurou fazer não só no campo militar como no desenvolvimento socioeconómico da região. 

Antes de ir para Bolama, Rui Alexandrino esteve no Pelundo, conta as suas memórias, conta-nos como viveu a formação da CCAÇ 18 em Bolama e depois a sua adaptação ao Quebo, a originalidade de ele e os seus oficiais e sargentos viverem em instalações na tabanca, lá foram arranjando comodidades, a ponto do seu quarto se ter transformado em ponto turístico da Aldeia Formosa.

 Faz um esquiço dos cuidados que a contrapenetração impunha, a dureza da atividade operacional de estar para ali horas camuflados, não fazer barulho, não tossir, não mexer, não espreguiçar e sobretudo não perder a concentração, além de ser imperativo não fazer modificações no ambiente que pudessem indiciar a existência de emboscada, e o autor aproveita para contar algumas peripécias e juntar alguns depoimentos de ex-camaradas.

Depõe como observador sobre os usos e costumes dos Fulas, a impressão que lhe provocava a maneira indigna como as mulheres eram tratadas, tece as suas lembranças sobre os militares metropolitanos e, inevitavelmente, vem exprimir a sua gratidão pelo seu guarda-costas, Ieró Embaló, feito prisioneiro depois da independência, passou onze anos nas masmorras, depois de muitas peripécias veio até Portugal, foi uma verdadeira odisseia vir a ser aceite os seus direitos de ser português, faleceu súbita e inesperadamente, e conta sumariamente a sua história:

“Raptado ainda muito novo, foi levado à força para a Guiné-Conacri, onde se viu obrigado a integrar as forças do PAIGC. Tendo sido colocado numa base operacional do partido, mesmo junto à nossa fronteira, daí tinha fugido na primeira oportunidade e feito a sua apresentação às forças portuguesas. 

Tinha um conhecimento profundo quer das formas de atuar do inimigo quer da tropa portuguesa. Era de um espantoso espírito de observação e de uma imensa capacidade de adaptação. Uma inteligência superior à média, tal como muitos Fulas, falava fluentemente o português, o fula e o crioulo, e igualmente o francês. Islâmico, profundamente religioso, seguia e norteava a sua vida pelas normas e preceitos do seu Deus.”

Rui Alexandrino recorda os atos de bravura do seu guarda-costas.

Entram agora na conversa dois coronéis, Gertrudes da Silva e Vasco Lourenço, falar-se-á do coronel Agostinho Ferreira, comandante em Aldeia Formosa, o autor deixa a sua lembrança sobre o fim da comissão do BCAÇ 2892, a chegada do BCAÇ 3852, veio de férias, regressou à guerra, temos de seguida o depoimento de outro capitão de Aldeia Formosa, Horácio Malheiro, e uma noite de horrores de conflito entre tropa metropolitana e gente da CCAÇ 18, haverá vítimas inocentes, como se contará a seguir.

Estamos perante o caderno de memórias, o autor aproveita a oportunidade para se ressarcir de imprecisões existentes no seu primeiro livro, revela poesia dedicada às filhas e convoca um bom punhado de antigos camaradas para relembrar acontecimentos vividos nesta segunda comissão.


Aldeia Formosa, 1973. Fotografia de José Mota Veiga já publicada no nosso blogue

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25613: Humor de caserna (63): Em 1971, por uns bons 250 contos (equivalente, a preços de hoje, a mais 75 mil euros), um 1º cabo miliciano arranjava um subsituto para ir para o ultramar


Rui A. Ferreira, o valoroso e 
e "bem amado" comandante
 da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa,
jan 71 / set 72)

 1. Sabemos que era assim: quem tinha  cunhas, dinheiro, património, intimidade com o poder (económico, financeiro,  político, militar, religioso...) e outros privilégios, como ser "filho de algo" (dentro da elite do regime) podia, com relativa facilidade, fazer a tropa cá, na "metrópole", a capital do Império,  e evitar o incómodo, a maçada, a chatice, de ser mobilizado para o "ultramar" (ou "ir para fora", como dizia o Zé Povinho).

Lemos e tomámos boa nota de mais uma revelação destes casos, de que se pouca fala (contrariamente aos dos faltosos, refratários e desertores): consta de um depoimento  de um  ex-fur mil, do pelotão de reconhecimento, da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), publicado no livro do nosso saudoso Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) , "Quebo: Nos Confins da Guiné" (Coimbra, 2014, pp. 252/253). 

Na altura era dinheiro: 250 contos dava para comprar uns  quatro automóveis Fiat 127, o carrinho da classe média baixa...Ou um bom andar mobilado na Reboleira, Queluz ou Paço de Arcos do J. Pimenta, pois, pois!

Mas temos que reconhecer que era bem mais caro do que os 10 contos que muito boa gente gente deu, nesse tempo,  ao "passador" para poder chegar a Paris, a salto...

Mas o furriel que conta esta história (e que se formou mais tarde em direito),  não aceitou as "pressões" nem os "argumentos" da sua querida mãe, viúva há dois anos, e que temia pela sorte do filho. No seu depoimento,  de 2008, ele é sincero, dizendo (e honra lhe seja feita!):  

"Confesso que andei indeciso, mas sempre com a sensação de que se pagasse a alguém para ir por mim, me arrependeria toda a vida. (...) Hoje conhecendo-me melhor, tenho a certeza de que não me perdoaria". (...) (páqg. 252).

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Nota do editor:


Vd. também os postes da série:

22 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19127: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (8) :A minha cunha era tão frágil., que não rachava um pau de Gamão ou Abrótea (José Colaço)

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23826: Humor de caserna (57): O anedotário da Spinolândia (VIII): "Porra, porra, lá iam lixando o Comandante-Chefe" (Gen Spínola, abril de 1972, quando o seu heli terá aterrado, por engano, numa clareira do mato, cercada de "turras", confundidos com comandos africanos)

Guiné > Algures > s/d (c. 1969) > O alf mil pil heli Al III Jorge Félix (BA 12, Bissalanca, 1968/70) e o gen Spínola (Com-Chefe e Governador Geral, CTIG, 1968/73)...  O Jorge Félix terá sido um dos pilotos de heli, com quem o general mais terá gostado de voar...   E com ele não nenhum susto como o de abril de 1972, uma história insólita contada neste poste...

Foto (e legenda): © Jorge Félix (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.).


1. Não sei se esta história é verdadeira ou não. Mas tenho que a  tomar como verídica, já que foi contada em primeira mão por um capitão do quadro, comandante da CCAÇ 3399/ BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), o cap inf Horácio José Gomes Teixeira Malheiro, que esteve na "periferia dos acontecimentos" (*).

Temos que admitir que, quando se falava das peripécias do gen Spínola,  no CTIG, muitas vezes se mistura(va)  ficção e realidade.  Daí esta história  vir "engrossar" a nossa série "Humor de caserna" e o "anedotário da Spinolândia" (**). A história do heli  é perfeitamente verosímil e desta vez o general (e os seus acompanhantes) terá apanhado um valente susto...

A história consta do livro do nosso já saudoso Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022),  "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.), cuja capa se reproduz acima. 

Vamos reproduzir aqui um excerto do capítulo 10º ("O capitão de Aldeia Formosa, Horácio Malheiro"). É um depoimento do comandante da CCAÇ 3399 sobre a excelente articulação e cooperação, em operações, com o cap inf Rui Ferreira e os seus homens da CCAÇ 18 (pp. 179-196), não obstante os graves incidentes do Natal de 1971, rapidamente ultrapassados e esquecidos (*).

O cap inf Horácio Malheiro (não sabemos que posto tinha em 2014, aquando da publicação do livro, "Quebo"), dá vários exemplos de ações conjuntas que se traduziram em  "êxitos para o Batalhão" (pág. 191).

Uma delas, louvada de resto pelo gen Spínola, terá sido na sequência da Op Muralha Quimérica, em abril de 1972. "uma operação que visava evitar a entrada na Guiné de elementos da ONU que vinham verificar a existência de Zonas Libertadas onde o Exército Português não entrava e assim seriam reconhecidas internacionalmente como legítimas representantes dos Povos da Guiné" (pág. 192).

Decorreu durante 12 dias e envolveu forças  da CCAÇ 3399, CCAÇ 18, paraquedistas, comandos africanos e o Grupo Especial  do Marcelino da Mata. A operação teve como comandante, o ten cor paraquedista, Araújo e Sá, do BCP 12.


2. Um situação insólita em que o Com-Chefe se ia lixando...

por Horácio Malheiro

(...) Lembro-me de uma situação insólita que se passou nessa altura. Estava a minha Companhia de reserva em Aldeia Formosa quando recebo ordens urgentes  para embarcar nos helis, que  estavam estacionados  na pista,  e seria já no voo que teria conhecimento do destino  e missão.

Embarcámos de imediato e quando nos preparávamos  para descolar, soube nessa altura  que a missão era resgatar o general Spínola que presumivelmente teria sido aprisionado  pelo IN quando o seu heli  teria aterrado no meio de forças IN na altura confundidas com os Comandos Africanos.

Na altura da descolagem,  o meu piloto, comandante da  esquadrilha de helis, recebeu, via rádio, uma comunicação do heli do general Spínola informando que já vinha a caminho, pelo que apeámos s e aguardámos a sua chegada.

Quando chegou o heli do general, este saiu todo sujo de fuligem bem como o seu ajudante de campo, capitão Tomás, cujas mãos tremiam descontroladamente ao cumprimentar-me.

O general teve só um comentário ao desembarcar: "Porra, porra, lá iam lixando o Comandante-Chefe", e seguiu para a sede de Batalhão.

Já no bar,  em conversa, soube que o general tinha mandado aterrar o heli numa clareira da mata onde vislumbrou  militares africanos IN de camuflado que confundiu com os Comandos Africanos por terem adoptado no terreno um dispositivo de segurança à aterragem.

Quando aterrou e apeou,  foi recebido a tiro e todos se atiraram ao chão que tinha sido queimado e daí o terem ficado cheios de fuligem. Passado este instante de estupefacção, entraram a correr para o heli que descolou de imediato, debaixo de fogo IN,  que mal adivinhava  que tinha tido ao seu alcance o maior "ronco" da guerra da Guiné, que seria a captura ou abate do (...) Comandante-Chefe  [do Exército Português] " (pp. 192/193).

[Selecção / revisão e fixação de texto / parênteses retos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"

sábado, 26 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"


Rui Alexandrino Ferreira (Angola, Sá da Bandeira, 
h0je Lubango, 1943 - Viseu, 2022) (*)





Guiné > Região de Tombali Aldeia Formosa > CCAÇ 18 (jan 197/set 72) > 1971 > Os primeiros foguetões 122 a serem capturados aos guerrilheiros do PAIGC. No foto, ao centro Cap Mil Rui Ferreira, comandante da CCAÇ 18, com dois dos seus homens, guineenses: o furriel mil Aristóteles Tomé Pires Nunes  e o furriel  mil Carlos Solai Só. Foto, com a devida vénia, reproduzida de "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra, Palimage, 2014, pág. 107. 




Capa do livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.).
Um exemplar deste segundo livro do Eui Alexandrino Ferreira, foi-me gentilmente ofertado pelo Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec auto, CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), Reproduzo aqui a sua dedicatória: "Tendo estado em Aldeia Formosa com o autor, quero partilhar com o meu ilustríssimo amigo Luís Graça alguma dessa vivência. Manuel Gonçalves, s/d  [2022] ".



1. Em homenagem ao nosso ten cor inf ref Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022), deixamos aqui a sua versão sobre os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971,  sob a forma de confrontos armados, opondo militares, guineenses, da CCAÇ 18, a camaradas, metropolitanos da CCS e da CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, jul 1971 / set 1973).  O Rui Alexandrino Ferreira estava então na sua segunda comissão no CTIG, desta vez a comandar a CCAÇ 18 (de janeiro de 1971 e setembro de 1972).

Trata-se de um excerto do seu livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014). Com a devida vénia aos herdeiros do autor e à editora, a Palimage. É também uma homenagem à sua esposa, a quem dedica (a ela e às filhas) este livro, com palavras  de enorme ternura e humanidade que merecem ficar aqui registadas no nosso blogue:

"Este livro  (...) é principamente dedicado à minha esposa, que continua a ser dos meus sonhos o mais lindo, pro quem tive a ousadia de pedir a Deus: "Senhor! Cuida bem dela. Dá-lhe uma velhice calma e sem abrolhos, que a compense da imensidão de sacrifícios que por mim temfeito. Quando a tiveres de a chamar a Ti, não o faças sem primeiro o teres feito a mim, pois  sem ela nem o mundo seria o mesmo, nem a  minha vida teria qualquer sentido" (pág. 19).

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos a seguir relatados: vd. por exemplo, o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estva a altura em Aldeia Formosa, Joaquim dos Reis Martins ("Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335); ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**). 



Capítulo décimo primeiro – A noite dos horrores, ou o conflito armado entre metropolitanos e africanos e ainda a morte de Virgolino Ribeiro Spencer (pp. 197 – 202)


Por Rui Alexandrino Ferreira 



(...) Se durante a permanência do [BCAÇ] 2892, a coexistência entre brancos e africanos decorreu de forma natural, (…) dentro do aquartelamento e da povoação [de Aldeia Formosa] (…), com a chegada do [BCAÇ] 3852 tudo se tinha modificado.

(…) Sucedia que entre os fulas, para publicamemte mostrarem a grande amizade que os unia, estes se passeavam de mão dada. Tal facto foi originando alguns piropos da parte dos soldados metropolitanos, que foram agravando com o correr do tempo.

Longe de qualquer prática homossexual, que aliás não foi detetada nenhuma, na CCAÇ 18, durante todo o tempo em que lá estive (…). Os militares do [BCAÇ] 3852 pareciam, a este respeito, estar desinformados, pouco mentalizados, como se fosse coisa de que nunca tivessem ouvido falar.

Foram-se assim agravando as relações. E, se não me custa aceitar que havia alguns militares da [CCAÇ] 18, que estariam mais perto dos ideais do PAIGC, e atentos a uma oportunidade para lançar uma confusão, tal não me parece ter sido esse o presente caso.

Confusão que acabou por acontecer na noite da consoada de 1971. Foi seguramente, se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida.

E tudo começou por uma violenta discussão entre africanos e metropolitanos no bar do Cabo Verdiano, envolvendo o campeonato de futebol da primeira divisão. Do Benfica ao Sporting (…), foi subindo de tom e passou para o futebol de Aldeia Formosa, onde tinha recentemente terminado o campeonato inter-unidades.

E assim, normalmente, acabava por vir a lume a minha própria pessoa. Não sendo efetivamente um elemento muito disciplinado, usando e abusando da força que então tinha, era extremamente corajoso, lutador e, sem ser violento, impunha o físico, nunca tirava o pé do sítio onde metia e raramente perdia um confronto a dois.

Tendo sido injustamente expulso durante um desafio por um furriel árbitro que, na busca de protagonismo, não encontrara melhor solução que me pôr fora de campo, ordenei então à equipa da 18 que abandonasse o terreno, pois o futebol para nós tinha acabado naquele momento.

Foi um alvoroço. Chamado às preces
 [ou à pressa ?]    o comandante [ten cor inf António Afonso Fernandes Barata], [este ] ordenou-me que fizesse reentrar o pessoal no campo, ao que lhe respondi que nem pensar.

− Então mando-os eu entrar – retorquiu.

−Essa é que eu gostava de ver, entrar um que fosse, depois de eu ter dito para o não fazerem.

− Então, eu prego-lhe uma porrada.

− E eu preocupado com isso, seguramente viu daqui para melhor, porque não há nada mais perigoso em matéria operacional do que uma companhia africana. E venha quem os ature.

− Mau…, então vamos conversar. O que é o senhor quer ?

− Mande substituir o árbitro.

E assim foi feito (…).

Do futebol se passaram às malévolas insinuações, se julgaram ações, se estabeleceram suposições, numa alusão a eventuais práticas homossexuais, metendo pelo meio o uso dos balandraus, alguns ricamente costurados, que os fulas usavam em ocasiões especiais, mas que efetivamente mais pareciam vestimenta de mulher.

E tudo acabou num confronto físico, quando um soldado africano enfiou pela cabeça abaixo de um soldado africano uma cadeira. Criadas fixaram assim as condições para o pandemónio que se seguiu.

Impotente para reagir fisicamente, dada a diferença de arcaboiço, o soldado africano foi a casa buscar a arma. Os soldados metropolitanos refugiaram-se no quartel e os africanos instalaram-se numa casa fronteiriça a este, de onde desencadearam o ataque.

A notícia chegou como uma bomba à tabanca da [CCAÇ ] 18 [fora do quartel, onde ficavam o comandante e os demais graduados da companhia].

− Nosso capitão, o pessoal está todo aos tiros uns aos outros.

(…) Desatmado, usando, tal como me encontrava, as calças do camuflado e uma t-shirt branca, dirigi-me rapidamente ao local do conflito.

Já então o tiroteio era verdadeiramente infernal. Os soldados metropolitanos tinham começado a responder de dentro para fora do quartel. Tendo feito rapidamente um balanço à situação, só havia um solução: terminar imediatamente com a troca de tiros, antes que a situação ficasse incontrolável.

Identificando-me e ordenando, tão alto quanto consegui, que pusessem fim ao tiroteio, avancei direto à casa onde se encontravam entrincheirados os soldados da 18.

Os tiros passaram por mim zumbindo, dilagramas iam rebentando um pouco por todo o lado. E fosse por intervenção divina, por interferência de Nossa Senhora de Fátima que protege os portugueses quando estes se encontram em más situações, ou pela intervenção que era conferida pelo amuleto que me fora dado pelo Cherno Rachid Jaló, não sofri nem a mais ligeira beliscadura.

Continuando a avançar em direção à casa, consegui que os meus soldados a abandonassem e assim se findou o tiroteio. No rescaldo, e num balanço final, tinha um dos majores um dos lados da cara completamente esfacelado, por se ter mandado abaixo do jipe que estava a ser atacado.

Mais grave, estava o Virgolino Ribeiro Spencer, um dois furriéis da 18, que transitava de boleia na motorizada do Ganga, outro furriel da mesma 18, que era avançado de centro da seleção da Guiné (…)[com família no Pilão]… [E a propósito do Pilão], ainda estava bem presente na mente de todos a morte de quatro elementos da polícia militar, vítimas de uma granada que lhes meteram dentro do jipe.

Virgolino Ribeiro Spencer foi inacreditavelmente atingido por uma bala que, tendo feito ricochete no farolim, o foi apanhar naquele exíguo pedaço do seu corpo, que não estava protegido pelo corpo do Ganga. (…)

Evacuado para Bissau, na madrugado do dia seguinte, morreu um dia depois [na realidade, umas três semanas depois, em 15 de janeiro de 1972]. Para o seu velório e enterro, Spínola mandou-me buscar a Aldeia Formosa.

Foi mais uma noite de profundo desgaste psíquico, físico e mental. Com o calor que se fazia sentir, o corpo já tinha começado a decompor-se. A família, num cantochão, misto de prece e oração, lamentava em conjunto a sua morte. Toda a noite, sem descanso, sem tréguas, sem intervalos. De madrugada, [eu] tinha os nervos arrasados. O enterro constituiu mais uma provação.

Mas voltando a Aldeia Formosa e à noite das facas longas, findo o tiroteio e após ter passado pela enfermaria, dirige-me à sala de operações onde se encontrava reunido o comando do batalhão. O comandante propôs-me então que se esquecesse o que se tinha passado, não informando Bissau do sucedido.

Ao que lhe respondi que não precisava ele de se preocupar em prestar qualquer esclarecimento, pois a essa hora já por toda a cidade de Bissau se sabia o que se tinha passado, com base no agente da PIDE, em Aldeia Formosa.

− E mais, temos de nos preparar para amanhã receber a visita de Spínola.

E assim foi. Formadas as unidades, Spínola determinou que os comandantes das companhias fizessem sair os cabecilhas. E quando viu que os elementos da 18, que tinha mandado sair, estava um cabo com uma cruz de guerra (que ostensivamente colocara), dirigiu-se-me dizendo que não era forma de tratar um herói nacional. Ao que eu respondi:

−Que em matéria de cruzes de guerra, ele ainda ficava a perder comigo.

A verdade é que Spínola estava absolutamente determinado a arranjar alguém que arcasse com as culpas e, se eu não lhe tenho respondido com a mesma arrogância, ele tinha-me passado por cima.

Embarcados os elementos que tinham sido dados como cabecilhas, Spínola regressou a Bissau.

De seguida, mandou quês e apresentasse em Bissau o comandante do [BCAÇ] 3852 e enviou, para Aldeia Formosa, o brigadeiro Ramires, comandante do CTIG, que, tendo como escrivão o major Carlos Azeredo, elaborou o auto respetivo. (Aliás, Carlos Azeredo conhecia muito bem Aldeia Formosa, pois tinha aí comandado um COP).

Ouvidos exaustivamente todos os possíveis intervenientes, foi o comandante punido. Salvo erro, com 12 dias de prisão disciplinar, findos os quais, foi mandado regressar à Metrópole.

No rescaldo, a vida regressou a uma efetiva normalidade, melhoram as relações entre militares, e eu sentia que o grosso que tinha que fazer naquela comissão já estava feito.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos , para efeitos de publicação deste poste:  LG]

2. Comentário adicional do editor LG:

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos acima relatados, que podem divergir, nalguns aspetos circunstanciais ou até essenciais, da versão do Rui Alexandrino Ferreira. Costuma dizer-se que quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto. Neste caso, ver por exemplo:

(i)  o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estava a altura em Aldeia Formosa, fotógrafo amador, e amigo do coamndante da CCAÇ 18, de seu nome Joaquim dos Reis Martins: ele próprio doou sangue para fazer uma transfusão ao furriel Spencer, assistido de imediato pelos quatro médicos do batalhão, por sorte todos reunidos nesse dia festivo em Aldeia Formosa: levado de helicóptero para o HM 241, logo no dia seguinte de manhã,   foi recuperando dos ferimentos de bala; mas terá morrido de uma hepatite no hospital (in "Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335).

(ii) ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**):. 

(...) Oficialmente, o exército considerou a  (...) morte   [do furriel mil Spencer] como "acidente". Na realidade, ele terá sido assassinado, quando circulava pela tabanca com a sua motorizada. Era um guineense, de origem cabo-verdiana,  sendo natural de Nª Sra. Natividade, Pecixe, Cacheu.

Era o único militar, ao que parece, que possuía uma motorizada  [o alf mil João Marcelino, da CCS, também tinha uma Honda, não sei se nessa altura, se mais tarde... LG] . 

Para o Manuel Gonçalves, terá sido morto mais provavelmnete morto por alguém da sua própria companhia. a CCAÇ 18,  As praças da CCAÇ 18 viviam na tabanca, estando por isso armados.

A haver crime. não se apurou o móbil do crime, nem se identificou o autor do disparo.. Pode-se pôr a hipótese de vingança ou racismo. Esta história acabou por ser um "pretexto" para uma "insubordinação militar", com o pessoal da CCAÇ 18,  a revoltar-se e virar as suas armas contra os "tugas" da CCS/BCAÇ 3852.

Foi preciso mandar avançar uma Panhard para serenar os ânimos... Isto passa-se na véspera de Natal, na noite de Consoada, 24/12/1971. O Spencer, evacuado para o HM 241, em Bissau, acabou por não resistir aos ferimentos, três semanas depois. (...)

Há outras referêcncias a estes acontecimentos da noite de Natal de 1971 em depoimentos prestados no livro do Rui Ferreira por militares que o conheceram e que com ele conviveram em Aldeia Formosa, quer pertencentes à CCAÇ 18 quer ao BCAÇ 3852. Não vamos, por ora, citá-los. Os seus depoimentos são importantes para se melhor conhecer o homem e o militar que foi o Rui Alexandrino Ferreira.

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Notas do editor:

(*) Último poste da sérue > 24 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)

(**) Vd. poste de 12 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19006: (De) Caras (120): A morte do fur mil, da CCAÇ 18, Virgolino Ribeiro Spencer, em Aldeia Formosa, em 15 de janeiro de 1972... Acidente ou homicídio na Consoada de Natal de 1971 ? A versão do Manuel Gonçalves, ex-alf mil manutenção, CCS/ BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73).

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)




Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do último livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Coimbra, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Um abraço do João Marcelino (que vive na Lourinhã, esteve presente no VII Encontro Nacional da Tabanca Grande, em 2012, e que é amigo do autor desde a Guiné, tendo estado os dois juntos em Aldeia Formosa: o Rui como comandante da CCAÇ 18, o João Marcelino, "Joneca", como alf mil, CCS/BCAÇ 3852).


Foto (e legenda): © Márcio Veiga / Rui Alexandrino Ferreira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Paulo Santiago deu-nos ontem à noite a triste notícia e o João Marcelino acaba de a confirmar junto da família: morreu o nosso Ruizinho, como era carinhosamente tratado o Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022).

Estava reformado como ten cor inf. Foi alf mil inf, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; cap mil da CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72). É autor de três livros de memórias.



Rui A. Ferreira
Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce na antiga Sá da Bandeira (hoje Lubango), Angola.

1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.

1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67], dado como um desaparecido em combate.

1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].

1973 - Regressa a Angola em outra comissão.

1975 - Retorna a Portugal.

1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.

2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra 

2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné, igualmente sob a chancela da Palimage.

2017 - Lança um 3º livro, A Caminho de Viseu, nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.

2022 - Morre, em Viseu, de doença crónica degenerativa (Parkinson); tinha inúmeros amigos e camaradas que o estimavam, acarinhavam e admiravam; era um dos históricos  da Tabanca Grande, tem cerca de 80 referências no blogue.

Para a família e amigos e camaradas mais íntimos, fica aqui esta nota de pesar pela sua perda mas também a nossa homenagem a um grande militar, um bom homem e um melhor amigo que soube partilhar, connosco, em vida, as suas memórias da Guiné. LG

PS - Não temos informação sobre o local e a data das cerimónias fúnebres.
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terça-feira, 13 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas


Foto nº  1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 >  Cumbijã que construímos, literalmente: com sangue, suor e lágrimas. Em primeiro plano os nossos chuveiros e a hortinha do Zé Carlos aproveitando a água do banho...

 

Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 >  O Cumbijã que encontrámos. Á direita,  o Beires levantando mais uma mina e à esquerda o mausoléu em betão onde um camarada acionou uma mina

Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Pormenor dos cuidados colocados no processo de levantar uma mina: Beires (o especialista em minas e armadilhas), Portilho, Vasco da Gama e Abundância conferenciando sobre melhor forma de levantar mais uma Era sempre uma manobra arriscadíssima.

Foto (e legenda: © Vasco da Gama / Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cumbijã > As minas que levantámos (30)… “Manga de ronco”, mas com lágrimas!

Foto (e legenda): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 5 >Guiné > Região de Tombali > Colibuia   > 1973  >  


Foto (e legenda): © António Murta (2016). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


 
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex- urriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII (*)

 

Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores 
e a crueldade das minas



Assim se prolongou a nossa missão nestas diferentes tarefas: (i) patrulhas de reconhecimento e segurança no mato (ii) proteção da coluna para Buba (iii) e mais intensamente a proteção ao grupo de engenharia na construção da estrada Mampatá-Nhacobá. 

Com o avançar dos trabalhos o perigo de contacto com o IN aumentou significativamente e começou a guerra mais estúpida e cobarde das minas.

Militares de outras companhias, que também participavam na proteção dos trabalhos de construção da estrada, tinham já acionado uma ou outra mina antipessoal e uma máquina de engenharia uma anti carro. De dia para dia e ansiedade era maior no caminho para a frente de trabalhos. Com mil cuidados, paciência, muita perícia dos nossos picadores e, muita sorte (utilizando a linguagem da bola: a sorte dá muito trabalho), tínhamos passado pelos pingos da chuva, mas, infelizmente, por pouco tempo…

Lembro aqui, com alguma emoção:

• os camaradas “velhinhos” do BCAÇ 3852 (1971/73) que nos receberam principescamente com direito a sopa de capim cozinhado com água turva da bolanha e cerveja a 40 graus (#);

• os camaradas “velhinhos” da CCaç 18 (constituída maioritariamente por elementos nativos), com quem aprendemos, juntamente com o BCAÇ. 3852, a lidar com esta “coisa” estúpida da guerra sofrendo e chorando, juntos, os camaradas mortos e feridos em combate;

• os camaradas “periquitos” do BCAÇ 4351 (1973/74), que nos acompanharam (todos “borrados” - tanto quanto nós nos primeiros dias de Aldeia Formosa) em algumas ações quando a região estava a ferro e fogo com a nossa entrada na base do PAIGC em Nhacobá;

• os nossos camaradas e amigos de 
Mampatá [ CART 6250, 1972/74] :que faziam questão de nos pagar a cerveja sempre que parávamos, junto ao magnífico mangueiro, no seu pacato e simpático destacamento para limpar o pó da garganta, dando-nos ânimo com as suas palmadas nas costas como se despedissem de alguém que ia atravessar o deserto, minado, a caminho do inferno.

Assim se formaram os especialistas das picagens. Um pau com um ferro pontiagudo numa extremidade, como se fosse um caminheiro de São Tiago, que era projetado, durante a marcha, para a terra com a força bastante para sentir um toque diferente, mas não suficientemente forte para não acionar a mina. Convenhamos que era uma tarefa que exigia muita perícia e concentração.

Na marcha em “pirilau” (uma fila de homens ligeiramente afastados uns dos outros) os 2 primeiros, para além da sua arma e restante equipamento também transportavam e manobravam este “sofisticado” detetor de minas.

Para quebrar um pouco a rotina do dia a dia, esporadicamente, Aldeia Formosa era flagelada com granadas de canhão sem recuo e/ou morteiro.

Sempre que Aldeia Formosa era flagelada estava fora do quartel (exceto no batismo) com o meu pelotão emboscado, toda a noite, na frente de trabalhos da estrada - “sempre que eu passava a noite fora, o quartel entrava em alerta máxima!!!”.

Estas emboscadas eram sempre vividas com muito receio (que não é o mesmo que medo!?) e ansiedade, pelo que o nosso sentimento ao ouvirmos a fortaleza de Aldeia Formosa a ser flagelada era de algum alívio mas também de preocupação pelos nossos camaradas que estavam a ser atacados .

Dois grupos de combate faziam durante o dia a proteção aos trabalhos de engenharia e pernoitavam, emboscados, durante toda a noite, na frente de trabalhos.

Era sempre uma emboscada vivida com muita adrenalina, particularmente nas noites mais escuras. Vivíamos em permanente sobressalto desconfiando do mais pequeno ruído. As nossas companhias habituais eram os macacos que “ladravam” como cães (ou não fossem na sua maioria macacos cão!). Sempre que um ruído estranha lhes chegava aos ouvidos, “ladravam” funcionando como sentinelas para as nossas tropas.

Numa das emboscadas um soldado afirmava com toda a convicção que um macaco, na calada da noite, lhe tinha roubado a ração de combate...talvez, não seria a primeira vez, contudo, durante a noite todos os macacos são “pardos”…

Os dedos das mãos e dos pés não chegam para contar o número de vezes que fizemos estas emboscadas, vividas sempre com a tensão nos limites. Contudo, inexplicavelmente, por alguns instantes, conseguíamos alhear-nos da situação de guerra e saboreávamos os momentos extraordinários e únicos de passar uma noite em plena floresta Africana. É algo que nos marca para a vida:

• as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida ouvindo os macacos ao longe e o “piar” de uma ou outra ave;

• as noites de trovoada contínua, que nem as festas da S.ª da Agonia [, de Viana do Castelo], fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas de uma beleza indescritível;

• as noites de luar, lindas e quase românticas...sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;

• as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma, com o agradável cheiro a terra africana.

De manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçavamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir...

Sentíamos que estávamos a ser vigiados permanentemente pelo IN, já que sempre que emboscávamos na frente de trabalhos,  rebentavam com os pontões já construídos em linhas de água na nossa retaguarda. Sempre que emboscavamos juntos aos pontões tínhamos minas na frente de trabalhos.

E sempre que destruíam os pontões,  a coluna ficava retida no local várias horas até se construir um caminho alternativo.

Uma ou outra vez ousaram atacar a coluna que se deslocava para a frente de trabalhos. Num destes ataques um soldado africano foi mortalmente atingido.

Era evidente o esforço do IN em retardar ao máximo a chegada da estrada a Nhacobá, ganhando tempo para não perturbar o ataque contundente que estavam a preparar contra Guileje e Gadamael (##), cujo desfecho dramático não só virou o curso da guerra na Guiné como acelerou a revolução de Abril.

Para o ataque a Guileje e Gadamael, a partir da fronteira com a Guiné Conakry, ter sucesso, era importante manter a sua base no interior (Nhacobá), servindo de tampão e ao mesmo tempo de importante celeiro - aqui encontrámos toneladas de arroz que dava para alimentar um exército durante meses. Era também fundamental para o PAIGC segurar Nhacobá mantendo aberto o importante corredor de Guileje permitindo o transito de homens e material para a zona sul do território.

Para atingirem tal desiderato utilizaram a estratégia mais eficaz e ao mesmo tempo mais cobarde para retardarem a construção da estrada: a guerra das minas.

Chegada a frente de trabalhos a Colibuía (uma das tabancas abandonadas), e uma vez que estava prevista a reocupação da mesma pela nossa companhia, os nossos picadores passaram a “pente fino”, milímetro a milímetro, o local. Dois grupos de combate da companhia passaram a dormir, alternadamente aqui.

Já com as máquinas a terraplanarem esta antiga tabanca, criando as condições para aí nos instalarmos, como era recorrente, surge a contra ordem que afinal iríamos ocupar a tabanca mais à frente – Cumbijã.(**) [Vd, infografia abaixo.]

Chegados a Cumbijã, para aí nos instalarmos definitivamente, detetamos e levantamos cerca de 30 minas (pessoal e anticarro: vd. foto nº  2, acima).  A eficácia na deteção e levantamento de minas foi de quase 100%. Digo quase, porque Infelizmente os quase 100 % não evitou a nossa segunda vítima grave causada por esta estúpida e cobarde guerra das minas (a primeira foi um acidente de um camarada da companhia a manobrar uma granada ofensiva que lhe rebentou na mão).

Um soldado que estava de visita ao destacamento, por pura curiosidade uma vez que não fazia parte dos grupos de combate, abeirou-se, coisa que todos nós fizemos, junto de uma pequena construção em betão (em homenagem a um soldado morto no local e que pertencia à última companhia que ocupou o local) para ler a mensagem gravada na placa de cimento. 

Enquanto as máquinas de engenharia terraplanavam criando as condições mínimas de segurança e habitabilidade, ouve-se um grande rebentamento, julgando eu, na altura, ser uma mina acionada pela máquina, que parou, ouvindo-se de seguida gritos de desespero. Foi o soldado que acionou uma mina, que não foi detetada, no mausoléu.

Por uma questão de respeito ao militar morto neste destacamento, ao entrarmos pela primeira vez no local, decidimos manter o mausoléu.

Por ser, obviamente, local de grande curiosidade, já que todos iriam querer ver a dedicatória inscrita no mesmo, foi o local mais picado e verificado por todos os meios. Ficamos incrédulos como foi possível, logo ali, rebentar uma mina. À volta do mausoléu existia uma estrela desenhada com garrafas de cerveja, e não fomos perfeitos, devíamo-lo ter sido, prevendo tal situação. 

A mina estava colocada debaixo de um grupo de garrafas de cerveja, pisadas pelo nosso querido amigo, pensando ser mais seguro. Este incidente, o segundo, não só abalou o grupo como nos consciencializou que o perigo vivia connosco 24 horas por dia, pelo que qualquer passo ou atitude devia ser sempre muito bem escrutinado.

(Continua)

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Notad do autor:

(#) Ao chegarmos a Aldeia Formosa por todo o lado se ouvia: "Piriquito vai no mato, olélélé velhice vai no Bissau olélélélé".

Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.

Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para eles e para os novos companheiros: para eles o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz: fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”. Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente ninguém mais reclamou.

Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado entornando a mesma nas nossas calças. Aqui a coisa “piou mais fino” e alguns de nós reagiu com alguma violência. Antes que a coisa descambasse, os soldados que serviam no bar identificaram-se como colegas furriéis, e que tal não passava de uma praxe habitual aplicada aos periquitos. Com tudo esclarecido ... a farra foi até às tantas com direito a cerveja fresca.

Dormimos como justos no chão em colchões insuláveis... ainda vazios…

(##) Entretanto, acontece o impensável, Guileje, o aquartelamento mais bem fortificado da Guiné, e muito próximo de nós, foi abandonado pelas nossas tropas (uma companhia que se formou ao mesmo tempo que nós em Estremoz, todos nossos amigos, a CCAV 8350), em consequência do ataque em massa, com armas pesadas e durante vários dias consecutivos, causando várias vítimas entre militares e população…

O PAIGC ocupando Guileje (só 3 dias depois deste ser abandonado!!!), deslocou todo o poder de fogo aí utilizado para Gadamael, completamente sobrelotado com a chegada dos militares e população de Guiléje...


Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Guileje > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Alguns dos topónimos míticos por onde passava o "corredor de Guileje" ou o "corredor da morte", triangulando entre Guileje, Gandembel / Balana e Nhacobá. Ver também posição relativa de Cumbijã e Colibuía, a sudoeste de Aldeia Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Comentário de LG: 

Recorde-se aqui a história sumária da Companhia de Cavalaria nº 8351/72:

Identificação CCav 8351/72
Unidade Mob: RC 3 - Estremoz
Cmdt: Cap Mil Cav Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Partida: Embarque em 270ut72; desembarque em 270ut72 | Regresso: Embarque em 27Ag074



Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 280ut72 a 17Nov72, no CMI, em Cumeré, seguiu, em 19Nov72, para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 3852 e, a partir de 4Dez72, reforçar aquele batalhão e depois o BCaç 4513/72, com a missão prioritária de segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mampatá-Cumbijã-Mejo, em cooperação com outras subunidades.

Em 3Abr73, quando os trabalhos da estrada atingiram Cumbijã, deslocou parte dos efectivos para esta povoação, a fim de garantir a segurança e protecção do parque de máquinas de engenharia e a continuação dos trabalhos.

Em 17Mai73, com a realização da operação "Balanço Final", instalou-se temporariamente em Nhacobá, até 26Mai73, após o que ficou em Cumbijã, com a mesma missão anterior.

Em 26Ju174, após substituição em Cumbijã por dois pelotões da CCav 8350/72, recolheu a Buba e depois a Cumeré

Em 30Jun74, foi colocada em Bissau, onde passou a colaborar na segurança e vigilância periférica da cidade até ao seu embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade.Tem Resumo de Factos e Feitos (Caixa n.º 128 - 2.º Div/4.º Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) :   7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág. 520.

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(**) Vd. também poste de 28 de dezembro de  2008 > Guiné 63/74 - P3675: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (5): Ocupação do Cumbijã e construção das instalações

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21779: Notas de leitura (1334): As Grandes Operações da Guerra Colonial, a Guiné, 1972 a 1974, por Manuel Catarino (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
O mérito da iniciativa é indiscutível, estes fascículos venderam-se pelo país todo, pode muito bem ter acontecido que os mais jovens tiveram pela primeira vez acesso a imagens da nossa guerra. Houve muito trabalho a angariar os dados, o que se lastima é que a sua apresentação tem tais e tantos ziguezagues que o não iniciado forçosamente anda para ali a dar braçadas em seco, lê-se e o que fica é um produto final difuso, com muitos tiros, mortes e feridos.

Um abraço do
Mário


As Grandes Operações da Guerra Colonial, a Guiné, 1972 a 1974

Beja Santos

Publicada sob a forma de fascículos, em duas séries, os textos de Manuel Catarino contemplaram por diversas vezes a guerra da Guiné. O número 8, a que aqui se faz alusão, inclui na primeira parte uma série de operações (Muralha Quimérica, 1972, Lince Azul, Palanca, Tigre Poderoso e Gato Espantado, 1973) e na segunda parte a viagem de Spínola ao Senegal e o terror dos mísseis.

Há a lamentar que nem sempre as imagens ilustrativas são as mais adequadas para os acontecimentos versados. No caso da operação Muralha Quimérica, foi uma ação militar de envergadura numa zona compreendida entre Ural e Guileje, e que decorreu de 28 de março a 8 de abril de 1972, ao tempo da visita de uma delegação da ONU a outro ponto da região Sul, temos de facto um mapa mas as demais ilustrações nada abonam sobre a operação.

Spínola estava informado da visita da delegação da ONU e pretendeu estragar a festa, contrariando a ideia (comum nos fóruns internacionais) de que a guerrilha controlava a maior parte da Guiné. Três companhias do batalhão de paraquedistas, duas companhias de comandos africanos, a CCAÇ 18, a CCAÇ 3399, a CCAÇ 3477 e um grupo do Centro de Operações Especiais, cerca de 500 homens, organizados em 14 agrupamentos operacionais sob o comando do Tenente-coronel Araújo e Sá. Foi apreendido muito material, houve mortos e feridos de parte a parte, mas a operação foi considerada um êxito.

José Tavares, do Destacamento de Fuzileiros Especial 4, descreve a sua vida em Ganturé (“Não havia lá nada. Fomos nós que construímos o aquartelamento, numa das margens do rio Cacheu, a cerca de 5 quilómetros de Bigene”). Descreve o inferno de Guidage (“A nossa sorte piorou quando ficámos sem comunicações. A minha família pensava que eu tinha morrido. Não morri porque não calhou. Em Guidage já não tínhamos para comer. Sobrevivemos com carne de crocodilo”).

A obra colhe o depoimento do nosso confrade Eduardo Magalhães Ribeiro sobre o último arrear da bandeira portuguesa. Creio haver ali um lapso tratando a viúva de Amílcar Cabral por Luísa Cabral, a viúva chama-se Ana Maria Cabral. 

O episódio seguinte que merece destaque ao autor é a reconquista do Cantanhez, entre dezembro de 1972 e junho de 1973 foram executadas no Sul da Guiné, com especial incidência nas zonas de Cacine, Gadamael e Guileje uma série de ações (com os nomes ‘Lince Azul’, ‘Palanca’ e ‘Gato Espantado’), o objetivo era desarticular e criar forte instabilidade na guerrilha, todas estas ações faziam parte de uma manobra mais alargada designada por Operação Tigre Poderoso. 

Na essência, Spínola estava determinado a transferir para o Sul o principal esforço de guerra na Guiné, seria uma reconquista que tinha como objetivo fazer do rio Cacine a principal linha de defesa do Sul da Província. 

Como observa o autor, era absolutamente necessário que as forças portuguesas ocupassem a Península do Cantanhez, onde instalariam novos quartéis que servissem de apoio aos aquartelamentos de Cacine, Guileje e Gadamael. Foi posta em marcha a Operação Grande Empresa e envolveu-se um formidável contingente. Ao mesmo tempo que se desenvolvia ação militar (na qual participaram duas companhias do batalhão de paraquedistas, dois destacamentos de fuzileiros especiais e um conjunto de unidades de infantaria, cavalaria e artilharia), um outro conjunto de unidades ocupava fisicamente o território. O nosso confrade Vasco da Gama já aqui contou ao detalhe este esforço impressionante.

O fascículo dá permanentemente saltos, é interpolado por depoimentos, chega-se agora à Operação Neve Gelada, que aqui é relatada pelo Coronel Raul Folques, Comandante do Batalhão de Comandos Africanos. Cai imprevistamente no documento uma cronologia de acontecimentos em 1974 e uma análise do que representou a publicação do livro “Portugal e o Futuro”, de Spínola.

A segunda parte retoma de novo o livro que abalou o regime e segue-se a descrição do encontro de Spínola com Senghor, em 18 de maio de 1972, que se realizou em Cabo Skirring, no Senegal, a história é bem conhecida, pelo meio temos o assassinato de Amílcar Cabral, a zanga entre Marcelo Caetano e Spínola. 

E assim se chega ao terror dos mísseis, regista-se a lista dos aviões abatidos pelos mísseis Strela, Spínola descreve a situação como crítica, episódio que está igualmente bem descrito nas páginas do blogue. Salta-se de novo para a reocupação da Península do Cantanhez, vem referência a um nome que nos é muito comum, o então Major Moura Calheiros, Chefe da Secção de Informações e Operações do Batalhão de Caçadores Paraquedistas que tinha referenciado a posição do mais importante quartel do PAIGC na região: 

“A posição inimiga, sensivelmente entre Guileje e Bedanda, foi localizada durante um voo de reconhecimento pelo Capitão Morais e Silva. O êxito da Operação Grande Empresa dependia da capacidade portuguesa para atacar e destruir o quartel da guerrilha”

Três foram as tentativas de assalto, o Capitão Valente dos Santos, ferido na primeira tentativa, recusa a abandonar os seus homens, só à terceira tentativa é que o Oficial aceita ser evacuado. 

“O Chefe de Operações do Batalhão de Paraquedistas, Moura Calheiros, que durante os combates esteve sempre no ar a bordo de um DO-27, respira de alívio. Pode dar início à segunda fase da Operação – a ocupação de Caboxanque, Cadique e Cafine, na margem sul do rio Cumbijá, por paraquedistas e fuzileiros especiais”.

Não se pode minimizar um trabalho de que resulta sempre apreço ao dever de memória. Tem-se, porém, dúvidas sobre a eficácia destes documentos esparsos e onde o pendor cronológico não é consistente, há documentação repetitiva e erros arreliantes que teriam sido evitados em casos de revisão técnica. Mas não se pode deixar de saudar a enorme difusão que o trabalho teve por todo o país.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21758: Notas de leitura (1333): “De Lisboa a La Lys, O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial”, por Filipe Ribeiro de Meneses, Publicações Dom Quixote, 2018 (Mário Beja Santos)