
Queridos amigos,
Escapara-me a leitura do segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira, referente precisamente à sua segunda comissão na Guiné, passou-a maioritariamente em Aldeia Formosa, emboscou com bastante sucesso os corredores de abastecimento do PAIGC na região, caso do chamado corredor de Missirã; é o relato de memórias para a qual o falecido coronel convocou amigos, como o major-general Pedro Pezarat Correia, a deporem sobre a vida e a atividade operacional na região e os laços de camaradagem, há depoimentos tocantes. Constata-se que o malogrado coronel guarda a amargura de não ter sido condecorado com a Torre e Espada, atendendo ao acervo de condecorações e louvores, considero uma anomalia o despacho do Conselho Superior de Justiça e Disciplina ter decidido que não era oportuno por extemporânea, e reflete amargamente o corporativismo nas Forças Armadas, era o que faltava um miliciano com a mais alta condecoração das Forças Armadas.
Um abraço do
Mário
Memórias do Quebo, da CCAÇ 18, o testemunho de amigos (1)
Mário Beja Santos
"Quebo, Nos confins da Guiné", Palimage (palimage@palimage.pt), 2014, é o segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) que fez duas comissões na Guiné. A primeira deu origem a uma obra de consulta obrigatória para quem estuda a literatura da guerra colonial, "Rumo a Fulacunda", Palimage, 2000; a segunda é Quebo que nos leva à sua segunda comissão, é já capitão e comanda uma companhia de tropa guineense, a CCAÇ 18.
Começa por justificar as razões que o levaram, já na disponibilidade, em dezembro de 1967, e tendo regressado a Sá da Bandeira, onde pensa que iria encontrar readaptação, veio a descobrir que não era numa Repartição de Fazenda Pública que sonhava viver, e decidiu então regressar à vida militar. Na primeira comissão recebera a condecoração da Cruz de Guerra de 1.ª Classe, descobrira o sentido da liderança e a vocação para comandar homens.
O autor pediu ao Major-general Pedro Pezarat Correia que abordasse o contexto da sua comissão passada sobretudo em Aldeia Formosa. Antes, porém, conta-nos que chegou ao CIM em Bolama para a formação da CCAÇ 18, e cabe a Pezarat Correia falar-nos do BCAÇ 2892 e o Setor S-2, no Sul da Guiné.
Este batalhão estacionava em Aldeia Formosa, em Nhala e em Buba, reforçado com mais três companhias operacionais que já se encontravam no Setor sob o comando do COP 4; o batalhão passou também a contar com o apoio de várias subunidades. Tinha sob controle operacional o Destacamento dos Fuzileiros Especiais 3, sediado em Buba, duas companhias de milícias em Empada e Mampatá, e um grupo de caçadores nativos.
O batalhão assumiu a responsabilidade operacional em novembro de 1969, assumia quatro tarefas prioritárias:
O batalhão assumiu a responsabilidade operacional em novembro de 1969, assumia quatro tarefas prioritárias:
- proteção aos trabalhos de construção na pista de aterragem em Aldeia Formosa (concluída em março de 1970);
- contrapenetração nos eixos usados pelo PAIGC para reabastecer e rodar efetivos das suas bases no interior em Injassane (norte do Rio Grande de Buba) e em Xitole;
- controlo da região de Contabane, fronteiriça com a República da Guiné; condução da Ação Psicossocial.
Na prática, e de acordo com a Ideia de Manobra, havia que proceder a ações de contrapenetração em corredores que constituíam os principais eixos de abastecimento do PAIGC para o interior sul, proceder a uma constante nomadização e emboscadas nas imediações das zonas mais favoráveis aos grupos do PAIGC para instalação de base de fogos para flagelações. F
Foi neste ambiente geográfico, humano e operacional que, em janeiro de 1971, se integrou a CCAÇ 18, acabada de formar, e comandada pelo capitão Rui Alexandrino, veio render a CART 2521.
A CCAÇ 18 era constituída por Fulas, parte deles oriundos da região do Quebo, tinham experiência operacional, haviam pertencido a pelotões de milícias e caçadores nativos. Mal chegados a Quebo, e no período de sobreposição, atuaram no corredor de Missirá, foi uma estreia com emboscada, desbarataram a coluna do PAIGC, Rui Alexandrino reorganizou as suas tropas e transferiu a emboscada para outro local, uma hora mais tarde novo contacto, causou baixas e capturou armamento.
A CCAÇ 18 era constituída por Fulas, parte deles oriundos da região do Quebo, tinham experiência operacional, haviam pertencido a pelotões de milícias e caçadores nativos. Mal chegados a Quebo, e no período de sobreposição, atuaram no corredor de Missirá, foi uma estreia com emboscada, desbarataram a coluna do PAIGC, Rui Alexandrino reorganizou as suas tropas e transferiu a emboscada para outro local, uma hora mais tarde novo contacto, causou baixas e capturou armamento.
Depois o BCAÇ 2892 foi rendido pelo BCAÇ 3852, a CCAÇ 18 continuou a reforçar o novo batalhão, com bons resultados em novos contactos no corredor de Missirá.
Ao terminar a sua comissão, em finais de 1972, Rui Alexandrino foi condecorado com uma Cruz de Guerra de 2.ª Classe.
Voltemos à narrativa pessoal do autor, como ele foi encontrar a Guiné após dois anos de ausência. Ele descreve a personalidade de Spínola e o que procurou fazer não só no campo militar como no desenvolvimento socioeconómico da região.
Voltemos à narrativa pessoal do autor, como ele foi encontrar a Guiné após dois anos de ausência. Ele descreve a personalidade de Spínola e o que procurou fazer não só no campo militar como no desenvolvimento socioeconómico da região.
Antes de ir para Bolama, Rui Alexandrino esteve no Pelundo, conta as suas memórias, conta-nos como viveu a formação da CCAÇ 18 em Bolama e depois a sua adaptação ao Quebo, a originalidade de ele e os seus oficiais e sargentos viverem em instalações na tabanca, lá foram arranjando comodidades, a ponto do seu quarto se ter transformado em ponto turístico da Aldeia Formosa.
Faz um esquiço dos cuidados que a contrapenetração impunha, a dureza da atividade operacional de estar para ali horas camuflados, não fazer barulho, não tossir, não mexer, não espreguiçar e sobretudo não perder a concentração, além de ser imperativo não fazer modificações no ambiente que pudessem indiciar a existência de emboscada, e o autor aproveita para contar algumas peripécias e juntar alguns depoimentos de ex-camaradas.
Depõe como observador sobre os usos e costumes dos Fulas, a impressão que lhe provocava a maneira indigna como as mulheres eram tratadas, tece as suas lembranças sobre os militares metropolitanos e, inevitavelmente, vem exprimir a sua gratidão pelo seu guarda-costas, Ieró Embaló, feito prisioneiro depois da independência, passou onze anos nas masmorras, depois de muitas peripécias veio até Portugal, foi uma verdadeira odisseia vir a ser aceite os seus direitos de ser português, faleceu súbita e inesperadamente, e conta sumariamente a sua história:
Depõe como observador sobre os usos e costumes dos Fulas, a impressão que lhe provocava a maneira indigna como as mulheres eram tratadas, tece as suas lembranças sobre os militares metropolitanos e, inevitavelmente, vem exprimir a sua gratidão pelo seu guarda-costas, Ieró Embaló, feito prisioneiro depois da independência, passou onze anos nas masmorras, depois de muitas peripécias veio até Portugal, foi uma verdadeira odisseia vir a ser aceite os seus direitos de ser português, faleceu súbita e inesperadamente, e conta sumariamente a sua história:
“Raptado ainda muito novo, foi levado à força para a Guiné-Conacri, onde se viu obrigado a integrar as forças do PAIGC. Tendo sido colocado numa base operacional do partido, mesmo junto à nossa fronteira, daí tinha fugido na primeira oportunidade e feito a sua apresentação às forças portuguesas.
Tinha um conhecimento profundo quer das formas de atuar do inimigo quer da tropa portuguesa. Era de um espantoso espírito de observação e de uma imensa capacidade de adaptação. Uma inteligência superior à média, tal como muitos Fulas, falava fluentemente o português, o fula e o crioulo, e igualmente o francês. Islâmico, profundamente religioso, seguia e norteava a sua vida pelas normas e preceitos do seu Deus.”
Rui Alexandrino recorda os atos de bravura do seu guarda-costas.
Entram agora na conversa dois coronéis, Gertrudes da Silva e Vasco Lourenço, falar-se-á do coronel Agostinho Ferreira, comandante em Aldeia Formosa, o autor deixa a sua lembrança sobre o fim da comissão do BCAÇ 2892, a chegada do BCAÇ 3852, veio de férias, regressou à guerra, temos de seguida o depoimento de outro capitão de Aldeia Formosa, Horácio Malheiro, e uma noite de horrores de conflito entre tropa metropolitana e gente da CCAÇ 18, haverá vítimas inocentes, como se contará a seguir.
Estamos perante o caderno de memórias, o autor aproveita a oportunidade para se ressarcir de imprecisões existentes no seu primeiro livro, revela poesia dedicada às filhas e convoca um bom punhado de antigos camaradas para relembrar acontecimentos vividos nesta segunda comissão.
Aldeia Formosa, 1973. Fotografia de José Mota Veiga já publicada no nosso blogue
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Nota do editor
Último post da série de 7 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)
5 comentários:
Muito bem, Mário Beja Santos, a nossa guerra, real, com os nossos melhores.
Todos, os que pisaram a terra do ódio e do amor fomos os melhores.
Os melhores duma geração lançada na fogueira dos alarves.
Abraço fraterno para quem, como eu, palmilhou o chão que duma forma ou outra marcou a nossa juventude.
Eduardo Estrela
"era o que faltava um miliciano com a mais alta condecoração das Forças Armadas."
Esta observação de Beja Santos, que eu leio bastante, esta observação tem "porras".
DE notar que havia muito poucos oficiais de carreira, jovens durante a guerra do Ultramar.
Salazar não obedecia àquele ditado antigo"se queres a paz, prepara a guerra".
Em 1961, início da guerra do Ultramar, para Angola e em força, nem militares nem armas, nem quarteis, nada estava preparado para qualquer tipo de guerra.
Se este oficial miliciano, Rui Alexandre Ferreira, recebesse a Torre e Espada, não haveria produção industrial para tantas Torres e espadas.
Em 1961, os oficiais e sargentos de carreira, portugueses, nem pensavam desde 1920. (40 anos de paz) podre, mas era paz, em qualquer tipo de guerra.
Como tal não eram psicologicamente, nem mais nem menos que qualquer funcionário público, encostados ao orçamento à espera da sua aposentadoria, privilégio que não abrangia todos os portugueses.
E a partir de 1961, os velhos sargentos e oficiais muitos teriam desistidos de encarreirar os seus filhos para a carreira militar.
Só me atrevo a falar de um militar da Guiné, raramente o faço aqui, porque me chamou a atenção ele ser natural de Sá da Bandeira, Angola, e ter sido contemporâneo de Pepetela nos estudos no liceu daquela cidade.
Como os dois são angolanos, um seguiu para um lado, o outro seguiu outro caminho.
A partir de agosto de 1972, quando a minha companhia se estabeleceu em Mampatá, começamos a decorar o nome do Capitão Rui e da C.Caç.18. Todos sentíamos admiração pelos feitos da C.Caç.18, cuja presença nas operações em torno de Mampatá nos transmitia algum alívio. Conheci muitos dos seus componentes, na sua maioria do grupo étnico Fula. Um dia , quando vinha a caminho de férias , na viagem de batelão até Bissau, dois furriéis da C.Caç.18, nascidos na Guiné, ofereceram-me a casa que tinham na capital, onde me instalei durante os dois ou três dias enquanto aguardava o embarque. Deixo-lhes aqui a expressão da minha gratidão.
Carvalho de Mampatá
Mais do que justa esta nota de leitura do livro do Rui A. Ferreira, que conheci apenas dos nossos encontros nacionais da Tabanca Grande, na Ortigosa e em Monte Real...Falei com ele uma ou duas vezes ao telefone. Mas admirava-como combatente e camarada das "africanas" (ele da CCAÇ 18, eu da CCAÇ 12)...E, claro, como angolano. E como escritor, com garra.
Tenho, de resto, o testemunho (sempre divertido e emocionado) dos seus amigos, que com ele conviveram em Aldeia Formosa. Este segundo livro foi-me oferecido, de resto, pelo Manuel Gonçalves, que tinha um exemplar a mais...
Quanto à Torre e Espada...Abstenho-me de evocar aqui a "teoria da conspiração"...Não sei quem decidia e com que critérios na atribuição da Torre e Espada... A mais alta condecoração do país devia estar acima das mesquinhas contabilidades dos homens que têm de decidir quem é "herói"... Sob pena de retirar-lhe todo e qualquer valor (de resto, ,mais simbólico do que outra coisa).
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