1. Desafiámos o José Manuel Matos Dinis (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales (que está de pedra e cal ), a falar da sua experiência de vida em Angola, mais exatamente na Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, na Lunda, onde viveu e trabalhou durante dois anos e meio e onde nasceu o seu primeiro filho... Depois do regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo a Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972. E foi feliz no Dundo.
Carlos, Luís
A ver se é isto que se pretende. Seguir-se-ão episódios mais descritivos daquela sociedade. Como de costume, fiz isto de embute e pode carecer de revisão.
Luís e Carlos, bom dia!
Respondo a um repto do Comandante-Mor para dar conta de algumas das minhas memórias angolanas, que ele acha que podem ter interesse para publicação, enquanto testemunho sobre a colónia que era o motor da economia portuguesa.
O interesse é muito relativo e meramente histórico. Para quem se interessar pelas ligações portuguesas no mundo, pela forma como o "jardim" [, à beira-mar plantado,] dependia e controlava os imensos territórios e as gentes, e ainda tiver gosto em fazer avaliações sobre a relatividade da Nação no contexto das nações, pode ser que consiga espevitar a curiosidade, no sentido de, ainda mais do que eu, aprofundar esse conhecimento, pois não só há literatura, como muita informação na Net.
Advirto, porém, de que são algumas das minhas memórias de há 40 anos, e a Angola de hoje nada tem a ver com a daquele tempo. Agora, regista-se um concentracionismo em más condições da população em redor da capital, das actividades sociais e económicas, enquanto o resto do país, de maneira muito abrangente, definha com as antigas e prósperas cidades abandonadas em estado de ruína, conforme legado da guerra que devastou aquela terra.
As minhas memórias, no entanto, são apenas de uma região situada nos confins do nordeste, fronteira com o Katanga, onde a Companhia de Diamantes de Angola [, Diamang,] (*) tinha as suas principais actividades, e era conhecida como um estado dentro do Estado, enquanto de Luanda apenas retenho escassas memórias de duas vezes em que lá passei e permaneci por 8 dias de cada vez.
Abraços fraternos
JD
2. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I
Em Janeiro de 1972 tinha saído da tropa, dava passeios e namorava pelo litoral de Cascais, onde outros casais nos faziam concorrência. Os meus amigos estavam na vida militar, acabavam os cursos, ou já tinham iniciado actividades profissionais. Já não era como antes, quando a malta se reunia como seita para a paródia, ou para entusiásticas futeboladas. Namorava com envolvimentos familiares, e tinha a obrigação de procurar definição de vida. Não queria trabalhar debaixo de um tecto, e por isso, ficava excluída uma preparação profissional que tinha iniciado antes da tropa.
Afigurava-se-me interessante o garantido ingresso como comissário de bordo na TAP (nem tentaria piloto, pois tinha extraído dois dentes no regresso da Guiné e era impeditivo para a categoria), porque o salário era suficiente e os voos alternavam com dias de descanso em Portugal como nos diferentes destinos. Seria uma abertura para novos horizontes.
Porém, mordia-me um bichinho africano, e a minha namorada dava-me carta branca para decidir o futuro. Para não andar totalmente às escuras, informei-me sobre os trabalhos das minas de diamantes, e logo me entusiasmou essa ideia.
Na minha candidatura em Lisboa aconteceu uma peripécia, porque o chefe de pessoal não me atendeu na manhã e na tarde de um dia, e preparava-se para não me atender no seguinte, sempre "ocupado" com tarefas superiores. Dei uma informação ao contínuo que me olhava com pena, e logo fui muito bem recebido pelos chefe e director do departamento de recursos humanos. Às informações que iam prestar-me durante uma conversa agora agradável, contrapus não ser necessário porque já tinha o conhecimento suficiente sobre a actividade que queria abraçar: mineiro. Assinei o contrato, dois dias antes de a TAP me chamar para as formalidades do curso.
Em Luanda procurei um amigo que trabalhava na Casa Pia. Com ele, ou com a família, passei os
dias em petisqueiras, e por isso, quase não conheci a cidade que, no entanto, afigurou-se-me cheia de contrastes entre o bom e o mau.
De petiscos é que fiquei bastante satisfeito. Durante esse período nem me dirigi à delegação da Companhia, onde, por vezes, emprestavam um carro ao pessoal em trânsito ou davam informações e facilidades. No dia 21 de maio de 1972 apresentei-me no aeroporto. Ali travei conhecimento com um empregado que fora a Luanda tratar de alguma coisa. Estivemos à conversa informalmente, e em intercaladas apreciações sobre uma jovem, de barrete na cabeça, que se deslocava para o Lobito, onde, infelizmente, amarou o "Frienship" daquela linha (*).
A seguir partimos para a Portugália (**) com escala em Malange. Ao sobrevoar as Pedras Negras tive a sorte de ver
uma manada de palancas em corrida, assustadas pelos motores do avião. O Fortes deu-me algumas indicações pelo caminho e na chegada. Mais tarde, quando me deslocava ao Dundo, costumava procurá-lo para cumprimentos, e acabou por ser o meu padrinho de casamento, contra propostas de pessoas mais importantes, resultado da minha aversão às cunhas e situações de favorecimento.
Essa noite, depois de jantar, dormi na
Casa do Pessoal, o que também aconteceu na noite seguinte. Dei uma volta pela localidade do Dundo, a sede administrativa da Companhia, com um urbanismo muito organizado que me sensibilizou favoravelmente. As casas, de bonitos recortes e amplas varandas, sem muros ou vedações, mantinham boas distâncias até aos limites das ruas, que abrigavam espaços relvados, muito bem cuidados, e com fartura de árvores, arbustos e canteiros de flores, que transmitiam uma grande riqueza pictórica, frescura, e deleite para os olhos. Tudo alinhado e muito limpo. Parecia (e era) um paraíso na terra.
Entretanto fora informado de que ia trabalhar com o mais conceituado dos chefes de grupos mineiros, o engenheiro Marvanejo, um tipo simpático, mas duro, que reflectia os bons resultados pela exigência no desempenho das tarefas. Era coisa que não me assustava, só queria ter oportunidade para fazer a minha aprendizagem em boas condições de diversidade das circunstâncias.
No Dundo ainda me propuseram trocar o mato pela permanência naquela localidade, a melhor, e a vida de mineiro pela de meteorologista. Delicadamente recusei, eu tinha mesmo uma grande atracção pelo mato. Ofereceram-me como prenda um chapéu colonial, mas era tão incómodo, e eu estava tão familiarizado com o sol africano, que também recusei. Assim, ao terceiro dia de manhã cedo, fiz as despedidas, e embarquei numa viatura Volkswagen de caixa-aberta com as "imbambas" que me tinham calhado em sorte, e incluíam panos para cortinados, lençóis, cobertores, e outras utilidades.
O trajecto para
Cassanguidi era de cerca de hora e meia, em estrada alcatroada com passagem pela savana verde de vastos horizontes, por várias aldeias, e uma pequena localidade mineira, Fucaúma, que pertencia ao grupo para onde me deslocava. Cheguei durante a hora de almoço, e fui directo à Casa do Pessoal. "Bom dia meus senhores, chamo-me José Dinis, e sou um empregado novo". Levantaram-se os olhares e cumprimentaram-me de cada mesa com os talheres na mão.
Depois de almoço, os visitantes que se ocupavam da construção de estradas e de uma ponte, abalaram às suas vidas, e eu apresentei-me no grupo. O Chefe já estava de saída, mas mandou-me ali voltar pelas 17h00, para conhecer o colega com quem faria estágio, e o sub-chefe Pereira da Silva, porque o "Benfica dele" era noutros azimutes onde pontificavam "cortes ricos", os que garantiam mais negócio.
Novas apresentações, a do subchefe e a do colega que passaria a acompanhar até me considerarem apto e autónomo. No dia seguinte, pelas 6h00 já estava pronto à porta da Casa do Pessoal, a minha nova morada, enquanto não tivesse residência própria. A bordo de Volkswagen percorremos as picadas, ornadas de belas árvores - com destaque para os jacarandás vermelhos ou roxos, alternando com nichos de plantas locais e capim, onde esvoaçavam aves de diferentes portes e coloridos.
Acompanhámos um rio largo, de bom caudal e margens baixas à esquerda, sob um fundo verde, até flectirmos à direita com direcção à mina. Depois de passarmos uma galeria de grandes árvores, deparei-me com o refeitório à direita, bem pintado de branco, e com alinhamentos alternados de bananeiras-macaco e "mamões" (família da papaia), num espaço bem arranjado. No fim da rua despontava uma casa branca com um jardim de ananases plantados em semicírculo. Contornando o escritório, deparava-se a lavaria a uns vinte ou trinta metros. Um telhado alto para protecção das chuvas - ali chovia 9 a 10 meses por ano, onde se despejavam para as tremonhas as vagonetas que transportavam o cascalho. A linha entrava e saía pelo mesmo lado, em via dupla até à exploração depois de atravessar uma ponte sobre um canal a meio da colina, onde os ramais drenantes eram dispostos conforme os "cortes" em exploração, ou em limpeza da rocha base.
A lavaria situava-se à direita de quem saía do escritório, e era alimentada por uma correia transportadora que, da tremonha, levava o cascalho para as "pans" de centrifugação, de onde os materiais densos desciam para os depósitos de "concentrado" ou "gigas", enquanto o material rejeitado seguia por outra correia para uma acumulação de inertes. Do local desta acumulação, como da saída das linhas, tinha-se uma vista larga sobre a exploração rodeada por uma envolvência em anfiteatro de árvores imponentes, que acompanhavam a colina até ao nível do rio, onde desaguava o canal para onde se dirigiam os diferentes drenos de protecção.
Os cortes, consistiam em espaços definidos pelo programa de exploração, de onde se removiam as terras para os cortes já explorados, cujas espessuras variavam conforme o nível da superfície natural, até se atingirem as camadas de cascalho, e seriam cobertos com a terra removida de novos cortes anexos. Definiam-se as linhas de drenagem, as mesas de assentamento de carris para o acesso das vagonetas, a localização das rodas de canto para as conduzir em diferentes direcções conforme a evolução dos trabalhos e o percurso até à lavaria. Havia uma ou duas bombas hidráulicas para secagem das partes inundadas aquando das mais intensas chuvadas que a drenagem não satisfizesse.
No fim do dia de trabalho chegava a viatura do concentrado, que transportava as bilhas para uma estação de escolha, onde eram seleccionados e classificados os diamantes, depois de passarem por novos processos de centrifugação e escolha. O horário de trabalho de um único turno começava um pouco antes das 7h00 e terminava às 16h00, com uma hora para almoço, mas havia padejadores que saíam mais cedo conforme acabassem as tarefas. As folgas eram em regime de "semana inglesa".
Ao terceiro dia o Carlos partiu uma perna a jogar à bola, e fiquei sem instrutor. Tinha tido dois dias apenas de estágio, e faltava-me toda a experiência para a condução dos trabalhos em boa ordem. O engenheiro subchefe visitava-me por vezes, mas, apesar de ser um tipo porreiro, era espalha-brasas e não tinha cuidado no linguajar com os trabalhadores. Mal virava costas, eles desprezavam-no. De modo que fiz o estágio com os capatazes, com quem trocava impressões sobre o que era bem ou mal feito. Foi a escola possível, e o Muriandambo foi o capataz-geral que mais me ensinou. Essa aprendizagem, na teoria, era complementada com conversas que mantinha com os colegas mais experientes. Entretanto, tinha agendado o casamento para o final do ano. Eu andava feliz, apesar das preocupações.
O ambiente, o pessoal e as famílias, era acolhedor. Passei a ocupar o tempo livre com convívios. A Casa do Pessoal era gerida pelo Tomás e a mulher, sendo ela uma boa cozinheira, e ele um apreciador da sua produção com bastante mais de cem quilos. Eu e o Maia éramos os únicos residentes, ambos solteiros. Quando estacionava o carro que herdara pelas 16h30, já havia malta a chamar-me para o petisco, pelo que me habituei a tomar banho pouco antes do jantar durante a digestão. Outras vezes, acabávamos de jantar e ficávamos à conversa, aparecia o Tomás com uma travessa de qualquer coisa para entretermos os discursos. Se não fosse a entrega à actividade física durante o horário laboral, teria ficado inchadíssimo, mas consegui permanecer nos 75 kg.
Um dia desses falei em irmos ao Luchilo tomar café, que lá a Casa do Pessoal funcionava até mais tarde. Não podíamos. Na Companhia exigia-se autorização para tudo, principalmente as deslocações. No fim-de-semana propuseram-me deslocar-me ao Dundo, e não me dera conta desse constrangimento. No dia seguinte, à tarde, fui bater à porta do Chefe, que me recebeu com alegria descontraída. Disse-lhe ao que ia, e pedi licença definitiva para me ausentar para outro grupo, dado que não queria causar-lhe incómodos. Boa ideia, respondeu, e acrescentou que a partir daquele dia acabava as autorizações para deslocação, pelo que ficavam todos autorizados a fazer qualquer deslocação. Logo a notícia correu outros espaços, e a breve trecho essa diligência acabava.
(continua)
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Notas do editor:
(*) A produção de diamantes em Angola data de 1917, ano em que se constitui a Diamang - Companhia de Diamantes de Angola , uma empresa de capitais mistos de vários grupos financeiros (Portugal, Bélgica, Estados Unidos, Inglaterra e África do Sul). Em 1981, o Estado angolano passa a ter o controlo total da produção diamantífera no país, criando a
Endiama - Empresa Nacional de Diamantes.
Há um
portal, na Net, fabuloso, dedicado à Diamang e à Lunda, com centenas de fotografias da época, permitindo "reconstituir" a vida, nomeadamente dos brancos, que trabalhavam na Diamong. São sobretudo memórias dos antigos trabalhadores da Diamang. Também há
uma página (aberta) no Facebook, com mais de 750 membros, dedicada à Diamang Angola. Também a Universidade de Coimbra gere o
sítio Diamang Digital, "um projeto de digitalização e disponibilização em linha de materiais documentais, fotográficos e fonográficos da ex-Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, em arquivo na Universidade de Coimbra",
(**) Referência ao trágico acidente de aviação com um Fokker F-27 Friendship 200, no Lobito, em 21 de maio de 1972, e que fez 22 vítimas mortais. Era da DTA (criada em 1938), antecessoora dos TAAG - Transportes Aéreos de Angola (, partir de 1973).
(***) Hoje Dundo, capital da Lunda Norte. Diana Andringa, nossa amiga, grã-tabanqueira, nasceu no Dundo, em 1947, e fez um belíssimo documentário, em 2009, de 60', justamente sobre o "Dundo, memória colonial".
(...) Em 1947, ano em que nasci, trabalhavam na Diamang, na Lunda, cerca de quinze mil trabalhadores angolanos e umas duas centenas de imigrantes, entre europeus – portugueses, belgas, ingleses, suíços, luxemburgueses e russos – e africanos – cabo- verdianos, são tomenses, sul-africanos. O meu pai era um desses imigrantes. Nascido em Lisboa, filho de holandês e espanhola, fora para a Lunda como engenheiro de minas. Viúvo, casara em segundas núpcias com a minha mãe, nascida em Angola de imigrantes portugueses – e, logo, portuguesa de segunda.
O Dundo, na margem esquerda do Rio Luachimo, a 18 quilómetros da fronteira com o então Congo Belga, era o principal centro administrativo da Diamang na Lunda, onde detinha o exclusivo da exploração e pesquisa de diamantes numa área de cerca de 1.025.000 Km2.
Para se ter a ideia do que era o poder da Diamang bastará dizer que, no contrato de concessão celebrado em 1920 – três anos depois da sua criação – ficara acordado que oferecia a Angola 5% do seu capital social, já realizado ou que viesse a ser realizado; comprometia-se a pagar anualmente a Angola 40% dos lucros líquidos; emprestava a Angola 400.000 libras; podia efectuar a exploração dos jazigos descobertos, mediante simples comunicação à autoridade local; mantinha por um período de 30 anos – a prorrogar – a exclusividade da pesquisa de diamantes, em cerca de 90% do território de Angola.
Era bom ser criança no Dundo, quando se era branca e filha de engenheiro. Havia espaço para brincar, ruas para andar de bicicleta, animais, liberdade. E criados para nos acompanhar e satisfazer os nossos caprichos. Era bom ser criança e não notar como era artificial e injusto o mundo que nos cercava. Mas à medida que cresci, fui-me apercebendo de que não era igual para todos… (...)