Décimo terceiro episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso
camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).
O que não te mata, faz-te andar
como um coxo
Companheiros, hoje queríamos falar de coisas alegres,
coisas que coloquem no nosso pensamento alguma
diversão, que nos façam viver com alguma esperança,
que nos façam esquecer a maldita guerra que lá vivemos,
coisas que envolvam bom tempo com família e amigos,
viagens, antigas paixões, amores, alguns de ocasião,
recordações e exageros de juventude, mas... mas, ainda
não vai ser hoje, talvez na próxima.
Falamos um pouco da guerra que lá vivemos, no nosso
caso, e talvez muitos de vocês, talvez seja, “andar pela
tabanca”.
A nossa geração fez a diferença, mas pagando um preço
exorbitante, por exemplo, nesta última semana, ao abrir o
computador, havia mensagens comunicando-me a
hospitalização de dois “irmãos de guerra”, um aí em
Portugal, o Alexandre, que foi “o nosso Alferes” no
aquartelamento de Mansoa, outro aqui na Florida, o
Jorge, de quem já escrevi a sua história de guerra, que
serviu em Bissau, claro, além de nós que temos um
pequeno problema de movimentação, mas é uma “avaria”
que está a ser reparada, oxalá a “avaria” dos nossos
“irmãos de guerra”, entre os quais se encontram os que já
mencionámos, também possa ser reparada.
Este tempo em que temos estado “inactivos”, passamos o
tempo, entre outras coisas, vendo fotos a preto branco,
tiradas na então nossa Guiné, estão lá companheiros,
quase todos, lá foram parar sem estarem minimamente
preparados tanto física como mentalmente, aliás, ninguém
pode estar preparado, pelo menos mentalmente para
viver numa zona de combate, as privatizações eram
tantas, os resultados eram devastadores, alguns de nós
foram empurrados para as piores áreas, pensando muitas
vezes que aquele momento, era o seu último, passando
dias sem dormir, semanas sem tomar banho e, meses e
meses pensando que não mais retornavam à sua aldeia,
em Portugal, mas nós fomos treinados e mentalizados
que estávamos a fazer a diferença, a libertar o povo da
tirania, fazendo uma coisa boa para os outros. Nesta
altura da nossa vida, esperamos sinceramente que fique
provado, para as gerações vindouras, que estávamos
errados, e que o povo da então nossa Guiné, encontre o
seu rumo, possa finalmente viver independente, em paz e
progresso, construindo uma nação onde os guinéus
possam ter um futuro risonho, pelo menos sem fome e
livres de guerra.
Quando voltámos para a Europa, voltando à vida civil, foi
um desafio, para dizer no mínimo, porque quem vinha
duma zona de combate, servindo o seu País, continuar a
ser “desprezado” pela sociedade de então, pois emprego
era para as pessoas e amigos do regime, nós andávamos
vestidos conforme ganhávamos, por tal tal motivo,
andávamos sempre com roupa velha, já coçada, alguma
dada por amigos, foi difícil acostumar a não ver as
pessoas nativas da Guiné, não ver as savanas e
pântanos, a não se assustar quando se ouvia o barulho
dos foguetes em qualquer romaria, pois o trauma do
pensamento estava lá, causado pelas explosões, que
alterou a forma como o cérebro funciona, pensando nós,
que era a explosão de uma qualquer mina, fornilho, ou
mesmo um ataque ao aquartelamento. Tudo isto
companheiros, sem falar quando se estava num espaço
público ou mesmo na taverna da nossa aldeia, ficávamos
sempre a um canto com as costas para a parede,
considerando todos, como um possível inimigo.
Mas nem tudo foi mau, também havia os momentos da
chegada da coluna de alimentos, que trazia cigarros e
álcool, da avioneta do correio, convívios forçados que
criaram verdadeiras amizades de “irmãos de guerra” e,
pelo menos para nós, felizardos que sobrevivemos,
produziu no nosso pensamento efeitos prolongados, uma
força interior, bastante forte, que não nos vai deter ou
impedir de realizar qualquer coisa, mas as marcas, os
resultados dessa vivência, desse tempo, de angústia e
stress, estão a aparecer, pois a idade já é um pouco
avançada e, nós dizemos algumas vezes:
"O que não te mata, faz-te andar como um coxo"
Tony Borie, Abril de 2016.
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Nota do editor
Poste anterior da série de 10 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15957: Atlanticando-me (Tony Borié) (12): Um mau dia
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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