sábado, 7 de maio de 2016

Guiné 63/74 – P16059: Estórias do Zé Teixeira (40): Estranho acidente com arma de fogo (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Em mensagem do dia 3 de Maio de 2016 o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta estória para a sua série Estórias do Zé Teixeira:


Estórias do Zé Teixeira

40 - Estranho acidente com arma de fogo

O Cascais sentiu-se perdido no alto mar. A amargura penetrava-lhe na alma. O ondular das ondas que faziam dançar a velha e desgastada carcaça do Niassa, recordavam-lhe que há muitas marés. Há marés baixas e marés altas. No circuito da sua vida passada, assim tinha acontecido, mas as nuvens que ao longe escondiam o azul dos céus, varriam-lhe a mente, escondendo-lhe o futuro. Sabia de onde vinha, não sabia para onde ia. Vagueava como um autómato no convés do barco.
Buscava uma sombra que não encontrava, para pousar o pensamento. Apenas um sol escaldante, tal como os fantasmas que lhe inundavam o espírito. Sentia a perda do sentido que queria dar à vida. Não vislumbrava o seu princípio nem avistava o seu fim. Só águas azuis, e transparentes; por vezes agitadas, tal como o seu espírito. Os olhos vagueavam à procura do norte que deixara fugir.
Perguntas e dúvidas, muitas; respostas, nenhumas. Apenas sabia que estava vivo. Queria viver a vida, que seus pais lhe ofereceram sem a ter pedido, amando. Amando perdidamente a Ana. Aquela boneca feiticeira que lhe enchia a alma e lhe transmitia imensa calma na vida.
Sonhava em chegar a Bissau, rapidamente. Pelo menos ia encontrar terra firme... Talvez uma carta da sua amada.
Os raios solares, afiados estiletes, um misto de prata e ouro, penetravam-lhe na cabeça rapada, provocando um sobreaquecimento doloroso e entorpecente. Tentou reagir positivamente deixando-se transportar para a sua terra natal, o Porto.
A saudade dominou-o mais uma vez. Nas silhuetas dos camaradas, seus subordinados, também eles absortos, com ares de assustados, a mirar o vazio do céu, viu a sua mãe, lacrimejante, tentando esconder as lágrimas num sorriso de esperança. Ouviu as suas últimas palavras:
- Vai com Deus. Que te acompanhe sempre e te proteja. A tua vida vai dar muitas voltas, mas tu vais voltar. É tua mãe que o diz. Acredita…

Desembarcou diretamente para uma LDG e logo se embrenhou pelo Rio Cacheu acima. A fome, que andara por longe, apertou quando a barcaça abicou em S. Vicente. E logo ali, descobriu que os tais “selvagens” pintados com as mais horríveis cores pelos “media” da metrópole, eram afinal tão humanos como ele, ou talvez mais…
Sentado à sombra de uma frondosa árvore desembrulhou a ração de combate. Ali em frente, três africanos aguardavam transporte para a tabanca de destino. Tirou o quadrado de marmelada, cruzou um olhar com um africano e não hesitou: ofereceu-lhe a marmelada. O espetáculo que se seguiu emocionou e fê-lo pensar – afinal são estes os “selvagens” que eu venho combater!
O africano beneficiado com o pitéu partiu cuidadosamente o quadrado de marmelada em três partes iguais e distribui-o pelos dois companheiros de jornada. O mesmo aconteceu com o resto da ração que foi parar inteiramente às suas mãos. O Cascais encheu a alma, matando deste modo a fome que o perturbava.

Nos tempos que se seguiram, deixou-se roer pelas saudades da Ana, mais que do medo da morte, com quem se cruzava amiúde.
Colocado com o grupo de combate que comandava, numa pequena tabanca no Sul, assumiu a responsabilidade de assegurar o bem-estar dos seus homens e da população de etnia Fula, que o cobria de atenções, mas a crueldade do tempo que teimava a não passar, roía-lhe a alma.
As notícias de Portugal não abundavam. A Ana parecer tê-lo esquecido, ou talvez não, mas porque não escreve? Interrogava-se.
Todas as manhãs o Destino presenteava-o com uma salada mista, de saudade e ciúme, temperada com desejos libidinosos, próprios da idade do fogo, à qual faltava um copo de calor de um corpo humano e um cálice de beijos. Sedento de afetos e esfomeado de amor, o Cascais percorria milhares de quilómetros através da mente para se encontrar com a Ana na Praia da Emília Barbosa em Matosinhos, rodeado dos seus homens, agora seus, inteiramente. Homens rudes, mas valentes, que se habituara a amar, e com os quais se comprometera a fazer tudo para os fazer regressar sãos e salvos à Mãe Pátria.

O Destino marca a hora e como já ouvira o Sérgio Godinho, na clandestinidade cantar “Se o mundo é composto de mudança, troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança”, começou a dar voltas à cabeça.
Naquela manhã de Setembro, quando o sol radiosamente sorriu, o Cascais, ao sentir o Destino aproximar-se, com o prato envenenado que tanto o fazia sofrer, pegou no garrote, fez o laço envolvente, com toda a suavidade. De seguida tirou a Walther do coldre apontou cuidadosamente e pum!...
A tabanca acordou alvoraçada. As mães atentas procuraram com ansiedade novos sinais de perigo, que felizmente não surgiram. Os soldados apuraram o ouvido para localizar a origem do tiro. O silêncio que se seguiu acalmou-os. Ouviu-se, sim logo de seguida, um grito: Enfermeiro! Enfermeiro!
O enfermeiro pegou na sacola e correu para o local de onde surgiu o tiro. Depara então com o Alferes Cascais, sentado na sua cadeira. A pistola a descansar ali ao lado. Com as mãos agarrava a perna direita devidamente garrotada com um buraco de onde saía um ligeiro fio de sangue. A bala proveniente de um tiro devidamente calculado vazou-lhe a perna, passando por entre a tíbia e o perónio, deixando estes ossos à mostra, com algumas escoriações.
O Cascais arranjou, desta forma, uma viagem de emergência para o Hospital Militar de Bissau e de seguida uma passagem até à Metrópole e naturalmente uma oportunidade de matar as saudades que o corroíam.

Seguiu-se um rigoroso processo de averiguações. Era preciso descobrir se fora um tiro por acidente ou premeditado. Um jovem mancebo podia e devia dar a vida pela Pátria, mas não podia autoflagelar-se por amor. O Cascais não era senhor do seu destino, desde o momento que assentou praça em Mafra. Um crime de lesa pátria como este não podia ficar impune. A bala perdida tinha sido paga pelo erário público.
Do relatório final consta o seguinte: O Alferes Cascais, como diligente oficial do exército português em missão de soberania na Guiné, ordenou ao pessoal que lhe estava adstrito que naquela manhã procedesse à limpeza da arma distribuída, tendo ele dado o exemplo. Retirou o respetivo carregador e apesar de estar convencido que não tinha deixado uma bala na câmara deu o tiro de segurança atingindo-se a si próprio numa perna. Assunto encerrado.

Dois meses depois, já recuperado, fez uma visita relâmpago aos seus homens, aproveitando a deslocação de um helicóptero. Foi recebido em festa pelos seus homens e população. Do acidente com a arma, não se falou e mais nada se soube.

Passados estes anos, que já são muitos, ninguém se lembrará do acidente. Talvez nem o próprio, que continua vivo e espero que esteja de boa saúde.
____________

Nota do editor

Poste anterior de 3 de dezembro de 2010 Guiné 63/74 – P7373: Estórias do Zé Teixeira (39): O medo do terrífico telegrama (José Teixeira)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A automutilação é, infelizmente, um distúrbio de comportamento bastante frequente entre os nossos adolescentes e jovens. Não deve ser confundido com tentativa (consciente) de suicídio. É uma forma de autoprovocar a dor física ao tentar lidar com o sofrimento psíquico, a angústia, a depressão, a baixa autoestima... É um grito, é uma tentativa de chamar a atenção, de pedir socorro...

Nas forças armadas, no nosso tempo, o fenómeno não era tão raro quanto isso, mas as chefias (e a cultura dominante castrense) não podiam aceitá-lo e compreendê-lo e muito menos sabiam lidar com ele... Era um comportamento criminalizado, mas, em geral, procurava-se escondê-lo da "caserna" para não afetar o moral da tropa... Lembro-me em Contuboel, se não erro, en junho de 1969, quando estávamos a dar instrução aos futuros soldados (guineenses) da CCAÇ 12, de um caso de um jovem soldado, metropolitano, que deu um tiro no pé...

Noutros casos, e dada a forte censura social do grupo, o automutilador simulava um acidente...

Obrigado, Zé, pela esta história, retirada do tua mochila de memórias... Vem muito a propósito... LG