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sábado, 27 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23561: Os nossos seres, saberes e lazeres (520): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (65): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É dia para matar saudades poderosamente afetivas, uma amizade feita em 1984, na cidade de Veneza, imagine-se o luxo ter numa conferência direito a tradução diretamente para português, mal sabia a intérprete que iria nascer uma bela amizade,com diferentes visitas a Lisboa e a Namur, e mais importante do que tudo será ela que puxará pelas cordas à imaginação para se cinzelar a figura de Annette Cantinaux, a protagonista do meu romance mais recente, Rua do Eclipse. Rio que se fartou quando lhe contei ao detalhe os amores escaldantes de Annette e Paulo Guilherme, com a guerra da Guiné de premeio. E houve o ritual de passear à volta, ela irá mostrar-me a revelação sensacional de Notre-Dame du Vivier. E recordámos os passeios em Bruxelas, antes dela se trasladar para Namur, ficou de olho arregalado quando lhe disse que iria visitar uma preciosidade do modernismo, agora restaurada e disponível ao público, em Bruxelas, Villa Empain. Ficou decidido, iremos juntos.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (65):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 3


Mário Beja Santos

Dia reservado a visitar na região de Namur uma terna amiga, que nos irá acolher com grande hospitalidade. Já organizou programa. Apanha-nos na estação ferroviária e vamos a uma loja dos Paysans Artisans, há para ali um recheio de coisas boas destes agricultores e artesãos que evitam intermediários, pão, queijaria, conservas de fruta, legumes, trazem certificado desta organização de valões que insistem num modelo agrícola de alimentação mais sustentável. Segue-se outra surpresa, um grande passeio por um espaço em remodelação, chama-se Abadia de Notre-Dame du Vivier, um espaço religioso que estava abandonado e que um empresário imaginativo introduz obras de requalificação, apoiado por arqueólogos, para transformar o espaço abacial numa zona de turismo, de criação de gado, com restauração e pontos de lazer dos ajardinamentos recuperados. Tivemos sorte, este empresário imaginativo apareceu de chofre, deve ter engraçado com as perguntas postas, serviu de cicerone, mostrou e documentou o que se estava a fazer, deu-nos plena liberdade para percorrer um espaço que há poucos anos atrás era uma alfurja e hoje está cheio de vida, como se mostra, é um prazer ver ressuscitar património abandonado, torná-lo área de lazer e de convivência.
A cidadela de Namur
A pena de morte, gravura de Félicien Rops, c.1880. Namur orgulha-se de ter o mais importante museu deste grande artista simbolista
O Incêndio de Sodoma, Henri Bles, século XVI, Museu Provincial de Arte Antiga de Namur. É um museu plurifacetado, de pintura a artes decorativas é um regalo para os olhos, quem visita Namur tem o estrito dever de apreciar tão belo património
Imagens do jardim de uma querida amiga que vive em Saint Marc, a escassos quilómetros de Namur
Imagens da Abadia de Notre-Dame du Vivier
Interrogava-me quem era o feliz proprietário de tão bela casa apalaçada, ainda por cima com uns bons hectares de coberto florestal à volta, passaram por ali pedestres que esclareceram que é a mansão de um príncipe primo da rainha Fabíola, passa cá temporadas, alguém apontou para as janelas fechadas, é sinal que o príncipe anda fora de portas…
Imagens de Wépion, junto do rio Meuse, não longe de Namur

Foi um belo dia passado na região de Namur, fazem-se juras e promessas que aqui se retorna talvez em setembro, talvez em outubro. Amanhã, será um dia em cheio a vasculhar Bruxelas, as livrarias de coisas em segunda mão, igrejas (quero rever Nossa Senhora do Bom Socorro), a seguir ao almoço impõe-se participar na Parada Zinneke, é um acontecimento bianual, foi interrompido pela pandemia, é uma exaltação a esta metrópole cosmopolita, pequena mas mundial, é um festim de desfiles públicos de associações e organizações, instituições e centros culturais, é promessa de um entusiasmo contagiante, cenografias de nos deixar de boca aberta. Como aconteceu e pretendo seguidamente mostrar.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23541: Os nossos seres, saberes e lazeres (519): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (64): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 13 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23521: Os nossos seres, saberes e lazeres (518): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Cheguei eufórico a Bruxelas, é a primeira viagem no continente desde aquele março de 2020 em que passei semanas a limpar a casa, a devorar livros, a ver as óperas que tão graciosamente a Metropolitan Opera House de Nova Iorque oferecia, a telefonar a meio mundo, por ora são relíquias do passado, ainda não ganhei consciência de como o mundo mudou. Bruxelas sofreu as mesmas transfigurações que aqui provamos, muitas lojas fechadas, profundas alterações na oferta, mas é talvez, depois de Londres, a cidade mais cosmopolita de toda a Europa, aqui trabalham povos de todo o mundo. A grande deceção são as exposições, já me falta a paciência para ver pedregulhos ou fieiras de metal e os arbustos, a que chamam instalações, ou aquelas telas com seis pinceladas, umas mais berrantes que as outras,todas elas intituladas sem título. Decidi reviver o passado, o primeiro dia a percorrer Marolles, igrejas e o museu Magritte, é sempre uma lavagem para a alma. Amanhã o dia será em Namur, viaja-se barato de comboio, quem me espera vai ficar de olhar arrelampado quando lhe disser que ela é a heroína subliminar do meu romance A Rua do Eclipse. Então sim, iremos passear por Meuse e contemplar a arte fantástica de Félicien Rops.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1


Mário Beja Santos

Era o regresso a Bruxelas, depois da pandemia, a última visita fora no ano anterior. Do aeroporto de Zaventem toma-se o comboio para a Gare Central, aqui o metro até Herrmann-Debroux, daqui até Avenue du Geai, em pleno Watermael-Boitsfort, é um salto. Sinto-me praticamente em casa, ocorreu-me uma estranha lembrança, passou-se em meados de março de 1968, regressava de São Miguel para formar batalhão num regimento na Amadora. Cheguei a casa e tive a sensação que saíra na véspera, tudo arrumado como eu deixara, naturalmente que andara por ali o pano da limpeza, não era visível um grão de pó, deu gosto conversar com as minhas coisas. O mesmo ocorrera durante a viagem de comboio, a confirmação dos lugares, as igrejas, as estações ferroviárias, os mesmos sons de apito a mandar seguir a composição. Chego e é uma festa de amizade, proponho um passeio ali bem perto, ao Parc Seny, vamos para a natureza e desfiar recordações sobre estes últimos anos, tão difíceis para quem me recebe, não há nada como a viva voz superar o que se foi dizendo ao telefone ou mandou por mail. E de braço dado reenceta-se a festa da amizade, o doce reencontro de espaços e lugares.
Estás na mesma, meu adorável parc Seny, famílias e crianças estridentes, as brotoejas em flor, o parque confina com a floresta de Soignes, é uma vegetação delicadamente ajardinada, há para ali uns periquitos selvagens a fazer ninho, o lago tem o seu encanto, até as árvores mortas ornamentam este belo lugar de lazer. Conversa-se muito, regressamos, há muitas saudações à mesa, lembramos os que partiram, programamos esta semana de convívio que hoje começa, tão ansiada. Sim, amanhã começamos por onde tu gostas de começar, Marolles, é inevitável a feira da ladra, passeamos pelo bairro, tudo tão ao teu gosto, alguém recorda que gostava que fôssemos todos ao museu Magritte, na parte da tarde, tudo aceite. É um dia seguinte cheio de promessas.
Como aconteceu. Já se fez a praça do Jeu de Balle, quem me diria que me fizera comprador de ações e obrigações de há um século atrás de companhias de transportes ferroviários de Odessa, Moscovo, Xangai, Buenos Aires, papéis lindíssimos, cheios de cupões, fora tudo bem regateado, coisas de colecionador eclético, mas que dão indiscutível prazer. E passo a fazer a vigilância das paredes entre Marolles e o Grand Sablon, as paredes grafitadas são um encanto, não conhecia esta intervenção, importa registá-la, o passeio continua, estamos a ganhar lastro para uma boa almoçarada.
Coloco estas duas imagens neste artigo e importa explicá-las. Passei por aqui inúmeras vezes sem me dar conta do encanto desta montra de uma loja de adelo, e quanto à rua dos Tanoeiros nunca tinha dado pela boa escala deste quarteirão social, é um bairro dominado por população emigrante, é um prazer o vestuário africano berrante e ver passar gente do Magrebe. É nestas circunstâncias que me ocorre sempre o que José Saramago escreve no final do seu livro Viagem a Portugal, 1981: “O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles.”
Por esta é que eu não esperava, entrar num verdadeiro ferro velho, ali dominava o mobiliário e eis que subitamente se olha para um barco emoldurado e se fala consigo próprio, mas é o Santa Maria, onde o capitão Henrique Galvão andou a fazer as suas tropelias. E era mesmo, era uma fotografia do Santa Maria, o adeleiro pedia um preço exorbitante, 70€, além disso intransportável em voo low cost, mas gostei deste encontro com um dos ícones do que foi a nossa marinha mercante.
A Queda de Ícaro, Bruegel, o Velho

Entrámos todos na Igreja de Nossa Senhora da Capela, não só nos une uma grande amizade como todos nós gostamos seriamente de Pieter Bruegel, o Velho, um génio do renascimento, morreu com cerca de 40 anos, consta que só temos para dele fruir 40 quadros, alguns deles estão aqui bem perto no Museu Real das Belas Artes, felizmente que deixou sucessores, logo Bruegel, o Moço, formou-se uma grande empresa, há uns bons anos vi a exposição sobre a firma Bruegel, tão produtiva que os mais representativos museus do mundo têm obras suas. Pieter era flamengo, irá instalar-se em Bruxelas, trabalhou para a corte dos Habsburgo e para o cardeal arcebispo de Malines. Vezes sem conta subo ao Museu Real das Belas Artes só para ver um dos seus quadros mais espantosos, A Queda de Ícaro.
O púlpito da Igreja de Notre-Dame de la Chapelle
É o último passeio da manhã, sempre conheci esta igreja pelo nome de Notre-Dame du Sablon, afinal o seu verdadeiro nome é Notre-Dame des Victoires au Sablon, iniciada no século XV, gótico flamejante, relativamente poupada pelas guerras de religião e pela Revolução Francesa; foi restaurada no século XIX. Funcionou como igreja de peregrinação, ainda hoje há uma importante cerimónia na Grand Place em que a estátua da Virgem vai em procissão, é uma evocação da receção a Carlos V e Filipe II. Foi chamada a visita de médica, voltou-se à rue Blaes, vamos experimentar comida libanesa, nesta altura ainda não sabíamos que antes de visitar o museu Magritte íamos dar uma saltada ao centro cultural da Coreia, uma verdadeira surpresa.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23499: Os nossos seres, saberes e lazeres (516): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."






Marco de Cananveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 18 de abril de 2022 > O fotógrafo escondido por detrás da sua sombra. Visita do compasso pascal, que não se realizava há dois anos por causa da pandemia. 


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Viva o compasso pascal

Viva  o compasso pascal
Desta linda freguesia,
Fizeram-nos muito mal
Estes dois anos de pandemia.


Faltam beijos e abraços,
Mas lá iremos ao normal,
Hoje damos mais uns passos,
Viva o compasso pascal!

É uma antiga tradição
Que nos enche de alegria,
E reforça a união
Desta linda freguesia.

Andámos todos com medo
E com máscara facial,
Duas Páscoas sem folguedo
Fizeram-nos muito mal.

Sem compasso nem foguetório,
Sem convívio nem folia,
Nem sequer houve peditório
Nestes dois anos de pandemia.

Saúde, paz e alegria para todos e todas,
Obrigado em nome dos cá da casa.


Quinta de Candoz, 18 de abril de 2022


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Nota do editor:

sábado, 9 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21752: (In)citações (175): Saudade (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 7 de Janeiro de 2021:


Saudade

Francisco Baptista

Ontem, Dia de Reis segundo o calendário católico, foi um dia nefasto, com notícias que nos abalaram um pouco a todos. A primeira foi sobre o alarmante número de infectados em Portugal, com o covid-19 que atingiu o seu máximo, com mais de dez mil pessoas afectadas por essa moléstia.

Já em 2021, ouvi na RTP que numa grande votação online, organizada pela Porto Editora, a saudade foi eleita a palavra do ano de 2020. O locutor da estação de televisão entre o anúncio da votação e o seu resultado fez um intervalo com outras notícias diferentes, desafiando os ouvintes a pensar no resultado. O meu voto foi também para a saudade apesar de ter pensado também no covid 19 e na pandemia, as segundas e terceiras mais votadas. Ao escolhermos por maioria a saudade, essa palavra que é dor, melancolia, memória, nostalgia, distância, tristeza, mas que também é poesia, amor, pátria, amizade, fraternidade, escolhemos a esperança na vida que os portugueses sempre tiveram apesar das maiores adversidades. A Saudade tem múltiplos significados e definições que variam de acordo com a sensibilidade e a experiência de vida de cada um.

Carolina Michaelis, a célebre escritora, filóloga e pedagoga definiu-a assim:
[Saudade é a] lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, ou de só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade.”]

Eu, em viagem de família em Veneza, num encontro ocasional num restaurante com dois portugueses um jovem e uma senhora, dias depois, lembrando a conversa calorosa que tivemos, descrevi desta forma a saudade numa crónica:
"Os portugueses da diáspora que inventaram a palavra saudade evocam-na como quem procura o afecto e o calor da Pátria. Há nela um sentimento doce porque nos faz recordar bons momentos passados com pessoas que estimamos muito. Há nela um sentimento amargo, que nos magoa pela distância que interpõe entre uns e outros, que só se acalma nos reencontros possíveis entre abraços e beijos, nessa proximidade física que os portugueses como povos latinos adoram."

Todos temos a nossa saudade. Uma palavra complexa que sendo amarga ou doce nos ajuda a viver.

A segunda má notícia de ontem, divulgada pelos meios de comunicação de toda a Terra foi a invasão do Capitólio americano por uma horda de milhares de fanáticos, às ordens desse bárbaro e imbecil Donald Trump. Os Estados Unidos da América são uma grande democracia, que se tornou também uma nação imperial, sem perder muitos princípios básicos da democracia que copiou dos ingleses e da Revolução Francesa. Com muitos defeitos como a escravidão, o genocídio de nações indias, a descriminação racial e situações de prepotência e exploração a nível internacional, algumas foi corrijindo, outras sem remédio, continua a ser a maior democracia dos tempos modernos. Que o Império Americano não se auto-destrua como o Império Romano que ele quis imitar e que na sua fase decadente teve imperadores imbecis e idiotas como Calígula e Nero. Não sabemos o que podemos esperar dos impérios Russo ou Chinês, já que eles nunca tiveram raízes democráticas.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21679: (In)citações (174): Apesar de agnóstico, ainda conservo, na cabeceira, um crucifico-talismã que alguém deixou na tabanca onde eu pernoitava: Ká pudi larga mezinho qui pudi salvar kurpu (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21109: Manuscrito(s) (Luís Graça) (186): "Enquanto há saúde, quedos estão os santos"...Mas hoje nem o são João roga por nós... Afinal, "quando Deus não quer, os santos não podem"... E não houve santos populares para ninguém, nem na Tabanca de Candoz...





Tabanca de Candoz > 24 de junho de 2020 > Dia de São João... À mesa, só nove, que onze já é demais, e dá coima...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020) Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem comlementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Há um velho provérbio popular que diz: "Enquanto há saúde, quedos estão os santos"... Trocado por miúdos, o povo, interesseiro, só reza aos santos, quando está aflito...Ou, como ironiza o crítico do Zé Povinho: "Só se lembram de Santa Bárbara, quando troveja"... 


Afinal, ainda bem que a gente tem os santos para se agarrar... e para reinar. 


Mas este ano, devido à tal pandemia de COVID-19 que nos está a tramar, lá se foram os santos populares, o santo António, o são João, o são Pedro... Não há santos para ninguém, seja em Lisboa ou no Porto. E pior: não há santo que nos acuda.. 

Estranhamente, não temos saúde e eles estão quedos...Encontrei outra explicação, dentro da sabedoria popular, que no séc. XVII era capaz de dar fogueira da Santa Inquisição, por heresia, a quem a proferisse da boca para fora: "Quando Deus não quer os santos não podem" ou, noutra variante (, esta do séc. XVI,), "Quando Deus não quer,  santos não rogam"...

Não sou, confesso, muito dado aos arraiais juninos, seja em Lisboa, seja no Porto. Mas acho que o povo tem direito a folgar. Não sei se vem na Constituição o direito aos folguedos e, em última análise, o direito à preguiça, mas também não importa, aqui e agora.   Em muitas tabancas hoje foi dia de comer uma sardinha no pão. Há quem coma em honra do santo. Eu como porque sei que no céu não disto...

De qualquer modo, quem não comeu, não foi bom cristão. E não há a desculpa de que a sardinha está pela hora da morte... Este ano há fartura relativa.  Na Tabanca de Candoz, comi a meia-dúzia que me competia. (À mesa, éramos 9, costumam ser muitos mais...).

E, em boa verdade,  a sardinha já se come muito bem , desde que apanhe só um calorzinho, para não  ficar seca.  A sardinha é um peixe delicado... E, por esta altura, ainda tem pouca gordura, pelo menos a de Matosinhos. A da Lourinhã, a do Mar do Cerro (e que vai parar à lota de Peniche), já está mais cheiinha. Ou é impressão minha ? Se calhar,  estou a puxar a brasa à minha sardinha...

Em dia de são João, mesmo que o santo esteja quedo (, tanto ou mais que nós, que andamos um bocado em baixo, com medo do desconfinamento e da segunda vaga da pandemia... que há vir aí, vem/não vem...), nem por issso deixa de merecer um versinho. 

Afinal é o dia dele, do santo. E para o ano a gente não sabe se vai cá estar, nós e o santo. Camaradas e amigos/as  da Guiné, mantenhas para todos/as.  Animem-se. E não liguem ao provérbio, misógino: "A mulher e a sardinha,  quer-se pequenina"...LG


Em louvor do São João 

que este ano está murcho e quedo...


São João, pouco prazenteiro,
Não salta hoje à fogueira,
Não sei se é santo matreiro
Ou se lhe deu a lazeira.

Dizem que é da pandemia,
E, por mim, é de certeza,
A Invicta está vazia,
Um cemitério de tristeza.

Refugiei-me em Candoz,
Onde o vírus ainda não chega,
Mal será p’ra todos nós,
Se o bicho vem e nos pega.

As sardinhas são de Matosinhos,
No almoço, à varanda,
E, como não há cá vizinhos,
A disciplina é mais branda.

P'ró lanche há sapateira,
Com sabores da Lourinhã,
Hoje a festa é caseira,
Mas há mais santos amanhã.

Diz a Mi: "Ai que saudades
De dar beijos e abracinhos,
Aos meus filhos e netinhos,
Que o Covid é só maldades!" 


Deu-me um abracinho por detrás,
A minha querida cunhada,
Chora p'lo tempo de paz,
Detesta a cotovelada.

Quem de Lisboa chegar
Tem de ficar de quarentena,
Não nos venham infetar,
Não quer’mos cá essa cena.

Não se riam, que o Porto
Fica no mesmo planeta,
E, se isto der p’ró torto,
Vamos todos p’ro maneta.

E p'ra ficar p'ra história,
Da Tabanca de Candoz,
Mando-vos esta memória,
Mantenhas (*) p'ra todos vós.

Com saúde e os santos quedos,
Podem todos cá vir ao Norte,
Que p'ro ano e com sorte,
Teremos melhores folguedos.


Quinta de Candoz, São João,
24 de junho de 2020


(*) Mantenhas: saudações (em crioulo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde)
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de junho de  2020 > Guiné 61/74 - P21075: Manuscrito(s) (Luís Graça) (185): por favor, não destruam o que resta da caixinha de Pandora, porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20999: Os nossos seres, saberes e lazeres (393): Diário de um confinado (... mas não condenado) (José Saúde, Beja, abril de 2020)




Beja > Abril de 2020 > O Zé Saúde... "confinado mas não condenado"

Fotos (e legenda): © José Saúde (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mensagem do José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), jornalista e escritor, residente em Beja, com 190 referências no nosso blogue:

Data: 15/05/2020, 17:35 
Assunto: Diário de um confinado



Luís, boa tarde

Tu, como administrador do nosso blogue, entendes que a temática que escrevo tem cabimento no nosso espaço?


Todos vivemos a preocupação do covid-19, e todos falamos a mesma linguagem de uma pandemia que por ora nos aflige.

O texto é longo e tem três fotos e foi feito a 20 de abril. Deixo isto ao teu critério, se entenderes publica. Ah, falo também de dois camaradas nossos por terras guineenses.

Abraço,

Zé Saúde


Diário de um confinado
por José Saúde

O confinamento que o Covid-19 obrigou!

Somos ínfimas partículas de um universo onde a banalidade dos acontecimentos proliferam, sendo a sua arquitetura surreal construída em peças soltas que ditam fins pressupostamente engendrados e cuja aritmética final baterá sempre certa desde que a conjetura derradeira da prova seja pautada pela exiguidade e o seu fim se apresente estritamente compreensível. 

Agora, confrontado com uma perspetiva inimaginável, o mundo depara-se com uma epidemia que não conhece fronteiras, raças humanas, credos, religiões, natureza das línguas, cores, estratos sociais ou políticos, enfim, um flagelo de consequências ilimitadas que obrigam o mais vulgar cidadão cosmopolita a resguarda-se de um inimigo invisível que dá pelo nome Covid-19.

Nasci no dia 23 de novembro de 1950 em Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa, distrito de Beja, Baixo Alentejo.  e no universo celeste de então ainda se falava dos sórdidos alaridos dos sons das armas com as quais os desavindos combateram na Segunda Guerra Mundial a qual ocorreu entre 1939 e 1945. Depois, com a Europa praticamente destroçada, procedeu-se à sua renovação, assistindo-se às emigrações em massa de gentes que procuravam melhores situações financeiras além-fronteiras.

O mundo perante a devastação territorial observada, soube evoluir e a era das máquinas trouxe uma outra performance a uma sociedade que reclamava bem-estar e sobretudo pão para colocar na mesa de famílias famintas que viviam confinadas aos magros salários entretanto auferidos. Da carroça puxada, à época, por uma parelha de animais, às novas máquinas foi um passo gigante, seguindo-se o inovado tempo dos tratores, dos automóveis e sobretudo de uma enorme alteração infraestrutural quer do mundo rural na sua plenitude, quer do urbano.

A humanidade desenvolveu-se, conheceu a expansão das cidades, vilas e aldeias, assim como as novas técnicas industriais e, por outro lado, soubemos, in loco, o quão difícil foi a funesta guerra colonial nas três frentes de combate – Angola, Moçambique e Guiné – onde estiveram envolvidos cerca de 800 mil jovens soldados, intitulados como “carne para canhão” e de onde resultaram 100 mil feridos, 30 mil evacuações e perto de 10 mil mortos.

A evolução entrementes deparada não parou e cresceu desalmadamente no tempo e no espaço, o homem foi à lua, desbravou campos aéreos, implementou novas dinâmicas e chegou ao ponto de denominar tecnologicamente um qualquer espaço independentemente do local onde porventura este se situe. Carrega-se num botão e de repente eis-nos em contacto direto e visual com um outro amigo que se encontra do outro lado do globo terrestre. Acrescesse que as cenas cinéfilas a preto e branco do passado deram lugar à cor e o mundo evoluiu compreensivamente.

Aliás, tudo mudou radicalmente. Na minha singela opinião o universo confronta-se com uma presumível “Terceira Guerra Mundial”, mas sendo esta biológica, química e nuclear. A mãe Natureza é imutável e, quando o homem se fixa no interior de um casulo onde o eu se sobrepõem ao nós, eis que o desfecho tem efeitos tremendamente desastrosos. É o covid-19 a causar danos irrecuperáveis.


Retido em casa

Encontro-me retido entre as paredes de uma casa onde o vazio é uma arma de arremesso que me coloca, felizmente, ainda na prateleira dos seres viventes. Desabafo com os meus botões e eles, embora murmurando de baixinho, respondem-me com altivez: não tombes, transmite-me o mais voluntarioso companheiro no alto da sua irreverente dignidade e eu, obediente, volto a reerguer-me. Vivo só e as visitas, não sendo diárias, dão-me alento para reencontrar o caminho seguro do amanhã.

A minha rotina do dia-a-dia passa pelo levantar cedo, cerca da sete da manhã, como aliás sempre foi costume, tomo banho, desfaço a barba, umas vezes visto-me como se fosse para sair, outras fico em pijama, delicio-me com o meu pequeno almoço e parto para mais uma jornada de trabalho. Ligo o computador e é nele que passo parte dos meus dias de ócio.

Aproveitando a razão de um confinamento imposto pelas entidades oficiais, que se aceitam plenamente, lá vou “matando” o tempo com a escrita, lendo e ouvindo as últimas notícias emitidas pelos canais televisivos. As informações todas elas recaem no covid-19 e das sequelas que o dito cujo proporciona numa sociedade onde os velhos são os mais fustigados, dado que a sua fragilidade é naturalmente superior. X mortos, y de novos casos e w de recuperados.

Creio que o medo que a determinada altura se apoderou da minha pessoa, está diretamente relacionada com o AVC que há quase 14 anos me flagelou, na madrugada do dia 27 de julho de 2006, e que tentou levar-me para o além quando nada o fazia prever. Logo, a minha condição patológica acarreta cuidados redobrados. Sou, portanto, uma das pessoas de alto risco, daí que as minhas filhas, Marta e Rita, diariamente me telefonem para saberem o meu estado de alma.

A Marta vive no Montijo e por volta das 10 horas da manhã, faz o primeiro contacto repetindo o feito ao longo da tarde. A Rita utiliza o mesmo método, para além das visitas onde me traz a comida que consumo em horários considerados adequados. Aqui fica também o profundo obrigado ao meu genro, Paulo Paixão, sendo que ambos se ocupam da missão ao trazerem-me os preciosos bens alimentícios. Aliás, desde que estou confinado a uma casa cheia de nada, é comum às segundas-feiras tanto a Rita como o Paulo trazerem-me o “avio” para a semana.

Uma outra presença, mesmo não sendo constante, é a do meu amigo Chico Fonseca, também ele um camarada na guerra da Guiné que, equipado com uma máscara,  me traz algumas das novidades postas a circular nas ruelas citadinas acerca do covid-19. Numa destas recentes quintas-feiras, 17 de abril, lá me trouxe uma remessa de encomendas para aconchegar na minha dispensa e outras que foram a caminho do frigorifico. A ele estou-lhe verdadeiramente grato.

De resto recebo telefonemas, outras vezes a iniciativa é minha, dos meus amigos Otílio, Zé Cano Brito, Machado, Fernandes, Joaquim Catrapona, Dorival Xavier, Manel Serra, de entre outros que esporadicamente me perguntam sobre o meu estado moral, o que aliás muito agradeço, como foi o caso do Toinho no passado dia 15 de abril. Aqui deixo também o meu bem-haja à minha prima Anazinha, residente em Almada, que nunca se esquece de fazer o favor em me ligar. Ou não fosse a nossa amizade uma espécie de irmãos de sangue.

A lida da casa

Os afazeres de casa foi coisa que nunca me perturbou a mente. Sabendo-se que a minha condição física é limitada, a mão direita resolveu um dia declarar-se ausente às tarefas, utilizo somente a esquerda, aquela que é hoje a minha idolatrada rainha, ponho a mesa, lavo a loiça e volto a colocar os utensílios utilizados no seu lugar. 

Para além destes afazeres diários, faço máquinas para lavar a roupa, estendo-a e passo-a a ferro. Reconheço que o cansaço é, amiudamente, confrangedor dado que a diminuição física acarreta alguns contratempos, mas a minha voluntariedade, assente essencialmente numa enorme ânsia de viver, não me faz recuar perante os obstáculos que me surgem pela frente. O fazer a cama, por exemplo, é uma outra tarefa quotidiana de que não abdico.


Saudades da convivência social

É óbvio que tenho saudades da convivência social e aceita-se que assim o seja. Dos finais de tardes passadas na companhia dos amigos Zé Pardal, um velho companheiro e e também ele camarada da Guiné, Manel Vilão, Fernandes, Léi Marujo, Manel Augusto, Manel Aleixo, Chico do Talho, como é conhecido, Pepe, Correia e Zé Horta, ou do simpático Rui Torres, um rapaz com trissomia 21 que amavelmente se aproxima de nós, sendo a nossa reação de aproximação entendida como profícua, de entre outros companheiros que se juntam connosco à mesa do Café Caixinha, no Bairro de Santa Maria, em Beja, onde a cordialidade do Vítor e da Sandra é digna da nossa afeição, enfim, ali se dispersam um rol de conversas que tempo, já com tempo, dissemina a uma velocidade estonteante.

Tenho também saudades em conduzir o meu carro estrada fora e desbravar os dias solarengos de uma primavera onde o mês da abril nos envia para os tempos em que se conquistou a liberdade no ano de 1974 com a Revolução dos Cravos. Mas este abril nasceu sob o signo do confinamento, um confinamento que aleatoriamente leva o ser humano a um monumental cansaço psicológico reclamando-se laivos de liberdade, não obstante as regras que determinam a razão de o ficar em casa. Todavia, uma luz ao fundo do túnel aconselha-me que lance um grito de “Ipiranga” e soletre calmamente a expressão: quero ser livre, quero abraçar, apertar a mão e beijar, sobretudo os meus netos!

Liberdade

Através dos vidros da janela de um segundo andar vejo movimento, embora limitado, de pessoas em circulação numa rua que acusa uma suprema falta de trânsito. Algumas, poucas, criaturas segurando a trela de animais de estimação, outras com sacos de compras, ou de lixo para jogar para o contentor, outras em carros que se preveem serem gente em trabalho, e eu em casa amarrado ao mui digno conceito que acusa falta de uma liberdade plena.

Olho, atentamente, as fotos dos meus cinco netos que faço questão em manterem-se por perto e à noite contemplo-me com uma videochamada onde nos permite um encontro virtual. Avô e netos reencontram-se à distância porque a liberdade das novas tecnologias permite-nos trocar dois dedos de conversa. Ou quando à socapa vou vê-los, eles na varanda e eu cá em baixo na rua, e com a minha neta Ritinha, na inocência dos seus quatro aninhos, lançando-me o alerta: “avô, vai para casa porque o coronavírus é perigoso”! Tem razão. O avô cumpre.

Com o breu da noite a reclamar descanso parto rumo ao meu leito, seguindo-se uma noite desassossegada por via de um rol de sonhos que teimam em não me aluviar de um stressante dia onde uma imensidade de fantasias me ocorrem amiúde.

Sequioso da liberdade, remeto-me a incentivar o mais incauto cidadão que o tempo que por ora vivemos requer cuidados e sobretudo respeito por nós e pelos outros, porque só assim levaremos no futuro, que se requer próximo, a carta a Garcia.

Soltem as amarras do medo

Sim, é perfeitamente admissível que neste diário de um confinado lance o meu estridente e solidário grito de alerta o qual se encontra perfeitamente enquadrado com a questão sanitária que se abateu sobre o povo: soltem as amarras do medo e viajemos com segurança pelo interior de uma sociedade farta de estar em casa, sabendo-se de antemão que os tempos que sobram passam pela tenaz luta contra um inimigo cujo paradeiro é literalmente marcado pela sua invisibilidade. É, no fundo, o assistir a uma peleja desigual visto que do outro lado da trincheira existe um outro guerreiro, com rosto, nós, que foi apanhado na cilada sem que nada o fizesse prever.

Neste subtil contexto, fica o solidário aviso de um ermita que recusa perentoriamente atirar a toalha ao chão porque a vida, sendo efémera, vale a pena ser vivida. Cuidem-se, porque o barco em que navegamos é o da solidariedade e nele jornadeiam ricos, remediados e pobres, logo pronunciemos com firmeza que o momento é de união e não de discórdia, já que o covid-19 bate às mais diversificadas portas, sejam elas a da ostentação ou a da pura humildade!


Almoço do confinado

Neste permanente deambular à volta de uma mesa onde os bens alimentícios são trazidos não só pela minha filha Rita como também pelo meu genro Paulo, hoje, 22 de abril de 2020, o estômago do confinado nutriu-se com um bacalhau feito no forno, cujo paladar foi abençoado com um copo de vinho da região e pão de São Miguel do Pinheiro.

Para compor a refeição fiz uma salada com tomate, pepino e cebola, regada com azeite e vinagre e, por fim, uma laranja. Convém deixar vincado que arranjar todos estes ingredientes comestíveis dá-me um imenso trabalho. Só com a mão esquerda a funcionar, o serviço, parecendo fácil, de facto para mim não o é. Mas pronto, lá puxo pelas ferramentas escondidas e por fim dou graças por mais um obstáculo vencido.

As notícias

As notícias sobre o covid-19 caem em catadupa. Todo o mundo, o que é absolutamente normal, fala da epidemia. As conversas cruzam-se a uma velocidade estonteante. O medo instalou-se e a sociedade parece martirizada a um confinamento que tarda em conhecer o seu fim.

Reconheço que o covid-19 trouxe uma forma mais real para o ser humano se reencontrar com a veracidade da vida. A monstruosidade de efeitos provocados pela mão do homem neste imenso globo, trouxe catastróficas condições existenciais que levaram a própria Natureza a reclamar a razão pela qual é mãe.

É óbvio que a epidemia conhecida terá tido uma outra razão. Daí a desigualdade conferida na essência da mortalidade. Vejamos: racionalmente conhecemos que os mortos, quase na generalidade, são pessoas cujas idades se situam acima dos 70 anos. É a terceira idade a ver-se confrontada com tamanho mal. Aliás, numa observação atenta no capítulo mundial, verifica-se que os mais idosos são aqueles que sofrem na pele um destino que se apresenta como lógico. Os Lares são espaços que merecem uma maior atenção.

Falando com os meus amigos, pessoas que se situam já casa dos 70, ou próximo desta idade, pois todos na generalidade para lá caminhamos, observo medo neste covid-19. Mostram-se apreensivos e ninguém ousa traçar o caminho do futuro com convicção. Ou seja, projetar o dia de amanhã em segurança. Resguardados em casa limitam-se ao convívio caseiro e nada de visitas. Todos, já com netos, lá vão mendigando a presença dos seus descendentes, todavia, o dever do confinamento e da aproximação lá vai ficando colocada na prateleira dos desejos.

Neste contexto, as notícias não são animadoras. Fiquemos, pois, com a esperança que tudo passará, sabendo-se que nem tudo será como dantes, pelo menos ao dia em que existir uma vacina que “derrube” o maldito covid-19.

Os medos

Confesso, convictamente, que ninguém é herói nesta epidemia que infelizmente nos flagelou. Nos meus elevados 69 anos conheci as mais díspares situações que fizeram o mundo evoluir. Conheci o mau e o bom. Conheci uma outra guerra em que existia um inimigo com qual lutávamos nas frentes de combate. Sim, estive no conflito armado na Guiné, onde assisti a caóticas situações. Camaradas que morreram, outros estropiados, outros psicologicamente atrofiados, outros que passaram imunes às balas que felizmente lhe passaram ao lado, ou a uma mina que rebentou fora da sua área de ação, ou a um flagelamento ao quartel onde tinha sido depositado, enfim, a malfadada guerra aqui era uma outra.

Mas, atualmente, a guerra é contra um inimigo sem rosto e onde a sua invisibilidade acarreta problemas acrescidos. Tenho medo? Sim, porque os medos aqui são literalmente tidos como incertezas do amanhã.

A minha esperança, que é a de todos, que estes medos que ora nos angustiam sejam convertidos em auréolas de felicidade num futuro que esperamos seja risonho.
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terça-feira, 19 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20990: Manuscrito(s) (Luís Graça) (182): (Des)confinamento: poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas, em tempos de COVID-19


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 10 de maio de 2020


Lourinhã > Praia de Paimogo >  16 de maio de 2020 > Ilha das Berlengas e Farilhões, ao fundo


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 17 de maio de 2020 > Patrulha da GNR a cavalo


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 17 de maio de 2020

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Teme a  peste, porque ela nunca vem só

Quem vê caras, p’ra mais agora mascaradas,
Não vê corações, sangrando ou não,
Porque esta peste é a solidão,
Que escorre, líquida, das paredes caiadas.

Face à peste, “peius”, a doença pior,
Calam-se os santos, Deus e até o Diabo,
Nada adianta, ao fim e ao cabo,
Clamar, na terra, “Do Mal Livrai-nos, Senhor!”.

Fechados estão os templos, os recintos sagrados,
Nem vozes de burro chegam aos céus,
Não há juízes, muito menos réus,
Há apenas bichos e  homens confinados.

É um imenso zoo humano a terra,
Tristes, os leões perderam a juba,
E  só a morte toca a sua tuba,
Em tempo de peste, de fome e de guerra.

Receia, pois, a peste, que nunca vem sozinha,
No xeque-mate à humanidade,
E guarda a lição de humildade:
Frágil é a ciência, a tua rainha.

Regresso agora à praia da minha esperança,
Olho a falésia, fóssil, a pique,
Temendo o inferno, à beira de um clique...
Mas só o mar, luso e eterno, me descansa!

Luís Graça