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terça-feira, 18 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros











Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 >  Alguns recantos e encantos do Parque.

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

 

Contos com mural ao fundo: Caminheiros

por Luís Graça


Às quintas-feiras encontravam-se no magnífico Parque da Cidade, no Porto,  havia lá um grupo de amigos e conhecidos que gostavam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas. Isto, ainda uns bons anos  antes da pandemia.  

“Duas voltas ao bilhar grande”, diziam eles e elas. "E tudo por mor da nossa saúde"... Desenferrujava-se as pernas, desentaramelava-se a língua, massajava-se os neurónios, tonificava-se o coração, estreitavam-se os laços sociais e afetivos, "limpava-se a vista" (com o azul do Oceano Atlântico, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultivava-se a boa disposição e o humor, desligava-se o malfadado telemóvel… Ah!, e não se fumava, pelo menos durante essas duas horas.

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dias, era quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, ou "pessoal engravatado" (os homens, no tempo em que ainda se usava gravata e fato completo, na banca, nos seguros, nos escritórios, nas repartições públicas... e as mulheres não vestiam calças). 

Enfim, reformados, gente com algumas economias no banco, e já poucos sonhos, mas que achava que ainda tinha  todo o  tempo e vagar à sua frente. 

No essencial, e em comum, tinham o gosto por conviver, cavaquear e andar a pé. Era a “Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade”… Até já eram populares entre os trabalhadores do Parque, demais utentes e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona. Eram gregários como os primatos, ruidosos como os adolescentes, e temerosos da solidão como são todos os idosos do mundo.

Nessa altura, passavas por lá, de vez en quando. Estavas a fazer um estudo de caso no Porto, no âmbito de um projeto de investigação sobre a promoção da vida ativa saudável.  Tinhas o estatuto de observador-participante...  Aparecias com a “Nucha” e juntavas-te  a eles e a elas, para  duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio. Eram, aliás, as tuas duas únicas horas de exercício semanal... ("Bem prega Frei Tomás!...", dizia-te a "Nucha", em jeito de piada.)

Havia de tudo um pouco, num grupo de trinta, no máximo (quando excecionalmente se vazia o pleno, no "almoço de Natal": professores, talvez a maioria, um ou outro engenheiro, bancário, magistrado, advogado; umas tantas secretárias, e domésticas; uma médica, uma enfermeira, uma jornalista; e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vinham do Porto, de Matosinhos, da Maia,de Vila Nova de Gaia e até de mais longe.

Era a primeira geração de portugueses de que se podia dizer que eram filhos da abundância,  relativa,  dos planos de fomento estado-novistas, e depois do Estado-Providência abrilista.  E que podiam aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (contrariamente ao que se passara com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número, sempre variável, dos que iam aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acabava por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formavam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuavam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não havia contemplações e muito  menos solidariedade para com os mais fracos das canetas  que vinham na cauda do pelotão. 

A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, fazia-se uma pausa, de dez a quinze minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. Invariavelmente cronometradas pelo "Mister". Era então que o pelotão se reagrupava, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa eram os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (havia já gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas (em geral organizadas pela agência Pinto Lopes), das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… 

Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se iam divorciando,  e os netos que lá iam trepando a montanha da vida, de degrau em degrau, da escolinha  de escolinha até à universidade final…, o doloroso  "home leaving" e o primeiro emprego, precário.

Vinham também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, primeiras comunhões, crismas, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos,  parentes, vizinhos, colegas e conhecidos)… 

Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se falava em sexo nem em dinheiro”. Percebia-se: muitos tinham tido uma formação religiosa, nortenha, puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor… O que não impedia, de vez em quando, a galhofa brejeira, típica das gentes do Norte:

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejava alguém dos rapazes.

O telemóvel e o tabaco eram, agora, então, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” era uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores eram, nesse ponto, os mais radicais,  intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!, a começar pelos que saíam de uma "igreja" para se meter noutra)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel era  “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”, por causa dos netos, na creche, ou  do gato ou do cão ao cuidado da vizinha.  E, tanto quanto tu te apercebias, quando por lá andavas, não havia fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” ia, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes,  o liceu, a Mocidade Portuguesa, os primeiros namoros, a descoberta do sexo, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império, ou a igualdade de género… Questões "fraturantes"... Alguns haviam passado por África e tinham memórias desse tempo, umas boas, outras más. Enfim, havia retornados e antigos combatentes…

Chegava-se, por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que era o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino” (termo que hoje, convenhamos, já não se usa no Porto), do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim gente nascida no Estado Novo, e que já era adulta no 25 de Abril. Gente com duas metades, e algo bipolar, como a lua, a luz e a sombra, a democracia e a ditadura, a esperança e a depressão...

No caso de um ou outro mais velho, quando nasceu, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

Eram quase todos portistas (ou "andrades"), mas também não se falava de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficavam lá fora as “redes sociais", a par da “política partidária”. Eram quase todos “desalinhados”, uns à esquerda e outros à direita, mas alguns/algumas tinham um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até era compreensível, olhando para as carecas deles e para as cabeleiras brancas ou horrivelmente pintalgadas,  delas.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidenciava-te a “Nucha”, uma mulher minhota de grande generosidade, que te introduzira no grupo.

Quando chovia (e aqui chovia mais do que no Sul…), ficavam a cavaquear no café até próximo do meio-dia e meia, altura em que cada um ia às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ? 
– pergunta alguém, a meio da caminhada.

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa a "Nucha", a caminhar ao lado do “Mister” e da “Natália”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio das duas:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Morcão,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Natália”.

Transmontana, a “Natália” era uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade era um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamavam-lhe a “Natália” porque dava ares, até no corpo e nos trejeitos,  da Natália Correia… E também escrevia… “versos” panfletários. Tanto quanto julgavas saber, fora professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciavam e toleravam o seu “génio”. Tinha fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gostava de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"... como se estivesse no Mercado do Bolhão.

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?!  

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as mesmíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… –  atreveste-te tu a completar, infringindo o teu estatuto que era mais o de observar do que o de falar...

− Ah!, o Portugal plural, sacro-profano,  no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e negro – ironizou a  “Natália”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e o lápis azul da censura– acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje eram mais  “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar um exemplo da sua própria experiência:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Natália”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu ex… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar, os quatro ou cinco do grupinho da frente.

− Conversa da treta, sabes como é! É preciso ocupar o tempo − diziam-te, à laia de desculpa.

Nesta tertúlia  tripeira quase toda a gente parecia ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que te disseram, fazia parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratavam por tu, o que ajudava a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores, os senhores e as senhoras, num terra burguesa em que os títulos, no passado,  sempre tiveram o seu peso, conta e medida...

E também te pareceu que, pelo convívio que ias  tendo (irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém levava a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, era mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da história de vida de cada um
.  

 Os novatos, que já eram poucos nos últimos dois ou três anos antes da pandemia, eram sujeitos, como tu, à incontornável praxe de integração. Se bem que tu, porque fosses investigador, tinhas o estatuto do marginal-secante, aquele que fica sempre mais fora do que dentro. Na realidade, não chegaste a ser "entronizado", porque regressaste à base, em Lisboa, acabaste o trabalho de campo e deixaste de frequentar o grupo.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-te a “Nucha”, essa, sim, uma tua velha amiga de há muito.

Em rigor, não havia regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, ia criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo, no início,  trabalho de um grupo de mulheres, de que restavam duas ou três, a quem chamavam carinhosamente as “abelhas -mestras”. Eram uma espécie de “mães-fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam-se umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas ?!,,,

− ... e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?! 

− Pois, já não temos o dia de pica-boi! − dizia uma delas, com graça.

Foi assim que nasceu a "Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade", com a intenção mais ou menos explícita (mas  nunca expressa, por escrito) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo te contou  a  “Nucha”, que fora professora de biologia, "noutra incarnação", como ela gostava de apontar no seu currículo… 

Eram mais as mulheres do que os homens, o que até era natural naquele grupo etário de gente sexagenária, com um ou outro já na casa dos 70… Em meia dúzia de anos (tinham começado pro volta de 2010), o grupo parecia ter-se aguentado e até renovado. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também havia a “Viúva Alegre” (que já despachara para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos), a “Rosa Mota (por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva), a “Feicebuqueira” (que se vangloriava de ter “cinco mil amigos” no Facebook), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, e o fotógrafo do grupo, sempre muito calado),  além do "Mandjor" (sic), amigo  ou conhecido do "Mister", do tempo da tropa... 

Enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequentava o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferavam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos verdejantes que, no passado, devem ter dado muitas carradas de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister”... Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – arrmetava, sarcástica,  a “Natália"

Mas o "Mister" tinha sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha hipótese de investigação 
− se calhar,  como piada a ti, que estavas a estudar o grupo. −  Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou alguém, ao lado, e
 que também quis "botar a sua teoria".

Segundo ele, havia  uma economia de meios, de energia, de recursos:   

− Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como li algures – acrescentou alguém  
–,   somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade…

E voltava à carga  a “Natália”:

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do Criador.  

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Para não dizer 
confrangedoras!... Repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nos "Black Fridays", ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

Um terceiro elemento retomou a sua teoria... Resumindo: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Natália"− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças…  "Grooming", dizem os antropólogos.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – atalhou  a “Nucha”.
– E quanto mais velhos, pior!.. Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Natália” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.

O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Era o líder do grupo... Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para motivar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol lá para os lados de Paços de Ferreira ou Penafiel.

Era natural de Baião, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguira formar-se. A “Natália”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…

− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Natália" e explicou:

− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô materno, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha frente uma eternidade de pasmaceira e ao meu lado uma múmia como eu…

− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…que é um sucesso de vendas!

− Vai-te,  Afonso, com essa ! 
[Queria ela dizer "não me f..." ]. Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras, sedutoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…

Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…

Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974… 

− "Ranger" ?!...Meu Deus!, de "ranger os dentes" ?!

“Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade, o "Mister". Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conhecera as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto, onde já vivia antes da tropa… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração… Aliás, nem grande nem pequena...

Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, em Lamego, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:

Djubi, gosse, gosse!

− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?

− É crioulo, toca a andar, míudo, que se faz tarde.

Juntara-se agora ao grupo da frente o amigo do "Mister",  o “Mandjor”, um que estivera no fim da guerra colonial, em Moçambique, nos paraquedistas.  Fora ferido, com alguma gravidade no planalto dos Macondes, e tivera direito a cruz de guerra. Era agora "sargento ajudante", mas no grupo chamavam-lhe o "Mandjor", talvez por ser alto e encorpado...

Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que  alguns embirravam solenemente.

− Guerra, só a das ideias!− defendia alguém,  que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado a Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pusera os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)

Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, no verão de 1974, matriculando-se  ainda nesse ano no curso de filosofia. 

Não escondia que andara em 74 e 75 "a sanear professores e patrões", ao mesmo tempo que se metera no negócio da edição de livros e panfletos.  Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima. 

Fora também durante vinte anos professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”. Já não te recordas da alcunha que o grupo lhe pusera. Mas era um "cromo" da cidade... Talvez fosse essa a alcunha, "Cromo"...

− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!...

E a "Natália" aproveitou a sua deixa para lançar a sua provocação:

−  Olhem, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada notinha de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates, o que é que vocês querem mais ?!

− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça ou o vinho do Porto… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…

− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do Portugal pequenino, o retângulo de 89 mil quilómetros quadrados,  a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Manjor”.
 
Desta feita era o militar a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota dos quatro costados, façanhudo e medalhado com cruz de guerra, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Cromo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de a ir defender...

E continuou o “Mandjor”, que lidava mal com “fujões”, agora com a autoridade do historiador com canudo passado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto...  (Um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”, por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):

− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821 (e agora o resto do Império de Quinhentos). A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…

− Eh!, “Mandjor", nessa altura, até eu, com esta fraca figura,  pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Natália”…

− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.

E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostavam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país. Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos, ia explicando ele.

− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Natália”.

− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma adeia, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.

A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos  de batalha do "Mister" nos últimos tempos, com o argumento de que as redes sociais reproduziam a estrutura e ampliavam a dimensão da aldeia, a aldeia virtual global. 

−  Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.

− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses… E até fazer sexo virtual!

− Pedimos amizade uns aos outros (gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, nem cheirado, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…

− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício... 


− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Manjor”.
− E, daqui a mais uns anitos, na pronografia.

− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”, o número de "amigos"… − comentou o “Cromo”.

Mais enfático, exclamou o “Mister”:

− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…

−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! Mas ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a  "Nucha". − E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais,  é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.

E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário” das suas equipas de futebol da III Divisão:

− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…

−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… − interrompeu a ‘desbocada’ da “Natália”…

No meio disto tudo, tu tinhas que desempenhar o teu papel, que era 
mais de observador do que ator, afinal um intruso no grupo,   mesmo todos eles sabendo que estavas a fazer sobre eles um “case study”  para um projeto europeu... A sugestão e o convite vieram da “Nucha”,  uma rapariga de Braga, de 60 e tais anos de idade,   e que sempre se interessara pela promoção da saúde, tendo estado ligada à Rede Europeia das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis... Foi aí, de resto, que se haviam conhecido,  vocês os dois.

Enfim, podias dizer que tiveras a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de te chamarem “Mouro” na brincadeira.    Sabias, por outro lado, que o grupo fazia alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal", e outro no "solstício do verão, antes das férias grandes”... E que se preparavam, em 2020, para "atacar" os caminhos de Santiago, numa verdadeira aposta de superação, individual e grupal: um caminho,  todos os anos até 2030 (para os..."mais otimistas").

No verão ainda gostavam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, eram circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer ser humano, em qualquer hemisfério…

A “Natália” costumava escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pudeste aparecer. Dizia-te a "Nucha" que eram versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adorava pôr sempre um pouco de picante no que escrevia e dizia... No  último Natal, de 2019, ela fizera um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só apareciam nesta data para “dar ao dente” e "manter as quotas em dia".  Mas também queria dar o mote para o novo projeto do grupo, os Caminhos de Santiago. 

No fundo, era um homenagem a este pequeno grupo  de gente gira do Norte que te surpreendia pela energia e alegria que punha todas as quintas-feiras nas suas "voltinhas" pelo Parque da Cidade... "por mor da saúde" (uma expressão  que tu achavas deliciosa, e  tão tipicamente nortenha).

A “Nucha” teve a gentileza de te mandar uma cópia do texto por email, com  autorização expressa para o usares no teu relatório   e, também, de algum modo, ficares com uma recordação pessoal dessas quintas feiras no Parque da Cidade 
 onde te chegaste a juntar a esses  caminheiros,  alguns dos quais infelizmente iriam arrumar de vez  as sapatilhas em 2020... 

Em Lisboa, soubeste pela "Nucha", da morte do "Mister",  logo no início da pandemia, o que chocou toda a gente, e deixou o grupo destroçado. Nem sequer ao funeral dele puderam ir. Era o mais novo, o mais ativo, o mais saudável, o mais entusiástico, o mais prestável...  Com a pandemia, o confinamento  e a morte do "Mister", a tertúlia acabou por desfazer-se...

− E, depois, sabes como é, a idade não perdoa!

Desfez-se o grupo, por falta de comparência,  motivação e liderança,  e com ele  o sonho de se fazer os caminhos de Santiago, a partir do início da década de 2020.  Ainda se chegaram a encontrar uns tantos, quando amainou a pandemia, mas nunca mais se reconstituiu o grupo.

− Não, não chegámos a Santiago de Compostela, mas também não morremos na praia.  Cumprimos a nossa missão!  − concluiu, resignada, a "Nucha".

E tu achaste que sim, que ficava bem esse soneto a rematar esta história, bonita e triste ao mesmo tempo,  destes  caminheiros nortenhos, com dez anos de caminhadas...   Infelizmente, o ano de 2020 foi mau para todos e tu acabaste também por perder o contacto deles, restou-te apenas a "Nucha". Eis o texto que ela te mandou, da autoria da "Natália" (e com a sua generosa permissão):


"Feliz Natal de 2019, caminheiras e caminheiros!

"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos companheiros.


"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, não tem desconto,
Que a quota é só a da amizade.

"Com as malas feitas p’ra viajar, 
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas com medo do mundo acabar.

"Esqueçamos, gente, os maus agouros,
Que o ano há de correr menos mal,
Valha-nos Santiago, o Mata-Mouros!
 

"Parque da Cidade, quinta feira, 19 de dezembro de 2019. Natália"...

© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. 
Última revisão: 9 de outubro de 2024.

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de maio de 2024 >  Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


sábado, 27 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23561: Os nossos seres, saberes e lazeres (520): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (65): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É dia para matar saudades poderosamente afetivas, uma amizade feita em 1984, na cidade de Veneza, imagine-se o luxo ter numa conferência direito a tradução diretamente para português, mal sabia a intérprete que iria nascer uma bela amizade,com diferentes visitas a Lisboa e a Namur, e mais importante do que tudo será ela que puxará pelas cordas à imaginação para se cinzelar a figura de Annette Cantinaux, a protagonista do meu romance mais recente, Rua do Eclipse. Rio que se fartou quando lhe contei ao detalhe os amores escaldantes de Annette e Paulo Guilherme, com a guerra da Guiné de premeio. E houve o ritual de passear à volta, ela irá mostrar-me a revelação sensacional de Notre-Dame du Vivier. E recordámos os passeios em Bruxelas, antes dela se trasladar para Namur, ficou de olho arregalado quando lhe disse que iria visitar uma preciosidade do modernismo, agora restaurada e disponível ao público, em Bruxelas, Villa Empain. Ficou decidido, iremos juntos.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (65):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 3


Mário Beja Santos

Dia reservado a visitar na região de Namur uma terna amiga, que nos irá acolher com grande hospitalidade. Já organizou programa. Apanha-nos na estação ferroviária e vamos a uma loja dos Paysans Artisans, há para ali um recheio de coisas boas destes agricultores e artesãos que evitam intermediários, pão, queijaria, conservas de fruta, legumes, trazem certificado desta organização de valões que insistem num modelo agrícola de alimentação mais sustentável. Segue-se outra surpresa, um grande passeio por um espaço em remodelação, chama-se Abadia de Notre-Dame du Vivier, um espaço religioso que estava abandonado e que um empresário imaginativo introduz obras de requalificação, apoiado por arqueólogos, para transformar o espaço abacial numa zona de turismo, de criação de gado, com restauração e pontos de lazer dos ajardinamentos recuperados. Tivemos sorte, este empresário imaginativo apareceu de chofre, deve ter engraçado com as perguntas postas, serviu de cicerone, mostrou e documentou o que se estava a fazer, deu-nos plena liberdade para percorrer um espaço que há poucos anos atrás era uma alfurja e hoje está cheio de vida, como se mostra, é um prazer ver ressuscitar património abandonado, torná-lo área de lazer e de convivência.
A cidadela de Namur
A pena de morte, gravura de Félicien Rops, c.1880. Namur orgulha-se de ter o mais importante museu deste grande artista simbolista
O Incêndio de Sodoma, Henri Bles, século XVI, Museu Provincial de Arte Antiga de Namur. É um museu plurifacetado, de pintura a artes decorativas é um regalo para os olhos, quem visita Namur tem o estrito dever de apreciar tão belo património
Imagens do jardim de uma querida amiga que vive em Saint Marc, a escassos quilómetros de Namur
Imagens da Abadia de Notre-Dame du Vivier
Interrogava-me quem era o feliz proprietário de tão bela casa apalaçada, ainda por cima com uns bons hectares de coberto florestal à volta, passaram por ali pedestres que esclareceram que é a mansão de um príncipe primo da rainha Fabíola, passa cá temporadas, alguém apontou para as janelas fechadas, é sinal que o príncipe anda fora de portas…
Imagens de Wépion, junto do rio Meuse, não longe de Namur

Foi um belo dia passado na região de Namur, fazem-se juras e promessas que aqui se retorna talvez em setembro, talvez em outubro. Amanhã, será um dia em cheio a vasculhar Bruxelas, as livrarias de coisas em segunda mão, igrejas (quero rever Nossa Senhora do Bom Socorro), a seguir ao almoço impõe-se participar na Parada Zinneke, é um acontecimento bianual, foi interrompido pela pandemia, é uma exaltação a esta metrópole cosmopolita, pequena mas mundial, é um festim de desfiles públicos de associações e organizações, instituições e centros culturais, é promessa de um entusiasmo contagiante, cenografias de nos deixar de boca aberta. Como aconteceu e pretendo seguidamente mostrar.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23541: Os nossos seres, saberes e lazeres (519): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (64): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 13 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23521: Os nossos seres, saberes e lazeres (518): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Cheguei eufórico a Bruxelas, é a primeira viagem no continente desde aquele março de 2020 em que passei semanas a limpar a casa, a devorar livros, a ver as óperas que tão graciosamente a Metropolitan Opera House de Nova Iorque oferecia, a telefonar a meio mundo, por ora são relíquias do passado, ainda não ganhei consciência de como o mundo mudou. Bruxelas sofreu as mesmas transfigurações que aqui provamos, muitas lojas fechadas, profundas alterações na oferta, mas é talvez, depois de Londres, a cidade mais cosmopolita de toda a Europa, aqui trabalham povos de todo o mundo. A grande deceção são as exposições, já me falta a paciência para ver pedregulhos ou fieiras de metal e os arbustos, a que chamam instalações, ou aquelas telas com seis pinceladas, umas mais berrantes que as outras,todas elas intituladas sem título. Decidi reviver o passado, o primeiro dia a percorrer Marolles, igrejas e o museu Magritte, é sempre uma lavagem para a alma. Amanhã o dia será em Namur, viaja-se barato de comboio, quem me espera vai ficar de olhar arrelampado quando lhe disser que ela é a heroína subliminar do meu romance A Rua do Eclipse. Então sim, iremos passear por Meuse e contemplar a arte fantástica de Félicien Rops.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1


Mário Beja Santos

Era o regresso a Bruxelas, depois da pandemia, a última visita fora no ano anterior. Do aeroporto de Zaventem toma-se o comboio para a Gare Central, aqui o metro até Herrmann-Debroux, daqui até Avenue du Geai, em pleno Watermael-Boitsfort, é um salto. Sinto-me praticamente em casa, ocorreu-me uma estranha lembrança, passou-se em meados de março de 1968, regressava de São Miguel para formar batalhão num regimento na Amadora. Cheguei a casa e tive a sensação que saíra na véspera, tudo arrumado como eu deixara, naturalmente que andara por ali o pano da limpeza, não era visível um grão de pó, deu gosto conversar com as minhas coisas. O mesmo ocorrera durante a viagem de comboio, a confirmação dos lugares, as igrejas, as estações ferroviárias, os mesmos sons de apito a mandar seguir a composição. Chego e é uma festa de amizade, proponho um passeio ali bem perto, ao Parc Seny, vamos para a natureza e desfiar recordações sobre estes últimos anos, tão difíceis para quem me recebe, não há nada como a viva voz superar o que se foi dizendo ao telefone ou mandou por mail. E de braço dado reenceta-se a festa da amizade, o doce reencontro de espaços e lugares.
Estás na mesma, meu adorável parc Seny, famílias e crianças estridentes, as brotoejas em flor, o parque confina com a floresta de Soignes, é uma vegetação delicadamente ajardinada, há para ali uns periquitos selvagens a fazer ninho, o lago tem o seu encanto, até as árvores mortas ornamentam este belo lugar de lazer. Conversa-se muito, regressamos, há muitas saudações à mesa, lembramos os que partiram, programamos esta semana de convívio que hoje começa, tão ansiada. Sim, amanhã começamos por onde tu gostas de começar, Marolles, é inevitável a feira da ladra, passeamos pelo bairro, tudo tão ao teu gosto, alguém recorda que gostava que fôssemos todos ao museu Magritte, na parte da tarde, tudo aceite. É um dia seguinte cheio de promessas.
Como aconteceu. Já se fez a praça do Jeu de Balle, quem me diria que me fizera comprador de ações e obrigações de há um século atrás de companhias de transportes ferroviários de Odessa, Moscovo, Xangai, Buenos Aires, papéis lindíssimos, cheios de cupões, fora tudo bem regateado, coisas de colecionador eclético, mas que dão indiscutível prazer. E passo a fazer a vigilância das paredes entre Marolles e o Grand Sablon, as paredes grafitadas são um encanto, não conhecia esta intervenção, importa registá-la, o passeio continua, estamos a ganhar lastro para uma boa almoçarada.
Coloco estas duas imagens neste artigo e importa explicá-las. Passei por aqui inúmeras vezes sem me dar conta do encanto desta montra de uma loja de adelo, e quanto à rua dos Tanoeiros nunca tinha dado pela boa escala deste quarteirão social, é um bairro dominado por população emigrante, é um prazer o vestuário africano berrante e ver passar gente do Magrebe. É nestas circunstâncias que me ocorre sempre o que José Saramago escreve no final do seu livro Viagem a Portugal, 1981: “O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles.”
Por esta é que eu não esperava, entrar num verdadeiro ferro velho, ali dominava o mobiliário e eis que subitamente se olha para um barco emoldurado e se fala consigo próprio, mas é o Santa Maria, onde o capitão Henrique Galvão andou a fazer as suas tropelias. E era mesmo, era uma fotografia do Santa Maria, o adeleiro pedia um preço exorbitante, 70€, além disso intransportável em voo low cost, mas gostei deste encontro com um dos ícones do que foi a nossa marinha mercante.
A Queda de Ícaro, Bruegel, o Velho

Entrámos todos na Igreja de Nossa Senhora da Capela, não só nos une uma grande amizade como todos nós gostamos seriamente de Pieter Bruegel, o Velho, um génio do renascimento, morreu com cerca de 40 anos, consta que só temos para dele fruir 40 quadros, alguns deles estão aqui bem perto no Museu Real das Belas Artes, felizmente que deixou sucessores, logo Bruegel, o Moço, formou-se uma grande empresa, há uns bons anos vi a exposição sobre a firma Bruegel, tão produtiva que os mais representativos museus do mundo têm obras suas. Pieter era flamengo, irá instalar-se em Bruxelas, trabalhou para a corte dos Habsburgo e para o cardeal arcebispo de Malines. Vezes sem conta subo ao Museu Real das Belas Artes só para ver um dos seus quadros mais espantosos, A Queda de Ícaro.
O púlpito da Igreja de Notre-Dame de la Chapelle
É o último passeio da manhã, sempre conheci esta igreja pelo nome de Notre-Dame du Sablon, afinal o seu verdadeiro nome é Notre-Dame des Victoires au Sablon, iniciada no século XV, gótico flamejante, relativamente poupada pelas guerras de religião e pela Revolução Francesa; foi restaurada no século XIX. Funcionou como igreja de peregrinação, ainda hoje há uma importante cerimónia na Grand Place em que a estátua da Virgem vai em procissão, é uma evocação da receção a Carlos V e Filipe II. Foi chamada a visita de médica, voltou-se à rue Blaes, vamos experimentar comida libanesa, nesta altura ainda não sabíamos que antes de visitar o museu Magritte íamos dar uma saltada ao centro cultural da Coreia, uma verdadeira surpresa.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23499: Os nossos seres, saberes e lazeres (516): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."






Marco de Cananveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 18 de abril de 2022 > O fotógrafo escondido por detrás da sua sombra. Visita do compasso pascal, que não se realizava há dois anos por causa da pandemia. 


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Viva o compasso pascal

Viva  o compasso pascal
Desta linda freguesia,
Fizeram-nos muito mal
Estes dois anos de pandemia.


Faltam beijos e abraços,
Mas lá iremos ao normal,
Hoje damos mais uns passos,
Viva o compasso pascal!

É uma antiga tradição
Que nos enche de alegria,
E reforça a união
Desta linda freguesia.

Andámos todos com medo
E com máscara facial,
Duas Páscoas sem folguedo
Fizeram-nos muito mal.

Sem compasso nem foguetório,
Sem convívio nem folia,
Nem sequer houve peditório
Nestes dois anos de pandemia.

Saúde, paz e alegria para todos e todas,
Obrigado em nome dos cá da casa.


Quinta de Candoz, 18 de abril de 2022


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Nota do editor:

sábado, 9 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21752: (In)citações (175): Saudade (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 7 de Janeiro de 2021:


Saudade

Francisco Baptista

Ontem, Dia de Reis segundo o calendário católico, foi um dia nefasto, com notícias que nos abalaram um pouco a todos. A primeira foi sobre o alarmante número de infectados em Portugal, com o covid-19 que atingiu o seu máximo, com mais de dez mil pessoas afectadas por essa moléstia.

Já em 2021, ouvi na RTP que numa grande votação online, organizada pela Porto Editora, a saudade foi eleita a palavra do ano de 2020. O locutor da estação de televisão entre o anúncio da votação e o seu resultado fez um intervalo com outras notícias diferentes, desafiando os ouvintes a pensar no resultado. O meu voto foi também para a saudade apesar de ter pensado também no covid 19 e na pandemia, as segundas e terceiras mais votadas. Ao escolhermos por maioria a saudade, essa palavra que é dor, melancolia, memória, nostalgia, distância, tristeza, mas que também é poesia, amor, pátria, amizade, fraternidade, escolhemos a esperança na vida que os portugueses sempre tiveram apesar das maiores adversidades. A Saudade tem múltiplos significados e definições que variam de acordo com a sensibilidade e a experiência de vida de cada um.

Carolina Michaelis, a célebre escritora, filóloga e pedagoga definiu-a assim:
[Saudade é a] lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, ou de só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade.”]

Eu, em viagem de família em Veneza, num encontro ocasional num restaurante com dois portugueses um jovem e uma senhora, dias depois, lembrando a conversa calorosa que tivemos, descrevi desta forma a saudade numa crónica:
"Os portugueses da diáspora que inventaram a palavra saudade evocam-na como quem procura o afecto e o calor da Pátria. Há nela um sentimento doce porque nos faz recordar bons momentos passados com pessoas que estimamos muito. Há nela um sentimento amargo, que nos magoa pela distância que interpõe entre uns e outros, que só se acalma nos reencontros possíveis entre abraços e beijos, nessa proximidade física que os portugueses como povos latinos adoram."

Todos temos a nossa saudade. Uma palavra complexa que sendo amarga ou doce nos ajuda a viver.

A segunda má notícia de ontem, divulgada pelos meios de comunicação de toda a Terra foi a invasão do Capitólio americano por uma horda de milhares de fanáticos, às ordens desse bárbaro e imbecil Donald Trump. Os Estados Unidos da América são uma grande democracia, que se tornou também uma nação imperial, sem perder muitos princípios básicos da democracia que copiou dos ingleses e da Revolução Francesa. Com muitos defeitos como a escravidão, o genocídio de nações indias, a descriminação racial e situações de prepotência e exploração a nível internacional, algumas foi corrijindo, outras sem remédio, continua a ser a maior democracia dos tempos modernos. Que o Império Americano não se auto-destrua como o Império Romano que ele quis imitar e que na sua fase decadente teve imperadores imbecis e idiotas como Calígula e Nero. Não sabemos o que podemos esperar dos impérios Russo ou Chinês, já que eles nunca tiveram raízes democráticas.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21679: (In)citações (174): Apesar de agnóstico, ainda conservo, na cabeceira, um crucifico-talismã que alguém deixou na tabanca onde eu pernoitava: Ká pudi larga mezinho qui pudi salvar kurpu (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)