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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26696: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (39): a Páscoa de antigamente























Quinta de Candoz (Paredes de Viadores, Marco de Canaveses) > 10 e 12 de abril de 2025 (exceto a foto da Serra de Montemuro, com neve, que é de 15 de abril) > A primavera, a Páscoa, o eterno retorno... A esperança, sobretudo a esperança.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Páscoa de antigamente

por Luís Graça


Dantes, quando ainda ninguém sabia a desgraça que aí vinha com a covid-19, não havia Páscoa sem foguetes... nem compasso. E muito menos ainda sem o forno a lenha, aceso, com duas horas de antecedência, e sem o sortilégio do fogo de artifício. 

Não havia Páscoa, enfim, sem o arroz de anho assado no forno.

Não, não havia Páscoa, sem as cerdeiras (ou cerejeiras) florirem, e sem as videiras começarem a sorrir, e sem os abraços compridos e efusivos de quem chegava do Porto e de mais longe
. Ana, Bagana, Rabeca, Susana, Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos, já dizia o provérbio popular. 

Na Páscoa estávamos todos. Agora já não, vamos morrendo, hoje uma, amanhã outro.  E será que os filhos e netos vão-nos ajudar e recuperar o saldo demográfico negativo ? Oxalá, Enxalé, Insh' Allah! 

Não, não havia Páscoa, sem os foguetes, nem alegria estampada na cara e  irradiando do coração das gentes de Entre Douro e Minho... 

Não, não havia Páscoa, sem a famosa freima que se apoderava das gentes cá do Norte, na véspera dos pequenos grandes acontecimentos, como os trabalhos coletivos (a vindima, as serviçadas...), ou os festejos (o casório dos filhos, o Natal, a festa da Senhora do Socorro ou a do Castelinho...).

Antes da pandemia, antes da era covid-19, com a crise ou sem ela, e até mesmo depois da proibição do lançamento de foguetes de cana...

Ó vai ou racha, rapazes!, que na Quaresma engordava-se o anho para a grande matança da Páscoa...

Tudo isto, quando o Natal tinha o seu pinhão, e a Páscoa o seu tição, e a salgadeira estava atulhada com o porquinho que era o governinho da casa mas também uma das causas principais dos ACV que matava a gente...

Depois veio a maldita covid, e passaste a ter  a triste Páscoa do confinamento,  do "take away", e das grandes superfícies, com filas à porta, e a malta toda mascarada, guardando a devida distância uns dos outros... 

Mais a autoestrada que te levava ao Norte, vazia e rigorosamente vigiada. E a  GNR a cavalo a patrulhar as praias, as praças e os jardins e o ajuntamento do povo que precisava de apanhar sol como o lagarto. Até a casa de Deus fechou, por precaução. Deus, afinal, também é previdente.

Em 2009, ainda te lembras, cada dúzia de foguetes custava a módica quantia de 30 euros. Mas no domingo de Páscoa (ou na segunda, que no antigo concelho de Bem Viver, a Páscoa eram dois dias e o carnaval no Rio eram três, jurava o brasileiro de torna-viagem), e por ocasião da visita do compasso, o povo perdia a cabeça e armava-se em fino e em rico para provar à Casa do Fidalgo quem tinha porra e cagança...

O raio da covid não olhava a senhorios e rendeiros, a ricos e a pobres, e, aliada da morte, estava à espreita mas não esperava. Não poupava novos e velhos, rapazes e raparigas, homens e mulheres.

Quando o compasso chegava a uma casa, o fogueteiro sinalizava a sua presença... Os vizinhos, mais à frente, a 100, 200 ou 300 metros,  nesta região de povoamento disperso, preparavam-se, com grande excitação, muita freima,  para a cerimónia... 

Já as portas estavam abertas de par em par, a mesa posta com a melhor toalha de linho do bragal, e o caminho de cabras atapetado de urze e pétalas de flores bravias.... 

Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!

Todos, mal-enjorcados nos seus fatos domingueiros, os camponeses do Norte, as mãos, calejadas,  sem jeito,  erguidas ao céu quando era preciso rezar a um deus maior. 

Já não importava se a Páscoa era no domingo depois da primeira lua cheia do equinócio da primavera,  que tu, em passando a covid-19,  perdeste a conta aos dias e aos meses e anos do calendário.

 2025, o "annus horribilis" de 2025,  como o tempo passa! Como passou o de 2020, e este também há de passar, figas,canhoto!

Tradição rica de significado socioantropológico, hoje em vias de desaparecer, a tua Páscoa nortenha que adotaste, há meio século. 

Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia!, estamos vivos e bem de vida, dizia o da casa, abrindo as portas aos vizinhos, parentes e amigos. 

Bebam e comam qualquer coisinha, carago, que a casa é cheia e farta: há doce da Teixeira e pão de ló dos Lenteirões, e uma cachão de anho e arroz, se a alguém do compasso já der a fraqueza a esta hora da manhã!... 

Domingo da Ressurreição, carne no prato, farinha na mão, que na Santa Feira Santa comia-se o sável do rio Douro. 

Acabava-se o jejum e a abstinência, para os pobres que não tinham bula. Burla, resmungava o padre Mário, expulso da Guiné como capelão. 

Não sejais tolos, que dos pobres será o Reino dos Céus.

Eram, afinal, dias de festa, os últimos da Semana Santa, dias de comes e bebes e foguetório, tudo misturado com a religiosidade pagã e cristã, que durante séculos formatara corpos e almas. 

Folgai, meus filhos,  enquanto puderdes, que noutra hora deveis de chorar, lembrava o padre Agostinho.

À noite, do terraço da varanda de Candoz, assistia-se, de borla, 
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício, quando o compasso recolhia, cansado e suado,  depois de andar por montes e vales,  estradões e socalcos, pontões e ribeiros, o homem da cruz à frente, e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta, já meio rachada. E a canalha atrás, para apanhar as canas dos foguetes e as sobras das mesas, os rebuçados dos pobres e as amêndoas dos ricos.

Depois da visita do compasso, e bem arrotado o arroz de anho assado no forno, era o espetáculo talvez mais aguardado do ano, a disputa em fogo de foguetório entre cada uma das freguesias circunvizinhas ali em frente, naquele cenário de presépio. 

Saúde e pouca vida, que Deus não dava tudo, resignava-se o abade.

Olhai, Paredes de Viadores, olhai, Passos de Gaiolo, que eram do Marco!... E já os de Mesquinhata se adiantavam e agigantavam, mais os de Santa Leocádia, Grilo e Ribadouro, ali em frente, mas já do concelho de Baião, que a linha do caminho de ferro do Douro separava...

Todos, afinal, a competir pelas luzes da ribalta do céu, e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior. E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade, bem mostrados aos que se sentavam na plateia deste vale de lágrimas que sempre fora aquela terra de camponeses,  rendeiros e cabaneiros, jornaleiros, trolhas, carpinteiros,  ramadeiros, trabalhadores do milho, da vinha e do centeio... 

A natural vaidade humana de quem conseguira sair do círculo da pobreza, e que este ano já se chegara para a frente, com uma nota de conto.

Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi, e os solstícios do inverno e do verão, e os equinócios da primavera e do outono, só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho e a dar de comer ao tourinho, que era metade do patrão (que, ele, "mandjor da tropa", coitado,  também lá andava a mourejar por terras de  África na defesa da Pátria.)

Havia palpites, críticas, comentários, exclamações... sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia. E no final Paços de Gaiolo era o vencedor...

Alguém tinha que ser o vencedor, garantia o padre Agostinho, que no céu, meus filhos, a seleção sempre fora, desde os primórdios, mui apertada, e nem todos poderiam ficar à direita de Deus Pai, nem ter um anjo à sua cabeceira

Havia filhos e enteados, o mundo já nascera assim,  torto e aleijado, mas porquê não mo pergunteis, que eu não sou papa, nem bispo, apenas um humilde servidor de Nosso Senhor, um pobre pároco de aldeia.

Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte, naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega, que chegaram a alimentar um milhão de portugueses durante séculos e a ajudar a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever, e muito menos o latinório aldrabado do padre Agostinho. Bom homem, o que não quer dizer que fosse santo.

Na era da covid-19, deixou de haver  Páscoa, compasso, fogo, forno. Só o fogo do inferno, que esse continuava a arder, por mor dos pecadores, para seu exemplo e temor. 

Nem abraços nem chicorações, só quando muito "abracelos... Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos,  cheios de mazelas os menos velhos, tristes e desamparadas as viúvas, desconsolados os órfãos, famílias de desvairadas gentes espalhadas pelas diásporas.

No passado, ao almoço, não podia faltar o arroz de forno, que, em cada ano que passava, estava sempre melhor do que o do ano anterior. Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte e engenho a idade ia apurando.

Ou então era tudo devido simplesmente à saudade destes sabores da infância e da tradição. E a conversa girava, no fim do repasto,  sobre o anho e o arroz dos idos anos em que a gente era canalha de pé descalço, no tempo em que se vendiam os ovos aos da cidade para comprar a sardinha para três. E o osso era disputado à mesa. 

Oh meu pai, chuche-o e dê-mo!

Depois até o raio da covid-19, diziam, tirava o olfacto e o paladar  às cozinheiras...O tal segredo, o dedo pró cozinho!... E já o pito não era pito, era frango de aviário, desconsolado, diziam-os homens, matreiros e galhofeiros.

Podia chover, que em abril águas mil, mas a água que brotava das minas e da levada de Covas, e que regava os campos de milho, não apagava o fogo da paixão da vida, nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos, e o rebolar na cama de palha de centeio, o forno aceso, o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!, o pão de ló dos Lenteirões, o doce da Teixeira,  a aletria, os foguetes a estalar no ar, alto e longe, a caneca de porcelana, que luxo!, por onde se emborcava o vinho, verde tinto, da Carreira Chã, com o travo adstringente do jaqué.

Os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros, o vinho verde novo que jorrava da pipa e alegrava os corações, a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...

E os cães a ladrar!... 

Mas até os cães havia morrido. Tal como o padre Agostinho. E as velhas casas de granito se cobriram de musgo e as janelas de teias de aranha e as silvas galgaram os telhados. E os castanheiros secaram...E as japoneiras galgaram o telhado.

O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te. Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça e da mudança.

A sua origem remontaria à época dos jacobinos, mata-frades,
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais, provocando a pobreza do senhor abade,  que, sendo filho de Deus, também tinha de comer... e "boer". E se ele comia e bebia, que nem um abade!...

Bem pregava, afinal,  frei Tomás, fazei o que ele diz, não o que ele faz.

O compasso pascal seria a forma expedita de compensar a perda de rendimentos do pároco. As parcas esmolas que as famílias punham no saco do compasso, no final da visita, revertiam originalmente para o pé-de-meia do padre...

Ah!, mas até os padres e as freiras morriam, em tempo de peste e de covid-19, lia-se na gazeta de Lisboa. E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses, coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva. E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aquele outro. 

Reuniam-se a desoras no Tasco do Alto, entrando furtivamente pela porta traseira. Para uma disputada partida de dominó, ou uma suecada, um petisco e uns tintóis. Que um home dava em doido trancado em casa,  ou a trabalhar sozinho no campo, dias e dias sem trocar uma palavra com ninguém,  nem com a cara-metade, que só chorava e rezava por mor dos  filhos, lá longe, pró Porto, Lisboa, Suíça. 

Já nada era como dantes, desde que o mundo que tu conheceras, começara a soçobrar.

A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social, o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos, alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados, pensionistas  das "mutuelles" e da "sécurité sociale", e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...

Já não havia contos de réis, é verdade,  nem lendas e narrativas de brasileiros que haviam feito  fortuna no Novo Mundo.

Naquele  ano da desgraça de 2020 restava-te a saudade, a ti e à famelga!... E as fotografias e os vídeos de antanho que se partilhava pelas redes sociais... Valeram-nos, ao menos, o Zoom e o Skype e outras plataformas que ajudaram a gente a iludir a solidão... em plena
covid-19 que nos confinava e nos emboscava a todos. 

Mas também valeu-nos a esperança de que, no fim, iríamos, coletivamente, de  mãos dadas, triunfar sobre aquela maldita pandemia, como triunfámos, dolorosamente embora,  sobre a a lepra, a varíola, a cólera, o tifo, a pneumónica...

E a peste de que Deus nos livre!... 

E como triunfámos e triunfaremos sobre todas as ditaduras impostas em nome de Deus, e do Diabo, pelos seus alegados representantes na terra. 


© Luis Graça (2021). Revisto 18 de abril de 2025.
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26665: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (38): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26536: A Nossa Poemateca (9): Cesário Verde (1855-1886): Excertos de "Nós", seguidos de "O sentimento de um ocidental"



Cesário Verde,
por Columbano (1887)
1. Não será preciso escrever muito para se ser um grande poeta da língua portuguesa: o lisboeta Césario Verde (1855-1886) é um dos meus poetas favoritos, teve uma vida curtíssima, morreu de tuberculose ...  (Uma verdadeira setença de morte,  a "tísica", na época: além do poeta, morreu também de turberculoso a sua irmã Maria Júlia e o seu irmão Joaquim.)

Escreveu meia centena de poemas.... Mas que poemas!... "O sentimento de um Ocidental"  é um das obras-primas da nossa poesia...

A sua genialidade só foi reconhecida "post-mortem", e logo por outros grandes poetas como o Fernando Pessoa.

Na primeira parte do poema "Nós", de que selecionei uns exertos,  Cesário Verde evoca o surto de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 que terá contagiado entre 16 a 17 mil pessoas (perto de 10% do total da população lisboeta) e provocado mais de 5 mil mortes.E dois anos antes, tinha havido  um o surto de cólera.

Se bem que o séc. XIX venha marcar o fim das grandes epidemias que, ao longo de séculos vitimaram as populações europeias, surgem novos problemas de saúde, com a industrialização e a urbanização da Europa.  

No nosso país, por exemplo, em menos de um quarto de século, e em duas ocasiões, a cólera irá fazer dezenas de milhares de vítimas mortias: cerca de 40 mil em 1833, em plena guerra civil,  um terço dos quais na capital (as valas comuns deram depois origem aos cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João); e aproximadamente 9 mil em 1855-56.

Embora as estatísticas de mortalidade, na época, possam variar de autor para autor, de fonte para fonte, a cólera tornou-se a doença epidémica, por excelência nas cidades em grande expansão, resultantes do do desenvolvimento do capitalismo industrial. 

A cólera passara  a ser conhecida dos portugueses com a chegada à Índia onde era endémica. 

Já a febre amarela é originária da América Central. Há notícia de que  terá chegado a Portugal continental no ínício da década de 1720: a primeira epidemia de febre amarela ter-se-á manifestado em Lisboa, no Outono de 1723. Ao fim de três meses terá feito mais de seis mil vírimas mortais, nas zonas de maior densidade populacional. 

No caso do surto de febre amarela de 1857, as áreas mais afectadas em Lisboa  foram inevitavelmente as dos bairros populares (como Alfama, Mouraria, Madragoa, Bairro Alto), onde se concentravam as chamadas classes laboriosas, misturadas com o lumpen-proletariado, e onde continuavam a ser péssimas as condições de higiene e salubridade (sobrehabitação, falta de saneamento básico, de água potável, de recolha do lixo, etc.), agravadas pela subnutrição e sistema imunitário enfraquecido. 

Registam-se igualmente importantes surtos de febre tifóide e de tifo, embora estas doenças tendam a regredir a partir de 1865. Mas,  mesmo ainda em 1923, Ricardo Jorge considerava Lisboa, no seu estilo tão castiço e peculiar quanto hiperbólico, como "uma das cidades mais infectamente tíficas" (sic) da Europa...

A cólera continua a ser um grave problema de saúde em países como a nossa Guiné-Bissau. É endémica:  com a estação de chuvas (de maio a novembro), muitas áreas são  inundadas, em Bissau e outros aglomerados urbanos... Os poços enchem-se de de matéria fecal, disseminando rapidamente a doença pela população, vitimando sobretudo os mais novos e os mais frágeis.

Cesário Verde era bebé aquando da epidemia de febre amarela de 1857. Mas este acontecimento ficou na memória da família Verde, que era de origem italiana. O  seu pai, abastado agricultor e comerciante de ferragens na baixa lisboeta, fez aquilo que os ricos faziam na época: retirar a família para o campo. Neste caso, para a sua quinta em Linda-A-Pastora, hoje união das freguesias Carnaxide Queijas,  concelho de Oeiras. Aí Cesário Verde enamora-se pelas delícias do campo e dá-nos conta da modernização da agricultura da época.  
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NÓS

I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na "city", que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d' ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro! (...)


Excertos, NÓS - I, in "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886, posfácio e fixação de texto, António Barahona. Edição definitiva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 98-100. (Com a devida vénia...)


2, E depois do "Nós",  leia-se "O Sentimento de um Ocidental": longo poema, de 44 estrofes, dividido rigorosamente em 4 partes de 11 estrofes cada uma; cada estrofe, por sua vez, é composta por quadras (4 versos).

As rimas são, em geral, interpoladas e emparelhadas (segundo o esquema ABBA), com 12 sílabas métricas (alexandrino) e um verso de 10 sílabas (decassílabo) no primeiro verso de cada estrofe. 

As 4 partes do poema correspondem a menos de metade do dia (que vai do entardecer à noite cerrada):

  • Parte I: Avé-Marias;
  • Parte II: Noite fechada;
  •  Parte III: Ao Gás;
  • Parte IV: Horas mortas.

Com Cesário Verde, a poesia abre-se a (e celebra-se com) os cinco sentidos... Fica aqui uma amostra (para ler ou reler) (a primeira quadra de cada parte; e a IV parte - Horas mortas - completa).

O sentimento de um ocidental

I Avé-Marias 

Nas nossas ruas, ao anoitecer, 
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia 
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. (...)


II Noite Fechada 

 Toca-se às grades, nas cadeias. Som 
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! 
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças, 
Bem raramente encerra uma mulher de dom! (...)

III Ao gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus. (...)

IV Horas mortas

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos! 
Um parafuso cai nas lajes, às escuras: 
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, 
os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. 

E eu sigo, como as linhas de uma pauta 
A dupla correnteza augusta das fachadas; 
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, 
As notas pastoris de uma longínqua flauta. 

Se eu não morresse, nunca! E eternamente 
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! 
Esqueço-me a prever castíssimas esposas, 
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis, 
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas! 
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, 
Numas habitações translúcidas e frágeis. 

Ah! Como a raça ruiva do porvir, 
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, 
Nós vamos explorar todos os continentes 
E pelas vastidões aquáticas seguir! 

Mas se vivemos, os emparedados, 
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas 
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. 

E nestes nebulosos corredores 
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; 
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, 
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos; 
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos. 

E os guardas, que revistam as escadas, 
Caminham de lanterna e servem de chaveiros; 
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, 
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas. 

E, enorme, nesta massa irregular 
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, 
A Dor humana busca os amplos horizontes, 
E tem marés, de fel, como um sinistro mar! 

(Bold, a vermelho, nosso: LG)


3. A versão completa do poema pode ser encontrada na Net, a conmeçar por aqui, mas por favor comprem  o livro em papel, "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886",   edição da Assírio & Alvim, Lisboa, 2004 (a grande casa editorial da poesia).

E  leiam-no de vez em quando em voz alta e...  a qualquer hora!.... E repitam, de preferência ao entardecer, no miradouro da Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa,  mesmo a abarrotar de tuque-tuques e de turistas: 

"Se eu não morresse, nunca! E eternamente  / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! ")...
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar

terça-feira, 18 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros











Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 >  Alguns recantos e encantos do Parque.

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

 

Contos com mural ao fundo: Caminheiros

por Luís Graça


Às quintas-feiras encontravam-se no magnífico Parque da Cidade, no Porto,  havia lá um grupo de amigos e conhecidos que gostavam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas. Isto, ainda uns bons anos  antes da pandemia.  

“Duas voltas ao bilhar grande”, diziam eles e elas. "E tudo por mor da nossa saúde"... Desenferrujava-se as pernas, desentaramelava-se a língua, massajava-se os neurónios, tonificava-se o coração, estreitavam-se os laços sociais e afetivos, "limpava-se a vista" (com o azul do Oceano Atlântico, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultivava-se a boa disposição e o humor, desligava-se o malfadado telemóvel… Ah!, e não se fumava, pelo menos durante essas duas horas.

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dias, era quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, ou "pessoal engravatado" (os homens, no tempo em que ainda se usava gravata e fato completo, na banca, nos seguros, nos escritórios, nas repartições públicas... e as mulheres não vestiam calças). 

Enfim, reformados, gente com algumas economias no banco, e já poucos sonhos, mas que achava que ainda tinha  todo o  tempo e vagar à sua frente. 

No essencial, e em comum, tinham o gosto por conviver, cavaquear e andar a pé. Era a “Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade”… Até já eram populares entre os trabalhadores do Parque, demais utentes e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona. Eram gregários como os primatos, ruidosos como os adolescentes, e temerosos da solidão como são todos os idosos do mundo.

Nessa altura, passavas por lá, de vez en quando. Estavas a fazer um estudo de caso no Porto, no âmbito de um projeto de investigação sobre a promoção da vida ativa saudável.  Tinhas o estatuto de observador-participante...  Aparecias com a “Nucha” e juntavas-te  a eles e a elas, para  duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio. Eram, aliás, as tuas duas únicas horas de exercício semanal... ("Bem prega Frei Tomás!...", dizia-te a "Nucha", em jeito de piada.)

Havia de tudo um pouco, num grupo de trinta, no máximo (quando excecionalmente se vazia o pleno, no "almoço de Natal": professores, talvez a maioria, um ou outro engenheiro, bancário, magistrado, advogado; umas tantas secretárias, e domésticas; uma médica, uma enfermeira, uma jornalista; e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vinham do Porto, de Matosinhos, da Maia,de Vila Nova de Gaia e até de mais longe.

Era a primeira geração de portugueses de que se podia dizer que eram filhos da abundância,  relativa,  dos planos de fomento estado-novistas, e depois do Estado-Providência abrilista.  E que podiam aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (contrariamente ao que se passara com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número, sempre variável, dos que iam aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acabava por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formavam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuavam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não havia contemplações e muito  menos solidariedade para com os mais fracos das canetas  que vinham na cauda do pelotão. 

A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, fazia-se uma pausa, de dez a quinze minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. Invariavelmente cronometradas pelo "Mister". Era então que o pelotão se reagrupava, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa eram os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (havia já gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas (em geral organizadas pela agência Pinto Lopes), das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… 

Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se iam divorciando,  e os netos que lá iam trepando a montanha da vida, de degrau em degrau, da escolinha  de escolinha até à universidade final…, o doloroso  "home leaving" e o primeiro emprego, precário.

Vinham também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, primeiras comunhões, crismas, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos,  parentes, vizinhos, colegas e conhecidos)… 

Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se falava em sexo nem em dinheiro”. Percebia-se: muitos tinham tido uma formação religiosa, nortenha, puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor… O que não impedia, de vez em quando, a galhofa brejeira, típica das gentes do Norte:

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejava alguém dos rapazes.

O telemóvel e o tabaco eram, agora, então, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” era uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores eram, nesse ponto, os mais radicais,  intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!, a começar pelos que saíam de uma "igreja" para se meter noutra)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel era  “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”, por causa dos netos, na creche, ou  do gato ou do cão ao cuidado da vizinha.  E, tanto quanto tu te apercebias, quando por lá andavas, não havia fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” ia, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes,  o liceu, a Mocidade Portuguesa, os primeiros namoros, a descoberta do sexo, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império, ou a igualdade de género… Questões "fraturantes"... Alguns haviam passado por África e tinham memórias desse tempo, umas boas, outras más. Enfim, havia retornados e antigos combatentes…

Chegava-se, por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que era o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino” (termo que hoje, convenhamos, já não se usa no Porto), do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim gente nascida no Estado Novo, e que já era adulta no 25 de Abril. Gente com duas metades, e algo bipolar, como a lua, a luz e a sombra, a democracia e a ditadura, a esperança e a depressão...

No caso de um ou outro mais velho, quando nasceu, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

Eram quase todos portistas (ou "andrades"), mas também não se falava de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficavam lá fora as “redes sociais", a par da “política partidária”. Eram quase todos “desalinhados”, uns à esquerda e outros à direita, mas alguns/algumas tinham um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até era compreensível, olhando para as carecas deles e para as cabeleiras brancas ou horrivelmente pintalgadas,  delas.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidenciava-te a “Nucha”, uma mulher minhota de grande generosidade, que te introduzira no grupo.

Quando chovia (e aqui chovia mais do que no Sul…), ficavam a cavaquear no café até próximo do meio-dia e meia, altura em que cada um ia às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ? 
– pergunta alguém, a meio da caminhada.

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa a "Nucha", a caminhar ao lado do “Mister” e da “Natália”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio das duas:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Morcão,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Natália”.

Transmontana, a “Natália” era uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade era um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamavam-lhe a “Natália” porque dava ares, até no corpo e nos trejeitos,  da Natália Correia… E também escrevia… “versos” panfletários. Tanto quanto julgavas saber, fora professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciavam e toleravam o seu “génio”. Tinha fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gostava de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"... como se estivesse no Mercado do Bolhão.

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?!  

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as mesmíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… –  atreveste-te tu a completar, infringindo o teu estatuto que era mais o de observar do que o de falar...

− Ah!, o Portugal plural, sacro-profano,  no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e negro – ironizou a  “Natália”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e o lápis azul da censura– acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje eram mais  “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar um exemplo da sua própria experiência:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Natália”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu ex… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar, os quatro ou cinco do grupinho da frente.

− Conversa da treta, sabes como é! É preciso ocupar o tempo − diziam-te, à laia de desculpa.

Nesta tertúlia  tripeira quase toda a gente parecia ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que te disseram, fazia parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratavam por tu, o que ajudava a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores, os senhores e as senhoras, num terra burguesa em que os títulos, no passado,  sempre tiveram o seu peso, conta e medida...

E também te pareceu que, pelo convívio que ias  tendo (irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém levava a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, era mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da história de vida de cada um
.  

 Os novatos, que já eram poucos nos últimos dois ou três anos antes da pandemia, eram sujeitos, como tu, à incontornável praxe de integração. Se bem que tu, porque fosses investigador, tinhas o estatuto do marginal-secante, aquele que fica sempre mais fora do que dentro. Na realidade, não chegaste a ser "entronizado", porque regressaste à base, em Lisboa, acabaste o trabalho de campo e deixaste de frequentar o grupo.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-te a “Nucha”, essa, sim, uma tua velha amiga de há muito.

Em rigor, não havia regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, ia criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo, no início,  trabalho de um grupo de mulheres, de que restavam duas ou três, a quem chamavam carinhosamente as “abelhas -mestras”. Eram uma espécie de “mães-fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam-se umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas ?!,,,

− ... e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?! 

− Pois, já não temos o dia de pica-boi! − dizia uma delas, com graça.

Foi assim que nasceu a "Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade", com a intenção mais ou menos explícita (mas  nunca expressa, por escrito) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo te contou  a  “Nucha”, que fora professora de biologia, "noutra incarnação", como ela gostava de apontar no seu currículo… 

Eram mais as mulheres do que os homens, o que até era natural naquele grupo etário de gente sexagenária, com um ou outro já na casa dos 70… Em meia dúzia de anos (tinham começado pro volta de 2010), o grupo parecia ter-se aguentado e até renovado. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também havia a “Viúva Alegre” (que já despachara para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos), a “Rosa Mota (por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva), a “Feicebuqueira” (que se vangloriava de ter “cinco mil amigos” no Facebook), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, e o fotógrafo do grupo, sempre muito calado),  além do "Mandjor" (sic), amigo  ou conhecido do "Mister", do tempo da tropa... 

Enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequentava o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferavam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos verdejantes que, no passado, devem ter dado muitas carradas de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister”... Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – arrmetava, sarcástica,  a “Natália"

Mas o "Mister" tinha sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha hipótese de investigação 
− se calhar,  como piada a ti, que estavas a estudar o grupo. −  Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou alguém, ao lado, e
 que também quis "botar a sua teoria".

Segundo ele, havia  uma economia de meios, de energia, de recursos:   

− Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como li algures – acrescentou alguém  
–,   somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade…

E voltava à carga  a “Natália”:

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do Criador.  

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Para não dizer 
confrangedoras!... Repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nos "Black Fridays", ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

Um terceiro elemento retomou a sua teoria... Resumindo: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Natália"− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças…  "Grooming", dizem os antropólogos.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – atalhou  a “Nucha”.
– E quanto mais velhos, pior!.. Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Natália” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.

O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Era o líder do grupo... Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para motivar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol lá para os lados de Paços de Ferreira ou Penafiel.

Era natural de Baião, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguira formar-se. A “Natália”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…

− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Natália" e explicou:

− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô materno, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha frente uma eternidade de pasmaceira e ao meu lado uma múmia como eu…

− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…que é um sucesso de vendas!

− Vai-te,  Afonso, com essa ! 
[Queria ela dizer "não me f..." ]. Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras, sedutoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…

Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…

Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974… 

− "Ranger" ?!...Meu Deus!, de "ranger os dentes" ?!

“Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade, o "Mister". Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conhecera as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto, onde já vivia antes da tropa… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração… Aliás, nem grande nem pequena...

Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, em Lamego, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:

Djubi, gosse, gosse!

− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?

− É crioulo, toca a andar, míudo, que se faz tarde.

Juntara-se agora ao grupo da frente o amigo do "Mister",  o “Mandjor”, um que estivera no fim da guerra colonial, em Moçambique, nos paraquedistas.  Fora ferido, com alguma gravidade no planalto dos Macondes, e tivera direito a cruz de guerra. Era agora "sargento ajudante", mas no grupo chamavam-lhe o "Mandjor", talvez por ser alto e encorpado...

Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que  alguns embirravam solenemente.

− Guerra, só a das ideias!− defendia alguém,  que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado a Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pusera os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)

Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, no verão de 1974, matriculando-se  ainda nesse ano no curso de filosofia. 

Não escondia que andara em 74 e 75 "a sanear professores e patrões", ao mesmo tempo que se metera no negócio da edição de livros e panfletos.  Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima. 

Fora também durante vinte anos professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”. Já não te recordas da alcunha que o grupo lhe pusera. Mas era um "cromo" da cidade... Talvez fosse essa a alcunha, "Cromo"...

− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!...

E a "Natália" aproveitou a sua deixa para lançar a sua provocação:

−  Olhem, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada notinha de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates, o que é que vocês querem mais ?!

− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça ou o vinho do Porto… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…

− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do Portugal pequenino, o retângulo de 89 mil quilómetros quadrados,  a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Manjor”.
 
Desta feita era o militar a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota dos quatro costados, façanhudo e medalhado com cruz de guerra, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Cromo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de a ir defender...

E continuou o “Mandjor”, que lidava mal com “fujões”, agora com a autoridade do historiador com canudo passado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto...  (Um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”, por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):

− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821 (e agora o resto do Império de Quinhentos). A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…

− Eh!, “Mandjor", nessa altura, até eu, com esta fraca figura,  pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Natália”…

− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.

E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostavam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país. Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos, ia explicando ele.

− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Natália”.

− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma adeia, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.

A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos  de batalha do "Mister" nos últimos tempos, com o argumento de que as redes sociais reproduziam a estrutura e ampliavam a dimensão da aldeia, a aldeia virtual global. 

−  Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.

− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses… E até fazer sexo virtual!

− Pedimos amizade uns aos outros (gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, nem cheirado, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…

− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício... 


− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Manjor”.
− E, daqui a mais uns anitos, na pronografia.

− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”, o número de "amigos"… − comentou o “Cromo”.

Mais enfático, exclamou o “Mister”:

− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…

−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! Mas ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a  "Nucha". − E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais,  é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.

E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário” das suas equipas de futebol da III Divisão:

− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…

−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… − interrompeu a ‘desbocada’ da “Natália”…

No meio disto tudo, tu tinhas que desempenhar o teu papel, que era 
mais de observador do que ator, afinal um intruso no grupo,   mesmo todos eles sabendo que estavas a fazer sobre eles um “case study”  para um projeto europeu... A sugestão e o convite vieram da “Nucha”,  uma rapariga de Braga, de 60 e tais anos de idade,   e que sempre se interessara pela promoção da saúde, tendo estado ligada à Rede Europeia das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis... Foi aí, de resto, que se haviam conhecido,  vocês os dois.

Enfim, podias dizer que tiveras a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de te chamarem “Mouro” na brincadeira.    Sabias, por outro lado, que o grupo fazia alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal", e outro no "solstício do verão, antes das férias grandes”... E que se preparavam, em 2020, para "atacar" os caminhos de Santiago, numa verdadeira aposta de superação, individual e grupal: um caminho,  todos os anos até 2030 (para os..."mais otimistas").

No verão ainda gostavam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, eram circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer ser humano, em qualquer hemisfério…

A “Natália” costumava escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pudeste aparecer. Dizia-te a "Nucha" que eram versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adorava pôr sempre um pouco de picante no que escrevia e dizia... No  último Natal, de 2019, ela fizera um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só apareciam nesta data para “dar ao dente” e "manter as quotas em dia".  Mas também queria dar o mote para o novo projeto do grupo, os Caminhos de Santiago. 

No fundo, era um homenagem a este pequeno grupo  de gente gira do Norte que te surpreendia pela energia e alegria que punha todas as quintas-feiras nas suas "voltinhas" pelo Parque da Cidade... "por mor da saúde" (uma expressão  que tu achavas deliciosa, e  tão tipicamente nortenha).

A “Nucha” teve a gentileza de te mandar uma cópia do texto por email, com  autorização expressa para o usares no teu relatório   e, também, de algum modo, ficares com uma recordação pessoal dessas quintas feiras no Parque da Cidade 
 onde te chegaste a juntar a esses  caminheiros,  alguns dos quais infelizmente iriam arrumar de vez  as sapatilhas em 2020... 

Em Lisboa, soubeste pela "Nucha", da morte do "Mister",  logo no início da pandemia, o que chocou toda a gente, e deixou o grupo destroçado. Nem sequer ao funeral dele puderam ir. Era o mais novo, o mais ativo, o mais saudável, o mais entusiástico, o mais prestável...  Com a pandemia, o confinamento  e a morte do "Mister", a tertúlia acabou por desfazer-se...

− E, depois, sabes como é, a idade não perdoa!

Desfez-se o grupo, por falta de comparência,  motivação e liderança,  e com ele  o sonho de se fazer os caminhos de Santiago, a partir do início da década de 2020.  Ainda se chegaram a encontrar uns tantos, quando amainou a pandemia, mas nunca mais se reconstituiu o grupo.

− Não, não chegámos a Santiago de Compostela, mas também não morremos na praia.  Cumprimos a nossa missão!  − concluiu, resignada, a "Nucha".

E tu achaste que sim, que ficava bem esse soneto a rematar esta história, bonita e triste ao mesmo tempo,  destes  caminheiros nortenhos, com dez anos de caminhadas...   Infelizmente, o ano de 2020 foi mau para todos e tu acabaste também por perder o contacto deles, restou-te apenas a "Nucha". Eis o texto que ela te mandou, da autoria da "Natália" (e com a sua generosa permissão):


"Feliz Natal de 2019, caminheiras e caminheiros!

"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos companheiros.


"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, não tem desconto,
Que a quota é só a da amizade.

"Com as malas feitas p’ra viajar, 
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas com medo do mundo acabar.

"Esqueçamos, gente, os maus agouros,
Que o ano há de correr menos mal,
Valha-nos Santiago, o Mata-Mouros!
 

"Parque da Cidade, quinta feira, 19 de dezembro de 2019. Natália"...

© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. 
Última revisão: 9 de outubro de 2024.

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de maio de 2024 >  Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!