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sábado, 14 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26921: (In)citações (274): Brancos, pretos e morenos (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74), com data de 13 de Junho de 2025:


Brancos, pretos e morenos

Numa noite de Dezembro, há 54 anos, num dia de calor asfixiante, chegamos à entrada da barra do porto de Bissau de águas barrentas, e atmosfera tensa, de quem não sabe para onde vai, se íamos desembarcar directamente num cenário de guerra generalizada onde todos andavam armados em posição de reacção a qualquer confronto.

Ficamos pois admirados, porque quem conduziu o Angra do Heroísmo até ao cais foram pilotos nativos negros, nas suas vestes pouco menos que andrajosas, e quando amanheceu, na vez de viaturas militares onde seríamos prontamente inseridos no dispositivo militar pronto para tudo, estavam viaturas civis de mercadorias, conduzidas também por africanos. Sem escolta fomos transportados durante 40 quilómetros até ao Cumeré.

Fez-se noite no caminho. Nós, mais três companhias madeirenses, chegamos e fomos alojados nas longas casernas. Era véspera de Natal e umas cervejas fizeram a festa até ao inesperado disparo das antiaéreas, que nos fez acordar para uma guerra que havia por ali, quase ao virar da esquina. Nessa noite o PAIGC atacou 16 destacamentos, entre eles Nhacra. Aprendemos assim como eram festejados os nossos dias mais queridos, o PAGC fornecia o fogo de artificio com que se iniciavam os festejos.

A partir daí Geba acima, aproveitando a enchente do Macaréu, fomos transportados para Leste até ao Xime e de lá, transportados novamente em camionetas civis até Galomaro, Dulombi, Cancolim e Saltinho. Tinha começado o nosso relacionamento com as populações, baseado nos serviços que nos prestavam na medida em que lhes pagávamos. O expoente máximo do comércio era entre nós e as lavadeiras, mais as vendedoras de mancarra e, no tempo dele, de caju. Os mais afoitos começaram a visitar os locais onde se bebia vinho de palma e até uma ou duas prostitutas. O bar do Regala era também um dos sítios mais cobiçados com as suas cervejas de litro bem frescas e um bitoque confeccionado pela Dona Maria, que não ficava nada atrás dos que por cá comíamos.

A ligação com as pessoas da tabanca era pois constante e nas colunas de abastecimento era comum camionetas civis fazerem connosco os reabastecimentos aos destacamentos mais isolados.

Depois começamos com os reordenamentos, que de muitas maneiras estreitou as nossas relações com as populações com negociações por vezes hilariantes, onde o homem grande prometia duas galinhas para ser o primeiro a ser contemplado com a sua morança concluída. Bem no final havia sempre muita discussão porque nós dizíamos duas galinhas e ele nem uma queria dar.

Nós fomos cidadãos do Mundo desde 1500. Convivemos e cruzamo-nos com todas as raças sem preconceito se era negra, índia, asiática ou indiana. Diz-se por graça que Deus criou o homem e mulher, os portugueses a mestiçagem tal são os traços do resultado que deixamos pelo Mundo. Também nós emigramos à procura de vida melhor fugindo à guerra ou à miséria e falta de horizontes.

Que sempre houve racismo, é verdade, mas não era generalizado. Hoje assistimos a esse fenómeno, onde parte da nossa sociedade tenta segregar a outra, rejeitando-a, esquecendo que essa gente que habita nos nossos piores bairros, que tem os piores transportes e os piores empregos, são descendentes dos que connosco conviveram, muitos dos quais combateram ao nosso lado e sofreram dores tamanhas.

A sua música e sabores, os idiomas, as suas práticas religiosas, a sua arte, fazem Portugal albergar o Mundo inteiro neste pequeno rectângulo. O Portugal plurirracial é hoje posto em causa por quem antigamente o usava para prolongar aquela guerra sem sentido.

Usam-no para colher votos, achincalham as instituições, provocam, agridem gratuitamente nas ruas com violência das biqueira de aço e poluem os nossos ouvidos com sua constante aparição nas TVs, onde vomitam ódio, muitas vezes às claras.

Albergam-se em partidos que beneficiam da democracia para acabar com ela.

Fazem bandeira dos não assunto, mentem descaradamente e arrastam atrás de si veteranos que acreditam nas suas patranhas usando as nossas justas aspirações.

Como podem resolver o que está mal se eles são o mal?

Juvenal Sacadura Amado
13/06/2025

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Nota do editor

Último post da série de 10 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26906: (In)citações (273): Envelhecer... com dignidade?!? (Joseph Belo, José para os "tugas")

8 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Juvenal, a Guiné ajudou-nos a sermos "mais tolerantes", a conviver com a diferença, a diversidade, a biodiversidade e a diversidade social, demográfica, cultural... Era uma terra de contrastes: de gentes, de paisagens, de costumes, de formas de ser, estar, pensar, trabalhar, rezar, casar, amar, morrer, fazer o luto, etc. Ficámos todos mais ricos, como ser humanos e portugueses... As gerações de portugueses que não passaram pela Guiné, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, Goa, Macau, Timor... não terá a mesma sensibilidade e capacidade para entender e respeitar o "outro" que é diferente...

Compete-nos saber manter e comunicar (aos fillhos e netos) a nossa "idiossincrasia" portuguesa, que passa muito pelo respeitar e ser respeitado... E só se respeita o que se conhece e compreende.

PS - Conheci, no meu tempo, gente, camaradas nossos, com atitudes e comportamentos racistas...Mas não era a regra geral, era a exceção. Quero poder continuar a dizer, aos meus amigos estrangeiros, que Portugal e os portugueses não se reveem no discurso de ódio, boçal, primário, de que às vezes nos chegam ecos.... (em relação ao "outro" que é diferente).

Eduardo Estrela disse...

Meus queridos Luís e Juvenal!!
Nós soubemos transmitir aos que nos rodeiam esses valores basilares da convivência humana. Mas a pátria, através do resto dos seus filhos esqueceu, ignorou , fez-se desentendido e foi criando a pouco e pouco uma sociedade intolerante que caminha não sei para onde. Um povo sem memória arrisca-se a regressar ao passado.
Grande abraço
Eduardo Estrela

Carlos Vinhal disse...

Caro Eduardo Estrela,
Permite que meta a colherada no teu comentário, um povo sem memória e sem educação, regressa muito para além do passado, regressa à barbárie. Repara que a vida já não tem qualquer valor, mata-se por tudo e por nada, não se respeita nada nem ninguém.
Ser criança, ser mulher e ser velho neste mundo tão mal frequentado, é muito perigoso.
Carlos Vinhal

Eduardo Estrela disse...

Essa é a triste e dolorosa realidade Carlos.
Vamos assistindo impotentes, a coisas que transcendem a racionalidade.
Grande abraço
Eduardo Estrela

António Tavares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
António Tavares disse...

Em Galomaro a CCS/BCaç. 2912 aguardava ansiosamente a chegada dos "piriquitos".
Em 11 de Março de 1972 fizemos o percurso inverso: Galomaro - Bambadinca - Xime - Bissau - Cumeré.
Passados onze dias o Aeroporto Militar de Figo Maduro recebeu o BCaç. 2912.
A "peluda" estava presente, mas não o serviço militar que terminou decorridos vinte e cinco anos.

Abraço do
António Tavares

Anónimo disse...

Verdade Carlos um Povo sem memória também não tem História. Será que estamos a assistir a isso? Mário Fitas

Mário disse...

Verdade Carlos um Povo sem História é pobre. Parece que há por aí alguém que quer apagar Camões. Será por estarmos próximo do seu centenário? Mis...tério! Como dizia Dona Quirina. Abraço.