O seu quarto (que ele partilhava com o alf mil médico Mário Gonçalves Ferreira) e os seus objectos pessoais foram revistados, não por agentes da PIDE/DGS, mas por dois oficiais superiores do comando do batalhão.... O seu diário foi, abusiva e ilegalmente confiscado...
Por sua vez, o Padre Mário de Oliveira, da diocese do Porto, foi capelão militar do BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/69). tendo sido expulso em Março de 1968, menos de cinco depois da sua chegada ao CTIG, uma história já aqui contada em 2006 (**)...
Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Viseu > 26 de Abril de 2008 > 2º Convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e unidades adidas > O Jorge Cabral, o segundo a contra da esquerda, "entre um Psiquiatra (Marques Vilar) e um Cardiologista (Mário Gonçalves Ferreira, autor do romance 'Tempestade em Bissau0)"... Diz o Jorge Cabral que ambos os médicos "me visitaram em Missirá, quando eu comandava o Pel Caç Nat 63, tendo o Mário, passado lá o Natal de 70, com o Padre Puim" [Não foi o Natal, foi o Fim de Ano, emenda o Puim, que apontava tudo no seu famoso caderninho ].. Os dois médicos foram igualmente companheiros de quarto do capelão. O Mário Gonçalves Ferreira substituiu, em março de 1971, o Mário Gonçalves Ferreira.
Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Muita saúde longa vida, Arsénio Puim,
porque tu mereces tudo! (2ª e última parte)
por Luís Graça
(8) O que ele não esqueceria era, afinal,
o lema do batalhão, “Pela Guiné e suas gentes”…
E foi o lema do seu batalhão que o tramou,
a sua interpretação do seu significado…
Na célebre homilia em Viana do Castelo (que, de resto, está publicada na história da unidade), a par do discurso patrioteiro, chapa um, do comandante do batalhão, ele realçava “ duas ideias principais que a Missa, como ato de culto ao Pai da humanidade e de comunhão da Palavra e do Pão, nos deveria inspirar e consolidar: (i) por um lado, o espírito de comunidade que deveria imperar no Batalhão 2917 ao serviço das terras da Guiné, onde íamos viver; (ii) e, por outro, os valores humanos e cristãos que devem ser apanágio de todos os homens de boa vontade em quaisquer circunstâncias”.
Na Guiné, ele vai recusar usar armas... De facto, não nunca teve G3 distribuída. Quando chegaram a Bissau, e houve distribuição do armamento, no Depósito de Adidos, em Brá, antes da partida em LDG para o Xime, ele esteve na fila, como toda a gente, mas, chegada a sua vez, disse delicadamente, ao segundo comandante que dispensava a arma... nem sequer saberia usá-la...
A presumível antipatia, pelo capelão, alimentada por esse major - de resto, um professor da Academia Militar, com tiques prussianos, que nos obrigava a bater a pala, em plena parada de Bambadinca, como se fôssemos vulgares instruendos, a nós, operacionais da CCAÇ 12, já com mais de um ano de velhice, muito sangue, suor e lágrimas na Guiné! - já devia vir de longe, talvez da primeira homilia, em Viana do Castelo, aquando da formação do batalhão…
Perante o insólito desta cena, o major ter-lhe-á perguntado, diretamente, se ele não era "testemunha de Jeová" (Recorde-se que eram, na época, perseguidos por serem objetores de consciência). Provocação deliberada ? Piada de caserna ? Brincadeira de mau gosto?
- Não, meu comandante, sou um padre católico...
Esta frontalidade, que nada tinha de insolência, vai-lhe sair cara… ao ponto de um dia o mesmo oficial superior lhe perguntar, “à laia de graça”, se tinha um pacto com os “turras”, dada a estranha coincidência de alguns ataques do PAIGC ocorrerem imediatamente a seguir à sua saída de um aquartelamento ou destacamento…
(9) Dizem que afinal o que tramou foram
as suas célebres homilias da paz em tempo de guerra…
Ou, nas suas próprias, o seu “pacto com Deus”…
Terão ficado no ouvido de alguns zelotas as palavras de paz
(, que só poderiam ser “dissolventes”, em tempo de guerra…) proferidas na capela de Bambadinca dia 1 de Janeiro de 1971…
Alguém ia tomando boa nota… Mas haveria
ainda mais “homilias da paz”…
Foi, ao que parece, a da Abril ou Maio,
a famosa homilia de Abril ou Maio,
que entornou o copo...
Eu já não já estava na Guiné, tinha regressado a casa em meados de Março de 1971... A CCAÇ 12, agora com novos “tugas”, periquitos a enquadrar os soldados africanos, juntamente com a subunidade de quadrícula do Xime (CART 2715), tinha feito prisioneiros, no região do Xime, possivelmente na zona do Poindon / Ponta do Inglês, como diz explicitamente o Carlos Rebelo, nos seus versos sobre o Romance do Padre Puim… Era população civil, incluindo mulheres e crianças, que viviam sob controlo do PAIGC, em condições miseráveis, diga-se em abono da verdade, esfarrapados, doentes, subnutridos…
Uma das mulheres tinha acabado de dar à luz, três dias antes da operação. Eram balantas, possivelmente oriundos de Samba Silate, destruída e abandonada no início do guerra, um dos mais tristes símbolos da guerra na leste. Foram levadas para Bambadinca. O grupo ficou detido numa espécie de galinheiro que havia perto da escola, que continuava a ser dirigida pela Profª Violete, cabo-verdiana, que tinha, lá em casa, a viver consigo, um puto, o Alfredo, de 15 anos, que irá mais tarde ser mencionado na ficha da PIDE/DGS do capelão, por alegadamente ser do PAIGC ou possível informador do PAIGC...
Era nesse galinheiro, na ausência de uma verdadeira prisão, que ficavam os prisioneiros, em trânsito para Bafatá, ou para Bissau (tratando-se e guerrilheiros: quanto aos civis, nem sempre era fácil a solução da integração nas tabancas balantas da região - basicamente, Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta- , havendo crianças já nascidas no mato, e que nos olhavam aterrorizadas, quando o roncar das nossas GMC do tempo da guerra da Coreia...).
Bom, resumindo, parece que a CCS do BART 2917 não fornecia comida aos prisioneiros, maioritariamente mulheres e crianças. Ficaram à mercê da caridade da população local, de Bambadinca e Bambadincazinha, entre a qual havia simpatizantes do PAIGC, ou gente da mesma etnia...
O Puim, inteirado da situação, condoeu-se daquela gente e começou a visitá-los. Levava leite às crianças. E protestou contra aquela situação de injustiça. Era, de resto, um homem que não se calava, como não se calou quando o ex-furriel ‘comando’ João Uloma, da 1ª Companhia de Comandos Africanos, se deixou fotografar, com um cabeça cortada, na parada de Bambadinca... Perguntou o Puim, já não sabe a quem (possivelmente, ao captão Barbosa Henriques, instrutor, ou ao major Leal de Almeida, supervisor) se aquilo era digno de um exército civilizado... Se bem me lembro, esta cena passa-se em outubro de 1970, depois de uma operação a norte do Enxalé, e antes da Operação Mar Verde (invasão de Conacri, 22/11/1970)...
Através de um intérprete, um polícia administrativo, as mulheres diziam que o Puim era "manga de bom pessoal", mesmo sem saberem qual era a sua função ou o seu papel naquela guerra... Seria, de resto, difícil explicar-lhes o que era um capelão e para que servia... Para elas, era apenas um tuga bom... Um “padre-capilon”, como diziam as lavadeiras de Bambadinca…
(10) Numa das suas homilias, num domingo de Abril ou Maio,
o Puim abordou este tema, doloroso, para ele...
O tratamento dos prisioneiros nem sequer estava de acordo
com a política, superiormente definida por Spínola, e consubstanciada no slogan “Por uma Guiné Melhor”...
Terá sido a partir daqui que ele foi denunciado, possivelmente não já pela primeira vez, e que em Maio de 1971 surge uma famigerada "ordem de Bissau" (que ele nunca leu) para ele se apresentar no "Vaticano" (as instalações dos capelães militares em Bissau)...
O papel de Bissau (não se sabe por quem era assinado...), com a sua ordem de expulsão, estava nas mãos do segundo comandante do batalhão…
Nas conversas que tive com o Puim, ele nunca referiu a presença de nenhum agente da PIDE/DGS... Afirmava categoricamemente que quem passou a revista ao seu quarto (de resto, partilhado pelo alferes miliciano médico Vilar), quem mexeu nos seus objetos pessoais, na mala, e quem confiscou o seu diário (, que só lhe será devolvido, já depois do 25 de Abril, com uma única folha rasgada…) foi o 2º comandante.
De qualquer modo, burocrática, meticulosa, ominipresente PIDE/DGS averbou esta cena no ficha do Puim... O que sugere, no mínimo, alguma promiscuidade entre a PIDE/DGS, a hierarquia militar... e até o “chefe do Vaticano” (, na gíria, era a sede da capelania militar, em Bissau).
(ii) Puim considerava-se duplamente maltrado
pela instituição militar e pela hierarquia religiosa.
À data era capelão-mor, no CTIG, o Padre Gamboa
que tinha o posto de major, coordenando
e supervisionando todo o trabalho de capelania
(Vivia, em instalações próprias, em Bissau,
conhecidas por “Vaticano”).
Em Fevereiro de 1971, o Puim ainda tinha participado, em Bolama, num retiro espiritual, com os demais capelães da Guiné, dirigido pelo major capelão Gamboa. Houve discussão acesa, foi discutido o papel dos capelães na guerra colonial, a posição da Igreja, etc.
Admito que a PIDE/DGS (, com delegação em Bafatá e olhos e ouvidos em Bambadinca. ) estivesse por detrás de tudo isto, ou pelo menos acompanhasse e alimentasse o “processo” do incómodo capelão... Mas como o Puim era um oficial miliciano e ainda por cima capelão, é natural que Bissau tenha dado ordem para ser a hierarquia militar a encarregar-se do caso... e não armar escândalo. Afinal, os tempos já eram outros... ou ainda não. Spínola passa a ter, a partir de 13 de julho de 1971, a PIDE/DGS ao seu serviço, ou pelo menos sobre a sua tutela e proteção, com a nomeação do inspector Fragoso Allas para chefiar a “corporação” em Bissau.
|
Vaana do Castelo, 16 de maio de 2009 > Convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, , 1970/72) > Nas foto, da esquerda para a dieeita, Benjamim Durães, Arséio Puim e Jorge Cabral.
Foto: Benjamim Durães (2009) |
O Arsénio diz-me que foi sozinho para a aeronave que o esperava, na pista... Sem escolta. Sem alarido. Sem despedida. Sem lágrimas... Mas com a dor na alma, com revolta, com indignação. Os únicos que assistiram a esta cena, para além dos dois majores do comando do batalhão, terão sido o alf mil Abílio Machado e o sacristão, o 1º cabo Teixeira...
(12) O nosso camarada ainda teve uma semana em Bissau,
a aguardar transporte, e outra semana em Lisboa,
até ser reenviado para os Açores...
Em Bissau, foi recebido por uma alta patente militar (que ele não consegue identificar, mas que até com ele um comportamento civilizado) bem como pelo seu superior hierárquico, o major capelão Gamboa...
Em contrapartida, os amigos e camaradas de Bambadinca que na altura estavam de passagem em Bissau, fizeram-lhe um jantar de despedida, onde também esteve o 1º sargento Brito, já falecido… Não falou sequer com o seu bispo, mas voltou a paroquiar na sua Ilha, Santa Maria...
Mais tarde, quis fazer a experiência de padre operário, que estava na moda, na sequência do Concílio Vaticano II... Tirou o Curso de Enfermagem Geral na Escola de Enfermagem de Ponta Delgada, ao mesmo tempo que era pároco na freguesia de Santa Bárbara do Monte, da Ouvidoria das Capelas.
Iria perceber, mais tarde, que as duas funções eram incompatíveis, ser enfermeiro e ser padre... Optou por ser enfereiro a temo inteiro e ser dispensado da condição sacerdotal pelo papa Paulo VI. Acabou por se enamorar de uma jovem enfermeira, mais nova, com quem viria a casar, e que é hoje a mãe dos seus dois filhos. O casal passou a viver definitivamente em Ponta Delgada.
Como enfermeiro, trabalhou nos Centros de Saúde de Vila do Porto e de Vila Franca do Campo, durante 19 anos. Está aposentado desde 1996. Foi sacerdote durante 16 anos. Foi co-fundador e primeiro diretor, em 1977, de “O Baluarte de Santa Maria”. E continua a colaborar no centenário jornal de inspiração cristã, “A Crença” ser, propriedade da Matriz de Vila Franca do Campo, a cuja paróquia pertence.
Em entrevista ao "Correio dos Açores", de 18/2/2018, confessa que viveu com intenso júbilo dois grandes acontecimentos históricos, o Concílio Vaticano II e o 25 de Abril; "Exerci a função de pároco durante 12 anos, em Santa Maria e em São Miguel, num período histórico e muito rico, marcado por dois grandes acontecimentos do século - o Concílio Vaticano II e a Revolução de 25 de Abril. Vivi entusiasticamente tanto o espírito de renovação da Igreja como a democratização política e social que caracterizou uma e outra efeméride."
(13) Não voltei a vê-lo mais, trocámos mails,
publiquei lhe as suas memórias… Mas em maio de 2009,
pareceu-me um homem sereno, de bem com a vida,
orgulhoso dos seus filhos, um pai extremoso e dedicado,
e ainda hoje um cidadão com sentido de missão
e com os mesmos valores espirituais e éticos.
Decididamente queria, já na altura, fazer as pazes com um certo passado, na Guiné, razão por que fez questão de partilhar connosco as memórias, boas e más, daquele tempo. Por certo, que já perdoou a quem o ofendeu, mas não esqueceu. Os seus antigos camaradas e amigos não esqueceram.
O que fizeram ao Puim não deixa de ser uma grande pulhice humana... Afinal, o que ele fez (, protestar contra a situação dos prisioneircs civis) estava em perfeito alinhamento ou sintonia com as orientações da política spinolista "Por uma Guiné Melhor"!... Ele era a nossa consciência crítica e honrou o melhor de todos nós…
O Puim, enquanto português, homem, cidadão, capelão e oficial do Exército Português, insurgiu-se, protestou ou chamou a atenção para a situação desumana, degradante, em que viviam, numa espécie de galinheiro, em Bambadinca, velhos, mulheres e crianças que foram "recuperados" de uma tabanca no mato, sob controlo do PAIGC (que "eles" chamavam, pomposamente, "áreas libertadas", na famigerada áreaa do Poindon / Ponta do Inglês onde demos e levámos muita porrada ao longo da guerra...)!
Bolas, não eram "TURRAS"!... Era população civil, desarmada, andrajosa, miserável, esfomeada, apavorada... As crianças tinham nascido no mato e entravam em pânico ao ouvir o roncar de uma GMC...no quartel.
Muito provavelmente estes "pobres diabos" foram trazidos pela minha CCAÇ 12 em abril de 1971... Eu tinha acabado de chegar à metrópole, há coisa de um mês e tal...
|
Xitole > CART 2716 > o capelão Arsénio Puim
com o David Guimaraes, ex.fur mil at ifn MA.
Foto do David Guimarães (2005) |
Mais do que falar, o Puim sabia ver, observar, ouvir. E tinha uma grande curiosidade pela cultura da Guiné, incluindo o(s) seu(s) crioulo(s). Ele tinha, contrariamente à maioria de nós, uma extraordinária “sensibilidade socioantropológica” que o levava a conseguir “confidências” da população civil que os operacionais, como eu, dificilmente conseguiriam a obter. Estou-me a lembrar, por exemplo, das suas conversas do “Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz”…
Tinha, além disso, um espírito ecuménico, tendo participado inclusive em cerimónias religiosas, com outras confissões, em que se orou pela paz.
(14) Deixem-me acabar o meu depoimento com o meu aplauso
a este antigo “padre capilon” (, para além de meu camarada…):
como escrevi há anos, ele mereceu, nesse tempo,
o meu apreço por, no cumprimento da sua missão castrense e espiritual, nunca ter descurado as suas obrigações
como pastor da Igreja de Cristo...
Ele não era (ou não quis ser apenas) um capelão militar, um padre fardado, ao serviço de um exército em guerra... Já confessei que não o conheci nessa qualidade: nunca o vi nem ouvi a celebrar missa, nunca rezei com ele, nem sequer lhe pedi conselho ou ajuda espiritual, embora hoje eu tenha pena de o não ter conhecido melhor, a nível do seu múnus espiritual.
O que eu quero sublinhar é que a sua atenção, solicitude, disponibilidade, carinho, amor, solidariedade, caridade, compaixão - chamem-lhe o que quiserem! - também contemplava as mulheres, as crianças, os homens, os velhos da população civil, independentemente da cor da pela, da religião, da etnia, da origem...
A grande diferença em relação a nós, militares, operacionais ou não, com os nossos 22, 23 ou 24 anos, é que o Puim ganhava-nos em maturidade humana, em sensibilidade sociocultural, em abertura ao outro, em generosidade mas também em frontalidade e coragem moral... Ele convivia com a população, e escrevia no seu caderninho notas sobre esses contactos... O famoso caderninho que lhe seria mais tarde confiscado e depois devolvido e que, conforme já sugeri ao Miguel, deveria ser passado a livro…
No dia em que celebramos os seus 84 anos de vida, nós, eu e os demais membros da Tabanca Grande, de que ele faz parte de pleno direito, só lhe podemos desejar muita sa+ude e longa vida porque ele merece tudo…
Que Deus, Jeová, Alá e os bons irãs da Guiné o protejam, a ele e à sua família… e a todos nós, para que, para o ano, lhe possamos estar juntos, ou ao alcance de um clique, e voltar a cantar os “parabéns a você” e a reiterar os nossos votos de amizade e camaradagem.
Luís Graça, ex-furriel miliciano,
armas pesadas de infantaria,
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca,
maio de 1969 – março de 1917);
fundador e editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné