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quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)


Casamento de camponeses, c. 1566/69, de Pieter Brugel, o Velho. Cortesia de Wikimedai Commons



Lourinhã > Praia de Paimogo > 3 de agosto de 2011 > Enseada e porto de Paimogo, com o forte do séc. XVII ao fundo.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]

81. Nasceste algures, ou em nenhures, a oeste de qualquer coisa, não vinha (nem teria que vir), no mapa-mundo, a tua terra, perdida na ponta mais acidental do velho mundo, nem no registo civil te puseram a nascer nela, eras da vila, logo vilão, e ao vilão, cuidado, ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão...


E também nunca gostaste do alvoroço do povo, dos ajuntamentos do povo, dos foguetes, da multidão dos loucos, e das matilhas de mastins dos grandes e poderosos… Livra-te do louco e do alvoroço do povo. Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro.

Por que razão é que a tua terra teria que ser importante ? Nunca teve nenhum rei ou rainha, nem muito menos nenhum santo ou santinha.

82. Afinal, nunca gostaste de jogar à bola, nem de andar à bulha e à guerra, nem de apanhar as canas dos foguetes, nem de trepar às árvores e roubar os ovos dos ninhos nem sequer gostavas do nome da tua terra, nem muito menos de ver matar o porco.

Serás, mais tarde, guarda-redes, efémero, de equipas efémeras, nas férias grandes, já adolescente, na maré vazia, na praia do Caniçal, a baliza, feita de canas, desmedida, com o forte de Paimogo, o cabo Carvoeiro  e as Berlengas a esfumar-se, ao fundo, o farol, recortado, entre as brumas da memória, ó Pátria, sente­-se a voz dos teus egrégios avós… 



83. Podia ter sido um filme com final feliz, com lágrimas doces e quentes, como as da tua mãezinha, mas não foi, e nunca te perguntaste porquê nem saberias porventura responder a essa questão existencial.

Afinal, a ração não é para quem se talha, é para quem calha..., ouvirás no Norte, muito mais tarde, quando lá fores casar com uma rapariga nortenha...


Na praia, os padres jogavam à bola, de sotaina preta, e tu jogavas o pião, no adro da igreja, com ar de menino bem comportado, como o "Marcelino, pão e vinho" [1], o filme da tua infância, exibido no cinematógrafo no clube 14 de julho.


Domingo à tarde não havia ainda matinés, entrava-se no cinema, escondido, à noite, debaixo do capote do papá...(Mentes: nunca trataste o teu pai por papá, nem a tua mãe por mamã, que a rica teve um menino, e a pobre pariu um moço!, como se dizia no Alentejo).

Jogar o pião sozinho era triste, mas em grupo, em círculo, era arriscado por causa dos arrebenta-piões como o "Brutamontes". Quantas vezes choraste por ver o teu pião rachado ao meio? Pião das nicas, na escola, e até depois na guerra, foi o papel que te calhou no filme da tua vida.


84. Debulhava-se o trigo e o centeio no campo de jogos do Nadrupe, chamava-se assim a tua aldeia, a terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.

Bruegel, o Velho, podê-la-ia ter pintado, a tua terra, num qualquer domingo à tarde, numa tela com gente atarracada, e doente dos pulmões, a comer pevides e tremoços, no "Casamento de Camponeses", e a dançar o baile mandado do prior e do regedor, enquanto um cão uivava na vinha vindimada do Senhor.





85. Ao fundo, o ti’ Dolfo, de carroça puxada por um macho, indo à vila, atrapalhado, ou não ele fora homem, acossado pela hora do parto, pelas dores do parto da mana Maria, (oh!, raios te partam, priga!), chamar a parteira ou aparadeira, a dona Irene, a primeira mulher, de calças, que tu verás, mais tarde, de olhos esbugalhados de menino, a andar de bicicleta por ruas e ruelas, terraços e telhados, como nas telas do Chagall, guiando a cegonha que trazia os bebés de França.

86. Foi assim que tu foste nascer no Nadrupe, a terra da tua mãe, mas registado na terra paterna, a vila, segredo de Polichinelo que vais guardar dos teus colegas de escola. (Imagina só se o "Brutamontes", que era da vila, sabia que tu eras "saloio... do Nadrupe"!)


87. Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. 
Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem. 


88. As maçãs reinetas metidas na palha, os primeiros beijos roubados na palha do trigo, o pilau que o menino exibia para a criada, a tua tia a degolar as galinhas, (que a galinha perdês não a mates nem a dês!), e a tua mãe a esfolar os coelhos que seguravas pelas pernas, os olhos fechados para não veres o sangue a espirrar, o peixe a secar ao sol no telheiro, ou no estendal da roupa, a arraia, o chicharro, o carapau, e o gato a mijar, e as moscas-varejeiras disputando as vísceras do coelho, no tempo em que até os pobres tinham criados, burros, cães, gatos, perus e patos, e a lagosta era a sete e quinhentos o quilo 
[2], o tamboril, o peixe-diabo, se deitava fora, de tão feio que era, tal como a arraia, o safio, a moreira ou o cação. 

E o polvo, que era o petisco dos pobres. E os ovos crus, com um furinho em cada ponta, que te metiam pela goela abaixo, com dois brutos dedos a apertarem-te o nariz, quando estavas fraco dos pulmões. Os ovos crus e o óleo de fígado de bacalhau eram a medicina do povo.


89. E os vizinhos, valentaços, machos, arruaceiros, que puxavam das navalhas ou das sacholas ou das forquilhas ou das caçadeiras, quando o vinho e as paixões subiam à cabeça, e que se estripavam ou se matavam uns aos outros, por questões de honra, ciúme ou propriedade ?! E  os excessos das paixões da alma das mulheres ? Lembras-te daquela que matou o marido, cortou-o às postas e assou-o no forno a lenha como se fora bacalhau à lagareiro...


Essa violência entre vizinhos perturbava-te… Quem disse, afinal, que a tua aldeia era uma terra de brandos costumes ?


90. Dois tostões o par, o chicharro, no verão de todas as farturas, vinham em bandos, no inverno, os filhos dos pescadores de Peniche, das traineiras da sardinha, estender a mão à caridade dos camponeses, de barriga farta, no pós-guerra em que tu nasceste.


(Continua)

_________

[1] "Marcelino Pão e Vinho" : um filme espanhol de 1955,  realizado por Ladislao Vajda, baseado no livro homónimo ["Marcelino, pan y vino"] de José María Sánchez. Sinopse: "Marcelino é um órfão deixado à porta de um mosteiro e criado por doze frades. Certo dia, ele oferece, durante sua refeição, um pedaço de pão e um pouco de vinho a uma imagem de madeira de Jesus, crucificado, que aceita a oferta e passa a conversar com o menino. É o início de uma grande e bela amizade."

[2] 7$50, em finais dos anos 50, seria hoje o equivalente a 3 euros... Mas o salário, médio, nos campos, não ultrapassaria os 20 escudos (menos de 9 euros).

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Nota do editor:


(*) Últimos postes da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)