Lourinhã > 1947 > O "artista quando jovem"... ao colo de sua mãe, Maria da Graça,, e com o pai, Luís Henriques, ao lado.
Foto: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Fonte: Cortesia de jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.
Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)
51. Havia a feira grande de setembro, o carrossel e os carrinhos de choque, e, quando o rei fazia anos e dava bodo aos pobres, havia um tostão para as diversões e as farturas e o pirolito, os rebuçados e os cromos, mas o melhor era o pirolito[ 1], porque tinha um berlinde!...
E quem tinha um berlinde, enorme, de pirolito, era rei, com poder para abafar todos os berlindes mais pequenos. Claro, o "Brutamontes" tinha um saco deles!
52. Havia as labaredas do inferno, as fogueiras de são João, a queima das alcachofras, os refrões (, um tostãozinho, vizinho, vizinha, para os santos populares, primeiro o Santo António, depois o São João e por fim o São Pedro, para a nossa reinação!), as bichas de rabear, as bombas de carnaval, o calvário e as suas treze estações…
53. Ah!, havia ainda a banda filarmónica, e talvez já a fanfarra dos bombeiros, que eram soldadinhos de chumbo, havia a sineta, manual, dos carros dos bombeiros, e a sirene do novo quartel dos bombeiros que marcava as doze horas de domingo.
54. E o sino da igreja da tua aldeia que tocava a finados, mesmo no domingo à tarde, quando morria algum cristão, e que te enchia de melancolia, o tão-tão-tão do sino grande da tua aldeia… E o teu padrinho, o ti D’minguinhos, que te ensinava a distinguir os sinos de cada igreja e capela:
- Tim lên…deas, tim lên…deas….
- Mata-as, mata-as!
- Com quê, com quê ???...
- C’um pau, c’um pau!!!…
55. Havia santos, santinhos e santinhas para cada estação, o são João, no verão, no 24 de junho, o dia em que os camponeses da tua aldeia iam à praia molhar os tornozelos, os homens, de ceroulas arregaçadas, as calças de cotim, remendadas, os mais velhos de barrete preto e varapau, e elas, de saias compridas, de flanela, que não podiam mostrar a barriga da perna, peluda, os matulões pegando nos putos a berrar e a espernear e batizando-os na água salgada, do grande oceano, para que as carnes enrijassem, e os meninos medrassem, e pró ano lá voltassem, todos os anos até ao dia das sortes, e fossem grandes homens, fortes e valentes, marinheiros, pescadores, aventureiros, artilheiros, soldados façanhudos ou simples cavadores de enxada, como os seus pais e os seus avós o tinham sido, que os bisavós, trisavós e os tetravós, esses, já ninguém sabia quem eram, nem de onde teriam vindo, nem se chorava por eles, porque na época do trinta e um, poucos moços, velhos nenhum.
Lourinhã > Praia da Areia Branca > c. anos 30 do séc. XX > Os camponeses e os seus burros. Foto: origem desconhecida. Cópia pessoal de LG.
56. Ah, os camponeses e os seus burros que ainda não estavam em extinção, nem uns nem outros, iam aos magotes até à praia da Areia Branca, no feriado do são João, entre brincadeiras e dichotes, levavam a trouxa e a merenda, os tremoços e as pevides, as pêras, os pêros, as ameixas e os abrunhos, os melões e as melancias, o pão de trigo do moleiro cozido em forno a lenha, a broa de milho com sardinha, as azeitonas mal curadas, bebiam vinho pelo palhinhas, o garrafão de palha, comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho, misturado com a areia e o vento e as lágrimas de sal, em cima de mantas grossas, feitas de trapos, berrantes, multicolores.
Faziam cigarros de barbas de milho e usavam canivetes multiusos, de cabo de osso, que tanto serviam para limpar a cera dos ouvidos ou o lixo das unhas, ou os caules dos pés, como para cortar grandes nacos de pão, ou apanhar lapas, percebes e mexilhões nas rochas, sangravam de saúde os camponeses da tua aldeia, muita saúde, pouca vida, que Deus não dava tudo, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses. (Nunca lhes perguntaste se eram felizes, nem essa era pergunta de se lhes fazer!)
57. Na praia da Areia
O ti Silvano, do Nadrupe, Lourinhã, c. 1940 |
Foi num 24 de junho (ou terá sido no dia de são Bartolomeu, a 24 de agosto?) de mil novecentos cinquenta e tal, que passaste a ter medo do mar e prometeste a ti mesmo (, vã promessa de menino!) nunca vir a ser marinheiro, que na água de mares, não procures cabelos para te agarrares.
58. Misóginos os provérbios da tua terra que, quando o mar estava manso lhe chamava mar de mulher, para logo a seguir acrescentar que, da mulher e do mar, não há que fiar. Ou então: do mar se tira o sal e da mulher muito mal.
Era outro mistério, as mulheres, e só muito mais tarde é que irás perceber o que o teu pai queria dizer: A mulher só é nossa quando quer!...
59. Havia a festa do sã S'bastião, no inverno, no frio de rachar de janeiro, no tempo em que havia inverno e a água congelava nas bicas e bebedouros, duas ruas abaixo da tua, o pobre de Cristo, coitadinho do soldadinho, do tamanho de um menino de palmo e meio, com ar de quem, como tu, não tinha nenhum jeitinho para santo, nem muito menos para mártir, o corpo trespassado pelas setas dos maus!...
Sabias lá tu quem eram os maus desses tais romanos que nos haviam colonizado, a nós, bárbaros, celtiberos, o mesmo é dizer, que nos haviam dado a língua e o ser!… Ele havia coisas que a tua professora não te queria explicar, ou não sabia. E muito menos a tua catequista, a "Branca de Neve".
60. Havia os carros de pão, as promessas, os leilões, na festa do sã S’bastião, e havia as rezas, os exorcismos, os amuletos, as benzeduras da ti’ Ad’lina, as fisgas contra o mau olhado (, cruzes, canhoto, te arrenego, Satanás!), o sarampo, a varíola, a varicela, a cólera, a raiva, a peste, a lepra, a fome, a guerra, a tuberculose, o tifo, a rubéola, a febre amarela, a tosse convulsa, a difteria, as sezões, e a disenteria, e ainda estava para vir o ébola, a sida, o dengue, o vírus do Nilo e os quatro cavaleiros do apocalipse.
Ah!, o sarampo, e o sarampelho que sete vezes nos chegava ao pêlo, e que nos obrigava a ficar dias e dias na cama, com os vidros das janelas forrados a papel vermelho!
A ti’ Ad’lina, tua vizinha da rua do Clube, mulher anafada, barbada, de língua viperina, guardadora de segredos terapêuticos milenares, que iria depois p’ras Américas, com as filhas e a neta, que era uma pestinha. E por lá morreria, a ti’ Ad’lina…
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[1] Vd. blog Loba > 21 de maio de 2018 > Pirolito – a garrafa que marcou uma geração
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Vd. postes anteriores da série >
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
1 comentário:
Meu caro Luís
Estes teus textos inesperados (aqui tento a ironia!) têm sido surpreendentes na sua capacidade de resumir todo o vasto mundo estremenho dos anos cinquenta.
Passado assustadoramente próximo por continuar a ser lido e vivido nas entre-linhas do presente.
Nos meus verdes anos passei longas férias de Verão muito próximo da área geográfica referida tendo tido infindáveis oportunidades de “ser enfrentado “ por muitas das situações sociais por ti descritas.
Ser “enfrentado”...?!
Haverá todo um universo entre o...presencial...e o...vivido!
No entanto,algumas das situações presenciadas terão sido de tal modo importantes que acabaram por ajudar a formar o indivíduo que hoje sou.
Militar reformado.Criador de renas no Árctico Sueco.Mercenario jurídico do outro lado do atlântico.
Ou,simplesmente,especialista em daiquiris sob o sol floridiano?
Classificações muitíssimo limitavas para justificar esta inesperada soberba de “analista literário “ do cimo de tão altos cavalos.
De qualquer modo...gostei.
E,não menos......”Ah,os camponeses e os seus burros que ainda não estavam em extinção,nem uns nem outros...”
Um abraço do J.Belo
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