quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20059: Historiografia da presença portuguesa em África (172): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
António dos Anjos, já reformado e em Bragança, lançou-se à escrita das suas memórias referentes às décadas de 1910 e 1920, andou pela Guiné, não participou diretamente mas possui excelente informação sobre as operações de Teixeira Pinto, percorreu a colónia, registou os inúmeros atos de sublevação e de contestação da presença colonial. Tece uma homenagem aos bravos que tombaram, e foram muitos, e dá-nos conta das funções que desempenhou, das tremendas dificuldades que viveu.
É uma satisfação enorme ter encontrado este livrinho, espero que os senhores historiadores doravante lhe façam justiça, como merece, ilumina como se vivia na colónia, ninguém retratou com tanta fidelidade tais situações como ele.

Um abraço do
Mário




Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: 
A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2)

Beja Santos

Não são frequentes os testemunhos militares referentes à Guiné do tempo de Teixeira Pinto e período posterior. O documento que o 2.º Sargento António dos Anjos nos legou possui um cabedal de informações de enorme valor, porquanto: inventaria, mesmo com erros de datação, a infinidade de atos de insubmissão face à presença portuguesa e revela claramente a fragilidade dessa mesma presença; contesta aquilo que a doutrina oficial é insistente em dizer que a pacificação trouxera a paz interétnica, estava longe de ser verdade; e descreve igualmente as operações lideradas por Teixeira Pinto com relativa fidelidade. Deixa para o final da obra o testemunho da sua comissão, a exaltação da camaradagem e refere os sinais de progresso.
Convém, por estas razões, citar na íntegra parágrafos importantes da sua obra:
“Hoje, a Guiné está muito diferente da de outrora. Em 1920, foi construído na ilha de Bolama um campo de aviação de 96 hectares de superfície. Para fazer a planta, demarcar o terreno e vigiar a construção do campo, foi nomeada uma comissão composta de dois oficiais do Exército e um funcionário civil. Foi também encarregado um 2.º sargento e um pelotão de soldados indígenas da 1.ª Companhia, da missão de vigiarem e obrigarem a trabalhar os Mancanhas habitantes da ilha, tendo sido confiado ao sargento o bom andamento daquele trabalho, durante os três meses que o campo levou a construir. Foi um trabalho extenuante, porque o terreno era muito arborizado. Por fim, os indígenas já cansados com o extenuante trabalho procuravam desaparecer da ilha.

Durante este trabalho, deu-se um caso interessante. No campo havia um grande e velho poilão dentro de um pequeno bosque. À volta do tronco havia os Mancanhas agrupando grande quantidade de garrafas vazias, penas de galinha e ossos dependurados nas ramas dos arbustos e neste lugar havia uma pequena faixa de terreno varrido. Aquele bosque era para eles sagrado, pois diziam ser a sua igreja, onde estava o Irã. O pior foi para destruir aquela pequena floresta e derrubar o poilão, porque os indígenas receavam fazer tal trabalho! Tiveram os soldados que agarrar as enxadas, picaretas e machados para a derrubarem; e quando tinham este serviço quase a meio é que os Mancanhas se encheram de coragem e pediram as ferramentas aos soldados para eles concluírem.

Como estímulo deste grande trabalho e depois de concluído, o governador louvou os dois oficiais e o civil, cujos louvores foram publicados no Boletim Oficial da Colónia. Quem não foi louvado foi o sargento nem praça alguma, se bem que houvesse algumas que bem o mereceram, porque durante os três meses que durou o extenuante trabalho empregaram grande atividade para obrigarem os Mancanhas a trabalhar e tendo que fazer aquele trajeto a pé duas vezes por dia, isto é, ida para o trabalho de manhã e regresso do trabalho à noite, ficando o campo a três ou quatro quilómetros de distância de Bolama; enquanto que os oficiais e o civil quase que só de oito em oito dias é que apareciam no campo… E nunca foram a pé…”

E passa o seu testemunho, começa por nos dizer o que era fazer uma viagem de canoa:
“Fiz eu muitas dessas viagens, sendo uma delas numa pequena canoa de um comerciante Fula, da Ilha de Canhambaque a Bolama, em maio de 1919, e algumas de Nhacra a Bissau, e vice-versa, quando ali destacado em 1914-1915, e com os vizinhos Papéis ainda por bater! Às vezes navegava-se em certos rios perigosos, em que o gentio ainda rebelde tentava assaltar as embarcações. Notei ser verdade o assalto às lanchas, porque quando em Dezembro de 1912 retirava do posto militar de Simbor, com três soldados, embarcámos na lancha de uma casa comercial, a fim de seguir para Cacheu e, ao viajar no rio Farim tentaram os Oincas assaltar-nos a lancha, quando esta, de noite, estava amarrada ao tarrafo do lado do Oio, aguardando nova maré para poder continuar a viagem. Juntou-se grande número de Oincas à beira do rio, por detrás do tarrafo, fazendo ameaças e uma gritaria ensurdecedora! O que nos valeu foram as quatro espingardas com que estávamos armados…

A primeira estrada construída foi entre Bafatá e Bambadinca e a seguir a estrada de Bolama a Bolama Este. Acabada a Guiné de ser batida, fazíamos as viagens por terra a pé, pelos caminhos dos gentios aos ziguezagues, umas vezes debaixo de um sol sufocante, outras vezes debaixo de chuva batendo a palha molhada numa pessoa. Era assim que nesse tempo os militares faziam as viagens com a espingarda Kropatchec ao ombro e os sessenta cartuchos da ordem. Se nesse tempo houvesse estradas abertas, não nos custaria tanto vencer o trajecto.

Fazíamos o arrolamento do imposto de palhotas, sempre acompanhados de uma pequena força, pois uma pessoa sozinha não se podia meter nessas aventuras, porque nalgumas povoações dava-se a casualidade de haver traulitada. Vou relatar quais as casas que habitei nos diferentes postos militares por onde estive destacado. Passados três meses do meu desembarque, fui para o posto de Geba, sendo a casa uma palhota. Em 1912 fui destacado para Cacheu, onde encontrei boas casas no quartel. Passados três meses, fui destacado para Simbor, região de Farim, a casa do posto era uma palhota. Em Abril de 1913, fiz parte das operações militares realizadas na região dos Felupes, tendo a coluna pernoitado no posto militar do Arame umas sete ou oito noites, as casas do posto eram também palhotas. Ainda no mesmo ano fui destacado para Bissorã, habitei uma casa coberta de zinco. Este posto encontrava-se montado na margem direita do rio Armada, região do Oio. Esta região acabava de ser batida pela coluna Teixeira Pinto e na margem esquerda deste rio estava insubmisso o gentio denominado Balanta Bravo.

Em 1914, após a guerra dos Manjacos, fui destacado para o Churo, região dos Manjacos, habitei uma palhota…”

É minucioso na descrição por onde andou, em 1916 foi para a Ilha de Bissau, fez o arrolamento de palhotas em Safim, esteve no Biombo, em Canhambaque em 1918, os habitantes da ilha eram insubmissos.
Sempre que pode, sai-lhe um desabafo:  
“Durante o tempo que permaneci em efectivo serviço militar na colónia as marchas que fui obrigado a fazer foram sempre feitas a pé. Nem bicicleta havia ao tempo na colónia, quanto mais automóveis”.
Refere que passaram a haver mais campos lavrados produzindo mancarra, arroz, milho, feijão, mandioca, batata-doce, árvores de fruto, exalta o fértil solo da Guiné. Anota as melhorias introduzidas nas estruturas militares, a existência em muitos postos de hortas com couves e alfaces, tudo por iniciativa dos militares, o Governo não despendia qualquer verba. “Se queríamos ter capas ou toalhas de banho, toalhas das mãos, lençóis, cobertas de cama, etc., era tudo comprado à nossa custa…”.
E comenta abusos e a sua repressão:  
“Chegou-se a uma época em que alguns funcionários não querem andar sem ser de automóvel. Mas em 1931, o Major Zilhão veio para governador e com uma mão de ferro pôs termo a muitos abusos que havia com os carros do Estado…
Depois as famílias de alguns senhores administradores lamentavam-se do corte de regalias”.

E tece um louvor ao progresso, às novas estradas:
“Até parece um sonho, pensar-se que hoje uma pessoa sai de Bissau para qualquer dos pontos mais distantes do interior, como seja Contuboel, Sonaco ou Gabú, etc., e dali a três horas ou três horas e meia encontrar-se nessas paragens”.

Um documento único, um olhar muito especial sobre duas décadas da Guiné, uma peça incontornável para a historiografia.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20041: Historiografia da presença portuguesa em África (170): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Interessante.
Julgo que é referido ao ano de 1930, que devido a novas estradas faziam a viagem Bissau-Contuboel em três horas e meia.
Actualmente, consultando o site 'Distâncias entre Cidades' verifica-se que a viagem por estrada de Bissau a Contuboel são 189 km e demora-se 3 horas e 30 minutos.
Provavelmente a estrada daquele tempo teria um trajecto mais curto diferente do actual.

Valdemar Queiroz