Lourinhã > c. inícios da década de 50 do séc. XX > Praça da República: o velho coreto no largo (empedrado) do convento. Este foi um dos lugares (mágicos) das brincadeiras da infância do poeta: era aqui, neste empedrado que, na hora do recreio escolar, os miúdos da Escola Conde Ferreira (, à esquerda, não visível na foto,) jogavam ao "hoquei em patins"... sem patins e com "sticks" (ou estiques) de pau de tramagueira...
Era também aqui, neste coreto, que se ouvia os concertos da Banda da Lourinhã, fundada em 2 de janeiro de 1878 (e, a partir dos anos 30, Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã)... Infelizmente, o coreto foi demolido pelo camartelo camarário, antes do 25 de Abril, ao tempo em que era presidente da edilidade um arquiteto estadonovista e iconoclasta, lourinhanense, Lucínio Guia da Cruz (1914.1999), que fizera carreira no gabinete de urbanização colonial, com sede em Lisboa, criado em 1944 por Marcelo Caetano, ministro das colónias...
Postal ilustrado. Edição do GEAL - Museu da Lourinhã. [Reproduzido com a devida vénia].
Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
À memória de Álvaro Andrade de Carvalho, médico psiquiatra (1948-2018), lourinhanense, que faria hoje 71 anos, se fosse vivo. Meu querido amigo e condiscípulo de escola.
(Continuação)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)
21. Havia a bola, já o disseste, que era o alfa e o ómega da vida, o campo de jogos, pelado, por detrás do convento, do antigo convento...
Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
À memória de Álvaro Andrade de Carvalho, médico psiquiatra (1948-2018), lourinhanense, que faria hoje 71 anos, se fosse vivo. Meu querido amigo e condiscípulo de escola.
(Continuação)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)
21. Havia a bola, já o disseste, que era o alfa e o ómega da vida, o campo de jogos, pelado, por detrás do convento, do antigo convento...
Havia o hóquei em patins, as emoções dos relatos do Campeonato Europeu e Mundial de Hóquei em Patins, do torneio da páscoa em Montreux [1], e pouco mais... mas nós éramos os campeões do mundo, e, atrás de nós, vinham os eternos rivais, os espanhóis.
22. Não, tu nunca tinhas visto um espanhol em carne e osso. Ou melhor: havia um espanhol na tua aldeia, galego, amolador de facas e tesouras, e consertador de chapéus de chuva, e que usava boina basca, preta, fugido, diziam, do terror de uma guerra civil, coisa de que tu nunca ouviras falar nem muito menos sabias o que era.
"Um coisa horrível, meu filho, de que Deus nos livre, da fome, da peste e da guerra, libera nos, Domine!".
Tinha uma espécie de gaita de beiços com que se fazia anunciar, pelas ruas fora, com a sua estranha bicicleta de uma roda só. Era espanhol ou galego, sabias lá tu onde era a terra dele. Não tinha nome, só alcunha. Era o “Espanhol”.
23. Não, não havia patins, nem hóquei, nem ringue, ouvias o relato do hóquei em patins, debaixo dos lençóis, numa galera inventada pelo teu amigo e vizinho Zé que há de emigrar para as Américas, e registar patentes das suas engenhocas de apagar incêndios em poços de petróleo.
Sim, havia os tios e os primos, os amigos e os vizinhos que emigravam para as Américas, com os irmãos mais velhos e os pais, e que não voltavam mais... até se varrerem completamente da lembrança os seus nomes e as suas caras, aos meninos e aos pais dos meninos que cá ficavam.
Fazia-te confusão por que é que eles tinham que se ir embora. Para longe, para tão longe, muito longe… Mais tarde descobrirás que as Américas eram o Novo Mundo, o Eldorado, o Paraíso Terrestre…
24. Jogava-se à bola no Portugal dos pequeninos, na era dos cinco violinos [2], jogava-se à bola, os de chanatas e os de pé descalço, contra os de botas cardadas, no largo (empedrado) do coreto ou no largo do convento, depois da missa matinal, ao domingo, e, antes do almoço de peixe seco, salgado, e com cebolas e batatas com pele, que era a comida dos pobres no inverno da tua aldeia, jogavam à bola os da aldeia de baixo contra os de cima, os da rua do Castelo contra os da rua do Clube mais os do largo das Aravessas, e os da travessa do Quebra-costas, os do Casal Velho contra os do Casal Novo, os das aldeias contra os da vila, e que eram muito mais matulões do que tu, os da Terra contra os da Lua, os Travassos contra os Jesus Correia, os Peyroteos contra os Matateus, o Benfica contra o Sporting, os assimilados contra os pretos lá nas lonjuras do Portugal de além-mar em África.
25. Não, não havia mais, não havia mais nada na tua terra liliputiana, criada por Deus, e à beira-mar plantada, e que por isso era o centro do mundo mas onde o mundo era a preto e branco, às vezes mesmo a preto e negro nas noites de inverno de breu, e dividia-se em duas metades, em dois campos, em duas balizas, tão simples como o campo de futebol: havia os bons e os maus, como o "Brutamontes", os fiéis e os infiéis, os santos e os pecadores, as presas e os predadores, os pequenos e os grandes, nós e os outros, os portugueses e os da Espanha que ficava por detrás da serra azul de Montejunto, ali tão longe e tão perto.
Havia os ricos e os pobres. Os pobres eram muitos, e magros, os ricos eram poucos, e gordos.
26. Podias lá tu imaginar o que ficava lá para trás de uma serra, dos cabeços e dos moinhos?! E muito menos que por detrás de uma serra, havia sempre outra serra, colina ou cabeço, e que era redonda a terra e profundo o mar por onde se chegava aos Cabos da Boa Esperança!
O mais longe a que podias chegar, na tua imaginação febril de miúdo, era a lua, e as suas manchas escuras, que não eram mais do que a silhueta de um pobre diabo com um molho de lenha às costas, condenado sabe-se lá por quê e por quem!?...
De certo, por Deus, por trabalhar ao domingo e não respeitar o dia do Senhor, dizia a tua catequista, a "Branca de Neve", sempre tão gentil, e tão casta, e tão linda…
27. Outros diziam, os mais antigos, que era a alma do ti Zé Mendes, morto numa outra vida, e agora ferreiro e segeiro da tua rua, a rua dos Valados ou rua do Castelo, que, qual Hércules ou Vulcano, de tronco nu, passava o dia e a noite a dar à forja e a malhar o ferro em brasa…
E rezava uma estranha ladainha enquanto malhava o ferro em brasa, uma mistura de padres-nossos, avé-marias e salvé-rainhas…Para os putos da tua rua, a sua oficina era a boca do inferno… Costumava dizer-nos entre dentes: "Quando fores bigorna, sofre; e quando fores malho, malha"...
28. Jogava-se hóquei com um pedra esquinada e um estique de pau de tramagueira e botas de couro cardadas, e alguns de pé descalço, no largo do coreto da tua aldeia.
E a senhora professora, quando saía, punha-te a vigiar e a punir a turma dos insurretos, essa chusma de insetos, de repetentes, de analfabetos, de quem a Nação nunca poderia vir a ter orgulho.
Sabias lá tu, meu menino, o que era a Nação e orgulho da Nação, que era infinitamente maior que a mesquinhez das gentes atarracadas da tua aldeia!... A Nação só podia estar em Lisboa, capital do reino e do império!…
Em frente ao quadro preto, no estrado de madeira, com um pau de giz branco na mão, qual aprendiz de santo inquisidor,
e o ponteiro na outra, qual garboso lanceiro de Aljubarrota, fardado, de bibe azul às riscas, aprumado, ajuramentado, a apontar os nomes dos meninos mal comportados! …
Hoje terias, por certo, vergonha desse papel de sabujo e delator que te obrigavam a desempenhar em pequenino, mesmo nunca tendo pertencido à "Bufa", a Mocidade Portuguesa!
29. E a pedra, o calhau, o paralelepípedo de granito, arrancado da calçada, e que te vem de fora, atravessando a janela e a sala, arremessada pelo matulão do "Brutamontes", podia ter-te morto, o safado, o moinante, o ressabiado, o desgraçado, o jacobino, o do reviralho, o herege, o excomungado, que odiava a escola, a igreja, a civilização, a ordem e o progresso, a farda, a bandeira das cinco quinas, a menina dos cinco olhos, a férrea disciplina, a patriótica delação, a lei e a grei, a sanha de Deus e a punição de César!...
O "Brutamontes", filho de gentes reles, pai alcoólico, mulher da mau porte, consolava-te a tua boa mãe, afagando-te o rosto coberto de lágrimas.
Havia muitos paralelepípedos de granito e basalto, andavam nessa altura a calcetar as ruas da tua aldeia. Vinham de longe, os calceteiros. E alguns gozavam com os putos que, de volta a casa, se juntavam a ver a "obra", na rua do cemitério, ou quando passava algum funeral: "Meninos, erros de médico e calceteiro, a terra os cobre!"
30. O condenado ao fogo eterno, o "Brutamontes", esse, só queria a derrota da equipa das quinas e do projeto de Educação Nacional, com os meninos, tão lindos, que lá iam cantando e rindo, como no teu Livro de Leitura da Terceira Classe, depois de bebido o leite em pó e comido o grosso naco de casqueiro com queijo fatiado, das sobras que os primos ricos da América, através da Caritas Católica, te mandavam nos anos do pós-guerra, arroz, queijo, farinha de trigo, leite em pó, roupa usada.
Podias lá tu, meu petiz, saberes da nossa pobreza envergonhada, do teu Portugal pobrete mas alegrete ?!…
A "Branca de Neve" punha-te a rezar à saúde e às "propriedades" dos meninos brancos americanos e das suas mamãs louras, de olhos azuis, dos filmes de cobóis.
Não te lembras de rezar aos pretinhos de África, coitadinhos, muito menos aos de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique, que eram tão portugueses como tu, mas que iriam para o inferno se os missionários de barbas brancas não fossem a tempo de os catequisar e batizar!
(Continua)
___________
[1] Montreux, cidade suiça, onde ainda hoje se realiza um dos mais antigos (desde os anos 20 do séx. XX) e prestigiados torneios de hóquei em patins.
[2] Os Cinco Violinos é uma designação jornalística, atribuída ao grupo de cinco jogadores da linha avançada da equipa principal de futebol do Sporting Clube de Portugal que, na segunda metade dos anos 40 do séc. XX, em três épocas, ganharam tudo ou quase tudo que havia para ganhar… A sua fama perdurou pela década seguinte… e entrou no imaginário dos putos da escola...
____________
Nota do editor:
(*) Postes anteriores da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
22. Não, tu nunca tinhas visto um espanhol em carne e osso. Ou melhor: havia um espanhol na tua aldeia, galego, amolador de facas e tesouras, e consertador de chapéus de chuva, e que usava boina basca, preta, fugido, diziam, do terror de uma guerra civil, coisa de que tu nunca ouviras falar nem muito menos sabias o que era.
"Um coisa horrível, meu filho, de que Deus nos livre, da fome, da peste e da guerra, libera nos, Domine!".
Tinha uma espécie de gaita de beiços com que se fazia anunciar, pelas ruas fora, com a sua estranha bicicleta de uma roda só. Era espanhol ou galego, sabias lá tu onde era a terra dele. Não tinha nome, só alcunha. Era o “Espanhol”.
23. Não, não havia patins, nem hóquei, nem ringue, ouvias o relato do hóquei em patins, debaixo dos lençóis, numa galera inventada pelo teu amigo e vizinho Zé que há de emigrar para as Américas, e registar patentes das suas engenhocas de apagar incêndios em poços de petróleo.
Sim, havia os tios e os primos, os amigos e os vizinhos que emigravam para as Américas, com os irmãos mais velhos e os pais, e que não voltavam mais... até se varrerem completamente da lembrança os seus nomes e as suas caras, aos meninos e aos pais dos meninos que cá ficavam.
Fazia-te confusão por que é que eles tinham que se ir embora. Para longe, para tão longe, muito longe… Mais tarde descobrirás que as Américas eram o Novo Mundo, o Eldorado, o Paraíso Terrestre…
Lourinhã, finais dos anos 40, princípio de 50 do séc. XX. O "campo de futebol" do largo do convento... Era de pequeninbo que se torcia o pepino... Foto: Luís Graça (2005) |
24. Jogava-se à bola no Portugal dos pequeninos, na era dos cinco violinos [2], jogava-se à bola, os de chanatas e os de pé descalço, contra os de botas cardadas, no largo (empedrado) do coreto ou no largo do convento, depois da missa matinal, ao domingo, e, antes do almoço de peixe seco, salgado, e com cebolas e batatas com pele, que era a comida dos pobres no inverno da tua aldeia, jogavam à bola os da aldeia de baixo contra os de cima, os da rua do Castelo contra os da rua do Clube mais os do largo das Aravessas, e os da travessa do Quebra-costas, os do Casal Velho contra os do Casal Novo, os das aldeias contra os da vila, e que eram muito mais matulões do que tu, os da Terra contra os da Lua, os Travassos contra os Jesus Correia, os Peyroteos contra os Matateus, o Benfica contra o Sporting, os assimilados contra os pretos lá nas lonjuras do Portugal de além-mar em África.
25. Não, não havia mais, não havia mais nada na tua terra liliputiana, criada por Deus, e à beira-mar plantada, e que por isso era o centro do mundo mas onde o mundo era a preto e branco, às vezes mesmo a preto e negro nas noites de inverno de breu, e dividia-se em duas metades, em dois campos, em duas balizas, tão simples como o campo de futebol: havia os bons e os maus, como o "Brutamontes", os fiéis e os infiéis, os santos e os pecadores, as presas e os predadores, os pequenos e os grandes, nós e os outros, os portugueses e os da Espanha que ficava por detrás da serra azul de Montejunto, ali tão longe e tão perto.
Havia os ricos e os pobres. Os pobres eram muitos, e magros, os ricos eram poucos, e gordos.
26. Podias lá tu imaginar o que ficava lá para trás de uma serra, dos cabeços e dos moinhos?! E muito menos que por detrás de uma serra, havia sempre outra serra, colina ou cabeço, e que era redonda a terra e profundo o mar por onde se chegava aos Cabos da Boa Esperança!
O mais longe a que podias chegar, na tua imaginação febril de miúdo, era a lua, e as suas manchas escuras, que não eram mais do que a silhueta de um pobre diabo com um molho de lenha às costas, condenado sabe-se lá por quê e por quem!?...
De certo, por Deus, por trabalhar ao domingo e não respeitar o dia do Senhor, dizia a tua catequista, a "Branca de Neve", sempre tão gentil, e tão casta, e tão linda…
27. Outros diziam, os mais antigos, que era a alma do ti Zé Mendes, morto numa outra vida, e agora ferreiro e segeiro da tua rua, a rua dos Valados ou rua do Castelo, que, qual Hércules ou Vulcano, de tronco nu, passava o dia e a noite a dar à forja e a malhar o ferro em brasa…
E rezava uma estranha ladainha enquanto malhava o ferro em brasa, uma mistura de padres-nossos, avé-marias e salvé-rainhas…Para os putos da tua rua, a sua oficina era a boca do inferno… Costumava dizer-nos entre dentes: "Quando fores bigorna, sofre; e quando fores malho, malha"...
28. Jogava-se hóquei com um pedra esquinada e um estique de pau de tramagueira e botas de couro cardadas, e alguns de pé descalço, no largo do coreto da tua aldeia.
E a senhora professora, quando saía, punha-te a vigiar e a punir a turma dos insurretos, essa chusma de insetos, de repetentes, de analfabetos, de quem a Nação nunca poderia vir a ter orgulho.
Sabias lá tu, meu menino, o que era a Nação e orgulho da Nação, que era infinitamente maior que a mesquinhez das gentes atarracadas da tua aldeia!... A Nação só podia estar em Lisboa, capital do reino e do império!…
Em frente ao quadro preto, no estrado de madeira, com um pau de giz branco na mão, qual aprendiz de santo inquisidor,
e o ponteiro na outra, qual garboso lanceiro de Aljubarrota, fardado, de bibe azul às riscas, aprumado, ajuramentado, a apontar os nomes dos meninos mal comportados! …
Hoje terias, por certo, vergonha desse papel de sabujo e delator que te obrigavam a desempenhar em pequenino, mesmo nunca tendo pertencido à "Bufa", a Mocidade Portuguesa!
29. E a pedra, o calhau, o paralelepípedo de granito, arrancado da calçada, e que te vem de fora, atravessando a janela e a sala, arremessada pelo matulão do "Brutamontes", podia ter-te morto, o safado, o moinante, o ressabiado, o desgraçado, o jacobino, o do reviralho, o herege, o excomungado, que odiava a escola, a igreja, a civilização, a ordem e o progresso, a farda, a bandeira das cinco quinas, a menina dos cinco olhos, a férrea disciplina, a patriótica delação, a lei e a grei, a sanha de Deus e a punição de César!...
O "Brutamontes", filho de gentes reles, pai alcoólico, mulher da mau porte, consolava-te a tua boa mãe, afagando-te o rosto coberto de lágrimas.
Havia muitos paralelepípedos de granito e basalto, andavam nessa altura a calcetar as ruas da tua aldeia. Vinham de longe, os calceteiros. E alguns gozavam com os putos que, de volta a casa, se juntavam a ver a "obra", na rua do cemitério, ou quando passava algum funeral: "Meninos, erros de médico e calceteiro, a terra os cobre!"
30. O condenado ao fogo eterno, o "Brutamontes", esse, só queria a derrota da equipa das quinas e do projeto de Educação Nacional, com os meninos, tão lindos, que lá iam cantando e rindo, como no teu Livro de Leitura da Terceira Classe, depois de bebido o leite em pó e comido o grosso naco de casqueiro com queijo fatiado, das sobras que os primos ricos da América, através da Caritas Católica, te mandavam nos anos do pós-guerra, arroz, queijo, farinha de trigo, leite em pó, roupa usada.
Podias lá tu, meu petiz, saberes da nossa pobreza envergonhada, do teu Portugal pobrete mas alegrete ?!…
A "Branca de Neve" punha-te a rezar à saúde e às "propriedades" dos meninos brancos americanos e das suas mamãs louras, de olhos azuis, dos filmes de cobóis.
Não te lembras de rezar aos pretinhos de África, coitadinhos, muito menos aos de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique, que eram tão portugueses como tu, mas que iriam para o inferno se os missionários de barbas brancas não fossem a tempo de os catequisar e batizar!
(Continua)
___________
[1] Montreux, cidade suiça, onde ainda hoje se realiza um dos mais antigos (desde os anos 20 do séx. XX) e prestigiados torneios de hóquei em patins.
[2] Os Cinco Violinos é uma designação jornalística, atribuída ao grupo de cinco jogadores da linha avançada da equipa principal de futebol do Sporting Clube de Portugal que, na segunda metade dos anos 40 do séc. XX, em três épocas, ganharam tudo ou quase tudo que havia para ganhar… A sua fama perdurou pela década seguinte… e entrou no imaginário dos putos da escola...
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Nota do editor:
(*) Postes anteriores da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
5 comentários:
Lucínio Guia da Cruz (1914 - 1999)
Formado em Arquitetura pela Escola de Belas Artes do Porto (1941). Em 1942, começou a trabalhar no Gabinete do Plano de Obras da Praça do Império, tendo, na sequência desta colaboração, participado na Comissão Administrativa do Plano de Obras da Cidade Universitária de Coimbra.
Trabalhou no Gabinete de Urbanização Colonial, no âmbito do qual desenvolveu os projetos de vários edifícios públicos na Guiné-Bissau, tais como o Mercado Central, Estação Meteorológica e a Sede dos Correios na cidade de Bissau.
http://2015.anozero-bienaldecoimbra.pt/authors/lucinio-guia-da-cruz/
Ora bem, chegámos à Parte III, ou seja dos "pictogramas" 21 a 30.
Falas dos entretimentos, da bola, dos jogos e jogatanas de bola, entre os diversos espaços, e também dos jogos de hóquei....
Sobre os jogos da bola relembro os tempos da Escola Técnica em que tentávamos sair mais cedo das infindáveis aulas de Oficinas (de serralharia e de electricidade), tentando convencer o Mestre Vieitas a autorizar para ir-mos jogar à bola. Normalmente sem sucesso, mas de vez em quando ele acedia e dizia "vá, vão lá, vão lá para as "Manuelas" - as raparigas, para ele, eram todas "Manuelas"...
Nunca tive grande jeito para a bola, mas quanto ao hóquei isso é outra história.
Fui, como não podia deixar de ser e como tantos outros, fortemente influenciado pelas conquistas que Portugal ia tendo nos Torneios de Montreux e nos Europeus e até Mundiais.
Acresce ainda que em Vila Franca havia um Pavilhão onde assistia a grandes jogos com a equipa do Hóquei Club de Vila Franca e me influenciaram ainda mais. Essa agremiação foi, com mais outras três (o Clube Operário Vilafranquense, o "Águia" (era um clube sucursal do Belenenses e particularmente popular entre os varinos) e o Clube de Campismo "Os Sentinelas", que se fundiram e deram origem à UDV - União Desportiva Vilafranquense de cuja génese fui contemporâneo.
Ora acontece que o tal Pavilhão, que pertencia ao CASI (Centro de Apoio Social Infantil) uma organização da Igreja Paroquial, foi demolido e a UDV arranjou um ringue junto aos esteiros do rio Tejo e onde por vezes se gritava contra o "senhor árbitro", quando apitava erradamente (sei que isto é subjectivo mas era o nosso entendimento) "vais p´ró lodo"!.
A UDV em determinada época tinha uma excelente equipa de hóquei que "batia o pé" (seria melhor dizer o "pau" ou o stick) às grandes equipas da zona de Lisboa, o Benfica, o CACO, o Sporting, o Paço de Arcos, etc. Tinha um excelente guarda redes, que era o meu ídolo, um nosso "camarada da Guiné", o Álvaro Guerra, ferido lá naquelas terras quentes, num pé ou perna, que lhe impossibilitaram de prosseguir com a actividade desportiva aquando do seu regresso. Tinha mais alguns bons executantes e um virtuoso, o Doninha, que nos empolgava como assistentes e apoiantes.
Por via disso também joguei hóquei em patins.
Nada de grandes feitos, era "defesa", mas tinha uma coisa interessante: um "stick" a sério, oferta de Jesus Correia, que era primo do meu vizinho do 2º andar (que também tinha um) e resolveu contemplar os jovens com essas prendas.
Como já deve ultrapassado o limite de caracteres paro aqui e vai o resto a seguir.
Hélder Sousa
.... continuação....
Há dois outros acontecimentos que relembro e que se passaram nessa fase, anterior e durante a Escola Primária.
A inauguração da Ponte Marechal Carmona (mais conhecida como "Ponte de Vila Franca") em 30 de Dezembro de 1951 (já tinha feito 3 anos e assisti, ao colo do meu Pai, à inauguração com a passagem do carro com Oliveira Salazar) e a visita da jovem Isabel II de Inglaterra em Fevereiro de 1957, então já com 8 anos e na 2ª Classe. Lembro-me de estar, como todos os outros, no passeio da rua a seguir à Câmara com uma bandeirinha na mão, com a bandeira de Portugal numa face e a da Grâ-Bretanha na outra, a acenar à passagem de tão importante personagem.
Outros aspectos desta série dos teus pictogramas também são interessantes para o "retrato robot" de um certo "mundo rural". Reconheço algumas coisas mas outras não "colam" com a vivência que tive.
É particularmente interessante a conclusão do pictograma 25. "Havia os ricos e os pobres. Os pobres eram muitos, e magros, os ricos eram poucos, e gordos". Não faltará quem veja aqui os "clichés do costume"... do terreno onde medrou o neo-realismo. Pois sim, será como quiserem, mas pode-se dizer como "o outro"... "contudo ela move-se"!
Uma última observação, por agora.
Lá para as "minhas terras" a MP, Mocidade Portuguesa, era mais conhecida como o "piolho verde". A designação de "Bufa" era mais dedicada aos "bufos", aos miseráveis, cobardes, criminosos, vendidos, que se dedicavam a apontar, a "bufar" aos seus "superiores", aos seus "controladores", os nomes e as supostas e/ou alegadas actividades (e tantas vezes as "opiniões") das suas vítimas. Quantas vezes com delações infundadas mas para "fazer currículo".
Hélder Sousa
Obrigado, Hélder, é o nosso direito às memórias de infância... Por enquanto ainda não pagam imposto... E tal, como as memórias da guerra, não têm que ser "politicamente corretas"... LG
Muito bem amigo Hélder, Vale tem mesmo Pinta. Um abraço.
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