Mostrar mensagens com a etiqueta Alvaro Andrade de Carvalho. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alvaro Andrade de Carvalho. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)


Lourinhã >  c. inícios da década de 50 do séc. XX > Praça da República: o velho coreto no largo (empedrado) do convento. Este foi um dos lugares (mágicos) das brincadeiras da infância do poeta: era aqui, neste empedrado que, na hora do recreio escolar, os miúdos da Escola Conde Ferreira (, à esquerda, não visível na foto,) jogavam ao "hoquei em patins"... sem patins e com "sticks" (ou estiques) de pau de tramagueira... 

Era também aqui, neste coreto,  que se ouvia os concertos da Banda da Lourinhã, fundada em 2 de janeiro de 1878 (e, a partir dos anos 30, Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã)... Infelizmente, o coreto foi demolido pelo camartelo camarário, antes do 25 de Abril, ao tempo em que era presidente da edilidade um arquiteto estadonovista e iconoclasta, lourinhanense,  Lucínio Guia da Cruz (1914.1999), que fizera carreira no gabinete de urbanização colonial, com sede em Lisboa, criado em 1944 por Marcelo Caetano, ministro das colónias... 

Postal ilustrado. Edição do GEAL - Museu da Lourinhã. [Reproduzido com a devida vénia]. 



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito): 

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


À memória de Álvaro Andrade de Carvalho, médico psiquiatra (1948-2018), lourinhanense, que faria hoje 71 anos, se fosse vivo. Meu querido amigo e condiscípulo de escola.


(Continuação)



[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


21. Havia a bola, já o disseste, que era o alfa e o ómega da vida, o campo de jogos, pelado, por detrás do convento, do antigo convento...

Havia o hóquei em patins, as emoções dos relatos do Campeonato Europeu e Mundial de Hóquei em Patins, do torneio da páscoa em Montreux [1], e pouco mais... mas nós éramos os campeões do mundo, e, atrás de nós, vinham os eternos rivais, os espanhóis. 



22. Não, tu nunca tinhas visto um espanhol em carne e osso. Ou melhor: havia um espanhol na tua aldeia, galego, amolador de facas e tesouras, e consertador de chapéus de chuva, e que usava boina basca, preta, fugido, diziam, do terror de uma guerra civil, coisa de que tu nunca ouviras falar nem muito menos sabias o que era. 


"Um coisa horrível, meu filho, de que Deus nos livre, da fome, da peste e da guerra, libera nos, Domine!". 

Tinha uma espécie de gaita de beiços com que se fazia anunciar, pelas ruas fora, com a sua estranha bicicleta de uma roda só. Era espanhol ou galego, sabias lá tu onde era a terra dele. Não tinha nome, só alcunha. Era o “Espanhol”. 



23. Não, não havia patins, nem hóquei, nem ringue, ouvias o relato do hóquei em patins, debaixo dos lençóis, numa galera inventada pelo teu amigo e vizinho Zé que há de emigrar para as Américas, e registar patentes das suas engenhocas de apagar incêndios em poços de petróleo.

Sim, havia os tios e os primos, os amigos e os vizinhos que emigravam para as Américas, com os irmãos mais velhos e os pais, e que não voltavam mais... até se varrerem completamente da lembrança os seus nomes e as suas caras, aos meninos e aos pais dos meninos que cá ficavam. 


Fazia-te confusão por que é que eles tinham que se ir embora. Para longe, para tão longe, muito longe… Mais tarde descobrirás que as Américas eram o Novo Mundo, o Eldorado, o Paraíso Terrestre…


Lourinhã, finais dos anos 40, princípio de 50 do séc. XX.
O "campo de futebol" do largo do convento... Era de pequeninbo
 que se torcia o pepino... Foto: Luís Graça (2005)

24. Jogava-se à bola no Portugal dos pequeninos, na era dos cinco violinos 
[2], jogava-se à bola, os de chanatas e os de pé descalço, contra os de botas cardadas, no largo (empedrado) do coreto ou no largo do convento, depois da missa matinal, ao domingo, e, antes do almoço de peixe seco, salgado, e com cebolas e batatas com pele, que era a comida dos pobres no inverno da tua aldeia, jogavam à bola os da aldeia de baixo contra os de cima, os da rua do Castelo contra os da rua do Clube mais os do largo das Aravessas, e os da travessa do Quebra-costas, os do Casal Velho contra os do Casal Novo, os das aldeias contra os da vila, e que eram muito mais matulões do que tu, os da Terra contra os da Lua, os Travassos contra os Jesus Correia, os Peyroteos contra os Matateus, o Benfica contra o Sporting, os assimilados contra os pretos lá nas lonjuras do Portugal de além-mar em África.


25. Não, não havia mais, não havia mais nada na tua terra liliputiana, criada por Deus, e à beira-mar plantada, e que por isso era o centro do mundo mas onde o mundo era a preto e branco, às vezes mesmo a preto e negro nas noites de inverno de breu, e dividia-se em duas metades, em dois campos, em duas balizas, tão simples como o campo de futebol: havia os bons e os maus, como o "Brutamontes", os fiéis e os infiéis, os santos e os pecadores, as presas e os predadores, os pequenos e os grandes, nós e os outros, os portugueses e os da Espanha que ficava por detrás da serra azul de Montejunto, ali tão longe e tão perto. 


Havia os ricos e os pobres. Os pobres eram muitos, e magros, os ricos eram poucos, e gordos.


26. Podias lá tu imaginar o que ficava lá para trás de uma serra, dos cabeços e dos moinhos?! E muito menos que por detrás de uma serra, havia sempre outra serra, colina ou cabeço, e que era redonda a terra e profundo o mar por onde se chegava aos Cabos da Boa Esperança!

O mais longe a que podias chegar, na tua imaginação febril de miúdo, era a lua, e as suas manchas escuras, que não eram mais do que a silhueta de um pobre diabo com um molho de lenha às costas, condenado sabe-se lá por quê e por quem!?... 


De certo, por Deus, por trabalhar ao domingo e não respeitar o dia do Senhor, dizia a tua catequista, a "Branca de Neve", sempre tão gentil, e tão casta, e tão linda…



27. Outros diziam, os mais antigos, que era a alma do ti Zé Mendes, morto numa outra vida, e agora ferreiro e segeiro da tua rua, a rua dos Valados ou rua do Castelo, que, qual Hércules ou Vulcano, de tronco nu, passava o dia e a noite a dar à forja e a malhar o ferro em brasa… 


E rezava uma estranha ladainha enquanto malhava o ferro em brasa, uma mistura de padres-nossos, avé-marias e salvé-rainhas…Para os putos da tua rua, a sua oficina era a boca do inferno… Costumava dizer-nos entre dentes: "Quando fores bigorna, sofre; e quando fores malho, malha"...


28. Jogava-se hóquei com um pedra esquinada e um estique de pau de tramagueira e botas de couro cardadas, e alguns de pé descalço, no largo do coreto da tua aldeia.

E a senhora professora, quando saía, punha-te a vigiar e a punir a turma dos insurretos, essa chusma de insetos, de repetentes, de analfabetos, de quem a Nação nunca poderia vir a ter orgulho. 


Sabias lá tu, meu menino, o que era a Nação e orgulho da Nação, que era infinitamente maior que a mesquinhez das gentes atarracadas da tua aldeia!... A Nação só podia estar em Lisboa, capital do reino e do império!…

Em frente ao quadro preto, no estrado de madeira, com um pau de giz branco na mão, qual aprendiz de santo inquisidor,
e o ponteiro na outra, qual garboso lanceiro de Aljubarrota, fardado, de bibe azul às riscas, aprumado, ajuramentado, a apontar os nomes dos meninos mal comportados! …


Hoje terias, por certo, vergonha desse papel de sabujo e delator que te obrigavam a desempenhar em pequenino, mesmo nunca tendo pertencido à "Bufa", a Mocidade Portuguesa! 



29. E a pedra, o calhau, o paralelepípedo de granito, arrancado da calçada, e que te vem de fora, atravessando a janela e a sala, arremessada pelo matulão do "Brutamontes", podia ter-te morto, o safado, o moinante, o ressabiado, o desgraçado, o jacobino, o do reviralho, o herege, o excomungado, que odiava a escola, a igreja, a civilização, a ordem e o progresso, a farda, a bandeira das cinco quinas, a menina dos cinco olhos, a férrea disciplina, a patriótica delação, a lei e a grei, a sanha de Deus e a punição de César!...


O "Brutamontes", filho de gentes reles, pai alcoólico, mulher da mau porte, consolava-te a tua boa mãe, afagando-te o rosto coberto de lágrimas.

Havia muitos paralelepípedos de granito e basalto, andavam nessa altura a calcetar as ruas da tua aldeia. Vinham de longe, os calceteiros. E alguns gozavam com os putos  que, de volta a casa, se juntavam a ver a "obra", na rua do cemitério, ou quando passava algum funeral
: "Meninos, erros de médico e calceteiro, a terra os cobre!"



30. O condenado ao fogo eterno, o "Brutamontes", esse, só queria a derrota da equipa das quinas e do projeto de Educação Nacional, com os meninos, tão lindos, que lá iam cantando e rindo, como no teu Livro de Leitura da Terceira Classe, depois de bebido o leite em pó e comido o grosso naco de casqueiro com queijo fatiado, das sobras que os primos ricos da América, através da Caritas Católica, te mandavam nos anos do pós-guerra, arroz, queijo, farinha de trigo, leite em pó, roupa usada.

Podias lá tu, meu petiz, saberes da nossa pobreza envergonhada, do teu Portugal pobrete mas alegrete ?!…


A "Branca de Neve" punha-te a rezar à saúde e às "propriedades" dos meninos brancos americanos e das suas mamãs louras, de olhos azuis, dos filmes de cobóis. 

Não te lembras de rezar aos pretinhos de África, coitadinhos, muito menos aos de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique, que eram tão portugueses como tu, mas que iriam para o inferno se os missionários de barbas brancas não fossem a tempo de os catequisar e batizar! 

(Continua)
___________


[1] Montreux, cidade suiça, onde ainda hoje se realiza um dos mais antigos (desde os anos 20 do séx. XX) e prestigiados torneios de hóquei em patins.


[2] Os Cinco Violinos é uma designação jornalística, atribuída ao grupo de cinco jogadores da linha avançada da equipa principal de futebol do Sporting Clube de Portugal que, na segunda metade dos anos 40 do séc. XX, em três épocas, ganharam tudo ou quase tudo que havia para ganhar… A sua fama perdurou pela década seguinte… e entrou no imaginário dos putos da escola...


____________

Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18193: Manuscrito(s) Luís Graça) (136): Não sigam a "estrela" dos outros, mas a vossa... E, por favor, não deixem morrer a vossa luz interior, a luz da vossa "estrela", a dos talentos, das emoções, dos afetos, das memórias...

1. Amigos/as, camaradas: Passou-se o Natal, passou-se o Ano Novo, passaram-se os Reis, e já lá vamos, em velocidade de cruzeiro,  a caminho do... futuro.

Pelo meio, morreu um amigo que me era muito querido, o psiquiatra Álvaro Andrade de Carvalho (*).  Uma morte "anunciada", mas sempre dolorosa para a família e amigos. Estivemos, eu e a Alice, com ele ainda no dia 19 de dezembro, no Hospital do Mar. O seu exemplo de coragem e dignidade na doença também nos reconforta. Mas, como soi dizer-se, a vida continua para os que cá ficam...

Muitos de vós mandaram-me, por email e telemóvel mensagens de boas festas na quadra festiva que agora finda. Alguns inclusive tiveram a gentileza de me telefonar. Não consigo agradecer a todos/as de maneira personalizada.

Algumas das mensagens enviadas para a caixa do correio do blogue deram inclusive lugar a postes publicados na série "Feliz Natal 2017 e Melhor Ano Novo 2018"

A todos/as, agradeço, em meu nome, em nome da minha família e em nome de toda a Tabanca Grande. A pensar em todos/as vós, deixo-vos uma "prendinha", esquecida no meu "sapato"... Espero que ainda possa ser útil e sobretudo inspiradora a leitura deste "manuscrito"...


2. Feliz Natal de 2017 e Melhor Ano Novo 2018 para todos os amigos e camaradas da Guiné

O Natal é tempo de "regressão"... Já não digo no sentido de querermos voltar, simbolicamente, ao seio materno (, numa arremedo de leitura freudiana), mas pelo menos de retorno à infância, às memórias da infância, às cores e sabores do tempo em que éramos crianças (... e éramos felizes, diria o Fernando Pessoa), no tempo em que o Pai Natal ainda não tinha 'assassinado' o Menino Jesus…

E repare-se: o que é "magia" (e continua a ser, de acordo com a nossa cultura judaico-cristã) é a "estrela" que guia os reis magos até à gruta de Belém... E a "magia" da estrelinha que veio do Oriente, guiando os reis magos, acaba por ofuscar o acontecimento central, que é o "milagre do nascimento" de um menino, feito deus, pobrezinho, entre palhinhas, rodeado de uma mulher, que o deu à luz, de um homem, pai adotivo, de uma vaca e de um burro que o aquecem ...

A “magia” não é propriamente o "milagre" do nascimento do menino Jesus… O que hoje  nos "ofusca" é a "indústria da festa" (o brilho e o ruído mediáticos, as “luzes da ribalta”...) e não a festa... O que nos atrai, como borboleta tonta, é a “estrela”, e não a história maravilhosa de um deus que se fez homem para nos salvar, a todos nós, homens, independentemente da cor ("raça"), sexo (homem ou mulher), nacionalidade (judeu ou estrangeiro), condição (livre ou escravo)...

O que nos fascina, dois mil a anos depois, ainda é a “estrela”... A "estrela" (as luzes, as iluminações de ruas, o "glamour" das grandes superfícies comerciais, o consumo, a fama, o sucesso, a glória como sucedâneos da eternidade...) é o que nos "cega”, a nós, putos e graúdos... Já é não a “inocência”, o maravilhoso dos contos da nossa infância, o nascimento de um deus que se fez homem para nos salvar... E o que nos deprime, logo no dia 2 de janeiro, é que o raio da humanidade é mesmo "suicidária", não se quer nem se deixa "salvar"... nem “curar”, nem aceita que “cuidem de si”…

Amigos/as, camaradas:

Que o ano de 2018 seja um bom ano,
se não puder ser o melhor,
para cada um e para todos vós.

Na vida e no trabalho, no amor e na amizade,
não precisamos de seguir a “estrela" dos outros,
precisamos sobretudo de ser autolíderes.
As escolas e os gurus da gestão andaram décadas,
desde o Século das Luzes,
a tentar ensinar-nos que que é preciso seguir a “estrela”,
o “líder” (aquele que vai à frente , mostrando o caminho),
e que só pode ser um “iluminado”…

Não há “iluminados”…
Sigam a vossa luz interior,
não deixem apagar a vossa luz (dos talentos, das emoções, dos afetos, das memórias…).

Afinal, hoje sabemos que não há “ciência”... sem “sapiência” (sabedoria)… (**)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz >  Qta de Candoz > O nosso azevinho (Ilex aquifolium)... Planta rara, autóctone, em risco de extinção... Tem vindo a ser recuperada na nossa quinta... ao longo dos anos.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Natal das crianças que já fomos (e somos)…  


por Luís Graça 

Em todos os Natais nasce a esperança
De que p’ró ano o mundo seja melhor,
E de qu’haverá um novo portador
Da mágica mensagem de… mudança.

E a gente senta-se à mesa, na crença,
De que já nasceu o novo salvador,
Com ele a cura para toda a doença,
Tudo rimando com paz… e amor.

Qu’importa se a gente não lê a História,
E, se a lê, p’lo Natal faz a limpeza
Desta nossa seletiva memória.

Deixemos, pois, à solta, essas crianças,
Que já fomos, e co’elas a luz, acesa,
Das nossas melhores e doces… lembranças!


Lisboa, 19/12/2017
_____________

Notas de leitura:

(*) Vd. poste de 5 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18177: In Memoriam (310): Álvaro Andrade de Carvalho (Lourinhã, 14/8/1948 - Lisboa, 4/1/2018): médico, psiquiatra, gestor de saúde, meu conterrâneo, meu condiscípulo, meu amigo de infância, meu amigo para sempre... O funeral é no sábado, às 14h00, na sua terra natal (Luís Graça)

(**) Último poste da série >  1 de janeiro de  2018 > Guiné 61/74 - P18162: Manuscrito(s) (Luís Graça) (135): Bons augúrios para 2018!

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18177: In Memoriam (310): Álvaro Andrade de Carvalho (Lourinhã, 14/8/1948 - Lisboa, 4/1/2018): médico, psiquiatra, gestor de saúde, meu conterrâneo, meu condiscípulo, meu amigo de infância, meu amigo para sempre... O funeral é no sábado, às 14h00, na sua terra natal (Luís Graça)


Álvaro Andrade de Carvalho (Lourinhã, 14/8/1948 - Lisboa, 4/1/2018). Diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, desde 2011.



1. Soube esta noite, por esse novo mensageiro da morte que é o Facebook, do já esperado (mas sempre temido) desfecho da tua luta, desigual, contra a doença (oncológica)... 

Acabas de atravessar o rio Caronte, nessa viagem sem regresso para qualquer mortal. Todos já temíamos o pior, a tua família e os teus amigos do peito, quando em 14 de agosto de 2017 nos juntámos na tua casa da Lourinhã para celebrar a vida, o amor, a amizade  e... a esperança. Fazías então 69 anos. 

Foi uma luta desigual, mas digna e corajosa, a tua, contra a morte anunciada.  Não tenho cabeça, às cinco da manhã do dia seguinte, para te escrever a "oração fúnebre" que te é devida.  Outros farão muito melhor do que eu o elogio do homem público, do cidadão, do português e sobretudo do médico, do psiquiatra, do psicanalista, do professor, do chefe de serviço hospitalar, do gestor e reformador da saúde mental. Infelizmente, já não estarás cá, em 2019, quando se comemorar os 40 anos do serviço nacional de saúde, para cuja génese e desenvolvimento também deste a tua quota parte, decisiva.  Mas o teu exemplo, em termos de ação e pensamento, continuará a ser inspirador para todos nós,

Deixa-me reproduzir aqui, meu querido Alvarinho,  as palavras que eu te disse, no teu dia de anos.  É uma pequena, singela, homenagem de um dos teus amigos de infância que ficaram, discretamente,  amigos para sempre. Estas palavras,  ditas num círculo íntimo em 14/8/2017, passam a ser públicas, se não me levas a mal, do outro lado da margem do rio.  E espero que possam ser também um lenitivo para a perda devastadora que é a tua morte, extemporânea, aos 69 anos, para todos nós, a começar pelos teus filhos, Miguel, Joana e Sara, e os teus netos, demais família e amigos, sem esquecer a grande comunidade da saúde mental (e da saúde pública), o teu país, a tua terra. E as mulheres que te amaram. Sim, tu foste feliz entre os homens e as mulheres. Foste feliz no amor e na amizade,

2. Soneto de amizade, dedicado por Luís Graça ao Álvaro de Carvalho no seu 69º aniversário:

Meu caro Álvaro,
meu bom e velho amigo,
querido Alvarinho:

Raramente me esqueço de te dar os parabéns,
no teu dia de anos,
desde há mais de sessenta anos.
A data, de resto, coincide com um dia glorioso da nossa história,
o da batalha de Aljubarrota, em 14 de agosto de 1385.
Se o nosso exército não tem derrotado o dos nossos vizinhos,
hoje estaríamos aqui a “hablar en castellano de la amistad entre nosotros”…

Nasceste num sábado, em 14 de agosto de 1948,
que foi de alegria para os teus pais,
pessoas de quem tive o privilégio de serem minhas amigas.
O dia, em termos metereológicos, não terá sido muito diferente do de hoje, 
talvez um pouco melhor,
pelo que pude ler na 2ª edição do “Diário de Lisboa”
(, edição de 8 páginas, de que te mando um exemplar em formato digital).

Na costa norte e centro, o céu estava limpo, 
por vezes com algumas nuvens, 
vento norte bonançoso a fresco, 
visibilidade boa, 
ondulação norte noroeste moderada.

Foi um ano de estiagem, o de 1948… 
Tinha havido, ao menos, umas chuvadas fortes uns dias antes…

E pelo mundo, as notícias eram aparentemente as de rotina: 
acabavam os jogos olímpicos em Londres, 
chovia torrencialmente em Berlim, 
afetando a ponte aérea anglo-americana, 
estávamos em plena guerra fria 
e chegavam também ao fim, depois de 3 anos, os julgamentos de Nuremberg…

Em Portugal, na ponta mais ocidental e acidental da Europa, nada de novo… 
Ah!, éramos bicampeões europeu e mundiais de hóquei em patins… 
E claro comemorava-se o 14 de agosto, “dia da infantaria”…
Não quero ser maçador, e abusar do meu tempo de antena,
em dia que é teu, da tua família, dos teus filhos e netos,
e todos aqueles que te querem bem
e  que fazem votos para ver-te de novo em boa forma, 
ativo, produtivo e saudável…
Estamos aqui para darmos graças à vida 
e festejar o amor, a amizade…e a esperança!
Mas tenho que te dizer, com ternura, algumas palavras
na tua festinha das 69 primaveras…

Não sei se alguma vez houve um poeta ou uma poetisa
que te tenha escrito um soneto…
Aceita aquele que eu te acabo de escrever,
e que é uma singela declaração de amizade,
em meu nome, e em nome da minha família,
a Alice, a Joana e o João.

Foste importante para mim,
por muitas razões que tu e eu sabemos,
na minha infância, adolescência e juventude,
e já depois de ter vindo da Guiné, ter casado e voltado a estudar…
Mas também foste importante para eles.
Foste, mais do que visita da nossa casa,
também um médico, um conselheiro e um grande amigo.

A Alice e eu estamos-te muito gratos,
a ti e à Ana Jorge,
pelo João que também ajudaste a nascer,
e que hoje é teu colega, psiquiatra.
Músico, seguiu esta manhã para Espanha, para um concerto,
e manda-te um xi-coração de parabéns.

Separados por duas ruas,
vivemos a nossa infância, adolescência e parte da juventude
na mesma terra, Lourinhã.
Estudámos na mesma escolinha do Conde de Ferreira,
brincámos no mesmo largo do coreto,
uma e outro há muito vítimas do camartelo camarário.
Lemos, na tua casa,  os mesmos livrinhos aos quadradinhos,
dos cobóis às séries do “Cavaleiro Andante”…

Depois da 4ª classe e do exame de admissão (que fizemos juntos em Lisboa),
seguimos caminhos diferentes,
mas encontrávamo-nos nas férias grandes.
Desde cedo mostraste espírito de líder
(aquele que vai à frente mostrando o caminho),
criando o “Alvorada” juvenil,
e depois colaborando intensamente na redação do jornal.

Foi aqui, no jornal "Alvorada", que eu tive a minha primeira atividade remunerada. 
Foi aqui também nosso colega de escola, amigo e teu primo,
o saudoso Rui Tovar de Carvalho (Lourinhã, 1948-Lisboa, 2014), 
começou a dar os primeiros passos na sua carreira de jornalista desportivo.

À criação de uma secção, ou de uma página, 
a que chamámos "Alvorada Juvenil", 
seguiram-se outras: 
abrimos espaço ao correio dos soldados do ultramar,
 e demos voz aos nossos emigrantes. 
No "Alvorada Juvenil", abrimos um inquérito aos jovens lourinhanenses 
e alimentámos o "cantinho dos poetas"...

Tu e eu, assinámos em conjunto diversas reportagens, 
para além de artigos de opinião que subscrevemos individualmente. 
Havia alguma irreverência e inquietação, 
próprias da idade e da época que vivíamos.

Acabei por exercer as funções de redator chefe deste jornal, quinzenário regionalista,
que ainda hoje se publica. 
Foi fundado ao em 1960, como sabes, 
pelo padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994), 
um homem a quem a Lourinhã muito deve 
e que fez uma aposta forte na formação das elites, ou seja, na educação. 
Foi igualmente fundador do jornal "Redes e Moinhos" (1954-1960). 
Antes de vir para a Lourinhã como pároco, em 1953, 
esteve em Alcanena onde fundou o jornal quinzenário "O Alviela", 
entretanto suspenso pela censura por ousar publicar um artigo 
sob o título "A fome em Alcanena"... 
Estava-se em plena campanha do general Norton de Matos. 
Retomou a publicação depois de ser autorizado a versar também "assuntos sociais"...

À frente do "Alvorado", como redator-coordenador, de 1964 a 1966, 
"fiz-me esquecido" 
e deixei de mandar o jornal à censura...
A entrada de jovens fora uma pedrada do charco da pasmaceira e do conformismo
em que se vivia nesta terra do oeste-estremenho. 
Estava-se em plena guerra colonial 
mas já na fase de fim de ciclo...
"Cadáver adiado", o regime do Estado Novo ainda estrebuchava 
e metia medo a muitos. 
Não admira que o diretor do jornal tenha recebido 
um intimidatório ofício da direção geral de censura 
a perguntar porque é que se permitia o luxo de ultrapassar a lei... 
Metade do ofício, que era apenas de duas linhas, 
correspondia a uma assinatura em letra garrafal, 
símbolo máximo da arrogância de quem se sentia dono e senhor deste país... 
Tudo "a bem da Nação", pois claro.

O pobre do padre vigário, já com ficha na PIDE (por causa do "Alviela"),
lá teve que arranjar uma desculpa esfarrapada aos senhores coronéis da censura 
e, a mim, puxou-me as orelhas... 
Doravante, tínhamos que mandar os artigos em duplicado para a tipografia 
que por sua vez submetia uma cópia à censura... 
E no entanto nunca nenhum de nós escreveu o que quer que fosse 
que pudesse pôr a causa a sacrossanta trilogia Deus, Pátria e Família...

Eu acho que os censores embirravam sobretudo com os nossos jovens poetas.
Não entendiam nada da poesia moderna 
e receavam à brava que os jovens lourinhanenses e outros, 
que colaboravam connosco, 
escrevessem também nas "entrelinhas"... 
Nunca se sabe o que se passa na cabeça irrequieta dos poetas 
nem muito menos na mente perversa dos censores...

Um dia vais gostar de rever este período das nossas vidas, 
em que fomos jornalistas amadores 
e ganhámos o gosto pela escrita, pela ação cívica e pela animação cultural…. 
Prometo fazer-te uma seleção dos teus e dos nossos escritos de adolescência…

Está na hora, por fim, de te ler o poema que te fiz esta noite. 
E que te dedico com todo o meu apreço, gratidão, amizade e fraternidade. 
É o meu pequeno contributo para a tua festa.


Soneto de amizade

por Luís Graça


Alvarinho, deixa-me te dizer,
Hoje, este soneto de amizade:
Amigo é um irmão, podes crer,
Para lá do sangue e da idade.

Nada tem de declaração senil:
Amigos para sempre, desde a infância,
A escola e o “Alvorada” juvenil,
Somos irmãos em última instância.

Amigo é partilhar dor e alegria,
Nos bons e maus momentos da vida,
É cumplicidade, é empatia.

E que mais, meu irmão e meu amigo ?
É saber dar-te a valia devida,
É ter tempo, afinal, para estar contigo!



Lourinhã, 14 de agosto de 2017.

PS – Parabéns, muita saúde e longa vida,
Porque tu mereces tudo!


_______________

Nota do editor:

Último poste da série >  28 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18149: In Memoriam (309): Alf inf QP Augusto Manuel Casimiro Gamboa, CCAÇ 1586 (Piche, Nova Lamego, Canjadude, Madina do Boé, Béli, Bajocunda, 1966/68), nascido em São Tomé , morto em combate, em 14/12/1967, em Uelingará, entre Canjadude e Nova Lamego (José Martins / Virgílio Teixeira / António J. Pereira da Costa / José Corceiro)