por Luís Graça (*)
Não, hoje já não saberias lá chegar... a Sare Ganá, passando pela povoação de Geba. Parece que fora outrora, Geba, uma praça forte, entreposto de escravos, feitoria, presídio. Terra de deportados e de grumetes. Mas também de lindas mulheres... Em 1969, quando a atravessaste, de Unimog, estava há muito em total decadência, ofuscada pelo progresso e pela beleza de Bafatá. A "princesa do Geba", do rio Geba, como lhe chamavam os comerciantes locais e a tropa...
Nem te lembravas sequer já de passar pela ponte nova, uma bela ponte em betão sobre o rio Geba Estreito… Ponte Salazar, que o "homem grande de Lisboa" ainda era vivo … Mas já ninguém queria saber dele nem do seu nome. Mesmo assim, ninguém se atrevia ainda a cometer o sacrilégio de mudar os nomes das terras e obras que ostentavam o seu nome: Vila Salazar, Bacau, Timor; Ponte Salazar, estuário do Tejo,Lisboa; Avenida Salazar, Melgaço, etc....
O novo "homem grande de Lisboa" agora era o Marcello (com dois ll) Caetano, cujo nome os teus soldados, de 2ª classe, guineenses, eram simplesmente incapazes de pronunciar e muito menos de soletrar. Não admirava: não falavam português, eram muçulmanos, não comiam carne de porco, não bebiam "água de Lisboa", nem muito menos sabiam onde era a maravilhosa Lisboa e o mítico Terreiro do Paço onde se condecoravam os heróis do 10 de Junho como o João Bacar Jaló.
Falavas em português apenas com o 1º cabo Suleimane, o Zé Carlos, que era o teu intérprete, guarda-costas, secretário e cozinheiro, quando eram destacados para alguma tabanca em autodefesa da região, como era o caso de Sare Ganá, do regulado de Joladu. Era ele, de resto, quem ia junto dos furtivos caçadores da tabanca procurar comprar alguma peça de caça para o teu frugal almoço. Ou, junto das mulheres grandes, em busca de ovos e franganitos, raquíticos (sete pesos e meio cada bico)...Partilhavas as refeições com ele, mesmo sendo desarranchado. Onde comia um, comiam dois.
Além do cabo guineense, levavas uma secção, 11 militares contigo, nove praças, todos do recrutamento local, mais um operador de transmissões, metropolitano. Cabo auxiliar de enfermagem não havia, era um luxo. "E se houver um azar, meu capitão ?"... (Nem bolsa de primeiros socorros tinhas, pedias por rádio uma evacuação Ípsilon, em caso de emergência.)
Em pleno agosto, no tempo das chuvas. Sare Ganá, no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá...
Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu,,, Estiveste aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa... O que não era ironia, porque a população era fula, estava ao lado dos "tugas", seus antigos inimigos e agora aliados. Os "cães dos colonialistas", denunciava a "Maria Turra" aos microfones da rádio "Libertação"...
Saré Gané, a mais de 4500 quilómetros de distância da tua casa… "O que fazes aqui, meu sacana ?"... (Como gostarias de ter ouvido alguém teu conhecido, da tua terra, a interpelar-te, eufórico, pelo caminho!...). Será que Sare Ganá ainda existe ? Será que alguma vez existiu ? Ou não terá sido fruto de um delírio teu, da tua imaginação já febril, já palúdica ? ... Ah!, malditas sezões, maldito paludismo!...
Sim, Saré Ganá existiu... Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá era uma espécie de aldeia estratégica, que tu descreveste no teu diário. Uma tabanca-tampão. Aqui terminava a "nossa" soberania territorial, a norte do Rio Geba e começava a zona de intervenção do Com-Chefe que incluia, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio”.
"Nossa" ?,,, Tinhas relutância em usar o adjetivo possível no plural. Como se aquela maldita guerra não fosse também a tua, ou tua... Não, não era a tua guerra, não a tinhas escolhido de livre vontade, mas também era tua, tinha sobrado para ti... Sim, depressa tiveste que aprender a salvar o pêlo, o teu e dos soldados que te foram confiados. Alguns, putos, "djubis", de 15 e 16 anos...
Era aqui que vivia o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula, de elevada estatura. A sua cabeça destacava-se acima da cabeça dos demais. É isso que queria dizer a palavra chefe, etimologicamente falando. Presumias que fosse futa-fula. Não fixaste o seu nome. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha, ou foram obrigados a fugir, acossados de um lado e do outro). O seu regulado estava circunscrito ao perímetro de Sare Ganá e a mais duas ou três tabancas: Sinchã Sutu, Sare Banda.
O teu camuflado ainda cheirava a goma, trazia os odores das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército. Tinhas acabado de chegar do Centro de Instrução Militar de Contuboel, um "oásis de paz", como tu eufemisticamente dizias, na única carta mensal que tinhas por hábito escrever à família. Carta por correio aéreo, nunca gastaste um aerograma ao Movimento Nacional Feminino.
Em Contuboel, usavas a farda nº 3, dita de "trabalho". A tua companhia, de guarnição normal, depois da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, a IAO, tinha passado a ser uma subunidade de intervenção, ao serviço do Agrupamento de Bafatá (do temível coronel Hélio Felgas, se bem te lembras)...
Como tu dizias com sarcasmo, eras agora um preto de 1ª e os teus soldados pretos de 2ª.
E quase todos os dias ouvías os Fiat G-91 bombardearem Sinchã Jobel, uma base da guerrilha a 10 km a norte, e que era inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeavam...
Base ? "Barraca", diziam os milícias, em crioulo... “Até Farim é tudo terra para queimar” (sic). Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atrevia então a penetrar neste santuário do IN. Falava-se aqui da "mata do Óio", como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte. A guerra, em todo o lado e em todos os tempos, era fértil em criar lendas e narrativas. O mito do Óio começava em Saré Ganá...
Ainda estava na memória da população o ataque de há um ano atrás, em 12 de agosto de 1968, ao tempo da CART 1690: à meia noite em ponto, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos, ou seja um bigrupo reforçado, vindo de Sinchã Jobel, tinha atacado Sare Ganá.
“Um ataque medonho”, segundo o testemunho de alguns milícias com quem falaste, com o Suleimane a servir de intérprete. Já não apanhaste a "velhice" de Geba, tinha acabado a comissão em março de 1969.
O ataque iniciou-se por tiros de morteiro, lança-granadas-foguete (os temíveis RPG que tinham fama de arrancar cabeças) e metralhadoras, com uso de balas incendiárias. O IN conseguiu alcançar o arame farpado do lado Norte, penetrando na tabanca. Uma falha de segurança, no perímetro de arame farpado, mesmo armadilhado, terá permitido a passagem de uns alguns atacantes, empunhando armas ligeiras automáticas. Algumas moranças começaram logo a arder.
A reação das NT não se fez esperar: os valentes milícias fulas, uns a partir dos abrigos, outros dispersos pela tabanca, reagiram pelo fogo, aguentando o ímpeto inicial do ataque e dificultando o mais que puderam a infiltração dos "turras". Parte da população, os homens, estava armada e colaborou na defesa da tabanca. Mas depressa se esgotaram as munições, obrigando a milícia a recuar. A disciplina de fogo nunca foi apanágio do guineense, quer empunhasse uma G3 quer manejasse uma Kalash.
Em Geba, sede da CART 1690, a escassa meia-dúzia de quilómetros, logo que se ouviram os primeiros rebentamentos, saiu um piquete de socorrro, num viatura: meio pelotão, enquadrado por um alferes e um furriel. Nas proximidades de Sare Ganá, cerca de meia hora de depois, o grupo subdividiu-se, aproximando-se, a pé, da tabanca, com a intenção de procurar surpreender as forças atacantes.
Ao mesmo tempo que apoiavam a retirada da população, as forças da CART 1690 iam abrindo caminho, morança a morança, à força de bazucadas e curtas rajadas de G3. Gente brava e sacrificada, essa companhia de Geba!...
Às tantas, o IN, surpreendido pelo contra-ataque, lançou um “very light” e iniciou a sua retirada, arrastando consigo as baixas que sofrera e carregando o respetivo material. Devido à escassez de efetivos e à escuridão da noite, a perseguição encetada pelas NT não terá ido além da orla da mata próxima. Ninguém, de resto, gostava de combater à noite...
Uma hora e tal depois do ataque chegou uma coluna de socorro, em viaturas, oriunda de Bafatá, composta por cerca de dois pelotões reforçados, da CCS/BCAV 1904, do EREC 2350, e do Pel Caç Nat 64.
Controlada a situação, as forças de Bafatá, com exceção do Pel Caç Nat 64, regressaram com os feridos mais graves da milícia e da população local. Foi montada segurança à tabanca nessa noite e dias seguintes.
Apurou-se então que o IN terá tido 5 mortos e outras baixas prováveis. De entre o material capturado, contaram-se duas armas ligeiras, uma metralhadora Dectyarev, com bipé, e uma pistola metralhadora Sudayev PPS-43, de origem russa, uma das lendárias armas ligeiras da II Guerra Mundial, variante da PPSh-41, mais conhecido por "costureirinha"...
Do lado dos defensores, soube-se que tinha havido baixas entre a milícia e a população local. Parte da tabanca teve que ser reconstruída.
Um ano depois aqui estavas tu, "periquito", de 5 a 17 de agosto de 1969, integrado no grupo de combate da tua CCAÇ, temporariamente em reforço do Sector L2 (Bafatá). Uma secção fora destacada para Sare Ganá e duas para Sare Banda. O alferes deve ter ido para Sare Banda, se é que não se baldou, mas já te lembras...
Dias antes da tua chegada a Sare Ganá, o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutu, mais a Norte. Tocaram as campainhas de alarme em Bafatá, tal como acontecera com Madina Xaquili, a sul.
Agora, por causa de um possível ataque da guerrilha (mesmo no auge do tempo das chuvas) era proibido, à noite, fazer lume ou fumar na tabanca de Sare Ganá. Contava-se que num outro destacamento do subsetor de Geba, tempos antes, dois militares das NT haviam "lerpado" com um roquetada quando acenderam uma lanterna na tenda... Jogavam às cartas, dizia-se, para matar o tédio... Tiro de um "snipper"... Uma morte horrorosa, como todas as mortes na guerra...
Em Saré Ganá o pessoal comia cedo e deitava-se cedo. Ficavam os vampiros dos mosquitos a velar-te. Por sorte, não apreciavam lá muito o teu sangue. Devia-lhes saber a uísque. Tinhas levado uma garrafa contigo...
E mais à frente, no teu diário, a 15 de agosto de 1969, perguntavas:
(...) “Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma seção de combate, uma bazuca 8.9, um morteiro 60, 10 G-3 e um rádio se isto der para o torto ?
"Depois do ataque malogrado à tabanca próxima, Sinchã Sutu, a população fula anda compreensivelmente nervosa, inquieta... Sinto-me como os bombeiros, atrás da ameaça de fogo-posto, mas ainda não fiz sequer o meu batismo de fogo, contrariamente à maior parte da companhia, que teve os seus primeiros feridos graves em Madina Xaquili, no sul do chão fula, há menos de 3 semanas." (...)
Perguntavas a ti próprio qual o sentido e o alcance desta tua missão:
(...) “Limito-me a estar aqui e vigiar os postos de sentinela: adormeço sobre a manhã,mas não posso durmir como um porco; às dez ou onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota é já absolutamente insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou, e que em dias de sorte pode ser um bife de gazela, com algumas legumes das hortas locais...
Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Jalon (leia-se "Djalon") eram donos e senhores destas terras, derrubado o reino de Gabu em Cassalá há 100 anos atrás.
Ao fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional, converso com a população e recapitulo o plano de defesa da tabanca” (,..)
Dormir que nem um porco!... Aqui convinha lembrar o sábio conselho do provérbio popular: 'Três horas dorme o santo, quatro o que não é santo, cinco o viajante, seis o estudante, sete o porco e oito o morto'... Seria, afinal, aqui que irias aprender que dormir muito fazia mal à saúde...
E relatavas, no teu diário, uma bravata estúpida, bem típica de um inconsciente "periquito”, feita logo no princípio das tuas andanças por aqui. É uma das tuas duas recordações marcantes da estadia em Sare Ganá:
(...) “Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. Talvez Sinchã Famora, a sul, não fixei o nome. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco (!), tentando detetar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis.
" A meio do percurso, apanho um susto, pondo à prova os meus reflexos: um antílope, que pastava perto, atravessou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada". (...)
Foi mais do que um susto, apanhaste um calafrio: é que na noite anterior, uma hiena, que lá chamava "lobo", e que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito acionar uma das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto começaste a ouvir, de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal, assustadiço, andava com os nervos em franja.
Ainda hoje te perguntas como é que tu arriscaste a tua vida e a do milícia local, nesta estúpida e inútil aventura de ir “reconhecer” uma aldeia abandonada e armadilhada ?!… Puro voyeurismo, grosseira infantilidade... Não fazia parte da tua missão!...
Em suma, uma pura bravata!... Talvez quisesses provar a ti mesmo que também eras “um gajo com tomaste", tu que nem sequer eras um atirador de infantaria, nem tinhas, ao certo, nem pelotão nem secção...Eras o "pião das nicas", como te chamava o teu capitão, suprias as faltas de graduados, em todos os pelotões...
Quiseste-te armar em "ranger", ou pior ainda, de sapador, tu que nem sequer tinhas conhecimentos rudimentares de minas e armadilhas... Podias ter acabado logo ali,a escassos a dois meses e meio de Guiné, crivado de estilhaços. Saré Ganá era, francamente, um sítio desolador para se morrer e, pior ainda, para se ficar inumado na vala comum do esquecimento...
A outra recordação marcante foi a da visita à tua morança, de uma "gazela furtiva", cujo nome nunca soubeste, e que ficou no teu diário como uma simples "Fatumatá":
Ainda não me tinhas habituado ao ‘black-out’ total, imposto por óbvias razões de segurança: não podias ler nem escrever na tua morança de comandante...
(...) "Faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas, o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganá, em plena época das chuvas" (...).
Logo na segunda ou terceira noite tiveste a companhia silenciosa, misteriosa e furtiva de uma mulher da aldeia (nunca pudeste confirmar a suspeita de que era uma mulheres do comandante da milícia local)...
Nem deste conta: introduziu-se, lesta como uma gazela, na palhota onde durmias, junto ao espaldão do morteiro 60. Tapou-te a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-te o seu esguio corpo de ébano, ressumando húmidos odores da floresta!...
(.,..) “De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fêmea de felino!" (...).
Não te olhou olhos nos olhos, mas tu fizeste questão de a mirar de alto a baixo, de frente:
(...) “Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... É sensual e ainda jovem, de seios duros mas pequenos... 'Mama firme', como se diz aqui. É provável que seja infértil e nunca tenha parido.” (...)
Assim de chofre, tiveste dificuldade em perceber o seu comportamento e muito menos em adivinhar-lhe a idade:
(...) “Terá vinte e tal anos, menos de trinta. (...)
E, tal como tinha chegado, partiu depois, discreta, silenciosa, furtiva, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo...
(...) “Um 'affaire' no mato ? Que palavra tão deslocada, para mais francesa, aqui no cú do mundo, numa tabanca fula, num país em guerra!” (...)
De qualquer modo, aquele momento de todo inesperado acabou por ser celebrado com uma singela troca de "roncos": deste-lhe uma toalha de banho turca, colorida (haverias de comprar outra na Casa Gouveia, em Bafatá), e ficaste-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação daquela estranha noite de Sare Ganá. Passaste a usá-la como amuleto.
Nem sequer te ocorreu "partir patacão" com ela: não querias, de modo algum, que o "vil metal" viesse estragar a singeleza e até a beleza daquele momento, a partilha de corpos entre um homem e uma mulher que pertenciam a dois mundos completamente opostos...mas tinham em comum quiçá a infelicidade e a solidão do "hic et nunc", do aqui e agora...
Ainda hoje tens dificuldade em entender o significado daquela cena!... O significado socioantropológico, acrescenta lá o chavão:
(...) "Simples atração sexual de um mulher por um estrangeiro ? Simples favores sexuais sem pedir mais nada em troca ? Cumprimento da obrigação feminina de hospitalidade, por ordens expressas do régulo ou do comandante de milícias que tu mal conheceras ? Ritual de submissão ao representante dos tugas, os 'senhores da guerra'? Solidão, despeito, ciúme, não sendo a mais nova das mulheres do seu marido e senhor, e muito provavelmente sendo infértil, e se calhar até repudiada, uma das piores maldições que pode recair sobre a honra de uma mulher em África ? (...)
Este caso não era único, na época, e não acontecera por certo pelos teus lindos olhos... Nunca te armaste propriamente em sedutor... Soubeste mais tarde de outras estórias semelhantes de partilha de favores sexuais, de iniciativa aparentemente feminina... em contexto de guerra.
E concluias esse apontamento no teu diário, antes de regressares à sede do batalhão:
(...) “Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados, infelizes e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória. Nem sequer o seu nome. Nem quem a teria mandado. Nem sei se algum dia voltarei a Sare Ganá. Mas a sua imagem de gazela furtiva, essa, não vou tão cedo apagá-la da minha memória."
Nãp, nunca mais voltaste a Sare Ganá, é verdade...
Já em Contuboel, nos menos de dois meses de paz de Contuboel, tu havias escrito:
(...) Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros.
O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes ou nas poças da chuva; (iv) os homens grandes, sempre eles, a tagarelar uns com os outros sentados no bentém, mascando nozes de cola. (...)
Em suma, um fim de tarde calmo numa tabanca fula (ou mandinga, ainda não sabias distinguir), dos arredores de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para uma exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).
E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que estava traçado: em breve a guerra, e a militarizaçáo do seu "chão", e com ela a morte e a desolação, chegariam até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…
E acrescentavas em tom algo premonitório ou até profético, juntamente peças dispersas do pouco conhecimento que detinhas da situação político-militar do território, em meados de 1969:
(...) "O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Dulombi a Fajonquito, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, e até desarmados, como se fossem turistas em férias! (...).
Meio intrigado ou embaraçado com a hospitalidade local (deram-te uma morança, uma cama, um banquinho ou uma "turpeça", além de uma mulher, ainda jovem mas mais velha do que tu...), foi lá , em Saré Ganá, que te apercebeste do profundo significado socioantropológico do "dom", do dar e receber, do ter ou não ter.... uma "turpeça", um morança, uma mulher, e uma esteira para dormir, atributos afinal do poder dos pequenos senhores da guerra...
© Luís Graça (2006). Revisto: 1 de setembro de 2024.
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Nota do editor: