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terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26143: Humor de caserna (81): "Há ouro em Bafatá ?!"... A imaginação febril dos serôdios "garimpeiros" coloniais... (Excerto do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951, suplemento especial dedicado às províncias ultramarinas que, em revisão constitucional, tinham acabado de deixar de ser colónias)

 


Excerto do Suplemento do "Diário Popular", edição de 20 de outubro de 1951, pág. 9



Capa do Suplemento do "Diário Popular", edição de 20 de outubro de 1951,



Capa da edição do "Diário Populae", de 20 de outubro de 1951. Era diretor o Luis Forjaz Trigueiros (1915-2000)


1. Na euforia do  fim do "Pacto Colonial", e da revisão constitucional (Lei nº 2048, de 11 de junho de 1951),  a imprensa lisboeta começa a olhar para o "ultramar português"  como um mercado cheio de potencialidades... 

É um número de "informação e propaganda", em que figuras-chave do Governo de Salazar (Sarmento Rodrigues, Ulisses Cortês, etc.) mas também historiadores alinhados política e ideologicmemte com o Estado Novo (Damião Peres, por exemplo, que a dirigiu a monumental História de Portugal, publicada entre 1928 e 1954) assinam artigos de opinião ou dão entrevistas...

 O "Diário Popular", na sua edição de 20 de outubro de 1951 ( e não de 20 de outubro de 1961, como vem escrito por lapso, na ficha da Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa), distribuiu um suplemento, dedicado ao Ultramar, desde Cabo Verde a Timor,  com 218 páginas (22 das quais são dedicadas à Guiné).  

É uma raridade bibliográfica, está disponível  aqui em formato digital. Merece uma leitura atenta.  E tem apontamentos deliciososos, como este que publicamos acima, na série... "Humor de caserna" (*).  (O "há ouro em Bafatá" faz-nos lembrar a rábula do saudoso e genial Solnado, na divertida comédia televisiva , de 1986,  "Há petróleo no Beato"...)

Um pensamento "seráfico" de Salazar dá o tom para esta edição "eufórica" sobre o ultramar português e a "nossa ancestral vocação civilizadora":

"Nós somos filhos e agentes de uma civilização milenária que tem vindo a elevar e converter os povos à conceçãoo superior da própria vida, a fazer homens pelo domínio do espírito sobre a matéria, do domínio da razão sobre os instintos"...

Dentro dos condicionalismos da época (a começar pela censura), temos de reconhecer, no entanto,  que o "Diário Popular" foi também um viveiro de grandes cronistas,  repórteres e jornalistas.

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domingo, 10 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26135: As nossas geografias emocionais (32): Bafatá, 1959, ano de cheias, fazendo jus ao nome da vila ("o rio vai cheio") (Leopoldo Correia, ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65)

 

Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > O jardim local, na margem direita do rio Geba Estreito. Ao centro, a estátua de Oliveira Muzanty.


Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (1): Uma das ruas da zona ribeirinha inundadas; à esquerda, o comerciante Carlos Marques da Silva


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (2):  uma loja com um passadiço improvisado


Foto nº 4 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (3):  o mercado que já existia nos 30, de arquitetura revivalista



1. Ainda não se falava de "alterações climáticas", mas já o rio Geba Estreito (ou Xaianga) transbordava, periodicamente, as suas margens, inundando a baixa da vila de Bafatá (próspera, a partir dos anos 30/40, graças ao "ciclo da mancarra")...


As fotos chegaram, há uns largos anos atrás, ao nosso blogue, pela mão do nosso tabanqueiro Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65) (foto à esquerda).

Estas e outras fotos de Bafatá, de 1959, foram tiradas por um familiar seu, ligado ao comércio local (Casa Marques Silva), casado com uma senhora libanesa, filha do senhor Faraha Henen.

Mais tarde, falando com o Leopoldo Correia, ao telefone, vim a descobrir que afinal o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande!...

De facto:

(i) era um homem das sete partidas: depois da "peluda", viveu em Angola, trabalhou na Diamang;

(ii) voltou para o "Puto', trabalhou na EDP, por exemplo na Central Termoelétrica do Barreiro onde fez amizade com amigos e conterrâneos meus, o Carlos e o Hugo Furtado (que andou comigo na escola primária);

(iii) na Guiné, também conheceu, entre outros, o Fernando Rendeiro, comerciante de Bambadinca a cuja casa fui algumas vezes almoçar, no tempo em que lá estive (julho de 69/março de 71)...

(iv) falou-me da viúva do Rendeiro, mandinga, Auá Seid (entretanto já falecida) e dos filhos (que  o comerciante de Bambadinca, natural da Murtosa,  nunca nos mostrava mas de quem falava com tanto carinho e orgulho: tinha uma filha a tirar direito, em Coimbra)...

(v) vivia em Águas Santas, Maia;

(vi) não tenho, há muito, notícias dele.

As fotos revelam um drama que se tem agravado com o tempo: as cheias do rio Geba (ou Xaianga).

A antiga cidade colonial de Bafatá (topónimo que vem do mandinga, "baa faata", "o rio vai cheio), infelizmente ainda não conseguiu ultrapassar a decadência urbana,demográfica e económica, que tem a idade da independència do país. (**)

O fim do "ciclo da mancarra", " a semente do diabo" (imposta pelos "colonialistas", e de queo grupo CUF, através da Casa Gouveia, foi o grande beneficiário)  foi também, material e  simbolicamente, o fim da "princesa do Geba". Em contrapartida, o "ciclo do caju", imposto pela nova economia planificada de Luís Cabral, não produziu a riqueza que se esperava, para a grande maioria dos guineenses, em geral, e os bafatenses, em particular, que criaram novas tabancas  ao longo do eixo rodoviário do leste, que liga Bambadinca a Nova Lamego. 

No nosso tempo havia as tabancas da Rocha,da Ponte Nova, da Nema... Há muitas mais... Mas continua a haver inundações no Vale de Bafatá, como este ano, provocando grandes estragos, em culturas (arroz de bolanhas de água doce) e em habitações, ao longo do curso do rio até Bambadinca,
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Notas do editor:

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26120: S(C)em Comentários (51): Que pena tenho eu não estar em Nova Lamego, em 1972/74, para ver as libanesas, porque em 1969/70 tínhamos que ir a Bafatá ver os seus olhos verdes (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 1969/70)



Valdemar Queiroz

1. Excerto do poste P13607 (*):


Que pena tenho eu de não estar em Nova Lamego, em 1972/74, para ver as libanesas, porque em 1969/70 tinhamos que ir a Bafatá ver os seus olhos verdes.

Ó Marcelino Martins, tens toda a razão e eu, em 1969/70, também não me lembro de estabelecimentos de libaneses, no Gabu. Havia a casa do sr. Caeiro. Vendia tudo, pomada prós calos, ventoinhas, frigoríficos a petróleo, e até material militar (facas de mato) pra algum 'piriquito' despassarado.

Também havia, no Gabu, outro português, que fazia uns frangos de churrasco, de caír pró lado. Era na saída, para Bafatá e lembro-me que o empregado, um africano, tinha hora de saída. E o patrão dizia: “Vocês é que são os culpados, destes gajos terem horário de saída”…. O que nós fomos 'arranjar'.

Mas, José Marcelino Martins,  nunca vi nenhuma libanesa em Nova Lamego e eu não era cego. Lembro-me da filha do Sr. Caeiro, aparecia poucas vezes, era de cair pró lado, boa como o milho, rapariga prós vinte e poucos anos, sempre à espera dum capitão. Mas, ver as libanesas, de olhos verdes, raparigas bonitas, tinhamos que ir a Bafatá.

Quem me dera, estar em Bafatá naquele tempo, tinha vinte e poucos anos. (**)


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sábado, 2 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26108: In Memoriam (516): Regina Gouveia (1945-†2024), Amiga Grã Tabanqueira, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia

IN MEMORIAM

Regina Gouveia (1945 - †2024)

A notícia do falecimento da nossa amiga Regina Gouveia, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf do CMD AGR 2957 - Bafatá, 1968/1970), ocorrida há cerca de três semanas, apanhou de surpresa os editores do blogue. A infausta notícia foi confirmada pelo José Teixeira e pelo António Pimentel, amigos próximos do casal Gouveia. 

Regina Gouveia, formada em Fisico-Químicas e Mestre em Supervisão, era professora aposentada do ensino secundário e autora de diversas obras literárias, algumas delas dedicadas aos mais pequenos.

Tem 15 referências no nosso blogue onde começou a colaborar no já longínquo ano de 2009. Acompanhando o seu marido, esteve presente nesse mesmo ano no IV Encontro Nacional da Tertúlia em Ortigosa.

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real > 20 de Junho de 2009 > IV Encontro Nacional do nosso blogue > Regina e Fernando Gouveia. 

O nosso editor Luís Graça publicou no P4615 um pequeno resumo sobre Regina Gouveia que abaixo se reproduz:

(i) Nasceu em 1945 (em Santo André, Estado de S. Paulo, Brasil, onde vivei até aos dois anos de idade);

(ii) Passou a sua infância e adolescência no Nordeste Transmontano, em Portugal, de onde tem raízes pelo lado paterno;

(iii) casada com Fernando Gouveia, arquitecto, aposentado da CM Porto; acompanhou o marido, em Bafatá, durante a sua comissão militar (1968/70);

(iv) É Licenciada em Físico-Químicas (Universidade do Porto) e Mestre em Supervisão (Universidade de Aveiro).

(v) Professora do Ensino Secundário, aposentada, dedicou muito do seu tempo à formação de professores (foi orientadora de estágios durante 22 anos);

(vi) Colaborou com o Ensino Superior, nomeadamente com o Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

(vii) Actualmente lecciona na Universidade Popular do Porto e colabora, a título voluntário, com a Biblioteca Almeida Garrett no Porto, divulgando a ciência e a poesia, junto dos mais pequenos.

(viii) Em 2005, no âmbito do Ano Internacional da Física, foi agraciada com a comenda da Ordem da Instrução Pública e premiada com o prémio Rómulo de Carvalho.

(ix) É autora do livro de didáctica Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre práticas lectivas e do livro de ficção Estórias com sabor a Nordeste.

(x) No âmbito da poesia, tem poemas dispersos em algumas publicações,além de prémios; é autora de dois livros de poesia Reflexões e Interferências e Magnetismo Terrestre;

(xi) António Gedeão (pseudónimo lietrário de Rómulo de Carvalho) é um dos seus poetas favoritos. Recorde-se que é o autor do célebre poema Pedra Filosofial (Eles não sabem que o sonho /é uma constante da vida...), transformado em canção de contestação, na voz de Manuel Freire, e nas vozes de alguns de nós,em Bambadinca (1969/71)...

(xii) Em 2006, publicou o seu primeiro livro para crianças: Era uma vez… ciência e poesia no reino da fantasia...

Duas fotos da jovem Regina Gouveia em Bafatá durante a sua permanência naquela localidade guineense onde o marido cumpria a sua comissão de serviço.


Em jeito de homenagem, aqui deixamos três poemas, ao acaso, de Regina Gouveia, o primeiro, uma memória da Guiné e das pessoas de quem ainda se lembrava; o segundo, talvez um grito de protesto pelas desigualdades de uma sociedade de consumo onde alguns têm tudo e outros não têm nada; o terceiro, dedicado ao cais, aquele muro que desde tempos imemoriais viu partir portugueses para a guerra e para a emigração. Todo o cais é uma saudade de pedra, na palavra de Fernando Pessoa.


Telejornal

Vejo o Telejornal no canal dois.
A apresentadora fala da BSE, de clonagem, do Kosovo
e, logo depois, de um acidente no Cais do Sodré e da instabilidade na Guiné.
E eu empreendo no tempo uma viagem...
O Braima, a Binta, o Adrião, onde andarão neste momento?
Conheci-os em Bafatá, há muito tempo, iam buscar o cume no fim da refeição.
Recordo os seus olhos vivos de crianças, pele negra, dentes alvos, sem igual,
os passos apressados quando o vento anunciava em breve um temporal.
Eu era aluna e eles mestres do crioulo de que mal guardo lembranças.
Das mulheres, recordo as suas vestes, fossem mulheres grandes ou bajudas
no tronco, eram em geral desnudas,
presos na cinta panos coloridos que, de compridos, chegavam quase ao chão.
Algumas eram de tal modo belas que pareciam extraídas de telas.
Recordo, servindo-me o café, o Infali com aquele seu olhar tão doce e triste,
talvez o ar mais triste que eu já vi. Será que o café ainda existe?
Recordo aquele condutor, o Mamadu, mostrando com orgulho o seu menino.
Que terá feito deles o destino?
Recordo os passeios na estrada do Gabu, os mangueiros, os troncos de poilão,
a mesquita, o mercado, a sensação de paz que tudo irradiava,
apesar do obus de Piche que atroava, apesar da maldição da guerra
cujo espectro por cima pairava.
Recordo ainda o cheiro e a cor da terra,
o Colufe e o Geba sinuosos onde canoas esguias deslizavam,
recordo macaquitos numerosos que entre os ramos das árvores saltavam
enquanto que lagartos, preguiçosos, ao sol, pelos caminhos se espraiavam
e uma miríade de insectos buliçosos ao nosso redor sempre volteavam.
Recordo o batuque daquele casamento.
Na foto ficou bem impresso o momento em que o dançarino fazia um mortal
numa fantástica expressão corporal.
Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos
que as mulheres usavam em volta da anca e que desciam quase até ao chão.
Tudo isto se passou há muitos anos.
A apresentadora fala agora em danos causados por uma longa estiagem
e mostra uma desértica paisagem.
Eu regresso da minha viagem e tento organizar o pensamento.
O telejornal está quase no final. Deve seguir-se a previsão do tempo.




Pai Natal

Pai Natal, acabo de perceber que não és imparcial
A alguns meninos deste tudo e a outros não deste nada
Será que perdeste a morada, não estava a tundra gelada,
ou estava a rena cansada?
No Natal que logo vem, pensa bem pois não pode ser assim.
Ou dás presentes a todos ou não os dás a ninguém. Nem a mim.


Regina Gouveia em Ciência para meninos em poemas pequeninos



Cais

Na janela, a cortina rendada.
Através dela, navios que demandam o cais,
outros que partem.
Lenços brancos acenam da amurada
outros respondem acenando de terra.
Entre uns e outros, oceano e guerra.
Navego no navio da memória
delida pelo tempo, esse cavalo alado.
Na janela, cada dia mais puída a cortina rendada.
Através dela já não vislumbro
o inexistente cais, outrora imaginado.

Do livro “Entre margens", editado em 2013


********************

E assim nos despedimos da nossa amiga Regina Gouveia.

Ao Fernando Gouveia, seus filhos, netos e demais família, deixamos o nosso mais profundo pesar.

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Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26075: In Memoriam (515): Marco Paulo (1945-2024): "Nosso cabo, não, meu Alferes, sou o Marco Paulo" (.... nome artístico de João Simão da Silva, nascido em Mourão, ex-1º cabo escriturário, QG/CCFAG, Amura, Bissau, 1967/69)

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26093: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (38): Bafatá, terra natal de Amílcar Cabral (1924-1973)



Foto nº 1 > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > A casa onde terá nascido o Amílcar Cabraçl (1924 -. 1973), hoje convertida em museu. ;Mural numa das paredes com a efígie do líder histórico do PAIGC,filho de mãe guineense e pai cabpo-verdiano



Foto nº 2A > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > Casa-museu de Amílcar Cabral: uma citação famosa (em crioulo):


"Nô sta na luta pa prugresu di nô tera, nô ten ku fasi sakrifisu pa nô konsigui kumpu nô tera.

"Nô ten ku kaba ku tudu injustisa, ku tudu koitadesa i sufrimentu.

"Nô ten garanti pa kada mininu ku na padidu na nô tera aôs ô amanha, tene certeza di kuma nin un mura ô paredi ka pudi tadjal"

(Amílcar Cabral)


Tradução do crioulo (LG / VQ): "Estamos a lutar pelo progresso da nossa terra. Temos que fazer sacrifício para conseguir desenvolver a nossa terra. Temos que acabar com todas as injustiças, a pobreza e o sofrimento. Temos de garantir que cada menino que nasce na nossa terra, hoje ou amanhã, possa ter a certeza de que nenhum um muro ou parede o vai deter". (Amílcar Cabral)


Foto nº 2 > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > Casa-museu de Amílcar Cabral > Mural


Foto nº 3 > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > Casa-Museu Amílcar Cabral > Parede exterior com mural... Fica junto à casa da nossa amiga Célia.



Foto mº 4 > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > A rua que desce até a casa do Amílcar. Agora é uma valeta onde corre água das chuvas.


Guiné > Foto nº 5 > Bafatá > 28 de outubro de 2024 >Rua junto a casa onde podemos ver o Sporting... (à esquerda, a seguir)


Guiné > Foto nº 5A > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > O edifício do Sporting (e antigo cinema), em segundo plano... Com o telhado já em ruína.


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro:


Data - segunda, 29 out 2024 00:36
Assunto . Viagem ao Leste no final da chuvas 2024.


Luís, publica se entenderes.

Estas outras fotos de Bafatá, foram tiradas hoje, segunda feira,  às 6.30h ainda com pouca luz...antes do meu regresso, mais logo,  a Bissau. (Do Gabu, já te mandei também algumas fotos.)

Estas de Bafatá são tiradas  junto  à casa da Célia (onde vive há 53 anos) e à  casa onde dizem que o Amílcar nasceu. É a última rua paralela ao rio.

É uma zona onde moram poucos europeus, luso-guineenses e libaneses. Uma zona da cidade sem vida. Onde existem algumas repartições publicas.

Ab, Patrício.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26086: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (37): Bafatá e a Célia Dinis, que merecia uma estátua e não uma medalha...

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26052: (De) Caras (223): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Estas três últimas cartas de Pedro Barros e Silva para o seu amigo Paulo António, vindas do SPM 0368, são acima de tudo afetuosas, um faz a guerra com uma grande carga de ceticismo, fala mesmo de uma guerra que parece a do Solnado, o outro deverá andar stressado e com problemas familiares. Penso que a carta anterior de Pedro Barros e Silva deverá ser analisada por um investigador que se interesse por este período, ficamos no desconhecimento da sua arma, possui informações topo de gama e refere explicitamente numa das suas cartas que desembarcou numa área do Sul, onde teríamos sofrido quatro mortos. Agora é questão de atar estas cartas com um cordel e entregá-las no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (5)

Mário Beja Santos

Nota explicativa: o conjunto de cartas que adquiri dizem estritamente respeito a correspondência efetuada na Guiné, e dirigida a Paulo António Osório de Castro Barbieri, residente em Lisboa, embora uma das cartas endereçadas por Pedro Barros e Silva seja dirigida a este destinatário em Palmela. São duas cartas do irmão, tenente Nuno Barbieri e quatro endereçadas pelo Alferes Barros e Silva, inequivocamente um amigo íntimo do destinatário. Havia mais correspondência, mas não tratava da Guiné. Deste pequeno acervo julgo que o documento mais importante foi a carta de Barros e Silva, publicada nas duas últimas semanas. As três que restam, datadas de 15 de fevereiro, 19 de abril e 9 de novembro, de 1966, possuem muitas considerações por caráter privado, houve que as omitir pelo respeito de quem escreveu e quem recebeu.

Em 15 de fevereiro, escreve assim Pedro Barros e Silva:

“Meu caro Paulo,

Depois de ter passado uma semana em Bafatá cheguei hoje a Bissau onde me esperava uma tua carta. Se, por um lado me inquietou ver que te falta a saúde, por outro lado alegra-me teres modificado o teu estilo epistolar. Entre nós há estilos que não encaixam e entre eles os dos relatórios de citação.

Compreendo e sinto o teu problema, pois também me debato com outro semelhante. A plataforma que tenho procurado encontrar para me entender com o resto, ainda não encontrei. É uma ação negativa que me é parecida, quando a vou buscar, mas sem encanto, como o amor de uma prostituta.

O que ainda me vai animando e me vai oferecendo um pouco de atração a esta coisa é eu ter a consciência de que estou continuamente oscilando entre a animalidade e o misantropismo.

E, entretanto, a guerra continua empatada, sem que nenhum dos contendores tenha força nem talvez vontade para a desempatar. É uma guerra tipo Solnado.

Espero que os teus exames tenham corrido bem, que estejas melhor e que me escrevas em breve dando notícias de ti.

Um grande abraço amigo do Pedro,”


Em 19 de abril, o alferes Barros e Silva dirige-se deste modo ao amigo:

“Meu caro Paulo,

Já há bastantes dias que tinha iniciado uma carta, mas ultimamente tenho feito tal vida de andarilho que só agora te escrevo dando mais uma vez motivo para o desencartar da nossa correspondência. Na carta que me escreveste analisavas os vários tipos de fazer a guerra e como tu escreveste devo fazer para do grupo C (os que a fazem tendo por único Absoluto o mar de dúvidas, de incertezas, de relatividades). Simplesmente eu preferi fazê-la de uma outra maneira, mais quente. É que não passo de um alferes.

Tens razão ao relembrar-me o tipo de guerra. É por eu o compreender que me chateia a maneira como esta malta a faz, com muita papelada, muito empecilho burocrático, muita leizinha, muitas merdinhas que quase nos paralisam e que só servem para complicar aquilo que é tão simples.

Não sei se já te falei do assunto, mas tive em sério risco de apanhar uma porrada, pelo menos ameaçaram-me. Motivo: participei de que tinha conhecimento de uma operação realizada em tal data, numa zona do Sul da província e revestida de certa importância. Como caí na asneira de citar o nome de um major, saltaram-me em cima. O pior é que mal desembarcámos tivemos quatro mortos. Os gajos até sabiam o sítio certo de desembarque e limitaram-se a estar à espera.

Caríssimo, não leves tanto tempo como eu a escrever, pois é sempre com grande alegria que leio as tuas cartas amigas.

Um grande abraço amigo do Pedro.”


Temos agora o teor da última carta, data de 9 de novembro:

“Meu caro Paulo,

Não vejo o motivo para te preocupares com o atraso que me respondeste. Também eu já me tenho atrasado, contudo, tive sempre a certeza de que me compreenderias.

Acerca do que me escreveste, não fiquei surpreendido. E decerto que tu também não. Algumas vezes falámos sobre o assunto quando eu ainda aí estava. Vejo que os estudos manquejam, a família chateia-te, tudo te chateia, sentes-te mal no meio de tudo isso. Muda-te, pois, vai para qualquer outro sítio onde a operação seja menor e menos pesada. Em 2 de dezembro espero estar aí, tenho muito para te contar.

Paulo, escreve-me quando quiseres e como quiseres, pois eu procurarei sempre de todos os meus meios compreender-te e estar contigo.

Um grande abraço do teu amigo Pedro.”


A cidade de Bissau que o alferes Pedro Barros e Silva também conheceu
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Nota do editor

Último post da série de 8 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26021: (De) Caras (222): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P25997: O nosso livro de visitas (223): Nelson Quintino Lage, Soldado Condutor Auto da CPM 2537, através do Formulário de Contactos

Estandarte da CPM 2537
© Créditos ao camarada Carlos Coutinho


1. Mensagem de 21 de setembro de 2024 do camarada Nelson Quintino Lage, enviada ao nosso blogue através do Formulário de Contactos:

Soldado condutor auto da CPM 2537 - Guiné, 1969/1970/1971.
Não tenho email disponível por inoperacional. Para contactar mandar SMS para o 963 247 663.
Não é fácil atender chamadas pois tenho problemas de audição.
Gostaria de manter conversa com vocês.

Estive em Sansancuta sector de Bafatá, com mais alguns camaradas chefiados pelo cabo João (Joaozinho de Sansancuta).
Tenho alguns assuntos que gostaria de pôr à vossa consideração.
Os meus 77 anos têm sido muito atribulados em termos de saúde, mas sou um resistente que embarcou para a Guiné no Niassa e voltou de regresso no Angra do Heroísmo.

Fico aguardar notícias.
Cumprimentos,
nelson quintino lage | lagenelson@hotmail.com


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2. Caro Nelson Lage, muito obrigado pelo teu contacto.

Não temos muita informação sobre a tua Companhia de Polícia Militar a não ser que o antigo secretário geral do PCP, Jerónimo de Sousa, fez parte dela e como tu, condutor auto. Deves lembrar-te dele.

Temos este marcador sobre a CPM 2537, vê aqui o pouco que temos para consulta: https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/CPM%202537 (é só clicar).

Deves compreender é pouco praticável a comunicação contigo através só de SMS pelo que deves procurar recuperar o teu email ou abrir em alternativa um novo no Gmail, por exemplo.

Ficamos ao teu dispor neste endereço: luis.graca.prof@gmail.com

Recebe um abraço da tertúlia e os votos de saúde.
Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último post da série de 6 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25484: O nosso livro de visitas (222): Jorge Camilo Handem, o novo diretor executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau)

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25905: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (32): uma gazela furtiva em Sare Ganá



Motivo central de um pano traeional de Cabo-Verde.  Mulher cozinhando. Imagem reeditada por LG (2024).




Guiné > Carta de Bambadinca (1955) >  Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel (IN) e de aquartelamentos, destacamentos e tabancas em autodefesa (NT): a sul, Missirá e Fá Mandinga; a leste, Geba, Sare Ganá, Sinchã Sutu... Pelo meio o rio Geba Estreito...Sare Banda ficava mais a norte (vd. carta de Banjara, 1956).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


Contos com mural  ao  fundo >  

Uma gazela furtiva em  Sare Ganá

por Luís Graça (*)



Não, hoje já não saberias lá chegar... a Sare Ganá, passando pela povoação  de Geba. Parece que fora  outrora, Geba,  uma praça forte, entreposto de escravos, feitoria, presídio. Terra de deportados e de grumetes. Mas também de lindas mulheres... Em 1969, quando a atravessaste, de Unimog,   estava há muito em total decadência, ofuscada pelo progresso e pela beleza de Bafatá. A "princesa do Geba", do rio Geba, como lhe chamavam os comerciantes locais e a tropa...

Nem te lembravas sequer  já de passar pela ponte nova, uma bela ponte em betão sobre o rio Geba Estreito… Ponte Salazar, que o "homem grande de Lisboa" ainda era vivo … Mas já ninguém queria saber dele nem do seu nome. Mesmo assim, ninguém se atrevia ainda a cometer o sacrilégio de mudar os nomes das terras e obras que ostentavam o seu nome: Vila Salazar, Bacau, Timor; Ponte Salazar, estuário do Tejo,Lisboa; Avenida Salazar, Melgaço, etc....  

O novo "homem grande de Lisboa" agora  era o Marcello (com dois ll) Caetano, cujo nome os teus soldados, de 2ª classe, guineenses,  eram simplesmente incapazes de pronunciar e muito menos de soletrar. Não admirava: não falavam português, eram muçulmanos, não comiam carne de porco, não bebiam "água de Lisboa", nem muito menos sabiam onde era a maravilhosa Lisboa e o mítico Terreiro do Paço onde se condecoravam os heróis do 10 de Junho como o João Bacar Jaló.

Falavas em português apenas com o 1º cabo Suleimane, o Zé Carlos,   que era o teu intérprete, guarda-costas, secretário e cozinheiro, quando eram destacados para alguma tabanca em autodefesa da região, como era o caso de Sare Ganá,  do regulado de Joladu.  Era ele, de resto, quem ia junto dos furtivos  caçadores da tabanca procurar comprar alguma peça de caça para o teu frugal almoço.  Ou, junto das mulheres grandes, em busca de ovos e franganitos, raquíticos (sete pesos e meio cada bico)...Partilhavas as refeições com ele, mesmo sendo desarranchado. Onde comia um, comiam dois. 

Além do cabo guineense, levavas uma secção, 11 militares contigo, nove praças, todos do recrutamento local, mais um operador de transmissões, metropolitano. Cabo auxiliar de enfermagem não havia, era um luxo.  "E se houver um azar, meu capitão ?"... (Nem bolsa de primeiros socorros tinhas, pedias por rádio uma evacuação Ípsilon, em caso de emergência.)

Em pleno agosto, no tempo das chuvas. Sare Ganá, no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá...

Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu,,, Estiveste aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa... O que não era ironia, porque a população era fula, estava ao lado dos "tugas",  seus antigos inimigos e agora aliados. Os "cães dos colonialistas", denunciava a "Maria Turra" aos microfones da rádio "Libertação"...

Saré Gané, a mais de 4500 quilómetros de distância da tua casa… "O que fazes aqui, meu sacana ?"... (Como gostarias de ter ouvido alguém teu conhecido, da tua terra, a interpelar-te, eufórico,  pelo caminho!...).  Será que Sare Ganá ainda existe ? Será que alguma vez existiu ? Ou não terá sido fruto de um delírio teu, da tua imaginação já febril, já palúdica ? ... Ah!, malditas sezões, maldito paludismo!...

Sim, Saré Ganá existiu... Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia  e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá era  uma espécie de aldeia estratégica, que tu descreveste no teu diário.  Uma tabanca-tampão. Aqui terminava a "nossa" soberania territorial, a norte do Rio Geba e começava a zona de intervenção do Com-Chefe que incluia, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio”. 

"Nossa" ?,,, Tinhas relutância em usar o adjetivo possível no plural. Como se aquela maldita guerra não fosse também a tua, ou tua... Não,  não era a tua guerra, não a tinhas escolhido de livre vontade, mas também era tua, tinha sobrado para ti... Sim, depressa tiveste que aprender a salvar o pêlo, o teu e dos soldados que te foram confiados. Alguns, putos, "djubis", de 15 e 16 anos...

Era aqui que vivia o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula, de elevada estatura. A sua cabeça destacava-se acima da cabeça dos demais. É isso que queria dizer a palavra chefe, etimologicamente falando.  Presumias que fosse futa-fula. Não fixaste o seu nome. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha, ou foram obrigados a fugir, acossados de um lado e do outro). O seu regulado estava circunscrito ao perímetro de Sare Ganá e a mais duas ou três tabancas: Sinchã Sutu, Sare Banda. 

O teu camuflado ainda cheirava a goma, trazia os odores das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército. Tinhas acabado de chegar do  Centro de Instrução Militar de Contuboel, um "oásis de paz", como tu eufemisticamente dizias, na única carta mensal que tinhas por hábito escrever à família. Carta por correio aéreo, nunca gastaste um aerograma ao Movimento Nacional Feminino.

Em Contuboel,  usavas a farda nº 3, dita de "trabalho". A  tua companhia, de guarnição normal,  depois da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, a IAO,  tinha passado a ser uma subunidade de intervenção,   ao serviço do Agrupamento de Bafatá (do temível coronel Hélio Felgas, se bem te lembras)... 

Como tu dizias com sarcasmo, eras agora um preto de 1ª e os teus soldados pretos de 2ª.

E quase todos os dias ouvías os Fiat G-91 bombardearem Sinchã Jobel, uma base da guerrilha a 10 km a norte, e que era inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeavam... 

Base ? "Barraca", diziam os milícias, em crioulo... “Até Farim é tudo terra para queimar” (sic). Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atrevia então a penetrar neste santuário do IN. Falava-se aqui da "mata do Óio", como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte. A guerra, em todo o lado e em todos os tempos,  era fértil em criar lendas e narrativas. O mito do Óio começava em Saré Ganá...

Ainda estava na memória da população o ataque de há um ano atrás, em 12 de agosto de 1968, ao tempo da CART 1690: à meia noite em ponto, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos, ou seja um bigrupo reforçado, vindo de Sinchã Jobel, tinha atacado Sare Ganá.

“Um ataque medonho”, segundo o testemunho de alguns milícias com quem falaste, com o Suleimane a servir de intérprete.  Já não apanhaste a "velhice" de Geba, tinha acabado a comissão em março de 1969.

O ataque iniciou-se por tiros de morteiro, lança-granadas-foguete (os temíveis RPG que tinham fama de arrancar cabeças) e metralhadoras, com uso de balas incendiárias. O IN conseguiu alcançar o arame farpado do lado Norte,   penetrando na tabanca. Uma falha de segurança, no perímetro de arame farpado, mesmo armadilhado,  terá permitido a passagem de uns alguns atacantes, empunhando armas ligeiras automáticas. Algumas moranças começaram logo a arder. 

A reação das NT não se fez esperar: os valentes milícias fulas, uns a partir dos abrigos, outros dispersos pela tabanca, reagiram pelo fogo, aguentando o ímpeto inicial do ataque e dificultando o mais que puderam a infiltração dos "turras".  Parte da população, os homens, estava armada e colaborou na defesa da tabanca. Mas depressa se esgotaram as munições, obrigando a milícia a recuar. A disciplina de fogo nunca foi apanágio do guineense, quer empunhasse uma G3 quer manejasse uma Kalash. 

Em Geba, sede da CART 1690, a escassa meia-dúzia de quilómetros, logo que se ouviram os primeiros rebentamentos, saiu um piquete de socorrro, num viatura: meio pelotão, enquadrado por um alferes e um furriel. Nas proximidades de Sare Ganá, cerca de meia hora de depois, o grupo subdividiu-se, aproximando-se, a pé, da tabanca, com a intenção de procurar surpreender as forças atacantes.

Ao mesmo tempo que apoiavam a retirada da população, as forças da CART 1690 iam abrindo caminho, morança a morança, à força de bazucadas e curtas rajadas de G3. Gente brava e sacrificada, essa companhia de Geba!...

Às tantas, o IN, surpreendido pelo contra-ataque, lançou um “very light” e iniciou a sua retirada, arrastando consigo as baixas que sofrera e carregando o respetivo material. Devido à escassez de efetivos e à escuridão da noite, a perseguição encetada pelas NT não terá ido além da orla da mata próxima. Ninguém, de resto, gostava de combater à noite...

Uma hora e tal depois do ataque chegou uma coluna de socorro, em viaturas, oriunda de Bafatá, composta por cerca de dois pelotões reforçados, da CCS/BCAV 1904, do EREC 2350, e do Pel Caç Nat 64. 

Controlada a situação, as forças de Bafatá, com exceção do Pel Caç Nat 64, regressaram com os feridos mais graves da milícia e da população local. Foi montada segurança à tabanca nessa noite e dias seguintes.

Apurou-se então que o IN terá tido 5 mortos e outras baixas prováveis. De entre o material capturado, contaram-se duas armas ligeiras, uma metralhadora Dectyarev, com bipé, e uma pistola metralhadora Sudayev PPS-43, de origem russa, uma das lendárias armas ligeiras da II Guerra Mundial, variante da PPSh-41, mais conhecido por "costureirinha"... 

 Do lado dos defensores, soube-se que tinha havido baixas entre a milícia e a população local. Parte da tabanca teve que ser reconstruída.

Um ano depois  aqui estavas tu, "periquito", de 5 a 17 de agosto de 1969, integrado no grupo de combate da tua CCAÇ,  temporariamente em reforço do Sector L2 (Bafatá). Uma secção fora destacada para Sare Ganá e duas para Sare Banda. O alferes deve ter ido para Sare Banda, se é que não se baldou, mas já te lembras...


Dias antes da tua chegada a Sare Ganá,  o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutu, mais a Norte. Tocaram as campainhas de alarme em Bafatá, tal como acontecera com Madina Xaquili,  a sul.  

Agora, por causa de um possível ataque da guerrilha (mesmo no auge do tempo das chuvas) era proibido, à noite, fazer lume ou fumar na tabanca de Sare Ganá. Contava-se que num outro destacamento do subsetor de Geba, tempos antes,  dois militares das NT haviam "lerpado" com um roquetada quando acenderam uma lanterna na tenda...   Jogavam às cartas, dizia-se, para matar o tédio... Tiro de um "snipper"... Uma morte horrorosa, como todas as mortes na guerra...

Em Saré Ganá o pessoal comia  cedo e deitava-se cedo. Ficavam os vampiros dos mosquitos a velar-te. Por sorte, não apreciavam lá muito o teu sangue. Devia-lhes saber a uísque. Tinhas levado uma garrafa contigo...

E mais à frente, no teu diário, a 15 de agosto de 1969, perguntavas:

(...) “Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma seção de combate, uma bazuca 8.9, um morteiro 60, 10 G-3 e um rádio se isto der para o torto ? 

"Depois do ataque malogrado à tabanca próxima, Sinchã Sutu, a população fula anda compreensivelmente nervosa,  inquieta... Sinto-me como os bombeiros, atrás da ameaça de fogo-posto, mas ainda não fiz sequer o meu batismo de fogo, contrariamente à maior parte da companhia, que teve os seus primeiros feridos graves em Madina Xaquili, no sul do chão fula, há menos de 3 semanas." (...)

Perguntavas a ti próprio qual o sentido e o alcance desta tua missão:

(...) “Limito-me a estar aqui e vigiar os postos de sentinela: adormeço sobre a manhã,mas não posso durmir como um porco; às dez ou onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota é já absolutamente insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou, e que em dias de sorte pode ser um bife de gazela, com algumas legumes das hortas locais...

Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Jalon (leia-se "Djalon") eram donos e senhores destas terras, derrubado o reino de Gabu em Cassalá há 100 anos atrás.

Ao fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional, converso com a população e recapitulo  o plano de defesa da tabanca” (,..)

Dormir que nem um porco!...  Aqui convinha  lembrar o sábio conselho do provérbio popular: 'Três horas dorme o santo, quatro o que não é santo, cinco o viajante, seis o estudante, sete o porco e oito o morto'... Seria, afinal, aqui  que irias aprender que dormir muito fazia mal à saúde...

E relatavas, no teu diário, uma bravata estúpida, bem típica de um inconsciente "periquito”, feita logo no princípio das tuas andanças por aqui. É uma das tuas duas recordações marcantes da estadia em Sare Ganá:

(...) “Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. Talvez Sinchã Famora, a sul, não fixei o nome. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco (!), tentando detetar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis.

" A meio do percurso, apanho um susto, pondo à prova os meus reflexos: um antílope, que pastava perto, atravessou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada". (...)

 Foi mais do que um susto, apanhaste um calafrio: é que na noite anterior, uma hiena, que lá chamava "lobo", e que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito acionar uma das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto começaste a ouvir, de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal, assustadiço, andava com os nervos em franja.

Ainda hoje te perguntas como é que tu arriscaste a tua vida e a do milícia local, nesta estúpida e inútil aventura de ir “reconhecer” uma aldeia abandonada e armadilhada ?!… Puro voyeurismo, grosseira infantilidade... Não fazia parte da tua missão!... 

Em suma, uma pura bravata!... Talvez quisesses provar a ti mesmo que também eras “um gajo com tomaste", tu que nem sequer eras um atirador de infantaria, nem tinhas, ao certo, nem pelotão nem secção...Eras o "pião das nicas", como te chamava o teu capitão, suprias as faltas de graduados, em todos os pelotões... 

Quiseste-te armar em "ranger", ou pior ainda, de sapador, tu que nem sequer tinhas conhecimentos rudimentares de minas e armadilhas... Podias ter acabado logo ali,a  escassos a dois meses e meio de Guiné, crivado de estilhaços.  Saré Ganá era, francamente, um sítio desolador para se morrer e, pior ainda, para se ficar inumado na vala comum do esquecimento...

A outra recordação marcante foi a da visita à tua morança, de uma  "gazela furtiva", cujo nome nunca soubeste, e que ficou no teu diário como uma simples "Fatumatá":

Ainda não me tinhas habituado ao ‘black-out’ total, imposto por óbvias razões de segurança: não podias ler nem escrever na tua morança de comandante...

(...) "Faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas, o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganá, em plena época das chuvas" (...).

Logo na segunda ou terceira noite tiveste a companhia silenciosa, misteriosa e furtiva de uma mulher da aldeia (nunca pudeste confirmar a suspeita de que era uma mulheres do comandante da milícia  local)...

Nem deste conta: introduziu-se, lesta como uma gazela, na palhota onde durmias, junto ao espaldão do morteiro 60. Tapou-te a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-te o seu esguio corpo de ébano, ressumando húmidos odores da floresta!...

(.,..) “De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fêmea de felino!" (...).

Não te olhou olhos nos olhos, mas tu fizeste questão de a mirar de alto a baixo, de frente:

(...) “Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... É sensual e ainda jovem, de seios duros mas pequenos... 'Mama firme', como se diz aqui. É provável que seja infértil e nunca tenha parido.” (...)

Assim de chofre, tiveste dificuldade em perceber o seu comportamento e muito menos em adivinhar-lhe a idade:

(...) “Terá vinte e tal anos, menos de trinta.  (...)

E, tal como tinha chegado, partiu depois, discreta, silenciosa, furtiva, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo...

(...) “Um 'affaire' no mato ? Que palavra tão deslocada, para mais francesa,  aqui no cú do mundo, numa tabanca fula, num país em guerra!” (...)

De qualquer modo, aquele momento de todo inesperado acabou por ser  celebrado com uma singela troca de "roncos": deste-lhe uma toalha de banho turca, colorida (haverias de comprar outra na Casa Gouveia, em Bafatá),  e ficaste-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação daquela estranha noite de Sare Ganá. Passaste a usá-la como amuleto.


Nem sequer te ocorreu "partir patacão" com ela: não querias, de modo algum, que o "vil metal" viesse  estragar a singeleza e até a beleza daquele momento, a partilha de corpos entre um homem e uma mulher que pertenciam a dois mundos completamente opostos...mas tinham em comum quiçá a infelicidade e a solidão do "hic et nunc", do aqui e agora...

Ainda hoje tens dificuldade em entender o significado daquela cena!...  O significado s
ocioantropológico, acrescenta lá o chavão: 

(...) "Simples atração sexual de um mulher por um estrangeiro ? Simples favores sexuais sem pedir mais nada em troca ? Cumprimento da obrigação feminina de hospitalidade, por ordens expressas do régulo ou do comandante de milícias que tu mal conheceras ? Ritual de submissão ao representante dos tugas, os 'senhores da guerra'? Solidão, despeito, ciúme, não sendo a mais nova das mulheres do seu marido e senhor, e muito provavelmente sendo infértil, e se calhar até repudiada,  uma das piores maldições que pode recair sobre a honra de uma mulher em África ? (...)

Este caso não era único, na época, e não acontecera por certo pelos teus lindos olhos... Nunca te armaste propriamente em sedutor... Soubeste mais tarde de outras estórias semelhantes de partilha de favores sexuais, de iniciativa aparentemente feminina... em contexto de guerra.


E concluias esse apontamento no teu diário, antes de regressares à sede do batalhão:

(...) “Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados, infelizes e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória. Nem sequer o seu nome. Nem quem a teria mandado. Nem sei se algum dia voltarei a Sare Ganá. Mas a sua imagem de gazela furtiva, essa, não vou tão cedo apagá-la da minha memória."


Nãp, nunca mais voltaste a Sare Ganá, é verdade...

Já em Contuboel, nos menos de dois meses de paz de Contuboel, tu havias escrito:

(...) Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros. 

O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes ou nas poças da chuva; (iv) os homens grandes, sempre eles, a tagarelar uns com os outros sentados no bentém, mascando nozes de cola. (...)

Em suma, um fim de tarde calmo numa tabanca fula (ou mandinga, ainda não sabias distinguir),   dos arredores de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para uma exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI). 

E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que estava traçado: em breve a guerra, e a militarizaçáo do seu "chão", e com ela a morte e a desolação, chegariam até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…

E acrescentavas em tom algo premonitório ou até profético, juntamente peças dispersas do pouco conhecimento que detinhas da situação político-militar do território, em meados de 1969:

(...) "O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Dulombi a Fajonquito, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, e até desarmados, como se fossem turistas em férias! (...).

Meio intrigado ou embaraçado com a hospitalidade local (deram-te 
uma morança, uma cama, um banquinho ou uma "turpeça", além de uma mulher, ainda jovem mas mais velha do que tu...),   foi lá , em Saré Ganá, que te apercebeste do profundo significado socioantropológico do "dom", do dar e receber, do ter ou não ter.... uma "turpeça", um morança, uma mulher, e uma esteira para dormir, atributos afinal do poder dos pequenos senhores da guerra...  

© Luís Graça (2006). Revisto: 1 de setembro de  2024.
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Nota do editor:

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25745: Notas de leitura (1709): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
São memórias de um piloto que combateu na Guiné e Angola, um feixe de peripécias de situações omnipresentes em todo o tempo que aquela durou, desde aviões avariados, ao nascimento de crianças a bordo, o transporte de prisioneiros ou de sacos de cadáveres vitimados por uma daquelas explosões do combustível que pôs os corpos em tocha. Lembranças amargas umas, porque morreram pilotos heróicos e devotados, histórias de sobressalto, como uma cobra metida num sapato, a revelação de um sabotador em Bissalanca, os bombardeamentos noturnos, permanecer uma noite no quarto com um avião avariado e levar com uma flagelação, os T-6 na Operação Tridente, apanhando os guerrilheiros em plena praia, e não podemos deixar de gargalhar com a mulher do Governador Schulz levada pela multidão, a senhora a gritar e o Governador a pedir para apanharem a velha... Leitura que não vou esquecer tão cedo, até porque me assaltou à memória as ajudas recebidas da Força Aérea na evacuação dos meus feridos, pilotos tão solícitos e enfermeiras tão dedicadas.

Um abraço do
Mário



Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Rogério Lopes, (2.º Sargento Piloto, Guiné, 1963-1965), nascido em 1939, tirou a primeira licença de piloto civil em 1959 através da Escola Aeronáutica da Mocidade Portuguesa e nesse mesmo ano entrou na Força Aérea. Durante 3 anos esteve colocado na base aérea de S. Jacinto, parte para a Guiné em 1963. Passou à reserva em 1970 e foi trabalhar para a aviação civil. Das suas missões em dois teatros de guerra deixa-nos este relato que já vai em 3.ª edição, Missões de Um Piloto de Guerra, 2019.

São narrativas versáteis, revelam memórias de um espírito otimista, entusiasta, dotado de grande espírito de corpo, de muitas coisas nos falará, desde o seu batismo de fogo, a missões de socorro, o seu apreço pelos heróis do ar, avarias que não acabaram em desastre, bombardeamentos noturnos, evacuações de uma atmosfera de tempestade, crianças que nasceram a bordo, episódios picarescos, vale a pena contar um pouco de tudo, são os primeiros anos da guerra da Guiné.

Obviamente que conheceu voos acidentados e alguns deles com a fuselagem crivada de tiros. Era um piloto bem preparado e não perdia o sangue frio, veja-se este episódio:
“Aconteceu-me um incidente numa missão de correio e transporte de Auster para Gadamale-Porto, cujo quartel ficava junto a um rio com um cais no fim da pista. Acontece que a dita pista era um caminho de terra e lama, onde só se podia aterrar na maré-baixa, tendo apenas 600 metros de comprimento. Ora, nesse dia, a maré já estava a encher, o que estreitava a faixa de aterragem e aumentava o perigo de derrapagem. Depois de uma passagem baixa resolvi aterrar, correndo todos os riscos inerentes, e porque tinha uma evacuação a fazer e isso podia custar a vida a alguém. Tudo correu bem até ao preciso momento de aconchegar os travões, que eram ao contrário de qualquer outro avião, que são na ponta dos pedais, enquanto estes eram nos calcanhares. Aí é que foi o diabo, o avião começou a dar ao rabo como uma dançarina de rumba, e lá vou eu, deslizando como sabão sobre azulejo molhado. Os 600 metros acabaram, consegui apontar à rampa de 5 metros de largura que dava acesso à doca e… entrei deslizando por ali dentro, gerando a confusão total. Soldados, civis, brancos, pretos e mestiços pareciam baratas aterrorizadas. Eu é que não estava pelos ajustes que só me restava uma solução: provocara um cavalo-de-pau, ou seja, rodar 360 graus, e assim fiz.”

Guarda saudades da Aldeia Formosa, o régulo recebia-o sempre prazenteiramente. Foi inevitável, nasceu-lhe uma criança a bordo, tudo aconteceu num Do-27, voou para Farim, a bordo seguia um mecânico e uma enfermeira paraquedista, tratava-se de um parto complicadíssimo. 

“No regresso e no eclodir dos primeiros gritos a bordo, a enfermeira-paraquedista, apesar dos seus temores, arregaçou as já curtas mangas, desinfetou-se, calçou luvas próprias, ordenou ao mecânico que agarrasse a mulher e mergulhou as suas mãos energicamente. Entre os gritos da paciente, da transpiração da enfermeira e da boca aberta do mecânico, esgazeado por todo aquele aparato a que nunca tinha assistido, eu ia tentando, com o meu feito brejeiro, amenizar um pouco todo aquele stress, dizia que ia sair do meu lugar para ajudar, o que deixava a pobre paraquedista ainda mais nervosa. Depois de uma hora de luta intensa, de berros, suores e cabelos em desalinho, finalmente ouvi um grito de jubilo: Ó Lopes, olhe, já se vê a cabecinha! O nosso cabo mecânico, com uma cara assaz comprometida, continuava a desculpar-se com o seu pouco ou nenhum auxílio, dizendo que não tinha luvas para tal tarefa. Quando aterrámos o bebé acabava de nascer.”

Uma vez foi a Tite levar passageiros e correio, quando este lhe foi entregue tentou ligar o motor, nada, como último recurso rodou a hélice à mão com os magnetos ligados, nada, ali ficou à espera de auxílio, no dia seguinte. Nessa noite houve flagelação, a sua grande preocupação era o avião, saiu ileso daquele confronto, em compensação parte do telhado da caserna tinha desaparecido. Ele fora bem recebido por um Furriel vagomestre, soube na manhã seguinte que tinha sido atingido à saída do quartel. 

Também passou por peripécias com jagudis intrometidos, houve um que lhe entrou no avião com uma bala de canhão, passou um mau bocado, mais tarde recebeu um jagudi embalsamado, “oferta dos nossos soldados do quartel de Binar para o aviador que nesse dia ia perdendo a vida ao tentar entregar o correio por que tanto ansiavam e não receberam, por este ter encontrado no caminho o guerreiro jagudi”.

E vem agora o episódio mais hilariante da narrativa, intitulado “A visita oficial do Governador”:
“Bem cedo, pela manhã, com o Dornier já preparado, pouco esperei pelo Governador e comitiva, que constava apenas da esposa, que aparentava ser mais velha do que ele e tinha dificuldade em andar, e o oficial de operações às ordens.
A viagem de Bissau a Bafatá era de mais ou menos uma hora. Nos bancos de trás, ia o oficial de operações e a senhora e, ao meu lado, o general. Como simpatizávamos um com o outro, aquela hora foi passada de forma e conversa agradável, até a nossa vista alcançar a pista de dois quilómetros de terra batida, mas em bom estado, ladeada pela formação das tropas dos três ramos das Forças Armadas. Todos eles com as suas melhores fardas e ostentando orgulhosamente as medalhas. A separar a população nativa havia um cordão da polícia militar para impedir a invasão da pista. Aterramos no meio de todo aquele aparato festivo, com o clamor de palmas, gritos, fanfarra, rufar tambores, guizos indígenas e bandeiras flutuando ao sabor da agitação de centenas de mãos; assim que parámos, um diligente oficial veio rapidamente abrir a porta de trás do Dornier, para ajudar e facilitar a saída da esposa do Governador.

Ainda hoje, não sei dizer ao certo como tal aconteceu, mas a verdade é que a populaça rompeu o cordão de segurança e, rodeando o Dornier, sacou rapidamente a senhora, levando-a em ombros, acompanhada de gritos festivos, para o meio da multidão em delírio.
A senhora olhava para trás e gritava para o marido a tirar dali, e ele, por sua vez, dizia para mim, com ar assustado: Ó Lopes, eles levam-me a velha!
Depois, gritando o mais que podia, para ser ouvido pela tropa que estava tão desnorteada como nós, repetia incessantemente: Apanhem a velha, apanhem a velha!
E lá se foi todo aquele aparato disciplinar por água abaixo. As alinhadas formaturas desfizeram-se, a multidão branca e preta corria para apanhar a senhora, que continuava a gritar para o marido, no meio daquele mar colorido de civis, militares, bandeiras, estandartes e fanfarra à mistura.”


Dedica um texto e muito emotivo à morte do alferes Pité, como igualmente nos relata a tragédia de fuzileiros falecidos mortos a caminha de Madina do Boé. Uma bazucada rebentara o depósito de combustível de um dos carros e todos os que ali iam foram consumidos pelas chamas, tiveram uma morte horrorosa. Os camaradas eram uma máscara de dor, com os seus gritos dilacerantes. E Rogério Lopes, pesaroso, descreve os voos para transportar os cadáveres envolvidos em enormes sacos de plástico preto. “Foram quarenta atrozes minutos em que as minhas narinas ficaram impregnadas de um cheiro que jamais esquecerei, assim como a pena por aqueles infelizes fuzileiros, que não conhecia pessoalmente, mas que admirava pela coragem demonstrada no campo de combate.”

Em maio findou a sua comissão, em junho foi condecorado no Terreiro do Paço com uma Cruz de Guerra, ao lado do seu Comandante na Guiné. Sentiu uma saudade imensa por aqueles que jamais voltariam.

Não vou esquecer tão cedo tão memorável, dura narrativa, recheada de peripécias inusitadas e outras não tanto, onde paira sempre o sentido de ver alanceado pelo otimismo.



Cruz de guerra, 3.ª classe
T-6 em pleno voo
O Do-27
O Auster
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Notas do editor:

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