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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27340: A nossa guerra em números (42): com um "per diem" de 24$50 (hoje 4,10 euros) dava para fazer uma... ometela simples mas saborosa!



Cartum: O "per diem"

Fonte: LG + ChatGPT (imagem gerada pela IA, 
sob instruções de LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



1. Recorde-se que cada militar, do soldado ao general, tinha direito no nosso tempo, no CTIG,  a um "per diem" de 24$50 (=4,10 €, a preços de hoje). Para se alimentar.

Nunca vi isso escrito em parte nenhuma. Nem com a ajuda da "Sabe-Tudo"... Mas recordo-me que, no meu tempo (1969/71), um soldado da CCAÇ 12, do recrutamento local, uma praça de 2ª classe (!) ganhava 600 escudos por mês, mais o "per diem" de 24$50. 

Por ser desarranchado: os nossos camaradas guineenses comiam a sua "bianda" na tabanca  (havia duas em Bambadinca, uma a mais antiga, entre o quartel e o rio Geba; e outra, um reordenamento, a oeste; ou sejam, eles viviam com as suas famílias fora do perímetro de arame farpado...). 

Quando para iam para o mato, em operações, também não tinham direito a ração de combate, por serem "desarranchados":  levavam um lenço atado com um mão  cheia de arroz cozido e nozes de cola para aliviar a fome e a sede... De resto, o exército (ou o serviço de intendência) não tinha rações de combate para muçulmanos (pelo menos no meu tempo).

Em suma, um soldado guineense de 2ª classe recebia em média 1300 escudos ("pesos"), o que para um tabanqueiro guineense era "manga de patacão" naquele tempo.  Vejamos: 1300$00 em 1969 seria equivalente a 466,00 euros, a preços de hoje, dava para comprar dois sacos de arroz, 200 kg, na loja do Rendeiro, em Bambadinca, e ter duas mulheres).

O Estado fornecia a "ração diária" dos seus soldados (os "brancos de 2ª)  em géneros.  

O vagomestre com esses 24$50 tinha que nos dar de comer e beber,  a nós, metropolitanos:  pequeno-almoço, almoço e jantar.  Náo havia lanche nem ceia... Os petiscos, a cerveja, o uísque, isso era tudo por conta do "freguês". A tropa não pagava esses luxos.  Parece que também tínhamos direito a uma dose....de bagaco.  Mas eu nunca o vi nem o cheirei.

Em 17 de junho de 1974, na CCS/BART 6523/73 (Nova Lamego, 1973/74), segundo a relação dos víveres existentes (*), o "per diem" dava para "comprar" o equivalente a uma dúzia... de ovos (=24$30) (importados da metrópole, custavam tanto como uma garrafa de vinho verde de marca!)...

Era, pois, um luxo fazer uma generosa omeleta (que tinha que dar.... para  3 refeições)!...Já não dava para juntar umas rodelas de chouriço (1 kg = 64$80,  ou 10,85 euros, a preços de hoje).

E se quisesses beber um copo ? Quanto representava a tua ração diára de vinho no "per diem" ?

2. Façamos as contas:

(i) tinhas direito a dois copos de vinho por dia (tinto, mais frequentemente, branco às vezes, e oxidado), o equivalente a 0,25 dl em junho de 1974;

(ii) valor, de resto, que ainda está por confirmar: um ano depois, a ração diária de vinho, em Lisboa, era de 0,40 l, para qualquer militar dos 3 ramos das Forças Armadas); (**)

(iii) o preço de um litro de vinho, em Nova Lamego, era de 11$60 (o equivalente hoje a 1,94 euros);

(iv) o quarto de litro ficava, portanto, por 2$90 (=0,485 euros);

(v) se considerarmos o valor mais provável, no ultramar, no fim da guerra, que seria os 0,4 l (1 copo de 2 dl  a cada refeição principal) terias gasto 4$60 do teu "per diem"  (à volta de um 1 euro, sobravam-te 3 euros para o conduto...).

3. Não te assustes: a inflação, desde os finais de 1973, já estava a baralhar as  contas do vagomestre, do 1º sargento, do capitão e por ai fora até ao último  governador e comandante-chefe, em Bissau, o brigadeiro Carlos Fabião,  e o ministro das Finanças, em Lisboa (que já ninguém sabe quem era)...

Oh!, camarada, Zé Saúde (que foste vagomestre por um mês, se bem percebi) (**), com um "per diem" de 24$50, já lerpavas de fome... em Nova Lamego, nessa altura.  

O que vale é que já estavas de abalada para Lisboa... (Recorde-se que o teu batalhão "comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuadas nos subsectores de Madina Mandinga e Cabuca, em 20Ag074 e de Piche, em 29Ag074", e que em 7 de setembro já estavas, em Lisboa, a caminho de Beja para cometes as tuas saudosas migas...

Mas pergunto-te: quantas vezes passaste sede ? quantas vezes deixaste de beber a tua pinga ? e porqué ?

Nunca se davam explicações na tropa. Especulava-se: atrasou-se o barco, ou foi atacado em Mato Cão, acabou-se ou estragou-se o vinho que havia no barril, no garrafão de 10 litros ou no bidão metálico de 200/210 litros, etc... (Estes bidões metálicos são do teu tempo, não do meu meu, "modernices" da Intendência, ou então já indícios da crise dos tanoeiros.)

E não havia Jesus Cristo para fazer milagres, ele  que não chegava para todas as encomendas e nunca parou (nem reparou) em Nova Lamego, para fazer o milagre da conversão da água em vinho e da multiplicação dos pães!...

Mas alguém terá ficado no bolso com os teus tostões, os teus cêntimos, do teu mísero "per diem"... 

4. Sabemos que a 3ª Cart / BART 6523 tinha, em 18/6/1974, na despensa da CCS, à sua guarda,  um stock de vinho na ordem dos 1145 litros... Se multiplicares por 11$60, dava a bonita soma de 13 contos e mais uns trocos: 13.282$00 (= 2593,00 euros, a preços de hoje).


Essa 3ª Companhia deveria ter uns 160 homens, mais coisa, menos coisa... Se todos bebessem (e não houvesse coluna de reabastecimento), só teriam vinho para menos de um mês:

(i) 29 dias, se a  ração diária de vinho fosse de 0,25 l (2 copos pequenos);

(ii) 18 dias, se a ração diária fosse de 0,40 l (2 copos de 2 dl cada, com.o nos parece mais provável).

De qualquer modo, havia apenas  vinho para menos de um mês... A menos que fosse  "batizado"... Enfim,  era mais um quebra-cabeças logístico:

  • tinha-se que ir buscá-lo a Bambadinca, onde havia o destacamento da Intendência mais próximo, noutra ponta da zona leste (a estrada já era alcatroada, passando por Bafatá, ao menos isso);
  • pensando em termos de recipientes, 1145 litros de vinho eram 5 bidões metálicos de 200 litros + 1 barril de 100 litros e uns tantos garrafões de 5 litros  ( parece que em 1969/71 já não se viam garrafões de 10 l)...
E às vezes o raio do vinho oxidava--se, envinagrava-se, estragava-se... Ou então evaporava-se, sumia-se, e ninguém sabia como... "Obra de profissionais" ? Para quê se não havia "mercado local" ou "regional" ? !... Não seria para revender à população,  que os de Nova Lamego não podiam beber "água de Lisboa", por serem muçulmanos... Muitas vezes era "pró petisco" dos "tugas" (sendo o cozinheiro sempre convidado)...

De qualquer modo, nada como falar com números ! (***). E sobretudo ouvir as histórias dos nossos vaogmestres, como o Aníbal Silva, que é catedrático nestas matérias...

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)

(**) Vd,. poste de  18 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27328: O vinho... pró branco de 2ª e pró tinto de 1ª (2): qual era a ração diária em campanha , no Ultramar ? Um copo à refeição, 2,5 dl por dia ? Se sim, uma companhia no mato (=160 homens) tinha um consumo médio mensal de 240 garrafões de 5 l... (Mas a capitação diária da ração de vinho, para os 3 ramos das Forças Armadas, foi fixada em 0,4 l, em 1975.)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27325: A nossa guerra em números (41): quantos eram os elementos do serviço de saúde por batalhão ? E por companhia ? Médico, enfermeiro, auxiliar de enfermeiro, maqueiro...

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