1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2019:
Queridos amigos,
Impossível ignorar a grande qualidade da investigação desta tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca. Ao interligar história, sociologia, economia e ciência política para analisar as dinâmicas da imprensa e do jornalismo nos territórios da África Portuguesa, nos séculos XIX e XX, produziu, tanto quanto me é dado saber, pela primeira vez uma leitura abrangente dos contextos sociopolíticos a par da evolução da natureza da imprensa existente. O contexto guineense é observado a fundo.
Tudo começou com o Boletim Oficial, foi a única fonte de imprensa até 1920, suceder-se-ão depois vários jornais, de vida efémera ou muitíssimo contingente. Com Sarmento Rodrigues terá aparecimento aquela publicação que ainda hoje é obrigatória para quem investiga ou sente paixão pelos assuntos guineenses: o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Estando acessível o texto integral, é leitura recomendada, sem qualquer hesitação.
Um abraço do
Mário
A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento do Instituto de Ciências Sociais (1)
Beja Santos
A tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada
“A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (acessível pelo link
https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/15605/1/ulsd069555_td_Isadora_Fonseca.pdf), é um documento que revela estudo e tratamento seguro de uma temática que tem vindo a ser abordada fragmentariamente. A Guiné e a sua imprensa, pelo rigor de análise da autora, merecem aqui o devido realce. Isadora Fonseca adverte-nos no resumo que
“no estudo das relações entre a imprensa e o império adota-se uma perspetiva multidisciplinar, na qual dialogam a História, a Sociologia e a Ciência Política, permitindo uma compreensão aprofundada das interações e interdependências entre a imprensa, o império colonial e os regimes políticos. O estudo de caso da África Portuguesa demonstra que a imprensa e o jornalismo nos cinco territórios apresentaram dinâmicas e caraterísticas similares no período colonial”.
Falando da situação portuguesa na Guiné no século XIX, a autora refere dois períodos, o que se estende até 1859 e que se caracterizou pelas tentativas de reconversão económica do comércio negreiro e o segundo que se identificou pela busca de um espaço colonial que afirmasse a soberania portuguesa, fase que só terminou com as campanhas militares de 1912-1915. Faz uma breve resenha da presença portuguesa desde meados do século XV, releva as praças de Cacheu e Bissau, as mais importantes no século XIX, observando que o grupo dominante era formado pelos grandes negociantes e negreiros, representantes comerciais e funcionários superiores; a classe média incluía os pequenos comerciantes, os proprietários das embarcações, os oficiais militares e os membros da Igreja; na base estavam os soldados, degredados e os grumetes (estes descendiam de escravos alforriados e africanos cristianizados) e mesmo, mesmo no último escalão social estavam os escravos. Adianta elementos que deixam bem nítida a fragilidade da soberania portuguesa:
“A incapacidade do governo metropolitano em suprir os encargos dos funcionários e militares instalados na Guiné levou ao arrendamento do rendimento das alfândegas, a partir de 1840. Deste modo, consolidou-se a posição económica da elite afro-lusa, pois esta apropriou-se do único rendimento da região, responsabilizando-se pelos salários dos funcionários com o argumento de defender o império português. Embora exportasse amendoim desde os anos de 1830, a agricultura era quase inexistente. No campo económico, preponderou o tráfico ilícito de escravos na maior parte do século XIX e a ele articularam-se as trocas comerciais, com o domínio dos navios franceses e americanos. Ressalve-se que o transporte marítimo e o comércio com Portugal eram quase inexistentes nesta época”.
A autora chama igualmente a atenção para outro fenómeno que acabou por gerar grande instabilidade e tumulto migratório: a desagregação do império do Gabú, e a pressão conflitual dos Fulas contra os Beafadas, que levou a um quase despovoamento colonial do Forreá.
A imprensa nacional instalou-se em 1880 e com ela iniciou-se a publicação do Boletim Oficial. Semanário e com quatro páginas, o Boletim Oficial da Guiné seguia o padrão das demais colónias, dividido entre ‘Parte Oficial’ e ‘Não Oficial’. Este boletim oficial também incluía o relatório dos concelhos de Bolama e Bissau. A autora avança com saborosas e ilustrativas situações retiradas do Boletim Oficial.
E assim chegamos ao quadro da imprensa na Guiné na Monarquia Constitucional. Não houve imprensa privada e tem que se saber porquê.
“A inexistência de autoridade portuguesa sobre as populações nativas, o regime de administração indireta e a multiplicidade de unidades políticas nativas, e a inexequibilidade das reformas administrativas são os fatores que caraterizam o estatuto político da Guiné no século XIX”, e a autora invoca a perspetiva dada pelo investigador António Duarte Silva. Não havia elites, acresce, como é óbvio, que a emergência da imprensa requer factos sociais, políticos e económicos que exijam circulação de informação, o que não acontecia naquele local chamado Senegâmbia.
“Ao longo da Monarquia Constitucional, o Boletim Oficial foi o único meio de informação na Guiné e exerceu sobretudo o papel colaborador, apoiando o governo na execução dos seus planos. Contudo, não fosse o boletim oficial e não existiria o mínimo de informação sobre as decisões políticas, administrativas, económicas e militares do que se passou na Guiné entre 1880 e 1920, quando apareceu o primeiro jornal privado no território”.
E passamos para o regime republicano, chegou novo Governador, Carlos de Almeida Pereira, o seu nome fica ligado ao derrube dos muros que protegiam S. José de Bissau das arremetidas das populações limítrofes. Constituíram-se comissões do Centro Republicano de Bissau e Cacheu, do Partido Republicano Português em Bolama e das comissões municipais do mesmo partido em Bolama e Bissau. É referida a importância e o enigma que continua a cercar a Liga Guineense, criada em 1910, e posteriormente dissolvida, em 1915, os estudiosos invocam por vezes razões altamente discutíveis. É um dossiê em aberto. Certo e seguro é que surge em 1920 o Ecos da Guiné, Quinzenário Independente Defensor dos Interesses da Província, dirigido por José Joaquim Curvo Semedo, era uma iniciativa de funcionários públicos europeus, reproduzido na Tipografia do Estado, não sobreviveu ao primeiro trimestre de 1920. A Voz da Guiné, em 1922, escrevia que o Ecos da Guiné
“quase que morreu à nascença porque a verdade é que, para viver, teria de se sujeitar a imposições do Governo”. A Voz da Guiné espelha aspirações que têm a ver não só com o desenvolvimento económico como as noções primárias de um Estado de direito. Logo no número um é referida a sua aspiração de levar longe o conhecimento do mercado guineense e de combater as infrações, defendendo a justiça e realçando o papel do direito. E promovia causas: denunciar o nepotismo, criticar a falta de higiene e de saneamento. A Voz da Guiné, Quinzenário Republicano Independente, tinha como editor Rui Carrington S. da Costa, e também era reproduzido na imprensa nacional. Teve vida efémera, foram publicados apenas onze números.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 de junho de 2020 >
Guiné 61/74 - P21084: Historiografia da presença portuguesa em África (213): Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné - Carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira, publicada no Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa (Mário Beja Santos)