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sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Esta História do mundo em 100 objetos ocupa-se, de uma maneira totalmente original, de abordar 100 objetos que nos conduzem numa viagem no tempo e no espaço, dando-nos a conhecer como a Humanidade moldou o mundo, desde a Pré-História a este emergente século XXI. Se começamos em África de há dois milhões de anos a ele regressamos no início do presente século para ver uma escultura patente no Museu Britânico feita de armas que nos falam da Guerra Fria, da luta de libertação, de choques interétnicos, da incapacidade dos países recém-independentes terem sabido reconciliarem-se e caminharem juntos, pacificamente, para uma via de progresso, de equidade e bem-estar.
Dos 100 objetos escolhemos o Trono de Armas como marcante de um projeto de reconciliação que fizesse retirar milhões de armas do meio familiar, fazer desaparecer as crianças-soldados, remover as minas, dando como contrapartida a todos aqueles que entravam neste projeto-paz e restituiam as armas, enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material de construção civil. Esta escultura feita de pedaços de armas forçosamente que nos perturba, de uma peça de destruição fez-se alegoricamente um trono, a tecnologia tem destes prodígios, de uma hora para a outra a fábrica de eletrodomésticos pode transformar-se numa construtora de armas sofisticadas. É o estupor desta fragilidade de que este trono também fala.

Um abraço do
Mário



Um registo da guerra que dá pelo nome de trono de armas, tragédia e triunfo humanos

Mário Beja Santos

Uma História do Mundo em 100 Objetos, por Neil MacGregor, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014, é uma estimulante aventura em que os objetos ajudam a compreender a história mundial. Neil MacGregor usou da faculdade de Diretor do Museu Britânico para fazer palestras na BBC e dar à estampa esta admirável viagem encetada na Pré-História e que vem ao quase presente, permitindo ao leitor olhares sobre a hominização, o que aconteceu depois da Idade do Gelo, como tudo mudou com as primeiras cidades e estados, a alvorada da Ciência e da Literatura, os pensadores orientais, os construtores de impérios, os primeiros protocolos e formas de distinção, a ascensão das religiões mundiais… Um itinerário que nos leva até à sociedade de consumo, a emergência de guerras étnicas depois da descolonização, a importância que tem hoje o cartão de crédito e os mais prementes desafios energéticos.

Este Trono de Armas é inquietante e avassalador, é uma cadeira feita com partes de armas produzidas em todo o mundo e exportadas para África. Temos procurado muitas definições abrangentes para todo o século XX, é verdade que prepondera a ideia de que foi o século da mulher, mas não escapa a algumas interpretações a matança em massa que se praticou em duas guerras mundiais, nas purgas estalinistas, no Holocausto, nos arrasamentos nucleares, nos campos de morte do Camboja, nos massacres do Ruanda, é uma lista praticamente infindável. Este trono é um monumento a todas as vítimas da guerra civil moçambicana. Desapareceram os impérios, pareciam prosperar ideologias globais e afinal tudo caiu em disputas sangrentas. Faltou previsão aos dirigentes dos movimentos nacionalistas e mesmo aos líderes coloniais para com tempo criarem competência para as novas experiências governativas, EUA e URSS, os Aliados eram manifestamente indiferentes a este desafio de organização do Estado que gerasse soberania e fizesse calar as etnicidades exacerbadas. A guerra civil em Moçambique foi uma das mais sangrentas e parece que ainda não estancou.

As armas que dão forma a esta cadeira traçam a história do século XX moçambicano. As mais antigas, no espaldar, são duas velhas G3 portuguesas. A FRELIMO era apoiada pela URSS, e isso explica que todos os outros elementos da cadeira sejam armas desmembradas produzidas pelos comunistas: os braços são da AK-47 soviética, o assento de espingardas polacas e checas, e uma das pernas da frente é um cano de uma AKM norte-coreana. Como enfatiza Neil MacGregor: “Trata-se da Guerra Fria em forma de peça de mobiliário, o Bloco de Leste em ação, lutando pelo comunismo em África e em todo o mundo”. Em 1975, o novo Moçambique apresentava-se como um Estado marxista-leninista, em resposta, os rodesianos e os sul-africanos criaram e apoiaram um grupo oposicionista, a Renamo, com o intuito de destabilizar completamente o país, as primeiras décadas da independência moçambicana foram tempos de derrocada económica e sangrenta guerra civil. Isto para sublinhar que as armas do trono participaram na guerra civil: um milhão de mortos, milhões de refugiados e 300 mil órfãos de guerra. A paz só veio em 1992, mas embora a guerra tivesse acabado, havia armas por todo o lado. O maior desafio que se pôs a Moçambique foi a destruição de milhões de armas e refazer a vida dos antigos soldados e das suas famílias.

O Trono de Armas tornou-se um elemento inspirador neste processo de recuperação. Fez parte de um projeto de paz chamado “transformar armas em ferramentas”, e no qual as armas usadas pelos dois lados eram entregues em troca de amnistia e ferramentas úteis, como enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material para telhados. Entregar as armas era um ato de verdadeira bravura por parte destes antigos combatentes e teve projeção em todo o país, pois ajudou a romper o apego pelas armas e pela cultura de violência que atingira Moçambique durante tantos anos. Desde o início do projeto, mais de 600 mil armas foram entregues e transformadas em algumas esculturas. Graça Machel patrocinou o projeto que tinha o objetivo de “retirar os instrumentos de morte das mãos dos jovens e dar-lhes uma oportunidade de desenvolverem uma vida produtiva”.

Este trono, patente no Museu Britânico, foi criado por um artista moçambicano de nome Kester. Escolheu fazer uma cadeira e chamou-lhe trono, são raras nas sociedades tradicionais africanas, estão reservadas aos chefes tribais, príncipes e reis. O peso alegórico é inequívoco: é um trono em que ninguém se vai sentar, não está destinado a uma realeza ou a um senhor do mando, é a expressão de um espírito do novo Moçambique, é um marco da reconciliação. Como escreve MacGregor, há algo de particularmente perturbador numa cadeira feita com armas concebidas especificamente para matar, mutilar, anular. Kester deu uma explicação: “Não fui afetado diretamente pela guerra civil, mas tenho dois parentes que perderam as pernas. Um pisou uma mina e perdeu a perna, e o outro, um primo, perdeu uma perna a lutar pela FRELIMO”.

Kester fez deste trono uma mensagem de esperança. “Dois canos de espingarda formam as costas da cadeira. Se olharmos com atenção parecem ter caras, dois orifícios de parafusos para os olhos e uma ranhura para a boca. Até parecem estar a sorrir". Foi um acidente visual que Kester aproveitou e decidiu incorporar na peça, negando às armas o seu propósito primário e dando à obra de arte um forte sentido: “Não esculpi o sorriso, faz parte da coronha da espingarda. Aproveitei os orifícios de parafuso e a ranhura onde se fixava a bandoleira. Escolhi as armas mais expressivas. No cimo podemos ver uma cara sorridente. E há outra cara sorridente: a outra coronha. Parecem estar a sorrir uma para a outra felizes para paz e liberdade que chegou”.

No seu todo, este original livro que nos conduz da África de há dois milhões de anos para a aurora do século XXI, dotado de uma escrita admirável e estimulante, é verdadeiramente uma História do mundo. Uma leitura imperdível, onde um Trono de Armas põe um antigo combatente, como eu, a pensar como devemos contribuir para recordar os horrores da guerra ao serviço da reconciliação dos homens, naquelas parcelas africanas onde combatemos.


Neil MacGregor
Imagens de cadeira feita com peças de armas, Maputo, Moçambique, peça no Museu Britânico
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23388: Notas de leitura (1459): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Não conheço relato mais impressivo, rigoroso, construído com grande respeito e genuína curiosidade sobre a África da descolonização até aos conflitos de hoje como "Ébano", daquele que é tido como figura de topo do jornalismo mundial, Ryszard Kapuscinski. Ele aterra no Gana no período em que Kwame Nkrumah é olhado como um semideus, um líder libertador, nele estavam centradas as esperanças de quem acreditava que chegara a hora da prosperidade, fechando assim as portas ao jugo colonial. Assistiremos a golpes de Estado, a coisas tão incompreensíveis como o drama da Libéria, o inenarrável conflito entre tuaregues e agricultores sedentários, em diversos países, o jornalista dá-nos uma chave explicativa para compreender um monstro que se chamou Idi Amin, e em dado momento, a poucos quilómetros de Adis Abeba ele percorrerá quilómetros de material de guerra inerte oferecido pelos soviéticos aos etíopes para destruir os eritreus, que a tudo resistiram, e alcançaram a sua independência. É um livro indispensável para compreender a história africana do último meio século, é de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3)

Beja Santos

“Ébano, febre africana”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, abarca reportagens concatenadas de um dos maiores jornalistas do mundo que chegou a África em 1957 e passou a acompanhar regularmente acontecimentos relacionados com o fim da descolonização, golpes de Estado, lideranças ditatoriais, tudo alicerçado numa observação de estudo cuidado e de um grande respeito e genuína curiosidade. É uma longa viagem, caminhamos para o terminal, tudo começou no Gana, eram tempos de muita inocência, acreditava-se que numa braçada se atingia a civilização, o desenvolvimento, o fim do obscurantismo.

O repórter percorre o Tanganica, o Uganda, o Quénia, cai a pique num golpe de Estado em Zanzibar, acompanha um golpe de Estado na Nigéria, tudo truculento e bizarro, sobe à Etiópia, descreve um ditador patológico chamado Idi Amin, explica-nos o genocídio de Ruanda. É uma África caleidoscópica, onde há pores de sol deslumbrantes e feiticeiros sanguinários. É cuidadoso no enunciado, possui uma comunicação incisiva, vê-se que tudo estudou sobre aquele dossiê, quer fazer-nos compreender, não nos obriga a tomar qualquer partido.

Veja-se a forma primorosa como descreve os conflitos inenarráveis do Sudão, com o seu norte árabe e islâmico e o sul negrilho, cristão, duas sociedades com antagonismo fortemente enraizado. A primeira guerra sudanesa durou dez anos, até 1972, seguiu-se uma década de paz frágil e instável, até que em 1983 o governo islâmico de Cartum tentou impor a lei islâmica, iniciou-se uma desastrosa fase de guerra, que se mostra interminável. É porventura a guerra mais longa e de maior dimensão da História de África e provavelmente a de maior dimensão no mundo, como não ameaça diretamente a Europa e os Estados Unidos, os media não falam dela. No norte do Sudão há predominantemente areia e pedras, pelo meio temos um cordão verde largo e intenso de campos e plantações, nas margens do Nilo; o sul é marcado pelo verde-esmeralda dos campos. Os campos ao longo do rio serviram de sustento a milhões de felás árabes e tribos nómadas.

O poder em Cartum expulsou os felás, estes apropriaram-se dos solos férteis do Nilo, desencadeou-se uma guerra contra o Sul, são tratados como uma colónia. Veja-se um exemplo do prodígio narrativo de Kapuscinski:

“Os habitantes do norte são cerca de vinte milhões, os do sul apenas seis milhões. Os habitantes do sul repartem-se por dezenas de tribos com numerosas línguas, religiões e cultos. Nesse mar de tribos do sul, há duas, porém, que emergem mais claramente, dois povos que juntos representam metade da população desta parte do país. São os dinkas e os nuers. É fácil identificá-los à distância: são enormes, dois metros de altura, magros e têm uma cor de pele muito escura. Uma raça bonita, atlética, digna, talvez até um pouco arrogante. Alimentam-se praticamente só de leite e, às vezes, do sangue das vacas, que criam e idolatram”.~

São nómadas, precisam de espaço, responderam de armas na mão às humilhações de Cartum. E gente inocente morre de fome, vive em acampamentos. Continuam à espera de voltar à sua terra, acreditam que um dia chegará a paz.

O repórter segue para a Somália, outra descrição incomparável. E partimos para Bamako, a capital do Mali:

“Eu estava em Bamako porque esperava encontrar ali a guerra contra os tuaregues. Os tuaregues são eternos vagabundos. Será que poderemos chamar-lhes assim? Um vagabundo é alguém que percorre o mundo à procura de um lugar para si, uma casa, uma pátria. O tuaregue tem uma casa, uma pátria, onde vive há milhares de anos – o interior do Saara. A sua casa é diferente das nossas. Não tem paredes nem telhado, portas ou janelas. O tuaregue despreza tudo o que lhe restringe os movimentos. A sua pátria não tem limites, abrange milhares de quilómetros de areia e rochas, um mundo imenso, enganador e infértil, que todos os outros homens temem e evitam. As fronteiras desta pátria do deserto são onde terminam o Saara e o Sahel e começam os campos verdes e as aldeias das tribos suas inimigas. Há séculos que se trava uma guerra entre estas duas partes. Muitas vezes a seca no Saara é tal que se esgotam todas as fontes e os tuaregues são forçados a deixar o deserto, com os seus camelos, e a mudar-se para as regiões verdes, na direção do Níger e do lago do Chade. Os camponeses africanos sedentários consideram estas visitas uma espécie de invasão. O ódio entre eles e os tuaregues é visceral e eterno, porque estes não só lhes incendeiam as aldeias e lhes roubam o gado, como também transformam os camponeses em escravos seus. Os tuaregues são berberes de pele clara e consideram os africanos negros uma raça desprezível de seres inferiores”.

E, mais adiante:

“Os tuaregues estão em vias de extinção, a sua existência tende para o fim. São expulsos do Saara pelas terríveis e intermináveis secas. Além disso, antigamente, uma boa parte dos tuaregues ganhava o seu sustento assaltando caravanas que hoje já praticamente não existem ou então vão bem armadas. Assim, têm que se mudar para regiões melhores, onde haja água, mas essas já estão ocupadas. Há tuaregues no Mali, na Argélia, na Líbia, no Níger, no Chade e na Nigéria, mas há-os também noutros países do Saara. Não se consideram cidadãos de nenhum país nem querem ter de se submeter a nenhum governo, nem a nenhum poder estatal”. 

Haverá descrições de horrores, ninguém pode ficar insensível ao drama da Libéria, ao mais insólito dos racismos, como ninguém pode ficar insensível àquela guerra sangrenta que dilacerou a Eritreia e a Etiópia.

É estonteante a visita que Kapuscinski faz a Debre Zeyit, a alguns quilómetros de Adis Abeba:

“Uma planície a perder de vista, sem uma única árvore até à linha do horizonte que aparece envolta numa nebulosidade ténue. Toda esta superfície está coberta com material de guerra.
Quilómetros e quilómetros de material de campanha de diferente tipo, filas intermináveis de tanques médios e pesados, florestas de canhões antiaéreos e morteiros, centenas de carros blindados, veículos camuflados, postos móveis de rádio e veículos anfíbios. E, do outro lado da colina, há gigantescos hangares e paióis – os hangares albergam componentes de metralhadoras por montar, e os paióis estão cheios de munições e minas. Aquilo que mais nos surpreende e perturba são as quantidades inimagináveis de material bélico, este amontoado incrível de centenas de milhares de metralhadoras, obuses e helicópteros de guerra. Todo este equipamento foi oferecido ao longo de muitos anos por Brejnev a Mengistu e enviado da União Soviética para a Etiópia. Mas na Etiópia não havia pessoas suficientes para utilizar nem sequer 10% destas armas. Estes tanques serviam para conquistar todo o continente africano; a força destes canhões e ‘katiushas’ reduziria toda a África a pó e cinza. Ao passear pelas ruas desertas desta cidade de aço imóvel, onde em cada esquina espreitava a mira de um canhão e onde as filas de tanques arreganhavam os dentes, pensei no homem que sonhou subjugar todo o continente africano”
.

E despede-se com uma advertência:

“Quando um europeu viaja por África, vê apenas uma parte do continente – geralmente a parte exterior, que não tem grande interesse e é a menos importante. O seu olhar percorre a superfície sem penetrar mais fundo, como se não pudesse acreditar que por detrás de cada coisa há um segredo escondido e esse segredo está no centro das próprias coisas. Mas a cultura europeia não nos preparou para estas expedições à profundidade, às origens de outros mundos e culturas. O drama de algumas culturas – entre as quais a europeia – foi devido ao facto de, no passado, os seus primeiros contatos com outras culturas terem sido estabelecidos por pessoas da mais estranha espécie – mercenários, aventureiros, criminosos, traficantes de escravos, etc. Havia também outros, mas em menor número – missionários honestos, viajantes e exploradores entusiasmados”.

Foi uma questão de contabilidade, prevaleceu o maior número, a pilhar, saquear e matar. E as culturas, em vez de se conhecerem, se aproximarem e se misturarem, confrontaram-se ou ficaram indiferentes entre si. E as relações entre as pessoas foram determinadas pelo mais primitivo dos critérios, a cor da pele. O racismo tornou-se a ideologia em função da qual as pessoas ocupavam o seu lugar na ordem do mundo. Enfim, é necessário possuir muita humildade para compreender a História africana do último meio século e dos desafios que hoje se põem. Esta obra-prima do jornalismo é uma chave como não há outra, no panorama literário.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fala de um dos mais escabrosos ditadores africanos, Idi Amin, e da tragédia do Ruanda. Desta, recordo-me perfeitamente, trouxe-me a convicção absoluta que naquele ano de 1994 eu já estava a viver, na plenitude, a civilização do espetáculo, mediada por talk shows, reality shows, arraiais de futilidades, mexeriquices, a morte em direto. Tinha ido fazer uma pós-graduação na Universidade de Lovaina a Nova, enquanto comíamos, tanto ao almoço como ao jantar, os ecrãs exibiam filas intermináveis de seres humanos em fuga, tudo sem comentários. Ninguém conversava enquanto levava à comida à boca, a olhar os tais caminhantes exaustos, esqueletos em movimento, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados e submissos, como os descreve Ryszard Kapuscinski. Talvez por pudor, o eminente jornalista polaco não revela que os esqueletos por vezes se transformavam em cadáveres, e era assim que partilhávamos a morte em direto, em estradas em direção ao Zaire.

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2)

Beja Santos

Em “Ébano”, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, escreve este magistral jornalista a propósito de Idi Amin: “É o ditador mais conhecido em toda a História da África moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo”. É preciso entender a identidade do monstro, e o autor é minucioso a descrever o seu percurso até se tornar, graças às promoções dos ingleses, general. Chega ao poder por golpe de Estado acompanhado de massacre, criam-se câmaras de tortura. Um mês depois do golpe, Amin autonomeou-se presidente, depois marechal, depois marechal de campo e, por último, tornou este título vitalício. Oiçamos Kapuscinski: “O carro em que se deslocava era escolhido em função do uniforme que envergava. Ao uniforme de gala correspondia o Mercedes preto, ao fato de treino para um passeio o Maserati, e ao uniforme de campo um Range Rover do Exército. Este último carro parecia um automóvel saído de um filme de ficção-científica: estava equipado com uma verdadeira floresta de antenas, arames de todos os tipos, tubos, faróis. No interior carregava granadas, pistolas e facas. Era um ditador que não confiava em ninguém, dormia cada noite em paradeiros diferentes. Era ele que entrava em contato com os seus ajudantes, era ele que decidia com quem falava, quem queria ver. Quando queria dar a conhecer remodelações no Governo transmitia-as via rádio. O seu poder era monopolístico, a comunicação centrava-se nele”.

E assim finda este currículo nefasto: “O domínio de Amin durou oito anos. De acordo com diversas fontes, o marechal terá assassinado durante a sua vida entre 150 mil a 300 mil pessoas. Depois foi ele quem se conduziu a si próprio para o abismo. Uma das suas obsessões era o ódio ao presidente da vizinha Tanzânia, Julius Nyerere. Em finais de 1978, atacou aquele país. O exército da Tanzânia reagiu. Os soldados de Nyerere invadiram o Uganda. Amin fugiu para a Líbia, depois instalou-se na Arábia Saudita, que o recompensou pelo seu esforço de divulgação do Islão. O exército de Amin desfez-se uma parte voltou para casa, a outra parte a viver de assaltos. Nessa guerra, o que perdeu o exército da Tanzânia: um tanque”. E Kapuscinski elenca o drama desse Uganda flagelado por ditadores e guerras tribais.

Não menos impressionante é o que ele escreve sobre o Ruanda, onde em 1994 ocorreu um monstruoso genocídio. Tenha-se em conta a descrição do jornalista:
“O Ruanda é um país montanhoso. Embora o continente africano se caracterize mais pelas planícies e pelos planaltos, no Ruanda predominam as montanhas. Algumas atingem os 2,3 mil metros de altitude e até mais. É por isso que, muitas vezes, se faz referência a este país como sendo o Tibete de África. Enquanto as populações dos estados africanos são geralmente compostas por membros de diversas tribos (no Congo, vivem 300 tribos, na Nigéria 250), no Ruanda existe apenas uma comunidade, a nação dos banyaruandas, dividida tradicionalmente em três castas: a casta dos proprietários das manadas de vacas – os tutsis (14% da população) –, a casta dos camponeses – os hutus (85%) – e a casta dos servos e criados – os twas (1%). Este sistema de castas (com algumas analogias em relação à Índia foi criado há séculos, mas é ainda hoje controversa a sua origem. Discute-se se terá sido no século XII ou XV, porque não existem fontes escritas sobre esta matéria”.

Era uma colónia pouco apetecível, o Ruanda tinha sido atribuído à Alemanha, facto que os ruandeses ignoraram, e os alemães nunca manifestaram grande interesse por esta colónia que passou para as mãos da Bélgica, depois da II Guerra Mundial, que também não mostrou muito entusiasmo, visto que o Ruanda ficava longe da costa e era na época um país pobre em matérias-primas. Por todas estas circunstâncias, o sistema social secular dos banyaruandas manteve-se intato até à segunda metade do século XX. Os ruandeses eram governados por um monarca, a vaca servia de medida para tudo, os tutsis eram proprietários de manadas por serem uma casta dominante, e os hutus formavam a casta dos camponeses. O autor explica o relacionamento interétnico: “Entre tutsis e hutus existiam relações de vassalagem; o tutsi tinha ascendente sobre o hutus, seu criado. Os hutus eram a clientelados tutsis. Eram camponeses que viviam do cultivo das terras. Uma parte das colheitas era entregue ao senhor, que os protegia e lhes dava uma vaca. Tudo como no feudalismo”. Em meados do século XX, vai crescendo a natureza do conflito, ambas as etnias precisam de terra, precisam de mais espaço e o país tem dimensões diminutas. Em 1959 rebenta no Ruanda uma revolta de camponeses que culminou com a destituição do rei, a gironda e o terror.

“Multidões de camponeses, massas de hutus libertados avançam armados com catanas, picaretas e lanças contra os seus senhores e mestres, os tutsis. Dá-se um enorme massacre, a que há muito já não se assistia em África, incendeiam-se propriedades, cortam-se cabeças. Fugiram dezenas de milhares de tutsis e os camponeses hutus tomaram o poder. Depois destes acontecimentos, a nação ficou dividida em dois campos inimigos. Os tutsis planeiam vingança, em 1963 atacam a partir do Sul, do vizinho Burundi. Dois anos mais tarde, dá-se uma nova invasão dos tutsis, segue-se um enorme massacre contra os tutsis pelo exército dos hutus. Há quem diga que 50 mil tutsis foram eliminados pelos hutus". Mas ao lado está o Burundi e Kapuscinski descreve alterações no regime político, e também no Uganda, onde se estava a formar um exército experiente de tutsis desejosos de vingança. Na noite de 30 de setembro de 1990, saem dos quarteis do exército ugandês e entram no Ruanda ao romper da aurora. Vai começar o genocídio, a França intrometeu-se, mandou paraquedistas, o país parecia dividido, era um estranhíssimo compasso de espera. Os estados africanos forçaram o entendimento entre o governo legítimo e a guerrilha, a Frente Nacional do Ruanda. Em abril de 1994 é abatido, não se sabe bem por quem, um avião que se fazia à pista do aeroporto de Kigali, a capital, onde vinha o presidente. Foi o sinal para o início do massacre dos opositores do regime. Estima-se entre meio e um milhão de mortos, uma chacina sistemática durante três meses. “A maioria das pessoas não morreu por causa das bombas e das metralhadoras, mas atacada por armas muito primitivas – catanas, martelos, lanças e paus; morreu espancada e triturada”.

E as multidões puseram-se em fuga, tornaram-se um acontecimento televisivo. E as observações de Kapuscinski terminam num elevado grau de acidez:
“Enquanto durante o nacional-socialismo e o estalinismo eram os membros de instituições especiais – SS ou NKVD – que matavam, e os crimes cometidos por estas brigadas eram cometidos longe dos olhares indiscretos, no Ruanda era importante que todos matassem, que o crime se tornasse produto de uma revolta popular maciça, quase espontânea, para que não restasse alguém que não tivesse as mãos manchadas de sangue daqueles que eram tidos como inimigos do regime. Os hutus fugiram depois de serem derrotados para o Zaire. As pessoas na Europa, que viam as intermináveis colunas de pessoas, não conseguiam perceber que força era aquela que movia estes caminhantes exaustos, o que é que ordenava àqueles esqueletos que estivessem em constante movimento, em longas e densas filas, sem parar, sem comer nem beber, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados, submissos e medindo com o seu olhar vazio o caminho-fantasma de culpa e dor”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)