sábado, 29 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23748: In Memoriam (459): João Pedro Candeias da Silva (1950 - 2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74)




João Pedro Candeias da Silva (1950-2022)


1. Mensagem do  António Duarte, um histórico do nosso blogue (tem cerca de 60 referências):

Data - 29 out 2022 15:16

Assunto - Partida do nosso camarada furriel miliciano Candeias da Silva (*)

Boa tarde,  Luís Graça

Mais um dos nossos que nos deixa para sempre.

Foi cremado no dia 18 o nosso camarada João Pedro Candeias da Silva, falecido na sexta feira 14, deste mês de outubro.

Morreu repentinamente, durante um jogo de ténis, desporto que praticava com alguma frequência e sem previamente ter tido sintomas de qualquer doença.

Nasceu em 13 de junho de 1950 e a sua vida profissional decorreu na EDP, grande parte do tempo na Central de Sines.

Residia em Santiago do Cacém, deixando viúva, uma filha, um filho e dois netos, um deles com 7 meses de idade.

Estavam destroçados com a dor, gerada por esta partida não prevista. Partilhámos aquando do funeral a nossa dor e a perda do amigo.

Estive com ele na CCaç 12 em 1973, quando ainda a companhia estava em Bambadinca e mais tarde no Xime.

Tinha a especialidade de atirador de infantaria e chegou à Guiné em rendição individual, ficando colocado, me janeiro de 1972 na CCav 3404, em Cabuca, do Batalhão de Nova Lamego.

Em novembro de 1972 frequentou o estágio para oficiais e sargentos, destinados às unidades africanas, em Bolama.

Após 7 meses na CCaç 12, foi transferido para o CIM em Bolama, onde permaneceu a ministrar instrução a militares do recrutamento local, até final da comissão e onde foi apanhado pelo 25 de abril.

Acompanhava de forma sistemática o nosso blogue, participando sob a forma de comentários a postes colocados, de onde destaco a que agora copio, do Poste P21646 de 15.12.2020 (**)
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Jorge [Araújo]

Eu sou o João Candeias que no Xime ficou no mesmo quarto com o Duarte e o Osório, enfermeiro. 
Não sei se é suficiente para me para te avivar a memória.

Estou a escrever-te porque li o teu testumunho sobre o nosso camarada Víctor Alves, infelizmente já desaparecido, sobre os tais dias difíceis que vivemos na  CCAÇ 12 em Bambadinca.

E tu sabes que quem mais sofreu foi o Victor por lá ter a esposa, e todos compreendemos.
Aquando da primeira e frustrada tentativa de nos mandarem para o Xime,  ele formou ao meu lado direito e quando o tenente coronel disse "quem se recusa ir para o Xime, dê um passo em frente", dos europeus só ele o deu. Eu puxei-o pelo braço e ele corrigiu rapidamente o gesto instintivo que, felizmente, não foi detectado pelo tenente coronel. Depois a confusão, a ordem de prisão ao soldado da 12.

Como terminou,  tu deves estar bem recordado. Tu ficaste pelo Xime, eu mais três furriéis fomos despachados para outros companhias, no meu caso CIM, centro de instrução militar em Bolama.

Curiosamente o teu final muito parecido com o meu. Também comprei bilhete e vim na TAP mas já em Maio, tu em Abril, por pouco não nos encontramos em Bissau.

Abraço e bom Natal.
João Candeias da Silva

Fiz um email ao Luis Graça onde descrevo o que aconteceu naquela semana. Se ele o publicar espero que faças um comentário para ver se tiveste a mesma opinião.

24 de dezembro de 2020 às 20:50

Nota Minha - O Vítor que o Candeias da Silva refere foi o vagomestre da segunda geração da CCAÇ  12. O nosso vagomestre em 1973 tinha a esposa e um bebé em Bambadinca. Trata-se de uma troca de nomes, por parte do Candeias da Silva, já que foi noticiada a morte do Víctor Alves, vagomestre da CCAÇ 12 da segunda geração de graduados, que foi em vida bancário no BES.
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Falávamos frequentemente, nomeadamente por mensagem, as últimas no dia da partida.

Também almoçámos aqui em São Pedro do Estoril, há uns meses, no qual também tivemos a presença do Manuel Lino, furriel do pelotão de artilharia de obuses 10,5 cm, instalados à época no Xime.

Havia ainda a particularidade de o Candeias da Silva e o Manuel Lino terem sido condiscípulos, nos anos 60 nas Oficinas de São José, em Lisboa pertencentes aos Salesianos (reconheceram-se no Xime no início de 1973). 

Digamos que foi um almoço de "romagem" aos tempos da Guiné e aos apoios dados pela artilharia, aquando de emboscadas e ataques ao aquartelamento, bem como a revisitar lugares, pessoas e cheiros daquela terra que nos marcou para sempre.

Daquilo que conheço do Candeias da Silva, parece-me que se justifica a sua integração na nossa tabanca, lamentavelmente a título póstumo, pois era um leitor assíduo dos nossos escritos e fez várias intervenções, sob a forma do comentário, como o que atrás copiei do poste. (o que está copiado será o mais recente, mas há mais)

Aproveito para juntar algumas fotografias, com legendas explicativas, que também poderão servir para suportar a entrada para o blogue.

Um abraço a todos os camaradas
António Duarte
ex-fur mil, Cart 3493 (Mansambo) e Ccaç 12 (Bambadinca e Xime)- Dez de 71 / Jan de 74 (foto atual à direita)

2. Comentário do editor Luís Graça:

(i) Bolas, António, são só notícias tristes. No mesmo dia faço dois In Memoriam, o do Manuel Marinho (*)  e agora o do João Candeias da Silva. 

Nunca o consegui trazer, a este último,  para a Tabanca Grande. Era arisco. Mas de vez em quando vinha comentar... Ele deu algumas achegas importantes para a história da CCAÇ 12 no teu /vosso termpo... Umas vezes assinava João Candeias, outras João Candeias da Silva. Chegámos a ter, por lapso, os dois descritores, João Silva e João Candeias. Fica definitivamente como João Silva. Tem 12 referências no blogue. Era franco e frontal. (**)

Perguntei-te, hoje, se fazia sentido integrá-lo, a título póstumo, na nossa tertúlia...Tu conheceste-lo melhor do que eu. Eu nem sequer o conheci pessoalmente. O que é que achavas? E eu lembrei-te o nosso lema: "Ninguém fica na vala comum do esquecimento"... 

Acabo de fazer este  In Memoriam com o teu material e algo mais que eu tenho dele... 

(ii) Depois de ler a tua mensagem completa, e a segunda que mandaste, hoje, logo a seguir, não tive mais dúvidas: o João Silva irá ser apresentado, em poste a seguir, amanhã ou depois,  como o grã-tabanqueiro nº 866. Entra e vai logo para o nosso "panteão", o dos que "da lei da morte já se foram libertando".  Tenho pena que ele não tenha entrada em vida, aceitando o meu reiterado convite para se juntar a ti e a todos nós. 

Com ele, passam a ser 127 os nossos queridos mortos, desde a existênia do blogue.  Sei que que o João tinha grande apreço pelo nosso blogue, mas cultivava um  perfil discreto. Transmite à sua viúva, filhos e demais família os votos de pesar da equipa do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Recordo aqui, para os nossos leitores, que o João Silva, fur mil at inf, de rendição individual, passou pela CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (Bolama, 1973/74).
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(...) A minha filha, e não sei porquê, ofereceu-me o livro em questão há cerca de uns 3 meses. Mas, ao iniciar a leitura, reconheço que o fiz sem grande entusiamo, parei logo, quase ao início, quando a autora na pág. 12 escreveu: "A maioria dos combatentes esteve apenas 2 anos na guerra mas penso que terá havido poucos mais momentos transformadores nas suas vidas".

Aquele "apenas" retirou-me a vontade de o ler. Quem considera que 2 anos na guerra é pouco tempo na vida de um jovem na casa dos 20 anos, não tem a mais pequena perceção da realidade.
São 2 anos em que quase conseguimos recordar cada dia, cada hora e, nalguns casos, passado quase meio século, e garanto que foram extremamente longos.

Tenho dois filhos na casa dos 30 e tal anos e nenhum me perguntou se tive medo. Nem mesmo depois da oferta do livro. Há muitos livros sobre a guerra colonial e nenhum até agora me cativou. O mesmo acontece com a produção cinematográfica/documental.

Talvez porque coloque a fasquia muito alta. Talvez porque a nossa guerra não teve o impacto nem a dimensão de outras. Talvez porque não temos experiência acumulada como os americanos. Talvez porque não temos massa critica. Não sei. Alguns povos têm conseguido, especialmente os americanos, utilizar a tela dos cinemas para exorcizar e muitas vezes de forma crítica a sua participação na guerra.

Destaco a guerra do Vietname, a que mais se aproxima, por excesso, da que conheci na Guiné. Nem todas foram boas obras, como exemplo, Os Boinas Vermelhas. Mas noutros casos foram excelentes como no caso do Caçador, para mim o melhor.

Não sei se este sentimento é partilhado por outros companheiros de armas, porque cada um de nós teve a sua experiência e também a sua missão. Uns foram atiradores, um nome que hoje dito em inglês - sniper - causa logo alguma efervescência, outros, amanuenses, cozinheiros, telegrafistas, mecânicos, etc. Mas quem foi atirador e esteve numa companhia africana teve uma experiência diferente. Não foram muitos deste milhão a que a autora do livro diz terem passado pelo teatro de operações, que o viveram.

É apenas um comentário pessoal e nada mais do que isso. Se chegar a ler o livro, talvez mude a opinião com que fiquei das primeiras páginas. (...)


Vd. também:



Guiné 61/74 - P23747: Os nossos seres, saberes e lazeres (536): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (74): Da Curia para o Luso - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Havia a promessa de, após a estadia em Sines, andarmos pela Lourinhã e arredores mas impunha-se a liberalidade de uma sortida, coube à neta dar agreement de uma itinerância até às matas do Bussaco, paragem na Curia e alguma estadia no Luso. É o que aqui se relata em português suave, houve a sorte de não apanhar caloraça, encontra boa comida pelo caminho, graças ao meu péssimo sentido de orientação fomos parar à Oiã, deixou-se mensagem ao Armor Pires Mota, bem gostava de o abraçar, ocorreu-me a visita a um cemitério na Anadia, é lá que está sepultado o meu maior amigo da juventude, decidi que não, há atos íntimos que carecem de recolhimento, para minha surpresa, a neta gostou da Curia, entusiasmou-se com a piscina do Luso, está na idade das muitas perguntas e nada pode entusiasmar mais um ser humano com 77 anos que fazer este reavivamento de memória sobre as estâncias termais e as férias dos avós maternos da menina.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (74):
Da Curia para o Luso


Mário Beja Santos

Aproveitam-se as férias para pôr em dia informações do passado aos mais novos, por exemplo aonde é que os avós maternos passavam férias, estávamos na região de Sines e foi referido que durante anos esses avós vinham de Aljustrel e abancavam na vila piscatória cerca de um mês, a Pensão Carvalho até tinha sido encarada como uma segunda residência e os avós, já velhotes, mantiveram o uso e costume, na sala de estar homens de um lado senhoras do outro, estas a tricotar e a falar de gente conhecida, eles a recordar também gente e a cortar na casaca do estado da Nação, faz parte do direito do consuetudinário. E falei à neta que houve um largo período em que os avós, libertos da descendência, procuraram a Curia, a avó adorava, o avô não tanto, ele adorava meter conversa e encontrava ali banhistas a tratar das artrites e das artroses em estado lastimoso, preferia meter o nariz em jornais e livros, encontrava parceiro para o dominó e damas, não há hotel ou pensão em estância termal que não disponha de uma sala de jogos. Ela, a tricotar, claro.
Estávamos em Sines e a neta decretou que queria ir à Curia, o avô anuiu, quem vai à Curia vai ao Luso, quem vai ao Luso vai ao Bussaco, assentou-se nas datas, o ponto radial seria o Inatel do Luso, um tanto fora de moda, mas com conforto quanto baste.
Inevitável chegar à Curia e não parar à entrada daquela avenida de plátanos, é uma autêntica sala de receção. E para-se o carro para ir ao Palace, contam-se histórias, por ali andaram atores de nomeada, tu já vais ver, é um ambiente de outro tempo, olha como mantiveram a traça da receção, repara bem no elevador, depois viremos à sala de estar para tu veres as escrivaninhas, naquele tempo era imperioso escrever cartas e mandar postais, depois vamos percorrer os jardins, está tudo numa formosura, visto o Palace vamos até às termas, se quiseres até podemos andar num barquinho no lago. “Tá bem, depois quero lanchar”.

Fachada do Palace Hotel da Curia, anos 1920, classicismo e Arte Deco, obra de Norte Júnior
Pormenor da fachada, sente-se o gosto francês, aqui há classicismo e uns restos de Arte Nova
Pormenor da receção
O lendário elevador que apareceu em vários filmes de Hollywood
Recordação dos tempos em que se mandavam cartas aos entes queridos, e diariamente

Finda a viagem ao Palace, seguimos para as termas, o meu coração balanceava, há um cemitério na Anadia onde está sepultado aquele que foi o meu maior amigo da juventude, morto em combate na região de Mocímboa da Praia, Norte de Moçambique, em 2 de fevereiro de 1970, não, iria passar por emoções, talvez devastadoras, gerar perplexidades, ter que contar histórias que a memória parece não querer apagar. Fica para outra viagem, vamos mostrar a esta jovem de 11 anos uma estância termal à moda antiga, esta tem mais de 100 anos, imagine-se que foi inaugurada em 1914, logo atraiu meio mundo e outro, encheu-se de pensões, aproveitava-se este imenso parque para completar a cura de águas. E havia comboio para trazer e levar os aquistas. Vamos então ver o jardim e as termas, um pouco de barco, sim, não esqueci, o lanche.
Fachada das termas, dá gosto ver tudo arranjadinho, o passado bem recuperado
Aqui se dispensa água ao doente, há mais de um século, nada de voluntarismos, só se bebe água com dispensa médica, a água cura mas indevidamente tomada a água termal pode acarretar aborrecimentos
Disse à neta que era certo e seguro que os avós por aqui passearam, vinham habitualmente em julho ou agosto, se a memória não me atraiçoa eram quase 3 semanas, traziam muito para contar e diziam maravilhas do parque
Chegámos ao Luso ao entardecer, é sempre agradável aqueles exercícios de ambientação, quando a neta viu gente na piscina exigiu o que lhe era devido, dar umas braçadas, o avô acompanhou-a com imenso gosto. Depois de um agradável jantar, percorrendo uma vila onde há sinais de vitalidade mas com muitos edifícios ao abandono, chegámos junto do grande hotel, é assim que funciona a imaginação, pareceu-me um transatlântico a vogar na imensidão oceânica, e deu-me para caprichar com aquela imagem de meia luz da entrada ao topo da grande construção, a luz a irromper da escuridão.
Fonte de São João, imagem retirada do blogue Restos de Colecção, com a devida vénia
Edifício de Banhos, inaugurado em 1 de junho de 1856. Imagem retirada do blogue Restos de Colecção, com a devida vénia

Despeço-me do Luso com imagens do passado, há mais de 150 anos que é a mais conceituada estação termal desta região, tem o seu património algum pergaminho, no entanto há algo de melancólico nos hotéis em derrocada, bem vistas as coisas, é uma imagem muito própria de Portugal podermos coexistir entre os avanços da urbanização deixando a derruir um passado que já foi lustroso, e parece que fazemos isto sem nenhum rebate de consciência. Amanhã partimos para um lugar onde parece que se pode encontra a magia, uma ímpar riqueza arbórea e sinais de uma batalha vitoriosa em que Wellington, à frente de um exército anglo-luso derrotou Massena, em 1810, a estrela napoleónica empalidecia.

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 22 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23729: Os nossos seres, saberes e lazeres (534): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (73): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 11 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23737: Os nossos seres, saberes e lazeres (535): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (6)

Guiné 61/74 - P23746: In Memoriam (458): Manuel Alberto da Costa Marinho (1950-2022), ex-1.º cabo, 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Nema / Farim e Binta, 1972/74)




Manuel Aberto da Costa Marinho (1950-2022)

1. Mensagem de Maria João Ferreira, sobrinha do nosso camarada Manuel Marinho, membro desde 15/9/2009 da nossa Tabanca Grande (*), entretanto falecido há três meses, notícia que acabámos de saber e nos deixa desolados:

Data - quinta, 27/10, 22:05/2022
Assunto - Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74),

Boa Noite,  

Não sei se posso enviar por aqui mas sei que muitos dos seus camaradas não sabem e pedia se podiam publicar este meu testemunho no vosso blogue sobre o meu tio Alberto Marinho que, depois das doenças que lhe diagnosticaram,  afastou-se de várias áreas da sua vida.

O meu nome é Maria João da Costa Marinho Ferreira. Sou licenciada em História e Mestre em História e Património.

O caminho que segui não foi por acaso. Sou sobrinha do ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), Manuel Aberto da Costa Marinho. O meu tio (como um segundo pai) sempre me contou as suas histórias que passou durante a guerra e isso inspirou-me a seguir o caminho da história e contar a história daqueles que já cá não estavam e que mereciam ser homenageados.

É isto que me traz aqui hoje.

O meu tio faleceu a 22 de Julho deste ano e está sepultado no cemitério de Agramonte, Porto (**)

Depois de alguns meses ainda sinto de luto, talvez porque não me despedi como deveria. No final da sua vida,  o meu tio escolheu a amargura da doença que o atacou e preferiu não ver a sua família ou amigos. Algo que hoje me arrependo de não ter forçado a minha visita.

Encontrei novamente o blogue que lhe apresentei anos atrás (*) e descobri a sua primeira mensagem no qual ele me menciona sem saber o quanto me inspirou:

"Apresenta-se o ex-1.º Cabo Manuel Alberto Costa Marinho, do 1.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, comissão em Nema/Farim, Binta, em 1972/74.

É com enorme sentido de gratidão, extensível aos restantes colaboradores do blogue e a todos os tertulianos da Tabanca Grande, que me dirijo, pela primeira vez. Mais vale tarde que nunca.

Como ex-combatente da Guiné, não posso ficar indiferente ao que de melhor temos neste País para testemunhar o que foi a Guerra Colonial, mais concretamente a da Guiné, vivida e contada pelos seus protagonistas, por isso mais uma vez, um muito obrigado pelo excelente trabalho que podemos testemunhar.

E antes de mais peço a admissão na “Tabanca”, certo que já o poderia ter feito, mas só agora julgo oportuno, pelo facto (se calhar egoísta) de estar a ajudar uma sobrinha a fazer um trabalho sobre a Guerra Colonial, foi a miúda, que me incentivou a contar as minhas vivências na Guiné, depois de consultar muitas vezes o blogue, e sabendo que estive no inferno de Guidaje, praticamente em todas as suas incidências.

Como muitos de nós já o disseram, é penoso lembrar o que já estava na penumbra da memória, mas acho valer a pena este esforço, porque entendo que uma parte muito importante das nossas vidas ficou para sempre na Guiné, numa Guerra da qual eu não me envergonho de ter participado, e sou dos que sabiam minimamente para o que iam.

Depois porque ao longo destes anos (e já são 35), somos vergonhosamente ostracizados por todos os poderes instituídos neste País, que foram coniventes com o apagar da memória colectiva, de tudo o que diga respeito à Guerra Colonial, e mais grave do que isso, transformando os que por razões várias desertaram, em heróis, e nós que combatemos, só nos falta pedir desculpas por ainda estarmos vivos a contar (dissecar) esta guerra.

Pessoalmente, sinto-me ofendido com a imagem redutora que tem sido dada às gerações que se seguiram, não quero louvores, mas exijo respeito pelos que morreram, e por todos os que ficaram marcados por ela para sempre.

Desculpa, camarada Luís, este desabafo, corta tudo o que achares necessário, porque sinto esta revolta surda sempre que abordo esta questão.

Quero saudar muito especialmente os camaradas Amílcar Mendes (*) da 38.ª de Comandos, Victor Tavares,  da 121 dos “Páras”,  e o Albano M. Costa,  da CCAÇ 4150, os dois primeiros que descrevem operações de combate e o Albano que me fez rever Binta, peço desculpas ao omitir mais camaradas, sei que os há que viveram Guidaje e escreveram sobre esse fatídico mês, os Fuzileiros por exemplo.

Como também não desejo que outros contem a Guerra por mim, vou descrever o ataque à primeira coluna para Guidaje, que como é sabido não chegou ao destino.”


A vida são dois dias e por vezes amarguras indispensáveis levam-nos ao afastamento dos nossos entre queridos.

Pretendo honrar o meu tio em um livro. Contarei as suas memórias que ele me deixou e precisava de comentários ou conhecer o batalhão que ele fez parte.

Sendo assim, presto a homenagem ao meu tio Manuel Alberto Marinho e imploro que de vocês entre em contacto comigo para falarmos sobre as memórias de Guiné e Guidaje e memórias de Manuel Marinho.

2. Comentário do editor LG:

O Manuel Marinho tem 37 referências no nosso blogue. Fazia anos a 11 de abril. Deixou de fazer prova de vida. A últíma vez que lhe publicámos um poste de parabéns foi em 2020. Temos a agora, com um atraso de 3 meses,  a funesta notícia da sua morte, dado pela sua querida sobrinha Maria Ferreira, cujas palavras nos comovem.

Vamos, naturalmente, ajudá-la a completar a escrita do seu livro com as memórias do seu querido tio e nosso já saudoso camarada que, conforme podemos verificar pelos postes que aqui publicou, era um apaixonado sobre tudo o dizia respeito a Guidaje e os duros combates que lá se travaram e os exemplos de abnegação e coragem que ele lá viveu, em maio de 1973 (****).  
Acho que podíamos publicitar aqui o endereço de email da Maria Ferreira, a quem convidamos para integrar a nossa Tabanca Grande e, de algum modo, suprir a falta que o Manuel Marinho nos faz, De qualquer modo, aguardamos que ela nos autorize a divulgar o seu endereço de email, se achar conveniente e necessário,  para troca de informações com os camaradas do Manuel Marinho, do BCAÇ 4512. E que, na volta do correio, nos diga se aceita o nosso convite. 

Sabemos que em 28/4/2013, o Manuel Marinho estava "a ultimar um trabalho sobre Guidaje, tentando sistematizar tudo o que se passou", mas acrescentando: "não sei se terei fôlego para chegar ao fim" (***)

Temos cerca de seis dezenas de referências ao BCAÇ 4512. Vamos partilhar essa informação com a Maria Ferreira.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74)

(**) Último poste da série > 19 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23720: In Memoriam (457): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74): A minha homenagem ao amigo Xico Allen, como sempre o tratei (Albano Costa)

(***) Vd. poste de 28 de abril de  2013 > Guiné 63/74 - P11491: 9º aniversário do nosso blogue: Questionário aos leitores (31): Respostas (nº 58 e 59) de Manuel Marinho, ex-1.º Cabo do BCAÇ 4512 (Nema e Binta, 1972/74) e José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716 (Xitole, 1970/72)

(...) Gosto das estórias que vou lendo sobre a nossa presença na Guiné, e tenho a impressão que já conhecia muitos destes camaradas, é uma aprendizagem constante, de facto este Blogue é um caso único de afectos e camaradagem. (...)

(...) No Blogue, não gosto de escritos que nada têm a ver com a Guiné, não gosto de ver fotos de camaradas nossos aos abraços com elementos do PAIGC, não gosto de escritos sobre quem nos traiu, estou a referir-me a desertores, (o lugar deles não é neste Blogue), não gosto de elogios ao PAIGC, porque não lhes devo nada, e não gosto da ficção de muitas das estórias contadas, devemos fazer um esforço para escrever (contar), com os nossos 20 anos de então, e não com os olhos e a experiência de hoje.

(****) Vd. por exeplos postes de:

7 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5067: Guidaje, Maio de 1973 (1): Momentos difíceis para as NT (Manuel Marinho)

7 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5230: Guidaje, Maio de 1973 (2): O fim do pesadelo (Manuel Marinho)

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
O Zé Matos teve a gentileza de me enviar o mail com o miolo deste livro que ele escreveu em parceria com um reputado especialista, Matthew Hurley. Oxalá que surja a possibilidade de haver uma tradução portuguesa, pelo menos as instituições da Força Aérea deviam cuidar de quem investiga em sua memória. Aqui vai a introdução, só lhe introduzo um reparo acerca da estagnação económica que os autores referem sobre o período. Não foi nada assim, autores da maior probidade e rigor já esclareceram como os anos 1960 foram decisivos de diferentes títulos: a tumultuosa emigração, a avalanche turística no Algarve, os investimentos estrangeiros, a explosão industrial, etc., são dados indiscutíveis. O mesmo não acontece com os primeiros anos de 1970, e a crise petrolífera atingiu-nos em cheio, é contemporânea de uma situação aguda em mobilizar mais jovens para os conflitos africanos. Ainda bem que vemos investigadores portugueses envolvidos em trabalhos que possam circular na arena internacional da pesquisa e confronto de posições.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

É um pequeno volume onde, depois de se dar informação sobre abreviaturas e notas terminológicas, se faz uma curta introdução, a que os autores intitulam “Crocodilos e Bombas”. Na edição de hoje, sumariamos, por conta e risco próprios, o essencial de tal introdução.

Em 1960 ocorre uma mudança extraordinária na aviação militar, aparecem no terreno aviões supersónicos, misseis e o radar concorreu para o modo de fazer a guerra. Em Portugal, nesse mesmo período, a mudança foi outra. De 1961 para 1975, Portugal combateu em África e a Força Aérea Portuguesa (FAP) travou uma guerra a baixa-altitude com aparelhagem eletrónica rudimentar contra a guerrilha. Estas operações da FAP eram de baixa intensidade. É uma das razões por que a guerra portuguesa em África passou praticamente sem nenhum estudo de observadores contemporâneos, em Portugal ou fora de África.

Mesmo com estas limitações, a FAP, no teatro africano da Guiné, mostrou o valor e as vulnerabilidades do poder aéreo num contexto irregular, como instrumento da contrainsurgência. De 1963 a 1974 a FAP desempenhou sucessivamente missões que incluíram bombardeamentos ofensivos e atividades humanitárias. No nível de ação direta e de resultados militares imediatos a FAP provou ser a mais importante arma contra a guerra subversiva e, em alguns momentos, o seu modesto desempenho pareceu levar a insurgência ao colapso. Contudo, devido à efetividade da FAP, o aparelho imperial – e especialmente a sua componente militar – foi crescendo excessivamente dependente da operacionalidade aérea. Os independentistas viram-se obrigados a dar prioridade à defesa aérea. Os imperativos da competição envolveram as capacidades da FAP e da guerrilha e acabaram por se constituir o pivô do resultado da guerra.

Durante a guerra que Portugal travou na Guiné, a FAP demonstrou um notável poder de intervenção, e assim se conseguiu manter uma campanha ao longo de uma década em ambiente austero apesar das deficiências crónicas em meios aéreos, armamento e pessoal – fragilidades devidas à estagnação económica interna (?), mudanças demográficas e hostilidade internacional ao império português.

Há ainda que ter em conta a resiliência da FAP tendo em conta a existência de outros teatros de operações e o enquadramento logístico exigido pela NATO (recorde-se que a NATO exigiu a retirada dos F-86 da Guiné). A adaptabilidade da FAP e a utilização hábil dos seus meios permitiram manter sempre o apoio a um exército disperso em alguns dos terrenos mais inóspitos do planeta. Antigos comandantes portugueses e historiadores têm assinalado esse excelente desempenho da FAP e alguém disse que se tratou de “uma notável proeza de armas”, independentemente do desfecho da guerra.

Acontece que a situação mudou radicalmente com o aparecimento em primeira mão dos teatros de guerrilha dos misseis terra-ar, que exigiram procedimentos estritos à FAP, quando no passado dispunha de uma supremacia quase absoluta, e a partir do momento em que os outros ramos das Forças Armadas se aperceberam do caráter retrátil dessa operacionalidade, acusaram emocionalmente a baixa.

A guerra aérea na Guiné Portuguesa continua em grande parte inexplorada nos círculos militares e mesmo académicos, merece maior audiência o seu estudo pela forma económica e eficaz com que atuou não só num enquadramento geopolítico tumultuoso e de rápida mudança tecnológica.

Imagem do “DO”, a aeronave que nenhum dos antigos combatentes esqueceu pela sua tão estimável presença

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23744: Parabéns a você (2109): Cor Inf Ref Luís Marcelino, ex-Cap Mil Inf, CMDT da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23722: Parabéns a você (2108): Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23743: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - V (e última) Parte: de 80 a 94


Lisboa > Sociedade de Geografia > 2008 > O "alfero Cabral" e as suas... máscaras

Foto: © Jorge Cabral (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro de Jorge Cabral (1944-2021)
"Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. 


1. O nosso Jorge Cabral, que nos deixou, inconsoláveis,  no dia 28 de dezembro de 2021 (*), vai fazer um ano, tinha um II volume das "estórias cabralianas" praticamente pronto para ser publicado. O editor adoeceu e a morte surpreendeu o autor. 

Do I volume, ainda restavam 11 exemplares até há dias, segundo informação do nosso camarada Luís Mourato Oliveira que lá foi, por indicação minha,   comprar dois exemplares para levar para Bissau, dentro de um mês.  Contacto desta livraria (especializada em livros usados e de pequenas editoras independentes):

Leituria, Rua José Estêvão, 45A, Lisboa
telem: 967 224 138, email: livros@leituria.com


Hoje publicamos a lista final das estórias cabralianas que o nosso blogue foi editando ao longo dos anos, entre 2006 e 2017 (**). As últimas (de 80 a 94) são já da última fase da produção literária do autor (entre setembro de 2013 e janeiro de 2017). 

Refira-se que,  desta última lista,  a estória mais lida (=503 visualizações) foi a nº 83 (Da Gata Catota à Tabanca da Queca...). Teve 14 comentários, entre os quais o de um outro histórico membro da Tabanca Grande que a morte também já nos arrebatou, no mesmo ano horrível  de 2021, o Torcato Mendonça (1944-2021): 

Olá, meu caro Jorge,  eu, neste fim de tarde friiiiooooo e chato, necessitava mesmo de uma destas. Li, e ao aparecer a "catota", fiz "Oh!! e ri com gosto. Genial e a confirmação de que muitos capitães, talvez devido a excesso de esforços, muitos deles não tinham sentido de humor...ou, pelos deuses, nunca "partiram catota" (26 de novembro de 2013 às 18:06).

Também muito vista (=459) e comentada (n=11) foi a estória nº 89 (Os filhos do sonho...)
Escreveu o Cherno Baldé: 

Jorge Cabral, não sei se aconteceu de verdade, mas a ÁQfrica é rica e incrivelmente surpreendente do ponto de vista da mística e do misticismo inexplicável. Entre certas etnias da Guiné acredita-se que uma pessoa (uma mulher ou homem) com poderes místicos pode transformar-se num lagarto e, assim, roubar a alma da pessoa (do homem ou da mulher) de quem se gosta, podendo assim dar *a luz a um(a) filho(a) tal e qual ao homem ou mulher a quem se roubou a alma ou espírito.

Estas e outras técnicas de méstica (engenharia social) ajudam as famílias a aceitar no seu seio aquilo que à primeira vista poderia ser inaceitável como,  por ex., fazer, sobretudo, com que os homens (maridos) participem na educação de criancas nascidas fora do lar (mestiças) de uma forma natural e sem constrangimentos (4 de setembro de 2015 às 10:17 )

Como eu também escrevi, a escassas semanas dee morrer, o Jorge Cabral era um verdadeiro oficial e cavalheiro, o último dos românticos do império (**) (LG)

PS - Espantoso: os meus amigos e amigas não o esquecem. Quase um ano depois da sua morte, a sua página no Facebook continua a ser "alimentada" com gratas e (e)ternas recordações da sua vida como professor e ser humano. Tratava as suas queridas alunas por "Alminhas", e ele era, para elas, a "Alma Maior"... Alma de Almeida, Jorge Pedro de Almeida Cabral... 


2. Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - V (e última) Parte: De 80 a 94 (*):

13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte. (...)

30 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12222: Estórias cabralianas (81): Em Vendas Novas, de ronda, na Tasca das Peidocas (Jorge Cabral)

(...) Em Janeiro de 1969, eis-me garboso aspirante na E.P.A. [Escola Prática de Artilharia], em Vendas Novas. Ao contrário dos outros aspirantes, encarregados da instrução no C.S.M. [, Curso de Sargentos Milicianos], eu fui colocado na Secção de Justiça e na Acção Psicológica, sendo ainda nomeado árbitro de andebol da Região Militar. (...)

2 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12238: Estórias cabralianas (82): Quando cabeças e rabos não são equivalentes, e nem sempre dois mais dois são igual a quatro: O Sitafá, as fracções e as sardinhas (Jorge Cabral)

(...) Em Missirá durante dois meses, estivemos sem abastecimentos. Época das chuvas, o sintex e os dois unimogues avariados .Ainda tínhamos conservas,mas faltavam as batatas, o vinho e o arroz para os africanos. Um dia porém, o Pechincha conseguiu fazer dos dois burrinhos, um, que andava. Fomos a Bambadinca, deixando a viatura, à beira da bolanha de Finete, que atravessámos até ao rio, o qual cambámos na piroga do Fodé. (...)


26 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12345: Estórias cabralianas (83): Da Gata Catota à Tabanca da Queca... (Jorge Cabral, com bolinha...)

(...) No fim dos anos 70, era um simpático advogado, com muitas clientes que me gabavam a grande sensibilidade…Entre elas, destacava-se a D. Prazeres, que eu divorciara de um marido violento e me assediava todos os dias, com questões que, de jurídico, tinham muito pouco. (...)

8 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12556: Estórias cabralianas (84): Ganhámos! O Alfero meteu golo!... (Jorge Cabral)

(...) Um dia, ouvi, em Bambadinca, que ia haver um campeonato de futebol. Para além da CCaç 12 , entravam todos os Pelotões e Serviços da CCS. Inscrevi o Pel Caç Nat 63, embora não tivéssemos equipa, nem sequer bola, que me apressei a adquirir.

Chegado a Fá, ordenei treinos diários. Tarefa difícil, pois os meus soldados africanos nem as regras conheciam. Eram fortes e rápidos, mas pareciam especialistas em sarrafadas. Para tirar a bola ao adversário valia tudo. (...)



(...) A 24 de Dezembro pela manhã, fomos a Bambadinca. Trouxemos bacalhau e o correio. 

Para mim chegou uma carta dos meus sobrinhos, escrita pela minha irmã. Dentro dela, um desenho do Pai Natal. Barba branca e uns óculos na ponta o nariz. Tal e qual eu ,agora…

À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres.

No dia 25, como fazia sempre de madrugada, fui atrás do meu abrigo, junto ao arame, aliviar a bexiga. Mas, mesmo antes de iniciar a função, olhei a mata. Olhei e vi todas as árvores enfeitadas com luzes e bolas cintilantes:
 –Venham ver! – gritei. (...)

17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association (Jorge Cabral)

(...) O Alfero nem oito dias tinha de Missirá, quando Binta, a mulher do Milícia, se meteu no seu quarto – abrigo, convidando-o a ...Ainda pensou resistir, mas... Na função era básica, mas os dotes pedagógicos do Alfero, surtiram efeito.

Era conhecida como a mulher do Milícia, mas não tinha marido, pois o repudiara, segundo os usos e costumes, por questões anatómicas, como se dizia na Tabanca. (...)


(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)

 29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)

(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)


3 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)

(...) Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar...

Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu:
– O pai era o Alfero…
– Mas quando e onde?
– É que uma noite sonhei com ele. (...)

22 de dezenbro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)

(...) Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.

Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco,  o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...) 

9 de janeiro de  2016 >  Guiné 63/74 - P15598: Estórias cabralianas (91): Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, aí pelas três horas, fui acordado pelas Mulheres Grandes, que me pediram para levar uma parturiente a Bambadinca.

Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação. Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina. (...) 


(...) Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos. Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, Missirá 1970, nunca esqueci. Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas, Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.
– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho. (...) 


8 de janeiro de 2017 >Guiné 61/74 - P16930: Estórias cabralianas (93): Porra, meu Alferes, não sabia que os Turras também tinham Mãe!?! (Jorge Cabral)

(...) NI-OI, NI-OI, NI-OI… Continuamos Amigos e Cinéfilos, Dalila.Tu vês filmes, eu, entro neste, tragicomédia que nunca mais acaba…

Desta vez houve guerra, dois mortos em Salá, mesmo junto a um limoeiro. O milícia Demba pisou uma mina reforçada e desapareceu da cintura para baixo. Os gajos abriram fogo e o meu soldado Guiro de rajada lerpou um turra, de pistola à cinta.
- NI-OI, NI-OI,NI-OI… - berrava o turra. (...) 


16 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16958: Estórias cabralianas (94): 1º Cabo Monteiro, pedicure: "Ó meu alferes, olhe-me só essas unhas dos pés, essas enxadas! Venha cá!"... (Jorge Cabral)

(...) Entre os meus militares metropolitanos, há o homem mais habilidoso que conheci, o Monteiro. Foi ele que construiu o forno e desmontou e montou o gerador. Ora uma vez, ainda em Fá, olhando as minhas unhas dos pés, chamou-me:
– Oh, Meu Alferes, olhe-me essas enxadas! Venha cá! (...)

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(**) Vd. postes anteriores da série >

(***) Vd. poste de 6 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22693: Antologia (79): "Alfero Cabral", oficial e cavalheiro... ou o último dos românticos do império (Jorge Cabral, autor de "Estórias cabralianas", 1º volume, 2020)

Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 24 de Outubro de 2022:


...A boina

Já faltava pouco tempo para regressarmos à Europa, assim, a nossa mente andava um pouco ocupada, mas não tanto para que não se reparasse na falta de recursos daquelas pessoas. Quando livres das nossas tarefas, continuávamos andando por ali, visitando algumas aldeias próximas do aquartelamento levando comida e pão que roubávamos no aquartelamento, assim como rebuçados que comprávamos na loja do Libanês.

Não compreendíamos a alegria nos rosto daquelas pessoas ao ver-nos chegar. Viviam na mais profunda miséria, mas aparentavam sentir-se bem naquelas casas térreas, cobertas com folhas de colmo, com toda aquela falta de utensílios domésticos. Uma simples lata vazia de conserva, que levávamos do aquartelamento, era guardada como se fosse uma coisa preciosa. Não havia água potável, era suja de lama, pó, lixo em tudo o que fosse lugar, improvisando quase tudo e, nunca ouvimos da boca daquelas pessoas uma pequena lamúria.

Mas agora recordando aquele miserável conflito armado em que estivémos envolvidos em África, sabíamos que os objectivos eram provar que a força encontrava a força e, para qualquer dos vencedores, era uma conquista fútil, era uma agressão errada, pois num conflito armado não existem vencedores, os que perdem nunca esquecem, transmitindo a mensagem à próxima geração de família, portanto está provado que um conflito armado, simplesmente não funciona.

E, para nós havia diversos rostos. Talvez o primeiro fosse o verdadeiro conflito armado, o das emboscadas mortíferas, do terror, dos tiroteios, dos ataques do inimigo aos aquartelamentos com as armas morteiro calibre 90 ou das bombas de napalme lançadas pelos aviões das nossas forças que destruiam aldeias e, dos soldados cansados, alguns desmotivados por verem os seus companheiros morrerem ali mesmo, junto de si, os quais, quando era possível, ajudavam a embrulhar no seu própro camuflado o que restava dos seus corpos.

Talvez o segundo rosto da guerra fosse a busca de uma solução política, ou seja, a diplomacia política, mas naquele tempo, com um primeiro-ministro, que se considerava um pai da nação, que tinha falado ao seu povo que devíamos "ir para a guerra e…, em força", sabendo que ia traumatizar uma geração de jovens que, práticamente foram abandonados, assim que se procedeu à independência das ditas Colónias em África, possívelmente envergonhando-se que essa geração era uma geração de combatentes, que defenderam a bandeira do país Portugal, ignorando a legenda que diz: "País que não respeita o passado, não pode ter um bom futuro”.

Não nos querendo alongar, talvez um terceiro rosto da guerra que vivemos em África seja a mais trágica. Era a necessidade humana, onde existia o doente abandonado, a família faminta, a criança analfabeta, centenas, talvez milhares de homens, mulheres e crianças abandonadas, sem abrigo, vestidas com farrapos, lutando pela sua sobrevivência, numa terra muito rica.

Onde as árvores, deixando-as em paz, cresciam com fruto, o peixe dos rios era abundante, havia animais nas savanas, florestas e pântanos e se houvesse paz cresciam e, sobretudo com um solo que era muito fértil.

No entanto, esta última vertente da guerra, trazia-nos angustiados, pois infelizmente alguns, mesmo nos dias de hoje, não querem o fruto das árvores para comer, procuram única e simplesmente, os frutos materiais das árvores.
Voltando de novo às aldeias e ao povo que vivia naquela profunda miséria, quando comiam, chamavam os cães magros e famintos, que por ali andavam, repartindo o pouco que lhe levávamos. Estas cenas ainda nos davam mais angústia, fazendo-nos lembrar os valores morais da nossa civilização, que repousa na natureza de sermos úteis ao próximo e, não procurar a guerra em que estávamos envolvidos, que naquela época era uma ameaça àquelas pessoas que viviam uma vida de sobrevivência.

No entanto, e este escrito é dedicado a ela, havia por lá uma criança, que não nos largava, sempre vinha em nosso redor agarrando-nos na mão, queria carinho e talvez rebuçados, pois imediatamente nos colocava a mão no bolso. Nós, às vezes embaraçados, não sabíamos com agir para nos despedirmos dessa criança, os seus olhos falavam, eram humildes, dizendo tudo o que lhe ia na alma, não necessitava abrir a boca, aqueles olhos falavam todos os idiomas do mundo.

Ao regressar à Europa, deixámos as botas de cabedal e parte da roupa da farda, assim como algum dinheiro a essa família, mas a criança, não queria a roupa da farda, queria a boina e o emblema. Nós, quase chorando, entregámo-la com um grande beijo, mas a criança sorriu, tirou o dedo da boca, limpou o ranho do nariz com as costas das mãos, deu uma gargalhada, mostrando um sorriso que dispensava palavras, pois a sua alegria falava todos os idiomas do mundo.

Tony Borie,
Outubro 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

Guiné 61/74 - P23741: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte V: 4º e último episódio, "Laços de Sangue", hoje, 5ª feira, dia 27, às 20h00, na SIC Notícias, Jornal da Noite


Série documental "Despojos de guerra", 4ª episódio: "Laços de sangue", Fotograma do "trailer" (3' 58''). Um dos entrevistados é o José Maria Indequi, secretário da direção da Associação da Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné-Bissau (FIDJU DI TUGA).

1. Sinopse, com a devida vénia, SIC Notícias > 25 out 2022, 12h17;

Chamam “filhos de tuga” aos mestiços nascidos das relações entre militares portugueses e mulheres africanas que foram deixados para trás. Entre a revolta e a esperança, ainda hoje tentam encontrar um nome de pai e descobrir a outra metade da sua identidade, como sucede aos irmãos Elva e José Maria Indequi.

"Despojos de Guerra" revela histórias extraordinárias de espionagem, patriotismo, sobrevivência e romance, tendo como pano de fundo a guerra colonial portuguesa em África (1961 a 1974).

Com recurso a imagens de arquivo extraordinárias e pela primeira vez submetidas a um processo de colorização inédito em Portugal, esta série documental, com assinatura de Sofia Pinto Coelho, vem dar voz a heróis anónimos que relatam agora, na primeira pessoa, as encruzilhadas que enfrentaram em tempo de guerra e de descolonização.

"Despojos de Guerra" é uma coprodução da Blablabla Media com a SIC, com o apoio à inovação audiovisual do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual.

Esta quinta-feira é apresentado o último episódio da série documental "Despojos de Guerra", disponível na plataforma Opto.

Sobre este tema, e sob o descritor "filhos do vento", temos mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue. ]

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23740: Historiografia da presença portuguesa em África (340): A Reconquista da Costa da Guiné, por Leite Magalhães, coronel e antigo governador (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que este trabalho represente uma lança em África, reconheça-se que o antigo governador da Guiné procurou ser meticuloso quanto à presença portuguesa desde o Infante D. Henrique até ao fim da dinastia de Avis, embora ele não tenha dado o devido valor, que agora os arquivos reconhecem, à tenaz afirmação dos concorrentes que vinham de Espanha até aos Países Baixos, todos na mira do tráfico negreiro, do comércio do ouro e da malagueta. Dizer-se que o espaço ocupado pelos portugueses se manteve incólume até à chegada dos Filipes é um tanto flor de retórica, como diz o povo "quem não aparece, esquece", é evidente que estes reis apoiaram o tráfico negreiro mas não colonizaram. Bem dizia André Álvares de Almada no termo do seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dirigindo-se a Filipe I de Portugal, que aquela zona era riquíssima e que precisava de ser colonizada. Não foi, e D. João IV viu-se em apuros para restabelecer a presença portuguesa a partir de Cacheu e contando com a orientação de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



A Reconquista da Costa da Guiné, por Leite Magalhães, coronel e antigo governador

Mário Beja Santos

"A Restauração e o Império Colonial Português", edição da Agência Geral das Colónias, 1940, é uma obra coletiva e nela consta um texto assinado pelo Coronel Leite Magalhães, antigo governador da Guiné, ele aparece na seção intitulada "A Reconquista do Império", e faz uma apreciação do que se passou na Costa da Guiné.

Procede a uma resenha dos acontecimentos ligados ao projeto henriquino, observando que depois da morte do Infante a Costa da Guiné se estendeu com D. Afonso V e D. João II até ao Cabo da Boa Esperança. Usava-se o termo Costa da Guiné para falar de toda a costa ocidental de África para além do rio Senegal, esta designação foi usada bastante tempo. O máximo da sua extensão deverá considerar-se atingido pela viagem de Rui Sequeira em 1475, ele chega ao Cabo Catarina. Foi este o último dos navegadores que, nos termos do contrato celebrado entre Fernão Gomes e D. Afonso V, fez o descobrimento da costa desde o Cabo Mesurado até ao extremo do Golfo de Biafra, também descobrindo as ilhas de S. Tomé, Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó, todas no mesmo Golfo. Toda esta nova e vasta zona passou a jurisdição da ilha de S. Tomé, foi doada a Álvaro de Caminha, seu povoador.

Assiste-se agora a um compasso de espera, já que D. Afonso V tinha duas preocupações dominantes, continua Leite Magalhães: Marrocos e Castela. Seja como for o contrato com Fernão Gomes acabou por abrilhantar o seu reinado, tendo o seu filho, D. João II, dado continuidade ao projeto henriquino.

O Infante D. Henrique pelo seu testamento (1460) legou a Guiné e “suas ilhas” (Cabo Verde) ao seu sobrinho, o Infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V. Acresce dizer que desde de 1461 toda a costa da Guiné, entre o rio Senegal e a Serra Leoa fica ligada a Cabo Verde. Em 1474, findo o contrato com Fernão Gomes, D. Afonso V faz doação a seu filho D. João de todo o comércio da Guiné. A costa era rica em mercadorias preciosas: o ouro, a malagueta, o marfim e os escravos. E logo começou a aparecer a pirataria em descarada competição. É nesse contexto que se abrem hostilidades com Castela, em 1479, segue-se um tratado de paz com os Reis Católicos, nesse mesmo ano, e nele se fez o reconhecimento do senhorio da Guiné ao Rei de Portugal.

Dada a presença constante de concorrentes ao comércio português nestes pontos da costa ocidental africana, houve um plano de construção de fortalezas, deu-se primazia ao Castelo de S. Jorge da Mina, pois para aqui convergia todo o comércio da Costa da Malagueta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. Este plano de construções continuou no reinado de D. Manuel, construiu-se uma fortaleza em Axém, onde se resgatavam “em cada ano 30 a 40 mil dobras de bom ouro”. Em Lisboa, todos os negócios daquelas bandas corriam pela Casa da Mina e Tratos da Guiné. Contudo, a presença portuguesa era episódica e limitada aos pontos de comércio. Iniciara-se um sistema de colonização com o povoamento de Santiago, com cultivos feitos por gente da Guiné. D. João II acrescentou aos seus títulos, em 1485, o de Senhor da Guiné, na prática era um título decorativo. Ele doou em 1489 as ilhas cabo-verdianas a D. Manuel. E em 1490, Rodrigo Afonso, Capitão em Santiago, iniciou o povoamento da ilha da Boa Vista com negros transferidos da ilha de Santiago.

Outra peça importante, mas meramente em termos legais, foi o Tratado de Tordesilhas em que se regularam as zonas de influência portuguesa e castelhana em Marrocos e também a divisão geral das terras descobertas e por descobrir. O período que decorre desde a morte de D. João II até a ocupação de Lisboa pelas tropas castelhanas não regista alterações sensíveis na costa da Guiné. Mantinham-se inalteradas as jurisdições das capitanias. Porém, aquela expansão do espaço imperial trouxe novas preocupações e exigências. Indiferente ao que se passava no continente africano, as ilhas de Cabo Verde aumentavam de população, crescia a exploração agrícola e pecuária. Surgiu a cultura do algodão, os gados bovino, caprino, cavalar e suíno multiplicavam-se nas ilhas. Convém recordar que o porto da Ribeira Grande na ilha de Santiago servira de porto de escala à armada de Vasco da Gama em 1497, ia este em demanda da Índia. O mercado de escravos continuava a tentar a concorrência, o rei D. Manuel bem tentou por alvará criar disciplina quanto a esta presença estrangeira, chegou a proibir os moradores das ilhas de fazerem resgates na Guiné sob pena de prisão e perda de navios, com magros resultados.

Durante o período filipino vai crescer a presença dos inimigos de Espanha e automaticamente Portugal, mas em caso algum se pode dizer que esta pirataria pôs em causa o que se chamava a presença portuguesa. E Leite Magalhães dá como demonstrado que até Filipe I de Portugal nada se perdera na Costa da Guiné, o saque começou depois. Admitamos que as coisas que se tenham passado mais ou menos assim, mas é na ausência da presença portuguesa que nomeadamente ingleses, holandeses e franceses começam a tomar posições que futuramente merecerão a ocupação envolvente do enclave da Guiné Portuguesa, era tarde demais para melhorar a nossa presença no que outrora fora a Alta Senegâmbia.

É bem curiosa a exposição de Leite Magalhães, não esqueçamos que estávamos a comemorar a Restauração e não ficava mal lançar o ónus do que se viera a passar na Senegâmbia aos Reis Filipes…


Bissau, o Mercado do Bandim
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)