Queridos amigos,
Estou de abalada, com o coração contrito, regresso a Lisboa com pouca trouxa, são imensas as saudades daquele tempo em que punha ao ombro um saco com as vitualhas pedidas pelas filhas e havia um saco de livros, cheguei a entrar no avião com quadros emoldurados, um deles com 1,20m de altura, as hospedeiras ficaram fulas, agora é um trolley com os artigos da sobrevivência, venho emocionado por esta viagem, pelos amigos reencontrados e pelas conversas que tivemos lembrando os que partiram, deu para lembrar versos do meu querido amigo Ruy Cinatti: "Hei de habitar no coração de certos que me amaram; / Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam; / Irremediavelmente... / Para sempre." Porque do prazer de viajar há esta doce alegria de termos um porto de abrigo, gente que habita no meu coração, e eu neles, para sempre. Por isso, logo que possa, regresso a esta região nórdica dos meus afetos.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (73):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 11
Mário Beja Santos
Despeço-me com lágrimas, a nossa amizade é enorme, confio plenamente que nos encontraremos em breve, aqui ou em Lisboa, mas não escondo que estou pronto para regressar, não tenho medo da chuva, do frio, da neve, dos dias curtos, levanto-me como as galinhas, pespego-me em frente do Palácio da Justiça, mais não seja para ver o que está em obras, se não chove nem se prevê ventania irei percorrer a minha feira da ladra, sempre à espera de um achado de valor incalculável, para a minha sensibilidade, deambulo por Marolles ou desço aos grandes boulevards, é aqui que estão os últimos alfarrabistas; ou posso lançar-me, através do Sablon em direção às instituições comunitárias, anda sempre comigo a lista de pequenos museus que eu tanto aprecio, como Charlier ou o Constantin-Meunier; ou pode passar-me pela cabeça, na Gare Central apanhar um comboio que me deixa em Malines, ou então numa outra direção, Liège; há sempre o passeio pelos jardins, basta pensar na floresta de Soignes, há os percursos à Arte Nova, há bairros que se fazem perfeitamente a pé, sempre para mirar as fachadas ou entrar em lojas de coisas em segunda mão, como Ixelles ou Saint-Gilles.
Fecho os olhos, é uma recapitulação em ziguezague, sem ordem, de coisas que vi, por dentro ou por fora. Fiquei a conhecer melhor as cidades-jardim de Watermael-Boitsfort, confesso, vivendo eu mais tempo na região de Logis que Floréal tem mais garridice, não tem aquele ar soturno daqueles tons verdes, nos meses da invernia. Os guias que me acompanharam reconheceram que aquelas cores levantam o espírito. São estas as primeiras três imagens que vos deixo.
Por uso e costume, não ponho imagens com gente familiar ou amiga. Esta visita não representava só o retorno às normalidades de um passado com que eu e amigos sempre tratamos com deferência, estamos agora a viver o chamado novo normal, o espectro da pandemia não desapareceu, mas estamos mais afoitos, a despeito de se saber que entrámos numa guerra económica mundial, com severas consequências para o chamado trem de vida. Esta minha amiga e eu próprio preiteamos a perda de alguém que estava no topo dos nossos afetos. E quando visitámos Villa Empain, estávamos com o astral elevado, e pedi uma fotografia encenada à minha querida Ika Vazvasoff. Não sei se a viatura era do senhor barão e milionário, o que importa é a alegria da Ika, um dos pontos mais marcantes desta viagem.
Por vezes as paredes de Bruxelas falam, registam memórias e formas subtis de aproveitamento de materiais que, embora tenham perdido o sentido do todo ou da homogeneidade, conservam uma enorme beleza. Alguém embutiu nesta parede azulejos Delft, deviam ter perdido préstimo, ganhou a parede com este invulgar património à vista.
É uma das atrações permanentes, a boa convivência dos belgas nas esplanadas que me levam a gostar de fazer sempre a pé estes percursos, em dias ensolarados, quem vive em Bruxelas vem conversas debaixo dos toldos ou sem estes, se se trata de um ensoleiramento de feição, é uma convivência esplendente, gosto destas pessoas que conversam sem gritar, não há para ali espavento, é sempre o espelho da bonomia, a marca de água dos belgas.
Quando, há cerca de 40 anos, comecei a vir com uma cerca regularidade a Bruxelas, impunha-se o edifício dos Halles de Saint-Géry, um velho mercado do peixe, que conheci soturno e abandonado, depois vi obras de cima a baixo, e quando visitei este património renovado deslumbrei-me com a sageza do multiusos: área de exposições (e que belas exposições lá vi, lembro a arquitetura dos anos 1950, coincidente com a exposição de 1958), ateliês didáticos relacionados com a promoção ambiental, venda de publicações a preços módicos relacionadas com a história de Bruxelas, uma acolhedora sala de convívio com serviço de bar e café, é um prazer visitar Saint-Géry, fica numa área onde pespontam hotéis baratuchos, da minha conveniência. Era fatal esta visita, de saudade e boa memória.
Outro edifício que conheci ao abandono foi o Old England, também tivemos um em Lisboa, muitos anos depois, e após uma excelente intervenção, aqui se prantou o Museu dos Instrumentos Musicais, onde é possível ouvir pequenos concertos de música de câmara ou recitais a solo a preços módicos, é uma impressionante obra da arquitetura de ferro, percorro lentamente o passeio, passo pelo espaço que foi a Livraria das Ciências, agora um estabelecimento de roupa fina, olho as montras daquela que foi a loja de discos melhor equipada, agora aqui se vendem cristais, mais a baixo havia a Galeria Tempera, aqui adquiri algumas obras, também mudou de ramo, há muitos estabelecimentos fechados, a pandemia alterou substancialmente a lógica do comércio, tinha que fazer este percurso, inevitável na romagem de saudade.
Museu dos Instrumentos Musicais, antigo Old England, perto da Place Royale
Para que este amor a Bruxelas se entranhasse, procurei estudar a sua história, conhecer o seu património, percorrer as suas comunas, fazer passeios para me sentir cativado pela Arte Nova, o modernismo, mas também as belezas naturais, a floresta, de beleza ímpar. E há que conhecer os cafés, os cem museus, as bibliotecas, procurar conhecer os edifícios da praça icónica, a Grand Place, os alfarrabistas, as igrejas. Com o passar do tempo, cheguei a viajar e usufruir do Dia do Património, foi assim que visitei o templo maçónico, o interior dos teatros, as velhas cristalarias, as beguinas, consolidadas as amizades havia as visitas aos museus comunais, como o de Ixelles. Como a escolha era enorme, e há muitos anos que não punha lá os pés fui visitar o Museu Constantin-Meunier, um pintor-escultor com renome (1831-1905). O ateliê do artista foi transformado em museu, interessou-se imenso pelo universo do trabalho, é marcadamente realista e os seus trabalhos em bronze são tidos como obras-primas. Mas para além das esculturas, há igualmente desenhos e aguarelas deste grande mestre. Foi a minha escolha, não estou nada arrependido.
Imagem do Museu Constantin-Meunier, em Ixelles
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Notas do editor:
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