sábado, 15 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23712: Os nossos seres, saberes e lazeres (532): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (72): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 10 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Servem estas imagens para ilustrar um pensamento urbanístico que presidiu à criação de bairros no norte da Europa, há cerca de um século; era tempo em que conservadores, liberais e gente das Esquerdas se entendiam quanto à necessidade de haver habitações dignas em atmosferas associáveis à Natureza, à privacidade e ao sentido da vizinhança. Vem nos livros que estas cidades-jardins deram abrigo não só a gente das classes médias como acolheram meios proletários. Findara uma guerra mundial sanguinolenta, nas trincheiras encontrou-se gente dos diferentes estados sociais, uma boa parte da Bélgica ficara destruída, na ofensiva alemã houve barbaridade indescritível, a mente dos belgas (como seguramente dos outros beligerantes) mudara, e assim se desenvolveu esta mentalidade de viver em ligação com a Natureza, um tanto fora do centro, mas gozando a amenidade do convívio. O curioso de tudo é que hoje já não se planeia urbanisticamente assim mas tratam-se estas experiências das cidades-jardim quase ao nível de monumentos nacionais.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (72):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 10


Mário Beja Santos

Finalmente, o passeio às cidades-jardins de Watermael-Boitsfort, com guias credenciados. Tudo começa à mesa de um café, ao lado de um restaurante sérvio, que serve bifes monumentais, aprendi que se pode pedir um bife para três pessoas da minha idade, os meus mestres puxam de ilustrações com cerca de um século. Era uma vez… Num mundo ideológico em que os partidos de Esquerda, Centro e Direita tinham auditórios radicalmente distintos dos atuais, havia zonas de confluência entre todos eles, e uma delas passava por se ter digerido bem a lição da Inglaterra da I Revolução Industrial, não se podia viver em falanstérios, nem em abarracamentos, locais húmidos, sem luz, sem qualquer tipo de saneamento; havia que conceber um tipo de habitação prazenteira, espaços de convivência. Encetaram-se dezenas de projetos, alguns malogrados, outros singraram até hoje, é o caso destes bairros que vamos visitar, La Logis e o Floréal, vamos percorrer só Watermael-Boitsfort, não iremos à comuna vizinha de Auderghem, é bem semelhante. O grande impulso foi dado no fim da Primeira Guerra Mundial, os projetos aprovados faziam combinar privacidade e proximidade, ligações internas dentro dos bairros, áreas de convívio, espaços ajardinados em permanência. Eu ia ouvindo os meus mestres e recordava o que tinham sido os bairros concebidos na Bouçã, Cabril e Castelo de Bode, uma conceção estado-novista, cada um no seu lugar, engenheiros separados dos auxiliares técnicos e outros trabalhadores, mas tudo bem articulado e com espaços de convivência, local de consulta médica, cooperativa de consumo, sala de reuniões, a possibilidade de parar nos caminhos vicinais e ter um pouco de conversa. Esse mundo já desapareceu, estes bairros são hoje em muitos casos casas secundárias de gente que quer viver em regime de bunker ou entaipados. O bairro que vamos visitar está classificado, não se pode alterar nada na fachada, para que as novas gerações aprendam a ler um sonho patrimonial que resultou.
Pedi para pararmos aqui em frente, não dei lições mas expliquei aos meus doutos acompanhantes como chegara aqui, graças a uma grande amizade, alguém que passava férias em Lisboa em minha casa e que me deu oportunidade, ao longo de dezenas de anos, de viver aqui numa atmosfera familiar. Convém explicar que há garagem e uma escada interior para o primeiro andar, que liga para a cozinha e sala de convívio, subir para o outro andar é uma escada íngreme, aí se encontra casa de banho e quarto, uma outra escada ainda mais íngreme, do outro lado mais um quarto e lá em cima dois quartos, tudo concebido para famílias enormes, uma casa de banho bastava, um pé alto de todo o tamanho, jardins à frente e jardins atrás. Estamos em La Logis, as ruas, todas elas, têm nomes de pássaros, estamos na Avenue du Geai, que quer dizer gaio.
Quantas vezes fui comprar pão e outra vitualhas por este caminho, a imagem é tirada em maio, é um fim de manhã cheia de luz e pode ver-se a doçura que paira nesta atmosfera, pode inclusivamente abrir-se uma cancela e entrar, percorrido o jardim interior, na cozinha. São carreiros, vejam lá por onde dança a imaginação, que me recordam os atalhos da minha infância, no bairro de Alvalade, a pequenada a correr pela terra batida, a caminho do campo de jogos.
Há sempre flores, tivesse vindo em julho apanhava as cerejeiras do Japão em flor, aqui são magotes de buganvília, a nascer e a fenecer no relvado. Quem ajardina espetou no campo a toda à volta um futuro arvoredo, mesmo quando os recursos são poucos a cidade-jardim cumpre o seu dever.
Tudo é relvado, com buxo, há paredes cobertas de hera a encontrar-se com paredes completamente sóbrias, as casas bem mantidas, veja-se aqueles sótãos, espaços enormes, cada casa tem dois quartos, os casais com filhos crescidos aproveitam para os encher de traquitana, ou criam condições para receber gente como eu, fiéis devotos da cidade-jardim de Watermael-Boitsfort.
Não foi a primeira vez que encontrei objetos úteis cuidadosamente expostos em caixas para quem quiser se poder servir. Fico enternecido, o que temos a mais, o dispensável, pode ser útil aos outros, não se oferece objetos partidos, andei por ali a bisbilhotar, confirmei o grau de civilidade de quem oferece com respeito pelo outro.
A visita acaba no Floréal, obviamente que as ruas agora dão pelo nome de flores, já não preside o verde mas o amarelo, tudo meticulosamente tratado. Os meus guias dão por findo o seu trabalho, respondo com o convite para comermos umas coisas e bebermos uma deliciosa cerveja. Conversamos sobre coisas soltas, dou-lhes conta da minha pontinha de tristeza, amanhã saio daqui com uma lágrima no olho, viagem de metro e depois comboio até um aeroporto onde um avião me depositará em Lisboa. Fica este caminho de saudade em última imagem, mas ainda tenho algumas recordações para vos transmitir, à laia de despedida desta excitante viagem pós-pandemia.

(continua)

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Notas do editor:

Vd. poste de 8 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23685: Os nossos seres, saberes e lazeres (530): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (71): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 9 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23698: Os nossos seres, saberes e lazeres (531): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (4)

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