quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23703: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): A Sebastiana Valadas (1º episódio da série da SIC, "Despojos de Guerra") e os "cantineiros do mato" em Angola


Angola > Grupos étnicos > Distribuição geográfica (1970). Actualizados os nomes das cidades.Todos estes povos são bantos, com exceção dos Khoisan (Boximanes e Hotentotes)

Fonte: Angola_Ethnic_map_1970-de.svg / Wikimedia Commons (adaptado, com a devida vénia).


1. Mensagem de António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62, topógrafo na vida civil, retornado, tendo mais tarde vivido e trabalhado na Guiné-Bissau, na TECNIL, no período de 1987/93; tem mais de 130 referências no blogue, é autor da série "Caderno de Notas de Um Mais Velho":

Data - 12 out 2022 15:19 
Assunto - Sebastiana Valadas (SIC) e um pouco da guerra no Leste de Angola.

Sebastiana Valadas contou um episódio da sua vida em Angola, na SIC (*), empolado, ou não, mas esta mulher sabe mais mas muitíssimo mais sobre o assunto e sobre aquilo que passou, mas quem quis como estas pessoas retornadas, que ficaram" para ver o fundo ao tacho", com certeza que terão dificuldades para abordar muitos pormenores que inevitavelmente viveram.

Conclusão, Sebastiana não disse "nem da missa metade"..

Pelo que se depreende daquele pedaço de entrevista fica a ideia que a vida dela teria sido sempre comerciante naquele fim de mundo.

Ora se assim foi, aquela mulher fala no mínimo uma língua indígena, e ali talvez falasse duas, pois aquela estação está situada numa região onde predominavam ganguelas  (**) e quiocos ou chócues. 

Atenção, para quem não é nem foi comerciante, "quem não é competente, não se estabelece", quero eu dizer que, aqui especialmente, se alguém quisesse ter sucesso, tinha que ter muitas competências, uma delas era ser poliglota.

Eu nunca consegui aprender nem crioulo, mas também problema do meu ouvido, ao contrário de colegas que tive que chegavam a falar 2 e 3 dialetos, a quem chegávamos a fazer exames, tínhamos muitos juris, os contratados, se era verdade ou falso.

Esses poliglotas não precisavam de intérpretes para nada, era uma vantagem enorme para poder entrar facilmente em ambientes tribais.

Como é que se fazia um "comerciante do mato"? Ou já herdava o negócio que pode ter sido aqui o caso, muita família em volta, ou praticando de jovem como empregado de uma casa deste género.

E, chegando a adulto, se sentisse as tais competências necessárias, era fácil estabelecer-se, mesmo sem capital, entrava em contacto com um grande armazenista/fornecedor... um historial que só conheço de ouvir, enfim, vi fazerem-se grandes endinheirados, e outros dar com os burrinhos na água.

Quando num jornal em anúncio se pedia empregado de balcão, para Luanda, se fosse para trabalhar no muceque, até sotaque de Luanda tinha que demonstrar para se considerar apto.

Voltando a Cassai-Gare, Cassai é um lindo rio, de águas límpidas e com diamantes, e que será o rio que dá o nome àquele lugar.

Andei na tropa em 1962, naquela zona numa companhia indígena, ainda aparece o nome no Google Earth a aldeola onde ficava a Companhia, era Nova Chaves, bem perto de Cassai-Gare, mas há ainda a sanzala Cassai onde tivemos um pelotão, de vez em quando vou ao Google, está ainda tudo no mesmo lugar.

Vim de Luanda para este fim de mundo, voluntário, para escapar a um capitão que me garantiu que ainda me havia de arranjar 9 dias de prisão, já me tinha dado 3 dias de detenção.

Já outra vez me tinha oferecido em 1961 para o Norte, como voluntário para fugir a outro capitão, que levou uma rabecada do Comandante do RIL, de Luanda, por minha culpa porque como sargento de dia não obriguei os faxinas a fazer a higiene da companhia, exemplarmente, numa revista semanal de sábado.

Talvez passasse o meu tempo de guerra todo em Luanda na santa paz das praias de Luanda, pois não me convocavam porque não havia arma para mim, armas pesadas de infantaria.

Mas voltando a estes comerciantes, em geral começavam como jovens, solteiros, e origem de quase todos eles, com raríssimas excepções vinham por esta ordem, Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e um ou outro beirão, poucos, e mais antigos também havia açorianos e madeirenses.

Para mim, aquilo em Angola, se não fossem estes comerciantes, e se em 1961 Salazar tivesse "dialogado" com Agostinho ou Holden Roberto, milhões de angolanos tinham ficado sem brancos, sem saberem o que foi haver branco em Angola, nem Angola dizia qualquer coisa àquela gente.

No caso daquele fim de mundo onde já havia uma linha de caminho de ferro com estação e tudo, vem tudo na Internet, sabemos que foi iniciativa do tal inglês que Norton de Matos queria copiar, Cecil Rodes, e que era para transportar os minérios ingleses e belgas, para o porto do Lobito.

E tinha estação naquele fim de mundo para quê? Aqui entram também os tais comerciantes como Sebastiana.

Sabemos que o negócio era de permuta, e ali era uma região de muita mandioca, muitíssima cera, peles de caça, muitas onças em armadilhas, e toda essa mercadoria ia para os fornecedores (em conta corrente), que ou eram de Nova Lisboa ou Lobito.

Pormenores que muita gente mesmo em Angola nem sabia para que era esta linha, mas no tempo da safra da mandioca, o caminho de ferro deixava em cada estação entre Silva Porto e Teixeira de Souza, um vagão de mercadorias, onde os comerciantes depositavam a mandioca da permuta, e no dia combinado vinha uma locomotiva e rebocava todos os vagons para o porto do Lobito, era uma composição enorme digna de se ver, como eu cheguei a ver, ao longe, com a mandioca branca devido a um tratamento próprio que se chamava crueira,

Mas havia,  além dos comerciantes, outras figuras que entravam nesta guerra do Leste (ZIL). Eram os madeireiros que se dizia que estariam feitos com o duvidoso Savimbi.

E naquelas regiões havia ainda outras figuras muito variadas, uns a fazer negócios de diamantes, outros a enfiar barretes com diamantes, aquilo era uma guerra muito interessante.

Mas uma coisa era que naqueles distritos os Governadores de distrito (militares) tinham um trabalho muito especial directamente com as populações e todas as autoridades, PIDE, Chefes de Posto, judiciária, milícias, e ligados sempre com a tropa.

Conheci em 1970, na Lunda o trabalho de Major Soares Carneiro, mais tarde candidato a Presidente da República..

E, no Cuando Cubango até 1974, conheci o Major Branco Ló, ali os movimentos "andavam na linha", mas não vamos trazer aquela guerra para aqui, pormenorizando, que traria muitas discussões. Mesmo lá em Angola, Cabinda era uma coisa, e o Norte era outra coisa e o Leste outra. Só não trabalhei nem lutei em Cabinda.

Eu defendo sempre os comerciantes do mato, porque sei que muitos militares que passaram os 24 meses em Angola, saíam com a convicção que eram uns "gatunos dos negros", que tratavam mal os negros, enganavam os negros, na balança, no livro, etc.

Tal como se dizia do merceeiro da aldeia e o rol do merceeiro.

Penso que é tudo o que me ocorre sobre sobre os comerciantes, colonialistas e imperialistas.

Um abraço, Antº Rosinha (***)

PS - O soldado nunca teve tempo de compreender que a guerra durava e o comerciante continuava no seu posto, no meio daquela gente, sempre com a mesma tranquilidade


"Despojos de guerra": é uma série de 4 episódios sobre a guerra colonail, que está a passar na SIC Notícias, durante o mês de outubro. No passado dia 6, 5ª feira, foi a estreia da série, com a exibição do 1.º episódio ("A informadora", 51' ). Próximos episódios: dias 13, 20 e 27.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

Vd. também postes de:

9 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

10 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23689: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte II - Luís Graça: Percebe-se agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave", a seguir ao 25 de Abril de 1974

(**) Vd, poste de 21 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12319: Manuscrito(s) (Luís Graça) (13): Três histórias ganguelas, três pérolas da sabedoria angolana... E onde se fala da atualidade dos Baratas, dos Cavetos e dos Heróis

(***) Último poste da série > 15 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17862: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (52): Das pequenas recordações dos vários quartéis a mais artística que ficou lá a "apodrecer", foi o memorial na ponte de Caium

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rosinha, passas ao lado da situação legal (e moral) da Maria Sebastiana Valadas Durães e do seu marido Adelino Alves Durães: presos em Junho de 1976, foram expulsos pelo governo angolano, em 1977, sem julgamento, ao que li por aí...

Será que todos os comerciantes tinham que jogar com o tal pau de dois bicos ? E por que é que eles ficaram em Angola, sabendo que a sua colaboração com a PIDE mais tarde ou mais cedo viria a ser conhecida pelas autoridades angolanas ? E ficavam em Angola, a afzr o quê ? Será que eles não passariam de uns "pobres diabos", sem consciência do que estava a acontecer? Não era possível, dada a debandada geral da população branca (inckuindo o pai ds Sebastiana), antes do 11 de novembro de 1975 (proclamação a indepedência pelo MPLA, e a subsequente guerra civil)...

Antº Rosinha disse...

O que sei desta mulher é apenas o que diz enquanto depena o galo, mas já disse que ela ali, não diz "da missa, metade".

Quem era mais jovem houve muitos "aventureiros" que quiseram por vários motivos arriscar para ver o "fundo ao tacho".

Contam-se casos mirabolantes, inclusive alguns até aliciados pelos partidos para ficarem do seu lado.

Conheço casos pessoais de gente amiga que estiveram até à ponte aérea, vésperas da independência, já havia tiros, só mesmo para ver o que aquilo dava, salvaguardando previamente a família.

Mas havia gente que não tinha dinheiro para comprar a passagem e sem bilhete a TAP não fiava.

Há muitas histórias que é melhor não irmos buscar rosas-coitadinhos!

E essa do pau de dois bicos, eu já expliquei que os governadores tinham tudo conectado...e Luís, qual seria o bico usado desses comerciantes contra a tropa, a não ser fornecer-lhe géneros às escondidas aos turras?

Isso para a PIDE e aquela organização, Chefes de Posto, Régulos totalmente do lado de cá, aquilo seria gato escondido com rabo de fora.

Até eu tenho pena de não ter o dom da ubiquidade, se não tinha vindo â metrópole passar o verão de 74 como vim, tinha voltado a Angola como fui, tinha ido passar o Natal/74 ao Brasil com passaporte passado pela PIM, como fui, mas teria assistido até â ponte o que não era possível.

Antº Rosinha disse...

Luís Graça, quer se creia ou não por quem não viveu a vida de Angola, os três movimentos mais as suas facções, nunca convenceram aquelas manchas tribais (abreviadas) do mapa que apresentas, numa independência que os viesse a respeitar.

Mas muitos brancos, a maioria apolíticos, como por exemplo eu, que tinha levado toda a minha vida angolana numa enorme "brincadeira", também não tínhamos a mais pequena fé em qualquer um daqueles...«autores daquela guerra de 28 anos», que fizeram as fantochadas dos alvores e outros acordos.

Dizia um descendente de velhos colonos madeirenses, meu colega, no dia 26 de abril, vamos fazer as malas que já não há Salazar, agora vêm a irresponsabilidade total.

E diziam todos os negros, (povo) a trabalhar na Junta Autónoma de Estradas, "vamo-nos matar todos uns aos outros".

Claro que o pouco dinheiro que eu tinha e que não era recambiável entreguei-o praticamente todo à TAP, Luanda-lisboa-Luanda-Rio-São Paulo-Rio.

Mas nem toda a gente tinha tanta disponibilidade mental nem financeira, porque em Angola era há 13 anos, "chapa ganha, chapa gasta", porque o dinheiro não servia para mais nada.

Daí a tal qualidade de vida que se diz que havia em Angola, "chapa ganha, chapa gasta",
foi esta uma das principais razões de uma Ponte Aérea de emergência muita gente não tinha dinheiro para recambiar a família para Portugal.

Na Guiné como havia apenas o PAIGC, foi tranquilo quanto ao "branco" ficar ou não ficar, até houve uma certa proteção.

Aliás, o povo guineense era dos comerciantes, merceeiros, tasqueiros, eu sei lá, era desta gente que sentiam mais saudade no governo de Luís Cabral.

Eram os comerciantes que colonizaram à portuguesa, eramos pobres, não tinhamos Cecil Rodes nem Leopoldo II, que queriam era minério.

Por isso, seja a Sebastiana ou qualquer outro que tenha arriscado ou não, ou os avós de Pepetela ou de Lúcio Lara, respeito-os e compreendo-os.

Aos avós!