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sábado, 10 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23862: História de vida (49): Sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte II: A guerra e a sua violência... mas também havia situações "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos, tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...)


Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1964/66) e CCAÇ 1565 (1966/68) > Domingo, 10 de julho de 1966 > Um dia trágico: pormenor da evacuação do cap mil inf Rui Romero, na foto a ser transferido para a maca do helicóptero Alouette II... A enfermeira paraquedista era a alf Maria Rosa Exposto.

Foto (e legenda): © Artur Conceição (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

Parte II: A guerra e a sua violência... mas também havia situações  "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos,  tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...) 



Rosa Serra, hoje (2020)

Perguntaram-me, no Hospital de Cascais onde estive recentemente internada (*), onde trabalhei, e ficaram admiradas, as enfermeiras, quando desfiei os vários locais e as experiências que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista.

Naturalmente que não escondi que foi uma experiência profissional interessante, mas acrescento sempre que essa realidade foi muito específica e muito diferente da prestação de cuidados em outros contextos, mas talvez não superior aos desempenhos como enfermeira, antes e depois, dos anos que estive ao serviço da Força Aérea.

A Arte do Cuidar é muito variável e sempre adaptada ao contexto onde se exerce. A nossa ação, como enfermeiras paraquedistas, foi num palco de guerra, que desencadeava estados de stresse elevado, sendo necessário geri-lo com mestria, para que a nossa intervenção fosse útil e eficaz. Tínhamos de ter atenção ao nosso estado emocional, pois ele refletia-se naqueles que eram socorridos por nós.

Foi uma mais valia fazermos o curso de paraquedismo, que não nos ensinou a ser enfermeiras, pois já o eramos antes de entrar no RCP - Regimento de Caçadores Paraquedistas, mas foi durante o curso de paraquedismo que aprendemos a controlar os nossos medos e emoções, para que aterrássemos em segurança. Esse treino repercutiu-se na nossa ação, que passou a ser mais calma e mais eficaz.

Os nossos combatentes tinham uma confiança ilimitada nas enfermeiras paraquedistas, foram eles que nos apelidaram de “Anjos“ que desciam do céu para os socorrer. Acredito que a maioria de nós, se não todas, se via como seres espirituais, mas foi uma expressão carinhosa, utilizada pelos nossos combatentes.

Com os pilotos, quando alguma coisa os preocupava, nós, mesmo não entendendo nada de aviões, tentávamos acalmá-los.

Recordo de uma vez na Guiné. O sr. capitão, piloto aviador Cartaxo, ao atravessar o Rio Geba, o maior rio da Guiné, que ficava em frente à cidade de Bissau, par irmos buscar um paraquedista à outra margem desse rio, deparou-se com um inesperado nevoeiro que, sem qualquer “aviso”, fechou o nosso caminho, impedindo que o rumo que estava traçado inicialmente, teria de ser alterado ou adiada a missão. Já estávamos a sobrevoar Tite quando esta alteração climática aconteceu.

De início, o piloto tentou ultrapassar as nuvens, e eu também fiquei atenta ao comportamento das mesmas e andamos ali um bom bocado a sobrevoar Tite, na expetativa de não ser necessário regressamos a Bissau, sem a nossa missão cumprida que era trazer o nosso ferido.

– Olha ali, as nuvens estão a abrir e a nosso favor – disse eu, mas o Capitão mexia na manche,  alheio à minha informação.

Eu sem perceber por que razão o seu foco era apenas os instrumentos da aeronave. Só no fim de uns bons minutos, acedeu ao meu pedido e acabámos por aterrar no aldeamento donde vinha o pedido.

A pista que nos recebeu era de terra batida, cujas pedrinhas batiam na fuselagem da frágil avioneta, uma DO-27. O ferido que íamos buscar era um paraquedista da companhia do, na altura,  capitão paraquedista Terras Marques [, a CCP 121 / BCP 12],   que na noite anterior pernoitara nesse quartel do Exército, vindo de uma operação.

Quando aterramos, chegou até nós o militar ferido,  que já apresentava alguma dificuldade respiratória, porque ao cair da tarde foi tomar banho a um pequeno rio, mergulhando numa parte baixa e lesionou a coluna cervical, razão suficiente para eu pedir ao capitão que pedisse à BA 12, em Bissalanca, para ter um helicóptero disponível na pista à nossa chegada.

O hospital militar [, o HM 241, em Bissau], ficava relativamente perto da BA 12, mas não seria indicado ser transportado por terra, percorrendo uma estrada de piso degradado até lá.

O sr. capitão piloto aviador acedeu ao meu pedido e, quando aterrámos na BA 12, lá estava o Alouette III à espera. Fez-se transferência do ferido para o helicóptero e, antes de ele descolar, coloquei dois frascos de soro em cada lado do seu pescoço, para o manter minimamente estável e já não o acompanhei até ao hospital. O trajeto era demasiado curto, não justificava minha presença durante a viajem.

Depois do helicópetero levantar voo rumo ao Hospital Militar de Bissau, virei-me para o aviãozinho, para perguntar ao capitão se queria acompanhar-me ao bar dos pilotos para tomarmos o pequeno almoço, e qual não é o meu espanto quando vi num buraco na asa do avião, e em cima dela estava um cabo mecânico da Força Aérea que, com ar animado, informa:

– Meu capitão, já a encontrei.

Foi quando vi o furo no DO-27 e ingenuamente disse ao capitão:

– Eu,  quando ouvia as pedras a bater na barriga do avião,  pensei que estas iriam criar moça ao nosso aviãozinho. 

Ele não reagiu á minha observação. Só no bar dos pilotos, não ele, mas quem ouviu a sua narrativa, ria descaradamente na minha cara. Até eu ri pela minha ignorância e estupidez.

Por vezes parecia que vivíamos num mundo de “anedotas”, estou a lembrar-me de outra reação que os pilotos tinham quando chegava um avião da TAP, com passageiros idos de Lisboa.

Após o almoço no Bar dos Pilotos, onde geralmente eu tomava café, de repente alguém me segura por um braço e diz:

– Vamos já para a pista.

E um deles arrasta-me me para dentro de um jipe que já estava à espera dos meninos pilotos, nesse dia acompanhados por uma enfermeira paraquedista. Explicaram-me:

– Vamos ver as miúdas que vêm de Lisboa.

Quando chegamos muito perto da pista, e na distância permitida, estacionaram o jipe e lá ficamos a olhar o belo avião TAP, de portas abertas com um assistente de bordo à espera da colocação das escadas, por onde desceriam os passageiros que chegavam de Lisboa.

Colocada a escada, os passageiros aparecem começando a descer os passageiros e iniciou-se o alvoroço:

– Olha a loiraça que aí vem, é o máximo – diz outro.

E eu pensava:

– Estão todos apanhados pelo clima, o que é que eu tenho a ver com isto ?!

Até que de repente se instala a desilusão total e começaram a lamentações, dizendo:

– Ó, pá, é a Rosa Exposto (uma enfermeira paraquedista)

Eu arregalei os olhos, pensando como é enfermeira paraquedista já não interessa!... Mas, ri com gosto, pela desilusão dos nossos amigos pilotos.

"Essa enfermeira é gira mas é... uma enfermeira paraquedista", acredito que a frase, dita à minha frente, os incomodou por considerar o comentário pouco respeitoso.

Foi bom confirmar que, para além dos paraquedistas, também os pilotos tinham alguma preocupação em terem atitudes delicadas, pelo menos na nossa presença.



Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


Há um caso dramático que ainda hoje me custa falar. Embora eu não assistisse, nem tão pouco eu estava na Guiné, mas conhecia a enfermeira em questão, quando eu estava em Luanda e lhe fiz a adaptação no transporte de feridos e doentes de Luanda para Lisboa.

Segundo a narrativa das enfermeiras que estavam na Guiné na época, essa enfermeira nesse dia quando almoçava no BCP 12, chegou um jipe, que sabia sempre onde estava a enfermeira de alerta do dia, informando que havia uma evacuação. A jovem interrompeu a refeição, meteu uma peça de fruta no bolso, entrou na viatura que arrancou em direção á pista.

Com todo aquele stresse, teve uma atitude impensável e sem lógica nenhuma. Foi colocar a bolsa dos primeiros socorros na porta de trás, pelo lado do piloto e voltou para o seu lugar pelo mesmo lado.

Sem que o piloto se apercebesse que ela voltara pela frente do avião, para ocupar o seu lugar,  o lugar dela, ele põe o motor a trabalhar, atingindo-a mortalmente com as pás. É impressionante como ela não se lembrou dos ensinamentos dados pelos paraquedistas, que nos ensinaram; nunca se passa pela frente de um avião, nem por trás de um helicóptero, visto ser lá que está instalado o rotor de cauda. (**)

As enfermeiras que estavam a almoçar com ela, ficaram sem perceber porque é que o jipe voltou logo de seguida, chamando todas as enfermeiras à pista. Elas foram e depararam-se com aquele cenário horrendo.

Por muito preparadas que estivéssemos, há sempre situações que é impossível não nos abalar profundamente.

Apesar de tantas situações violentas, não foram só tristezas, havendo sempre algumas engraçadas para recordar. Eu sou do tempo em que em Portugal não se vendia a revista Playboy, ela só chegava ao RCP quando alguém a trazia da Base Americana dos Açores. Eu estava em Tancos nessa altura a dar um curso de primeiros socorros avançados a socorristas paraquedistas e,  quando chegava o fim da tarde, antes do jantar, passava pelo bar dos oficiais que era composto por três salas: o bar propriamente dito, uma segunda sala destinada à leitura e uma terceira com televisão.

Era lá nessa sala de leitura que estava a dita revista. Quando eles davam conta que eu estava a entrar, tentavam disfarçar passando as revistas, de cima para baixo e avisavam em surdina:

– É, pá,  cuidado, vem aí a Rosa. 

Eu fingia não perceber,,, Só mesmo paraquedistas têm este comportamento para com as suas camaradas, e assim contribuíam para que a nossa confiança, respeito e admiração por eles, fosse cada vez maior.

À primeira vista até parece que não, mas este comportamento de respeito e delicadeza influenciou a nossa postura quando tínhamos um ferido nas nossas mãos, fosse ele amigo ou inimigo, era sempre preciso respeitá-lo e entender o seu desespero.

Não esqueço o livrinho sobre a ética militar, que me foi oferecido pelo Batalhão de instrução no nosso RCP em 1968, que ainda o tenho, onde está escrito; quando estamos perante um inimigo, ferido temos de o respeitar pois ele nessa situação deixa de ser inimigo e é obrigação socorre-lo, com todo o respeito.

Quando li isto tive uma sensação ótima, por ver que os princípios éticos dos paraquedistas não colidiam com os meus próprios princípios como enfermei

A minha evolução, como enfermeira e como pessoa, foi grande.

Achei curioso quando eu ainda estava internada no Hospital de Cascais, perguntarem-me se eu era contra a guerra. Expliquei que não é essa a questão, pois todos sabemos que as guerras são indesejáveis em qualquer situação, mas enquanto existirem dois homens à superfície Terra, haverá sempre conflitos.

   É   anuíram elas.

(Continua)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas / LG]
_____________
(**) Vd. poste de 6 de janeiro de 2015 > Guiné 63774 - P14123: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (32): A morte da camarada Enfermeira Paraquedista Celeste Costa (Giselda Pessoa)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Guiné 63/74 – P4478: Iniciativas da ADFA em Lisboa (3): Almoço/Convívio do pessoal da BA 12 (Pilotos, Mecânicos e Enf Pára-quedistas (Luís Nabais)

1. Promovendo uma das iniciativas da ADFA (Associação dos Deficientes da Forças Armadas), recebemos esta mensagem do nosso camarada Luís Nabais, ex-Alf Mil da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa 1969/71, com data de 6 de Junho de 2009:

Caros Eduardo e Carlos,

Como vos havia já dito e vocês tão amavelmente haviam publicado, quando esta ideia era ainda era apenas uma intenção, gostaria de vos pedir agora a publicação, no blogue, do almoço/convívio do pessoal da BA 12 (Pilotos, Mecânicos e Enfermeiras Pára-quedistas) que, enfim, conseguimos agendar.

Este evento está já publicitado, também, no blogue da malta da BA 12 e, definitivamente, terá lugar no próximo dia 27 de Junho, na sede da ADFA.

Será uma homenagem, onde recordaremos todos aqueles que não conseguimos, nem queremos esquecer.

Alguns fazem questão de cá estar deslocando-se de bem longe, em cadeiras de rodas e, outros, ainda, comparecerão com as suas próteses, mas não querem deixar passar em branco esta homenagem.

São DFA’s, que querem dizer também: EU ESTOU PRESENTE!

As esposas podem e devem participar também.

A cada uma das pessoas inscritas, além da festa e do convívio, será entregue uma medalha comemorativa do evento.

O preço será de 20 €!

NOTAS:
Aquando da publicação do texto inicial, fomos questionados sobre a eventual presença, ou não, nesta confraternização, das “nossas” enfermeiras Paraquedistas!

Estamos à espera que, entre todos os “tertulianos”, muitos as conheçam e as contactem. Peçam-lhes, por favor, para elas marcarem a sua indispensável e tão desejada presença também.

ATENÇÃO: INSCREVAM-SE JÁ… SÓ DISPOMOS DE 15O LUGARES (o espaço não dá para mais).

Localização e estacionamento há e vocês conhecem.

Agradecendo a publicação desta convocatória, bem hajam e um abraço,

Luís Nabais
(Sócio efectivo da ADFA, nº 9724)

___________

Notas de M.R.:

As inscrições podem ser feitas directamente para aquele blogue (especialistasdaba12@gmail.com) ou para a ADFA, ao cuidado da Dª Conceição Valente, nº Tel-217 512 600. Já agora, a ADFA localiza-se entre a Av Padre Cruz e Av Rainha D.Leonor, no Lumiar. Perto tem o Instituto Ricardo Jorge, e é perto do Estádio do Sporting, parecendo não haver problemas de estacionamento.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1668: In Memoriam do piloto aviador Baltazar da Silva e de outros portugueses com asas de pássaro (António da Graça Abreu / Luís Graça)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968 > Um DO (Dornier) 27 na pista de aviação (1).

Foto: © José Neto (2005). Direitos reservados.


Guiné > Bissalanca > Restos do motor do DO 27, do Furriel Piloto Aviador Baltazar da Silva ... Esta imagem foi-nos enviada pelo nosso camarada Victor Barata, que vive hoje em Viseu, e que foi especialista de Instrumentos de Bordo, na nossa gloriosa FAP (1969/1974). Esteve na Guiné, de 1971/73, "na linha da frente dos DO 27". Pedi-lhe para me dar mais pormenores sobre este trágico acidente (2). Descobri agora que o Baltazar da Silva conviveu com outro nosso tertuliano, o António Graça de Abreu, autor de Diário da Guiné (2007) (3).


Foto: © Victor Barata (2007). Direitos reservados.

Vitor Barata ainda não teve tempo de satisfazer a minha natural curiosidade acerca deste acidente: onde, quando, em circunstâncias, etc. Curiosamente, acabei por encontrar algumas respostas ao ler o Diário da Guiné, o livro autografado que me foi enviado pelo seu autor, o nosso camarada António Graça de Abreu. O Abreu foi Alferes Miliciano no CAOP1, primeiro em Teixeira Pinto, e depois em Mansoa e em Cufar (1972/74).

O seu livro é um excelente documento, de interesse memorialístico, sobre os tempos (conturbados) que antecederam o fim da guerra: a morte de Amílcar Cabral, a escalada da guerra, a proclamação unilateral da independência, a conspiração dos capitães, o 25 de Abril de 1974, a retirada das NT, etc.

Não vou agora vou fazer uma detalhada recensão crítica do livro do nosso camarada António Graça de Abreu (3). Vou apenas seleccionar alguns dos seus registos diários, em que é referida a Força Aérea Portuguesa, as suas máquinas e os seus homens. Em dois ou três desses registos, a evocada a figura do Furriel Miliciano Aviador Baltazar da Silva cujo DO foi abatido em Abril de 1973, entre Bigene e Guidaje. Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.

Teixeira Pinto, 26 de Junho de 1972

(…) Cheguei de manhã, vim de helicóptero (…). O alferes piloto do meu héli sabia que eu era pira, ou seja, periquito (…) e resolveu fazer uma brincadeira com a máquina voadora. Saímos de Bissau com aquela grande casca de alumínio motorizada e barulhenta,a scendendo harmoniosamente no céu. Uns dez minutos depois, sobre o rio Mansoa, o piloto fez subir o helicóptero até quase aos dois mil metros. Logo sde seguida como que o deixou cair (…) a razoável velocidade direitinho às águas do rio. Eu vinha no banco de trás e pensei: Vou morrer. Foram só uma dúzia de segundos, depois o piloto segurou impecavelmente o héli a uns duzentos metros da margem do rio (…). Chegámos e ele divertido, ao ver-me ainda branco como pó de caulino, com as cores do susto e da morte estampadas no rosto.


(…)
Canchungo, 21 de Julho de 1972

O meu dia a dia (…). Por volta das dez, quase todos os dias, chega o DO, a avioneta de Bissau; às vezes vou de jipe à pista, a uns quatrocentos metros daqui, buscar o piloto e os sacos de correio, o particular e o oficial (…).

Capa do Livro Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura, de António Graça de Abreu. Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.

Foto: Guerra e Paz Editores, SA (2007) (com a devida vénia...)


Portugueses com asas como os pássaros
 
(…) Canchungo, 1 de Agosto de 1972

(…) São doze os DO que voam no território, umas avionetas Dornier de fabrico alemão robustas e funcionais, mas sujeitas a desgaste tremendo. Às vezes voam às arrecuas, salvo seja.

Já têm uns anos, avariam-se com facilidade. A semana passada um DO que voava daqui para o Cacheu viu-se obrigado a aterrar de emergência na tira de asfalto da estrada Canchungo-Cacheu, por duas vezes. O que nos safa é o PAIGC não possuir anti-aéreas (há o boato de que as vão ter em breve), mesmo assim alguns DO já levaram tiros, sem consequências.

Gosto dos alferes e dos furriéis pilotos dos hélis e das DO. Estes homens da Força Aérea, quase todos mais novos do que eu, fazem maravilhas com as máquinas voadoras que lhes foram distribuídas. Vou buscá-los à pista, sentamo-nos na mesma mesa para almoçar, vamos até ao bar beber um café ou um copo, falamos da guerra e da paz. Já os vou conhecendo, admiro estes portugueses com asas como os pássaros

(...)

Canchungo, 20 de Dezembro de 1972

[Depois de trinta e cinco dias de férias em Portugal]

Cheguei de helicóptero, viva o luxo! Dá-me gozo viajar nestas loucas máquinas. A sensação de flutuar, oscilar no céu a grande velocidade, é mil vezes melhor do que aqueles voos assépticos e incolores nos aviões grandes tipo Boeing e quejandos. De helicóptero temos a terra, os rios ao alcance da mão e dançamos no céu.

Mas só quando os hélis voam em zona de paz. Hoje vieram porque havia operação na Caboiana (4). Aproveitei a boleia. De tarde, houve contacto NT/IN na zona de guerra. O mesmo héli em que vim voou para a Caboiana, foi buscar dois feridos e acabou atingido com estilhaços de morteiro 82 disparados pelos guerrilheiros. Continuou a voar, aterrou na nossa pista, fomos verificar o estado do Alouette III, e seguiu para Bissau, com o cone de trás da fuselagem cheio de buraquinhos. A enfermeira pára-quedista Celeste (*) que de manhã viajara com o piloto e comigo desde Bissau, e costuma acompanhar as evacuações no mato, apanhou um grande acagaço. O alferes piloto também estava nervoso.


__________

(* ) Dois meses deopois deste incidente, a enfermeira Celeste Pereira, ao correr para uma DO que se preparava para levantar voo a fimd e proceder a evacuação foi morta pela hélice da avioneta que lhe cortou a cabeça, no aeroporto de Bissalanca (Nota de rodapé do autor, p. 64).

Canchungo, 5 de Janeiro de 1973

(…) Hoje ouvi a DO, fui para a pista com o major P., a avioneta sobrevoava Canchungo, mas nunca mais descia, dava voltas e ais voltas por cima do campo de aviação, até que por fim aterrou. Estranhámos bastante. O piloto vinha a suar, era periquito, baixava pela primeira vez em Teixeira Pinto, estivera uns minutos largos a estar a pista. Chama-se Baltazar, é um furriel piloto aviador com um ar castiço, inconfundível, alto magro, os cabelos muito ruços e encaracolados. Pediu desculpa ao meu major pela demora na aterragem.

(...)

Mansoa, 13 de Fevereiro de 1973

A poesia de Manuel Alegre: Mesmo na noite mais triste / Em tempos de servidão,/ Há sempre alguém que resiste, / Há sempre alguém que diz não.

Resistir. Hoje vi os aviões Fiat cruzarem o céu dos poetas, picarem de cima para baixo e largarem 600 quilos de bombas sobre a floresta próxima onde se escondem guerrilheiros, mulheres e crianças, donos do orgulho, da miséria e do medo. E vi depois a mesma gente, mulheres, um menino morto e mais crianças feridas que as nossas tropas foram buscar, a fim de serem transportadas para o hospital de Bissai. E vi um tenente aviador com o remorso de talvez já ter bombardeado e morto gente inocente, e vi um coronel afirmar que, desde 1961, já contactou muita desgraça, isto agora já não lhe bole com nenhum músculo (…).

Regresso a Bissau com a morte na alma
 

Mansoa, 29 de Março de 1973

Foi abatido um avião a jacto Fiat G 91, um pequeno bombardeiro, lá para o sul, perto de e Guileje (…). O tenente piloto aviador [ Miguel Pessoa](…) ejectou-se, saltando de pára-quedas numa zona onde não foi detectado pelo IN (…).

Ontem repetiu-se o o incidente, foi abatido outro Fiat G 91. Desta vez, o piloto não teve sorte, o aião desintegrou-se e morreu o tenente-coronel Almeida Brito, o comandante das esquadrilhas de aviões na Guiné.

É uma nova realidade com que temos de contar, o PAIGC já dispõe de mísseis anti-aéreos que são eficazes. Os pilotos estão com medo de voar, quem se quer suicidar ?Esta manhã esteve cá o furriel piloto Baltazar da Silva, o tal rapaz alto do cabel encaracolado e muito ruivo, meu conhecido e amigo desde aquela primeira aterragem estranha, alvoroçada em Canchungo. Trouxe a sua DO, pareceu-me preocupado, assustado. Almoçámos juntos, ele quase não tocou na comida, fixava os olhos em coisa nenhuma. Trouxe até ao meu quarto, bebemos um whisky velho, animei-o tanto quanto fui capaz. Regressou a Bissau com a morte na alma.


(…)

Mansoa, 7 de Abril de 1973

Uma DO foi atingida pelos mísseis do PAIGC e caiu lá no Norte. Morreram o piloto, um mecânico e o major Jiame Mariz, que conhecia muito bem, desempenhou algum tempo as funções de 2º Comandante do Batalão 3863, de Canchungo (Teixeira Pinto) (…) .

A morte do Baltazar da Silva

____________________
Mansoa, 8 de Abril de 1973

Outra DO pilotada pelo furriel piloto aviador Baltazar da Silva foi abatida pelo IN quando voava entre Bigene e Guidaje. O rapaz morreu, junto com um alferes médico e um sargento  . O Baltazar almoçou comigo na semana passada, esteve aqui no meu quarto desanimado e triste. Escrevi então que ele havia partido para Bissau “ com a morte na alma” 

[Certamente por lapso, não é referido o major de infantaria graduado Jaime Frederico Mariz, cmdt do COP 3, que ia de boleia para Bigene.]

(…)

Bissau, 29 de Abril de 1973 [Depois de dezoito dias de férias em Portugal]

(…) Pelo que já ouvi contar, a aviação está quase paralisada. Os guerrilheiros, moralizados, passam ao ataque. Sem aviões, sem hélis, complica-se a vida de todos nós.

(…)

A tropa anda amedrontada ... 

Mansoa, 8 de Maio de 1973

(…) Aqui os aviões, muito a medo e com a máxima precaução, recomeçaram a voar. Acabou a segurança com que cruzavam os céus da Guiné. Os hélis ainda não vão buscar ninguém directamente ao mato, no caso de haver um contacto e registarem-se feridos. Por tudo isto, e porque todos sabemos que tem morrido muita gente, a tropa anda amedrontada.

____________

Notas de L.G.:


(1) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(2) Vd. post de 14 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1661: Tertúlia: Notícias de Lafões, do Rui Ferreira, do Carlos Santos e da nossa gloriosa FAP (Victor Barata)

(3) Vd. posts de:

5 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1498: Novo membro da nossa tertúlia: António Graça de Abreu... Da China com Amor

6 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

27 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1552: Lançamento do livro 'Diário da Guiné, sangue, lama e água pura' (António Graça de Abreu)


(4) Ao CAOP1, pertenciam entre outras forças especiais a 38ª Companhia de Comandos, de que fazia parte o nosso tertuliano Amílcar Mendes. Há vários posts sobre a actividade operacional da 38ª CCmds, na região de Caboiana:

15 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1280: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (7): Um tiro de misericórdia em Caboiana

22 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1200: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (2): Um dia de Natal na mata de Cubiana-Churo