Lisboa > Belém > Monumento aos Combatentes do Ultramar > XXV Encontro Nacional dos Antigos Combatentes > 10 de junho de 2019 > Sob o olhar atento do Carlos Silva, régulo da Tabanca dos Melros, o Francisco Justino Silva, hoje ortopedista (. foto à esquerda), membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de abril de 2010 (*), relembra os tempos em que foi substituir, em Jumbembem, em circunstâncias trágicas, o comandante do Pel Caç Nat 51: o seu interlocutor, um antigo milícia do seu tempo (, à direita, na imagem), estava lá, nesse fatídico dia 16 de julho de 1973, em que foi cobardemente morto a tiro de G3 o alf mil op esp / ranger, Nuno Gonçalves Costa.
Dois camaradas, pelo menos, da nossa Tabanca Grande conheceram e conviveram com o Nuno Gonçalves da Costa:
(i) o Luís Mourato Oliveira conviveu com ele, na 1ª metade do ano de 1973, e com o seu Pel Caç Nat 51, em Cufar;
e (ii) Fernando Costa Gomes de Araújo (ex-fur mil op esp / ranger, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74): é deste último o relato do que aconteceu nesse dia 16 de julho de 1973, 2ª feira, relato esse já publicado em poste, editado pelo Eduardo Magalhães Ribeiro (**), e que merece ser reproduzido na série "15 anos a blogar desde 23/4/2004" (***)
O Nuno Gonçalves da Costa era natural de Campos de Sá, freguesia de São Jorge, Arcos de Valdevez. A sua morte é atribuída a "acidente com arma de fogo" (sic), forma eufemística das Forças Armadas classificarem não só os casos de acidente devidos a arma de fogo, como os de homicídio e suicídio no TO da Guiné.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O assassinato do Alf Mil Op Esp/Ranger Nuno Gonçalves Costa, do Pel Caç Nat 51, em Jumbembem, em 16 de julho de 1973
por Fernando Araújo (*)
[ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74M foto à civil, à esquerda]
Jumbembem, 16Jul1973 – 08h00/09h00
Estava eu no meu quarto, quando ouvi, nas traseiras da instalação, três disparos de G3.
A primeira coisa que pensei foi que o alferes açoriano (cujo nome não me lembro) se tinha suicidado, pois, nos últimos tempos, vinha a dar sinais evidentes, não só de estar farto de permanecer em Jumbembem, como de graves complicações psicológicas.
Desloquei-me rapidamente para o local de onde ouvira as detonações, dando a volta às instalações do dormitório do meu quarto, cujas traseiras davam para as traseiras de outro edifício com quartos e fiquei muito surpreendido…
Ao contrário do que eu estava a pensar, não fora o alferes dos Açores a vítima dos tiros, mas sim o alf mil op esp Nuno Gonçalves Costa, do Pel Caç Nat 51 [, adido à 2ª CAÇ / BCAÇ 4512] , e que jazia no chão gravemente ferido, pois tinha sido ele o alvejado com as três balas.
A sua imagem ali tombado a esvair-se em sangue, mortalmente, ainda hoje a retenho no pensamento.
Motivo da morte: o alf mil Costa tinha aplicado como castigo (não sei a causa), um reforço a um nativo do Pel Caç Nat 51. O homem não conformado com a punição, foi à porta do seu quarto e disse-lhe:
– Alferes, eu não fazer reforço!
Ao que ele retorquiu:
– Já te disse que vais cumprir o reforço!
Foram trocadas mais algumas palavras de que eu já não me lembro. O nativo tornou a reclamar:
– Alferes, eu não fazer reforço!
– Já te disse que sim e não se fala mais nisso!
Acabado este diálogo, o nativo deslocou-se à tabanca em busca da G3 que lhe estava atribuída. Passado algum tempo, talvez 30 minutos, regressou novamente para junto do quarto do alferes. Pousou a G3 à porta e, chamando-o novamente, disse-lhe:
– Alferes, eu não fazer reforço!
O alferes voltou a afirmar que ele tinha de cumprir o castigo, com que o tinha sancionado. Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.
Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e voltou a ser pedido, insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.
E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.
O nativo foi preso, com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia local, queriam fazer justiça pelas próprias mãos (isto é, linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:
– Não lhe toquem!
Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.
Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.
Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura Berliet e com uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do BCAÇ 4512).
A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.
Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais, ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.
A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé.
Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante, en Cor Vaz Antunes, ou o 2º comandante major Menezes, já não me lembro bem).
Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.
Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.
Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a Ilha das Cobras [ou Ilha das Galinhas, que funcionava como campo prisional ? (LG)]
Para substituir o comandante do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva, madeirense, que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. [Era oriundo da CAÇ 3492, Xitole, 1971/73]
Com o meu pedido de desculpas por eventuais lapsos de memória, que poderão sempre ser corrigidos, mas esta é a visão dos factos que ainda mantenho hoje, passados mais ou menos 36 anos. Na minha agenda/diário, no dia 16 de Julho de 1973, 2º feira, anotei este fatídico evento, a morte do alf mil ranger Costa
Um abraço,
Fernando Araújo
Fur mil op esp / ranger
2ª CCAÇ do BCAÇ 4512
(Jumbembem, 1972/74)
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