sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi





Guiné > Zona Leste > Sector L5 > Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2405 (1968/70) > Embora pertencente ao BCAÇ 2852 - cujo comando e CCS estavam sedeados em Bambadinca -, a CCAÇ 2405 não teve grandes contactos com o pessoal da CCAÇ 12.
Daí que só no no 1º encontro da nossa tertúlia, na Herdade da Ameira, Ameira.Montemor-o-Novo, realizado em Outubro passado, é que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente o Rui Felício, a par de outro baixinho de Dulombi, o Paulo Raposo.

Foto: © Victor David (2006). Direitos reservados.
Vários perigos, perigos vários (1)
por Rui Felício


É sabido que os emblemas das unidades militares normalmente são compostos por símbolos e frases que apelam a supremos valores, à audácia, à heroicidade, à destreza, ao caracter, honestidade e grandeza dos ideiais dos membros que compõem as respectivas unidades.

E os desenhos escolhidos não se afastam normalmente de símbolos guerreiros, como sabres ou armas de fogo enquadrados por espirais de flora rebuscada, ou animais selvagens subjugados pela força dos corajosos militares.

As cores usadas são normalmente berrantes e carregadas, procurando traduzir a esperança e o sangue derramado em defesa da Pátria.

Toda a amálgama kish que resulta da vontade de tentar transmitir em pequeno espaço uma míriade de ideais, é na maior parte dos casos encimada por umslogan que em poucas palavras demonstre aquilo que a confusão dos símbolos e as cores podem não conseguir espelhar de forma clara.

Por Deus e Pela Grei, Venceremos onde Outros Pereceram, Indómitos e Audazes, Desbravando o Mato e Civilizando as Gentes, são algumas das milhares de divisas que identificavam as unidades militares na Guiné.

Todos os que serviram nas Forças Armadas, sabem que é assim…Torna-se inútil multiplicar os exemplos.

O perfil a enquadrar a divisa e os símbolos, também ele, recorria a formas geométricas rebuscadas, arredondadas, simétricas, floreadas…

No terço final da comissão, com a Companhia finalmente concentrada no Dulombi, pensou-se em encontrar um emblema e uma divisa para a nossa Unidade.

Não deveriamos deixar acabar a comissão sem legar aos vindouros um símbolo que nos identificasse, tal como a maioria das outras unidades já o tinham feito.

Acolhida a ideia, estabeleceu-se um período de tempo para que fossem apresentados projectos para futura escolha daquele que merecesse o consenso geral. E assim surgiram meia dúzia de ideias para a o emblema da Companhia.

Lembro-me que, à excepção daquele que mais tarde viria a ser o escolhido, todos os outros obedeciam às caracteristicas usuais que acima procurei recordar e referir. Tratava-se de um símbolo que fugia a todos os critérios tradicionalmente considerados para a representação emblemática de uma Companhia. Não continha armas, não continha animais ferozes, não caracterizava de forma explicita os seus militares como heróicos, nem audazes, nem indomáveis...

Só continha uma cor o que o tornava de uma simplicidade contraditória com a amálgama de cores típicas dos demais emblemas, que nos feriam o olhar e nos despoletavam os mais bravos sentimentos guerreiros…

E a divisa não apelava aos nossos sentidos nem à nossa bravura... nada!… Nem impunha qualquer afirmação que levasse, quem a lia, a pensar em nós como uma espécie de super-homens, de carácter impoluto, guardiães dos sagrados valores pátrios...

Era uma singela constatação: VÁRIOS PERIGOS.

E o símbolo que o enquadrava em nada alterava o conhecido sinal de trânsito que quer dizer nem mais nem menos que a divisa escolhida. Ou seja, o símbolo gráfico era inteligível para qualquer pessoa, e traduzia fielmente a divisa.

Não foram precisos arabescos nem frases grandiloquentes para dizer a todo o mundo que os Baixinhos do Dulombi eram gente preparada e habituada a vários perigos.

E, ao contrário de tantos outros emblemas, traduzia a realidade e ao fazê-lo atribuia mérito aos militares da Companhia sem necessidade de falsamente e de forma rebuscada os transformar em heróis que não eram, em impolutos que não eram, em audazes que não eram...

Sim, porque os Baixinhos do Dulombi eram pessoas normais, com os medos próprios do Homem, mas o carácter próprio de gente cumpridora dos seus deveres... Deveres que os levaram a correr os tais Vários Perigos…

A originalidade, a simplicidade e a profundidade da mensagem do nosso emblema, escolhido entre vários outros projectos candidatos, são a razão do meu voto e do alargado consenso que reuniu a larga distância dos concorrentes.

Ao Vitor David, autor do símbolo da CCAÇ 2405, os parabéns pela excelente ideia, talvez única nos anais militares

Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post > 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

Guiné 63/74 - P1351: Postais Ilustrados (13): A catedral católica de Bissau (Beja Santos / Luís Graça / Mário Dias)

Guiné > Bissau > Catedral > Postal ilustrado do final dos anos 60. Gentilmente cedido por Beja Santos, ex-alf mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70). Creio que foi lá que o Mário se casou, com a Cristina, em Abril de 1970, sendo padrinhos do casamento o médico David Payne e a sua esposa Isabel (1).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


1. Série Postais Ilustrados (2). No verso deste, que não chegou a ser usado como bilhete posral, pode ler-se os seguintes dizeres, impressos:

Bihete Postal
Guiné Portuguega
132 - Catedral de Bissau
Fotografia verdadeira
Reprodução proibida
Edução "FOTO SERRA"
C.P. 239 Bissau
Impresso em Portugal

2. Das duas ou três meses que estive em Bissau, durante a minha comissão (1969/71), nunca tive a curiosidade de visitar a catedral católica. A construção parece-me ser dos anos 40/5o, sendo a arquitectura típica do Estado Novo. Em todo o caso, para muitos dos nossos camaradas que fizeram a guerra da Guiné, a existência deste templo foi um importante elemento de conforto espiritual.

Hoje não haveria mais do 5 de % de católicos e outros cristãos (3), concentrados sobretudo em Bissau e Bafatá. O bispo de Bissau é Dom José Camnate Na Bissim. O bispo de Bissau é Dom Pedro Carlos Zilli (LG).


Guiné > Bissau > Anos 50 > Perspectiva da Avenida da República, obtida a partir da torre da catedral já ao final do dia. O primeiro edifício, de que se vê pouco mais que o telhado, é a sede da uma das importantes firmes comerciais da Guiné: Nunes & Irmão. Mais ao fundo, do lado direito, o cinema UDIB e o palácio do governador na praça do Império. O edifício da Associação Comercial (hoje PAIGC), situado na mesma praça, ainda não existia (4).

Foto e legenda: © Mário Dias (2006). Direitos reservados.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)

(2) Vd. post de 23 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1310: Postais Ilustrados (12): Ponte-Cais de Bissau e estátua de Diogo Gomes (Tino Neves / Carlos Fortunato)

Para quem se interessa pela antropologia e sociologia da religião, recomendo a leitura de um texto disponível na Net, da autoria de Eduardo Costa Dias, investigador do Centro de Estudos Africanos, ISCTE, Lisboa, 1998 [ Este centro publica, por sua vez, desde 2001, a revista Cadernos de Estudos Africanos, de que saíram até agora 6 números]:
Eduardo Costa Dias > Protestantismo e proselitismo na Guiné-Bissau: Reflexões sobre o insucesso do proselitismono Oio e na província Leste. Lusotopie. 1999. 309-318.
Aqui fica um pequeno extracto:

(...) "No caso concreto das regiões predominantemente muçulmanas – sectores do norte da região do Oio, província Leste (região de Bafatá, região do Gabu) –, apesar da passagem ocasional de missionários protes­tantes ser assinalada várias vezes, desde pelo menos meados dos anos cin­quenta, em núcleos urbanos como Pirada, Contuboel, Bambadinca, Mansabá, Farim ou Gabu, não é conhecida a existência nestas povoações de locais de culto protestante ou de núcleos protestantes duradouros com algum significado numérico. Nas regiões acima referidas, até aos anos noventa a presença protestante permanente resumiu-se ao núcleo da WEC constituído, nos últimos anos da presença colonial, na cidade de Bafatá – um pequeno núcleo de crentes evangélicos, maioritariamente de origem cabo­verdiana, dotado de um templo, e que foi, no período colonial, combatido pela Igreja católica e pela administração e, mais tarde, disperso pelos acontecimentos imediatamente posteriores à independência.
"Como para os católicos, a zona islamizada da Guiné-Bissau sempre foi – e é – para os protestantes uma zona de muito difícil proselitismo : os muçulmanos consideram os cristãos quase como infiéis ou pelo menos como pessoas com valores religiosos (muito) inferiores aos seus ; ser muçulmano é, no quadro das mentalidades das populações fulas e mandingas, já de si uma prova de superioridade moral e social" (...)

Guiné 63/74 - P1350: Ataque ao navio patrulha no Rio Cacheu (Victor Tavares)

Guiné > Rio Cacheu > 1973 > Tropas paraquedistas e militares africanos a bordo de um navio patrulha.

Guiné > 1973 > o 1º cabo paraquedista Victor Tavares e o marinheiro Diogo, seu conterrâneo.

Guiné > Algures no mato, em operações > 1973 > O ex-1º Cabo paraquedista Victor Tavares (BCP 12, CCP 121, Guiné 1972/74), com a sua metralhadora ligeira HK21, de fita.
Fotos e texto: © Victor Tavares (2006). Direitos reservados.


Ataque ao navio patrulha,
por Victor Tavares (1)

Estimado amigo Luís: Como prometi , envio-te mais um pequeno texto, este relativo à viagem de regresso entre Ganturé e Binta, da CCP 121 - Companhia de Caçadores Paraquedistas 121, num navio patrulha do qual era comandante o Capitão de Fragata Luppi.

Na noite do dia 19 para 20 de Maio de 1973, os paraquedistas da 121, vindos de Bigene, embarcaram por volta das 23 horas e 30 minutos no respectivo navio com destino a Binta. Encontravam-se também a bordo alguns militares africanos.

Depois de toda a tropa se instalar o mais comodamente possível - o que era difícil derivado à quantidade de pessoal -, o navio entra em movimento, rio Cacheu abaixo. Passado algum tempo de viagem, aparece um elemento da guarnição do navio, meu conterrâneo, a perguntar por mim. Eu encontrava-me deitado na proa junto à peça de artilharia Metralhadora e, como era escuro, ele lá vinha saltando e perguntando.

Eu não dei sinal de vida, e ainda dei indicação ao meu camarada Ventura que se encontrava de pé, encostado aos cabos de aço dos resguardos de protecção, para não dizer nada. Quando ele ia para se retirar e, como se encontrava ao alcance da minha mão, puxei-lhe as calças brancas típicas dos marinheiros, à boca de sino, levantei-me e abraçámo-nos: era o meu amigo Diogo que eu não fazia naquele lugar .

Entretanto convida-me para ir beber uma cerveja, acedi prontamente e lá descemos até ao bar aonde conversámos enquanto saboreávamos a cerveja.

Pouco faltava para a meia noite, hora que ele ia entrar de serviço às maquinas, pegámos em mais uma cerveja e subimos as escadas, ele na frente até a um patamar e, logo em seguida, desce outras escadas para a casa das máquinas.

Ele já se encontrava lá em baixo quando eu iniciei a descida, iria eu no terceiro quarto degrau, quando se ouve um rebentamento logo seguido de outro. Ele pôs as mãos a cabeça e disse:
-Vamos morrer todos.

Eu recuo chego ao patamar que antecede as escadas, quando deparo com dois marinheiros a fechar as portas, gritei-lhes para me deixarem sair, o que aconteceu .

Quando saio olho e vejo uma confusão doida na parte da frente do navio, eram chamas e explosões junto à peça da frente, que tinha sido atingida por uma das duas roquetadas até aí dadas. Encontravam-se vários marinheiros com mangueiras a tentar apagar o fogo, as explosões eram bastantes, o meu equipamento, arma e munições estavam no meio daquela confusão, até que baixaram as chamas, eu arrisquei e fui rápido a recolher a minha HK21 e o meu cinturão com o restante equipamento. Ao mesmo tempo agarrei também a Degtyarev do 1º Cabo Paraquedista Ventura. Consegui recuperá-la porque estava junto à minha .

Quando vinha com ela a fugir das chamas, vai que os guerrilheiros do PAIGC disparam pelo menos mais 2 roquetadas da margem direita no sentido que seguíamos, eu ainda com a Degtyarev nas mãos viro-me para a margem e abro fogo descarregando o tambor. Como utilizávamos munições tracejantes algumas ficavam espetadas nas árvores da margem ainda incandescentes. Foi quando da torre do navio se ouve:
- Façam fogo para margem que eles estão a fumar.

A partir daqui foi um autêntico festival de fogo, durante dois ou três minutos.

Nesta altura já o navio se atravessava no rio correndo o risco de embater na margem, só não acontecendo por o rio naquele sitio ser largo.

Entretanto no meio de tanta confusão, diziam que tinham caído à agua alguns militares, tendo os fuzileiros ainda saído com 2 ou 3 zebros. Falso alarme , afinal estavam todos no navio, o único que esteve fora do navio foi o Ventura que com o sopro da explosão de um RPG foi projectado borda fora mas por sorte nesse movimento conseguiu agarrar-se a um dos cabos de aço ficando pendurado da parte de fora do navio.

Entretanto havia vários feridos nos militares africanos. Sorte para os parquedistas que no meio de tanta confusão apenas sofreram pequenas escoriações.

E estivamos em Binta para na manha seguinte partir para Guidaje.


Estimado amigo, despeço-me com grande abraço, para ti e todos os tertulianos.

________

Nota de L.G.:

(1) Vd. último post > 26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1316: A participação dos paraquedistas na Operação Ametista Real: assalto à base de Kumbamory, Senegal (Victor Tavares, CCP 121)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1349: Quartel Novo de Nova Lamego: paredes finas e chapa de zinco (Tino Neves)


Guiné- Bissau > Região de Bafatá > Gabu (antiga Nova Lamega) > Fevereiro de 2005 > O José Couto entre dois militares das Forças Armadas, no centro da parada do antigo quartel das NT, junto ao monumento de homenagem a Amílcar Cabral (que, por sua vez, é uma canibalização do memorial aos mortos do BCAÇ 2893, que esteve ali sediado entre 1969/71).


Foto: © José Couto / Tino Neves (2006). Foto gentilmente cedida por José Couto (ex-furriel miliciano de transmissões, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71), camarada do nosso tertuliano Tino Neves.



Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > 1971 > Placa memorial erguida aos mortos do BCAÇ 2893: "Glória aos mortos"... O resto é ilegível... Depois da independência, a mesma pedra - virada do avesso - passou a conter uma inscrição de homenagem a Amílcar Lopes Cabral, o fundador da nacionalidade, o líder histórico do PAIGC, assassinado em Conacri pelo seu guarda-costas em 1973.


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS do BCAÇ 2893 (1969/71) > Cerimónia de Inauguração do Quartel Novo em 31 de Janeiro de 1971 (1)

Fotos: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.



Estas eram as valas que do quartel Novo...


Este era um posto de Metralhadora Breda...

Este é o mesmo posto, mas com coberto anti-chuva...


Fotos e texto: © Tino Neves (2006) (1). Direitos reservados.


Todos nós, estivessemos de serviço (o chamado reforço) ou não, antes de irmos para as casernas, passavamos algumas horas, até por volta da meia noite, ou mais, pelos postos ou simplesmente nas valas, porque não nos sentíamos seguros nas casernas antes dessa hora.
A razão era simples: as ditas casernas eram feitas de simples blocos de areia e não sei que mais, o que sei é que não era cimento, porque se esfregassemos um dedo por algum tempo nos ditos tijolos, o dedo atravessava-os, portanto um simples tiro de pistola o atravessaria. E o tecto era de chapa de zinco. Não havia abrigos.

Passo a contar uma estória passada no Posto da Breda que se vê nas fotos (e que por acaso era o posto onde eu normalmente fazia o meu Reforço).
Era numa noite de muita chuva e trovoada, estando eu de serviço no posto da Breda, em companhia do camarada 1º. Cabo Escriturário Campino Ruivinho, e estando muito frio, compartilhámos a mesma manta para nos agasalharmos enquanto víamos impávidos a chuva e os relâmpagos.
De súbito um relâmpago atinge o fio das telecomunicações que estavam suspensos no ar, até ao nosso telefone de campanha, mesmo ao nosso lado. Limitámo-nos a ver o clarão de luz a correr esse mesmo fio até nós, e estoirar o aparelho!... O susto foi tão grande que, quando nos apercebemos, estávamos ambos abraçados um ao outro.

Conclusão: Fizemos figura de parvos. Se fosse um ataque, apesar de ambos sermos Escriturários, agiríamos em conformidade, mas neste caso, manda o instinto.

Sem mais termino agora com um abraço.

Guiné 63/74 - P1348: Concurso O Melhor Bagabaga (2): Bissau (David Guimarães)

Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > Entrada do restaurante Lusófono, junto ao Aeroporto de Bissau, onde existe "esta maravilha, um bagabaga". Na foto, o David mais o filho do Dr. Vilar, psiquiatra, que foi alferes miliciano médico do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Mais uma foto para o concurso de O Melhor Babagaga (1)...

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

O David J. Guimarães, que trabalha no Porto e reside em Espinho, é um dos tertulianos da primeira hora, creio que o nº 2, a seguir ao Sousa de Castro, que é o nº 1... Como não existem privilégios nem postos nesta tertúlia, a antiguidade não é um posto, logo não conta: ninguém se vai pôr em bicos de pé só por ser mais antigo... Bom, mas a verdade é que o David já pertence à velhice (2) ...

Foi, além disso, um incansável alimentador da nosso primeiro blogue, em textos e fotografias (3). As suas fotografias, os seus apontamentos, ajudaram-me a preencher inúmeras falhas de memória em relação à Guiné do meu tempo, desde Bissau a Bafatá, do Xime ao Xitole... Recordo-me a alegria com que recebi dele as primerias fotos de Xitole, Bambadinca, Bafatá, Bissau....

Em 2001, ele voltou lá, ao local do crime... Sobre essa viagem disse-me ele, o meu camarada do Xitole e de Bambadinca:

"Ora aí vai mais um pedaço daquilo que está lá, na nossa Guiné. Digo nossa porque afinal está no coração. Quanto ao resto, é deles e com todo o direito. E que eles tenham inteligência para não deixarem o país capitular. Pouco falta e é pena...

(...) "Envio-te esses testemunhos. Creio que todos reconhecerão a 5ª Rep, o antigo Café Bento: acho importante essa fotografia. Todos se lembrarão do Pelicano e da Marginal; da casa Gouveia, que é agora o Ministério da Economia; do Forte da Amura e do quartel-general, lá em cima, na zona de Santa Luzia...Enfim, é a Guiné.

"Muito gostaria, dado o ficheiro ser grande, de ter a certeza de que o recebeste em boas condições. Mata saudades que, afinal, é das coisas que vale a pena matar"...

Comentei eu: Grande filósofo, grande sábio, o meu amigo David! Mas voltando a citá-lo: "Ninguém de sã espírito entenderá como um combatente gostará assim tanto dos locais onde sentiu a morte tão perto, o matraquear da metralhadora, o troar do obus, a metralha das armas ligeiras, os gritos de horror... Afinal a vida até por isso valerá a pena, não sei!"...E com esta é que ele me matou e me obrigou a manter o blogue até hoje, aberto à circulação de ideias, sentimentos, estórias, emoções, memórias:

"Sabes, Luís, ninguém entenderá como milhares de Portugueses hoje têm saudades daquilo lá. E vale a pena, podendo, ires lá, digo eu... Para um dia dormires descansado. E se tiveres que chorar chora, porque agora temos liberdade para isso e faz-nos bem. Não, não é feio um homem chorar: feio foram outras coisas, mas isso já é política... Abraço. David".

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post anterior, de 7 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1347: Concurso O Melhor Bagabaga (1): Bambadinca (Humberto Reis / Luís Graça)

(2) Vd. post de 29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1) (Luís Graça)

(3) Vd. alguns dos posts dos primeiros meses do nosso blogue:

11 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVII: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (4)(Luís Graça / David Guimarães)

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLI: A região do Xitole, por onde andou o Nino... (David Guimarães)

5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIV: A estória da cabra do mato e do prémio Governador Geral (David Guimarães)

23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David Guimarães)

10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)

Guiné 63/74 - P1347: Concurso O Melhor Bagabaga (1): Bambadinca (Humberto Reis / Luís Graça)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > Um bagabaga nas imediações de Bambadinca. No topo vê-se o Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


O bagabaga era(é) um dos fenómenos naturais de África, em geral, e da Guiné, em particular, que faziam (fazem) as delícias dos nossos fotógrafos amadores... No nosso tempo, não havia militar que se prezasse que não mandasse para casa uma foto, de pé, garbosamente, - qual Teixeira Pinto, estatuado! - em cima de um bagabaga, uma elevação de terreno que está para a formiga como os Himalaias estão para nós...

Até eu, que era avesso a tirar fotografias e a escrever aerogramas, não escapei à fatal atracção que exercia o bagabaga. Bateram-me uma chapa em cima de um babaga, em pose triunfal, como o caçador colonial de antanho em cima dum mastodonte de um elefante acabado de abater...
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (que é um monumento vivo da lusofonia!), bagabaga (assim que se escreve, sem hífen) é um substantivo, masculino, que significa: (i) térmite; (ii) termiteiro... Trata-se de um vocábulo crioulo que aparece por volta de 1899, e que é de uso escrito e oral entre os lusófonos, em especial Guiné-Bissau e Cabo-Verde.
O temo térmite é a designação comum aos insectos da ordem dos isópetros, de que há cerca de 2200 espécies reconhecidas, e que são particularmente abundantes nos trópicos. São animais sociais, alimentando-se de madeira e outros materiais vegetais, e construindo ninhos, bem visíveis, de estrutura piramidal (termiteiros ou termiteiras). Os bagabagas são, pois, aglomerados de terra e outros resíduos, edificados pelastérmites e que constituem o seu ninho. São muiyto resistentes, mas infelizmente tal como a floresta tropical não resistem aos bulldozers...
Temos a obrigação de ajudar os guineenses a preservar estes monumentos vivos da natureza... Este pequeno concurso (fotográfico) é uma forma de sensibilizar os nossos tertulianos e demais visitantes para o património (natural e edificado) da Guiné-Bissau... Nós, ex-combatentes, quer portugueses, quer do PAIGC, temos um enorme respeito pelo bagabaga: ele fazia parte do nosso cenário de guerra... Hoje deve ser um símbolo da paz e da biodiversidade...
Amigos & camaradas da Guiné: mandem fotos de bagabagas (tenho mais alguns, que vou publicando...), façam os vossos comentários e... votem nos vossos favoritos. Os critérios de apreciação são os vossos: forma, altura, volume, beleza, qualidade da fotografia, etc.

Guiné 63/74 - P1346: PAIGC - Propaganda (1): morte aos colonialistas portugueses e seus cachorros (Carlos Vinhal / Mário Dias / Luís Graça)

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Um guerrilheiro do PAIGC no seu posto de sentinela, na margem de um rio. Fonte: Pelas regiões libertadas da Guiné (Bissau). República Popular da China, Pequim: Edições de Línguas Estrangeira. 1972.

Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972) (com a devida vénia...) (1)





Guiné > Panfleto propaganda do PAIGC, escrito em crioulo (frente e verso). Sem data. A tradução de Mário Dias, reproduzida mais abaixo.

Fotos: © Carlos Vinhal (2006). Direitos reservados.


1. É verdade, João Tunes (2): O nosso blogue não conta a verdade toda, não representa o verso e o reverso da medalha. É inevitavelmente parcelar. Objectivamente, estávamos de um lado. Como em qualquer guerra, há sempre dois lados, duas trincheiras, duas bandeiras, dois exércitos, dois povos... Infelizmente, falamos aqui pouco dos homens e das mulheres, guineenses, caboverdianos e cubanos, que, na Guiné, lutaram contra nós (e nós contra eles). Somos parcos em palavras, quando nos referimos a eles (e elas): IN, inimigo, turras, PAIGC… Uma vez por outro, guerrilheiros, combatentes, militantes… A linguagem era depreciativa, mas no fundo havia respeito e temor pelo inimigo...

Tínhamos uma visão local, maniqueísta e redutora, do conflito: gente de Madina/Belel, escreve por exemplo o Beja Santos em Missirá…Um eufemismo de hoje ? Vizinhos, ao fim e ao cabo. Indesejáveis vizinhos que lutavam pelo controlo de recursos, território, bolanhas, rios, trilhos, picadas e, sobretudo, populações… Fazíamos visitas uns aos outros, de vez em quando. Nada amistosas, por sinal. E a desoras. Às tantas da manhã, ou da noite. Muito raramente ao meio dia. A hora do almoço era sagrada. Só me recordo uma vez termos atacado, justamente em Madina/Belel, um objectivo IN, às duas da tarde... É certo que pagámos caro a quebra do acordo tácito... Porque também havia acordos de cavalheiros naquela guerra que oficialmente não existia... Por outro lado, tínhamos uma estranha maneira de nos cumprimentar quando nos cruzávamos no mato… Às vezes, aleijávamo-nos mutuamente. Às vezes matávamo-nos, uns aos outros.

Que sabíamos nós, uns dos outros ? Muito pouco ou nada. Da gente do mato (sic), conhecíamos as suas armas, sabíamos distinguir o cantar da costureirinha , o matraquear da kalash, o silvo do morteiro… A cor e o feitio das granadas, de RPG ou de canhão sem recuo, com caracteres chineses ou cirílicos (russos)… Mas, e os homens, e as mulheres, as crianças e os velhos que viviam no mato (regiões libertadas, diziam eles) ? Viamo-los, ao longe, quase sempre do ar, a cultivar o arroz na bolanha ou na montar segurança na orla da floresta… Uma vez por ano, fazíamos raides punitivos, queimávamos umas tantas moranças, abatíamos as suas vacas, destruíamos algumas toneladas de arroz… Mas a maior parte dos dias, das semanas e dos meses, ficávamos nos nossos aquartelamentos e destacamentos a guardar a bandeira nacional, o símbolo da nossa soberania, e a curtir a nossa depressão (cacimbados, diziam eles), contando os dias que faltavam para o regresso a casa, ao puto, a milhares de quilómetros de distância...

Quem era essa gente que nos atacava, quase sempre, à socapa, emboscada, escondida atrás das árvores e dos bagabagas, ocultos pelo capim alto ou pelo breu da noite ? Às vezes lá apanhávamos um ou outro, vivo, armado ou desarmado…

Quem era essa estranha gente que nos combatia e que, mais tarde, já lá para o final da guerra, é capaz de gritar, perante as câmaras da televisão francesa, Viva Portugal, abaixo o colonialismo... ?
Vamos começar aqui a divulgar a informação e o conhecimento que temos sobre o PAIGC, que foi objectivamente o nosso inimigo.

2. Mensagem do Carlos Vinhal, de 18 de Novembro de 2006:

Luís: Já agora para compor o ramalhete, envio-te cópia de um impresso (frente e verso) exemplo de acção de contra-psico por parte do PAIGC.

Dá um pouco de trabalho a traduzir, mas é curioso o facto de eles chamarem aos nossos seguidores cachorros de dois pés.

Um abraço

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá 1970/72
Leça da Palmeira
Telemóvel > 916032220


3. Mensagem que mandei ao Mário Dias, o nosso assessor principal para as questões étnico-linguísticas da Guiné, o tradutor oficial da nossa tertúlia para o crioulo, fundador dos comandos da Guiné, hoje retirado no Portugal Profundo, dedicando-se à música coral:

(i) Lá terás que que fazer mais um favor aos teus amigos e camaradas, da Guiné o de traduzir isto, que é para continuares a treinar (e não esquecer) o teu crioulo...

(ii) Já agora diz-me se o crioulo do PAIGC era o da Guiné ou o de Cabo Verde... Ou se estava mais ou menos correcto (refiro-me a esta amostra)...

(iii) Como a população do mato era analfabeta, tenho dúvidas sobre a eficácia destes panfletos, que eram dirigidos aos guineenses que estavam do nosso lado... Que achas ?

(iv) O crioulo de Cabo Verde (havia um para cada ilha...) é diferente do da Guiné ?

Boa continuação no Portugal Profundo



Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo). O Mário e o Domingos fizeram juntos a recruta e depois o 1º Curso de Sargentos Milicianos que se realizou em Bissau, em 1959, e no qual participaram os os primeiros filhos da Guiné. Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão cínica usada na época pelas autoridades portuguesas. Ao que sugere o Mário, o Domingos ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em Novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, por parte de um oficial português (3).

Antes de morrer prematuramente em combate, em 1966, em Madina do Boé, e de tornar-se um dos heróis da luta de libertação nacional, o Domingos haveria de encontrar-se com o seu amigo e ex-camarada de armas Mário Dias, pela última vez, em 1965... Em circunstâncias insólitas... É uma das estórias mais fantásticas que já li sobre a guerra e a grandeza humana que pode haver mesmo numa situação de guerra.... Foi na região do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou estes todos e revelou, em primeira mão, aos seus amigos e camaradas de tertúlia (4). Foi um dos momentos altos do nosso blogue (5).

Froto: © Mário Dias(2006). Direitos reservados.



4. O Mário, que é uma jóia de pessoa, regressado do Portugal Profundo, teve a infinita paciência e a grande generosidade de nos traduzir os panfletos. Mais uma vez (6). Aqui vai o texto dele:


O crioulo da Guiné é diferente do crioulo de Cabo Verde em vários aspectos. Na pronúncia - que varia de ilha para ilha - e na existência em Cabo Verde de um vocabulário mais alargado e adaptado à linguagem contemporânea, com a introdução de palavras mais eruditas que facilmente acrioulam.

O crioulo da Guiné tem-se mantido mais fiel às suas origens no português arcaico sendo, portanto, relativamente menos evoluído. Assim, verifiquei, enquanto vivi na Guiné [, entre 1952 e1966, ou seja, desde os 15 anos até ao0s 29], que, qualquer palavra que não existisse no crioulo tradicional, era simplesmente dita na sua versão portuguesa.

Como já tive ocasião de referir, na Guiné o crioulo era apenas falado, não existindo, pelo menos oficialmente, na forma escrita. Aliás, as próprias autoridades não o permitiriam.

Analisando os panfletos editados pelo PAIGC em crioulo, sou levado a concluir que os mesmos, embora no crioulo da Guiné, terão sido escritos por elementos cabo-verdianos. Neles existem vários termos pouco usuais no crioulo da Guiné e, por outro lado, a escrita nem sempre corresponde à pronúncia que eu ouvia por toda a Guiné. Por exemplo mufunessa (que significa azar, desgraça, pouca sorte) sempre ouvi pronunciar mufneza.

Também não me recordo de ouvir alguém dizer morti mas sim morte; nem portuguis mas português; nem cu sé catchuris mas sim cu si (ou sê) catchoros.

É certo que as línguas são vivas e têm a sua própria dinâmica que vai provocando alterações. Porém, tendo eu saído da Guiné em 1966, e os panfletos em análise serem anteriores a 1974, me parece pouco provável diferenças tão notórias em tão pouco tempo. Daí, eu pensar que a escrita dos panfletos seja de alguém de Cabo Verde, tanto mais que na Guiné não existia o crioulo escrito, enquanto em Cabo Verde já os intelectuais dessa antiga colónia se dedicavam à sua escrita e havia já tentativas da criação de uma gramática de crioulo.

Creio que estes panfletos, que apenas seriam lidos por um reduzido número de guineenses alfabetizados, nem sempre poderiam ser globalmente entendidos devido às diferenças no uso de alguns termos bem como no facto de a grafia usada não corresponder fielmente à pronúncia comummente usada na Guiné.

Feito este pequeno preâmbulo, passemos então ao mais importante: a tradução dos panfletos, respeitando, dentro do possível, a pontuação e grafia.


Irmãos que estão nas tabancas e que receberam armas das mãos dos tugas.


Vede bem o que estais a fazer! Pensai bem no perigo em que vos estais a pôr agora,

porque todos os filhos da nossa terra que pegarem em armas contra nós acabarão

mal, mais dia ou menos dia, quando o tuga verificar que já não lhe servis, fazem-vos

aquilo que fizeram à população de Beli, população de Amdalai e noutros lados.



Irmãos que receberam armas das mãos dos tugas.


É melhor que se juntem a nós, antes que seja tarde de mais porque todo aquele que

repara no erro em que se encontra e quiser juntar-se a nós, não tenha medo de nada

porque na nossa luta não queremos tomar vingança, não queremos matar ou castigar

os filhos da nossa terra! a nossa luta é pela liberdade, respeito, justiça e progresso de

todos os filhos da Guiné e Cabo Verde, que não são cachorros dos tugas! nossa luta,

é luta pela liberdade do povo Africano!


VIVA P.A.I.G.C.!


Morte para os colonialistas portugueses e seus cachorros de dois pés!



Este último panfleto é de difícil tradução por conter expressões com vários sentidos tais como djungutu que significa agachar, baixar-se, e também saltar. Qual o sentido que o autor lhe quis dar?

Contém uma expressão, i ca ta pembi na ragas! que desconheço por completo. As minhas desculpas por tal facto. Não se trata de falta de memória mas sim nunca a ter ouvido.


IRMÃOS,

É bom livrarmo-nos do azar que nos atinge !


Não aceitem que colonialista tuga vos agache (esconda?) atrás dos seus

quartéis, porque todo aquele que se agacha (baixa; esconde) i ca ta pembi

na ragas! [não sei traduzir esta frase] não aceitem receber armas da mão do

colonialista tuga, porque todo aquele que pegar arma do inimigo contra nós,

é inimigo da nossa terra, é inimigo do nosso povo! Não aceitem mais escutar

as mentiras dos colonialistas, porque querem–vos mansos e submetidos

debaixo do seu cativeiro, com vossas mulheres e vossos filhos!



IRMÃOS

Largai o caminho da desgraça e vinde pegar o caminho certo, para a

nossa terra ir para diante.



VIVA P.A.I.G.C.!



Morte para colonialistas portugueses e seus cachorros de dois pés!



Tradução do crioulo: © Mário Dias (2006) (2) . Direitos reservados.


_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVII: Com os jornalistas chineses nas 'regiões libertadas' (1972) (A. Marques Lopes)
(2) Vd. post de 4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)
(3) Vd post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(4) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

(5) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando


(6) Vd. pos de:

16 de Maio 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIX: Panfletos de propaganda dirigidos ao 'homem do mato' (Manuel Mata / Mário Dias)

11 de Abril 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970) (Manuel Mata / Mário Dias)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1345: Questões politicamente (in)correctas (11): O Queta Baldé, a Associação de Comandos, o A. Mendes e eu (Beja Santos)

Resposta do Beja Santos a um comentário do nosso camarada A. Mendes, sobre o Queta Baldé, ex-soldado do Pel Caç Nat 52 e da 2ª Companhia de Comandos Africanos (1):

Clarificação
por Beja Santos

Meu caro Amílcar Mendes, meus caros tertulianos:

Visitei o Queta Baldé (2) ao tempo em que ele viveu em Chelas J, onde, aliás, viveu igualmente outro protagonista dos acontecimentos de Missirá e Bambadinca, Cherno Suane, meu guarda costas e também militar da 2ª Companhia de Comandos Africana.

A expressão alfurja pode parecer injusta para quem, como a Associação de Comandos, procurou desveladamente encontrar tecto para camaradas perseguidos e à busca de pátria. Contudo, a casa onde ele vivia, em cimento pintado de branco tinha de ser lavada todas as semanas com banho de água e líxivia, tal a quantidade de fungos instalados. O Queta tem um filho asmático cuja doença se agravou pela insalubridade das instalações.

Nada do meu texto leva a apontar qualquer responsabilidade à vossa gloriosa associação. Eu vi as instalações e ouvi os lamentos da mulher do Queta que seguramente tu conheces, a Cadi. Não há uma só referência no meu texto de qualquer negligência ou incúria praticada pelos comandos com os seus camaradas africanos.

O Queta vem cá trabalhar comigo na próxima quinta feira, dia 7. Se achares bem, telefonas-lhe (965666621) e vens dar-nos um abraço. O Queta exige ajudar-me a rememorar episódios que eu tinha atirado para o fundo do poço, desde a Operação Tigre Vadio (3) em que ele garante a pés juntos que entrei aos tiros no acampamento de Madina e só depois fui buscar água para os nossos feridos até operações onde ele participou comigo entre Janeiro e Março de 1969, e eu igualmente esqueci.

Feito o esclarecimento, ergamos um copo e brindemos à Associação de Comandos e à sua indefectível solidariedade entre camaradas.

Mário Beja Santos.

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1339: Queta Baldé: um exemplo da solidariedade entre comandos (A. Mendes, 38ª CCmds)

(2) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(3) Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)

A 15ª estória do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 (1)

Hortelão e Talhante – A frustração do Amaral
por Jorge Cabral

Chamavam-lhe, os africanos, o furriel Barril, não sei se pela sua compleição física, se por via da fama e do proveito que ganhara como bebedor quotidiano e calmo. Estou a vê-lo ao serão, bebendo à colher, com paciência e estilo, enquanto o alferes declamava, e o maqueiro Alpiarça escrevia a uma das dezenas das madrinhas de guerra.

Junto à fonte o Amaral havia construído uma viçosa horta, na qual os tomateiros, as alfaces e as couves medravam fortes, e dera-lhe na cabeça fabricar presuntos utilizando quartos traseiros de onças. Desta actividade lembro o cheiro nauseabundo, que até os mosquitos afastava.

Um dia aconteceu. Três vacas do mato, bichos que pareciam burros, invadiram a horta, banqueteando-se, com as saborosas verduras, o que o deixou, em fúria. Ciente que o criminoso volta sempre ao local do crime, eis na manhã seguinte o Amaral, emboscado, pronto a vingar-se. Pum, pum, pum, três tiros certeiros, e logo, eufórico, pedindo-me para ir a Bamdadinca transaccionar a carne.

Desmanchados os bichos e face à avaria da única viatura, contratou carregadores, aos quais pagou. Fazendo de cabeça as contas, anteviu um lucro fácil que lhe atenuasse a dor da horta destruída. Chegados ao Batalhão, porém, o vaguemestre olhou, cheirou e concluiu. Carne estragada, imprópria para consumo. Catorze quilómetros ao tórrido calor ...tinham sido fatais.

Gastou dinheiro, perdeu a horta e nunca o vi tão triste. Para o animar, aventurei-me a provar dos seus presuntos. Intragáveis, quase vomitei...

Ai, Amaral, Amaral porque não te dedicaste à pesca!...

Jorge Cabral
______

Nota de L.G.:


(1) Vd. post de 24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P1343: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (2): O primeiro ataque ao quartel de Có, os primeiros revezes do IN

Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Vista aérea do aquartelamento.

Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Lavadeiras de Có.


Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Fonte sanitária de Có.
Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Beleza Nativa de Có.

Texto e fotos: © Raul Albino (2006)

Segunda parte das memórias de campanha de Raul Albino, ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70), que embarcou no Uíge, em finais de Julho, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).

Caro amigo Luís,

Aqui vai o meu texto nº 2 sobre a CCAÇ 2402. Li num dos posts uma referência ao Capitão Vargas Cardoso, então já Major, como 2º Comandante do Batalhão 3884, sedeado em Bafatá em 72/74. Estive com ele há pouco tempo, mas ele tem sido parco nas suas manifestações sobre essa época. Alegando desculpas de vária ordem e promessas nunca cumpridas, acabou por a sua participação no meu livro se limitar à versão oficial dos Factos e Feitos Mais Importantes da companhia. Muito pouco para aquilo que ele seria capaz de fazer se quisesse. Daí a minha curiosidade de saber como decorreu essa outra comissão em Bafatá, descrito por quem lá tenha estado nesse período.Um abraço e até breve,
Raul Albino

Primeiro ataque ao quartel de Có ou... Quando a inexperiência e curiosidade ditam a sorte da batalha
por Raul Albino


Cheiros que não nos saem da memória

Chegámos à localidade de Có a 1 de Agosto de 1968. Não me esqueço desta data porque assim que saltámos das viaturas de transporte para o chão, cansados da viagem e completamente atarantados, pensávamos que íamos tomar um banho, conhecer as instalações e arrumar os nossos haveres. Qual história qual quê, assim que pisámos o chão, grita logo o Capitão Vargas:
- O terceiro Pelotão vai já fazer um patrulhamento pela periferia da povoação, orientado por alguns milícias, e só depois é que faz a sua instalação!

Eu, pessoalmente, já tinha vindo para a Guiné antes da Companhia. Agora calhava-me a primeira patrulha de reconhecimento. A comissão de serviço estava a começar bem ...
Este patrulhamento foi feito pelo interior da povoação, num trajecto escolhido pelos milícias nativos, de risco reduzido, para adaptação das tropas. Só que tínhamos acabado de chegar, desconhecíamos essa realidade e todo o percurso, cheiros e contacto com o ambiente local e população nativa, nos impressionou e seguramente ficou gravado na memória de todos aqueles que me acompanharam nessa primeira missão.


Menosprezar a inexperiência saiu caro ao inimigo

Em 29 de Agosto de 1968, menos de um mês após a nossa chegada, sofremos o primeiro ataque inimigo ao aquartelamento de Có. Foi um teste do inimigo à real capacidade desta nova unidade, chegada recentemente ao local, em termos militares. Por termos militares entenda-se, poder de fogo, coragem e capacidade de reacção.

Às 6.25 horas da manhã, um grupo estimado entre 20 a 30 elementos atacou o quartel pelo lado da pista durante cerca de 15 minutos, utilizando tiro de morteiro 60, metralhadoras pesadas, armas automáticas ligeiras e lança-granadas foguete.

Logo após os primeiros tiros, o Capitão Vargas dá-me ordem para sair com o meu grupo (3º Pelotão) em perseguição do inimigo. Como eu dormia com parte do meu grupo num abrigo mesmo ao lado da porta de armas, a saída pôde processar-se com grande rapidez e, acompanhados por alguns milícias nativos, entre eles o seu chefe Dayan, iniciámos a perseguição ao inimigo atacante.

Este homem de nome Dayan, chefe de Cipaios, era uma figura curiosa. Não era novo, magro e seco, leal, bom combatente, respeitado e líder incontestado dos milícias nativos. Custava-me a acreditar que uma pessoa com a idade dele pudesse ainda ter energia para chefiar a sua gente no terreno, mas ele não era uma pessoa qualquer, era um homem extraordinário por quem eu tinha uma consideração e admiração enormes.

A sua presença inspirava confiança e dava segurança e disciplina ao seu grupo de milícias em combate. A importância deste tipo de líderes era grande porque, nos primeiros tempos, houve muita dificuldade em perceber a maneira de pensar dos combatentes negros, amigos ou inimigos, e eles eram a nossa correia de transmissão entre duas culturas diferentes. Digamos que se fez, durante algum tempo, uma aprendizagem mútua.

Mas, voltando à perseguição, como o ataque foi curto, quando chegámos ao local de onde o inimigo tinha iniciado os disparos, já se tinha feito silêncio no tiroteio e não estava qualquer inimigo à vista. Só no terreno as pegadas denunciavam a sua presença na zona alguns minutos atrás. Em princípio e deduzindo que eles já tinham ido embora, o normal seria também nós regressarmos ao quartel, porque quando o inimigo se retira, perfeito conhecedor do terreno, dispersa-se e só volta a unir-se num ponto de encontro previamente estabelecido por eles.

O normal seria acontecer o que atrás descrevi, mas este dia não ia ter muito de normal. Em primeiro lugar o plano de ataque do inimigo foi pensado para ser efectuado em duas fases. Primeiro um ataque rápido, seguido de retirada, e quando as nossas tropas estivessem a tratar dos feridos e a avaliar estragos, fazer um segundo ataque, eventualmente mais violento que o primeiro. Daí a que o inimigo tenha feito uma volta de despiste e após alguns minutos já se encontrava de novo em posição de nos atacar o quartel.


Guiné > CCAÇ 2402 (Có / Mansabá, 1968/70) > Emblema da unidade


Estratégia muito engenhosa, mas eles não contaram com uma circunstância inesperada. Eu e o meu grupo éramos inexperientes neste tipo de luta, pois só nos encontrávamos na Guiné há menos de um mês. Ligada à inexperiência eu tive na altura uma curiosidade enorme de saber para onde aquelas pegadas se dirigiam, nunca pensando que eles tinham voltado a dirigir-se ao quartel para repetir o ataque. De tal modo que quando o inimigo iniciou a segunda flagelação às nossas instalações, nós estávamos atrás deles sem eles saberem.

A nossa reacção foi imediata e o inimigo, para sua surpresa, viu-se entre dois fogos, o nosso e o do quartel. Sofreram dois mortos e dois feridos confirmados, tendo sido um dos corpos sepultados na área do aquartelamento. Retiraram desordenadamente, sofrendo um pesado revés, especialmente na sua estratégia que saiu completamente gorada.

Erros de principiante ou maçarico


As peripécias não ficaram por aqui. Quando eu e o meu grupo saímos do quartel, viemos acompanhados por um radiotelegrafista com um enorme rádio às costas. Na altura, ainda em início de comissão, estes rapazes podiam trazer consigo uma arma de defesa pessoal, neste caso uma pistola Walter 9 mm. Não tenho a certeza, mas creio que se tratava do Catarino, recolhido atrás duma árvore ou qualquer outro abrigo, decidiu participar no combate e volta não volta, disparava um ou dois tiros (o carregador duma pistola tem poucas munições).

Eu, que me encontrava abrigado no chão junto a uma vala de cultivo de amendoim, ouvia os disparos do inimigo cada vez mais distantes, à excepção destes disparos que se assemelhavam ao som produzido pelas armas automáticas do inimigo quando disparadas tiro a tiro. As nossas G3 tinham um som característico inconfundível, completamente diferente do som produzido pelas armas deles. Durante algum tempo pensei que estes disparos eram dum turra, que, devido à posição em que eu estava ou à posição de qualquer outro militar, não conseguia fugir com os seus companheiros. Fiquei parado uns minutos preciosos, na esperança de poder capturar este turra descuidado.

Só quando o tiroteio terminou pude constatar o que realmente tinha acontecido e os problemas causados pela acção desnecessária do homem do rádio. Creio que a partir daqui poucos radiotelegrafistas voltaram a usar estas armas para defesa pessoal, passaram a acreditar que nenhum dos seus colegas o abandonaria no campo da luta.

Dentro do azar, a sorte esteve comigo

Já no regresso ao quartel ainda houve um pequeno incidente passado comigo próprio. Foi pequeno, mas poderia ter sido muito grande, pelo menos para a minha integridade psicológica. Vinha acompanhado pelo Dayan, lado a lado, e cada passo que dávamos era mais um pequeno salto entre as partes cimeiras das valas de amendoim (os nativos chamavam-lhe mancarra).

Trazia a G3 na mão, ainda pronta a disparar na posição de tiro-a-tiro, com a bandoleira (correia para suspensão da arma no ombro) pendida. Então não é que, num daqueles pequenos saltos, a fivela da bandoleira engancha no gatilho da arma e provoca um disparo que acertou a cerca de um palmo do pé do meu companheiro Dayan. Fiquei aparvalhado a olhar para ele e para a arma. Ele foi compreensivo a acalmou-me do meu nervoso. A minha admiração por ele aumentou ainda mais neste dia.

Acabou por ser o meu dia de sorte, dentro do azar, porque se lhe tivesse acertado, mesmo que fosse só no pé, não iria viver bem com a minha consciência a partir daí. Só de imaginar o que seria se a arma estivesse na posição de rajada, me deixava enlouquecido.

De qualquer modo, em termos militares, este dia ficou-nos na memória, porque o inimigo acabou por sofrer um forte revés nas suas intenções de intimidar a Companhia maçarica instalada em Có.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

Vd. também os seguintes posts anteriores:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1142: Um dia no mato: parabéns ao Vitor Junqueira pelo seu texto (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

(2) Uma outra companhia que esteve em Có, foi a CCAÇ 2636, do nosso camarada João Varanda. d posts de:

15 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom... (João Varanda)

16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"... (João Varanda)

26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (3): O espírito de grupo (João Vranada)

26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial (João Varanda)

19 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXIX: CCAÇ 2636 (Có, 1969/70) (5): Gastando o primeiro par de botas e as letras do alfabeto (João Varanda)

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Mansambo 1968/69) > Crianças disputando os restos da comida das NT...


Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Chamarra > Novembro de 2000 > Meninos da tabanca...

Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.



Angola > Luanda > Setembro de 2004 > Algures no centro da cidade (Av Nkrumah, se a memória me não falha), um velho mural do MPLA, já descolorido, e onde curiosamente o pintor se esqueceu das crianças...


Foto: © Luís Graça (2004). Direitos reservados.



Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Setembro de 2004 > Uma das praias, não vigiadas, por onde os putos ainda têm liberdade de circulação... Foto tirada do Restaurante Coconuts onde só entra quem tem dólares, independentemente da cor da pele... O dinheiro, em toda parte, fazendo a segregação socioespacial...

Foto: © Luís Graça (2004). Direitos reservados.


1. Mensagem do editor do blogue, a pensar nos meninos da Mansambo do Torcato Mendonça, da Bolama do Leopoldo Amado ou da Saré Ganá do A. Marques Lopes, do Carlos Marques dos Santos ou do Henriques, ou ainda da Chamarra do Zé Teixeira e do Albano Costa (que por lá passou em Novembro de 2000) (1)... 


A pensar também no menino Jesus que nasceu em Belém, na Palestina, há 2006 anos, muito longe de África, longe de Angola ou da Guiné-Bissau...A pensar no país que não se escolhe quando se nasce...A pensar no tempo e no lugar que nos coube em sorte... Temos a obrigação de os tornar melhores. Um Inverno Saudável, amigos e camaradas. L.G.


os meninos da ilha de luanda


os meninos da ilha de luanda
são filhos de pescadores
são filhos de náufragos
são filhos da deriva dos continentes
são filhos bastardos da guerra e da paz
são filhos dos sonhos do dia e dos pesadelos da noite
são crisálidas
são puras formas de ser
são filhos dos homens
que nunca foram meninos

pergunto-me
como é que eles poderão um dia
chegar a ser homens

luís graça

(poema inédito, ilha de luanda, setembro de 2004)


___________

Nota de L.G.:



(1) Vd. posts de:
5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1340: Blogoterapia (10): o meu segundo país (Torcato Mendonça)

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1328: Blogoterapia (8): É hora de pensar no nosso primeiro... blook (Leopoldo Amado)

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVIII: Bajudas, nem vê-las! (Carlos Marques dos Santos)

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

30 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu (Luís Graça)

28 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968) (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)


Capa de Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira, 3ª ed. ervista. Lisboa: Portugália Editora. 1963. (Contemporâena, 46). Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > "A uma mes de café, junto das docas de Bissau. Barbosa, o herói das emboscadas, o condutopr Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de garto convívio de gente que partilhava com ressignação os mesmos sacrifícios. A ver se tomamos uma bica nesta mesma mesa daqui a 2 meses" (Beja Santos, que aparece na foto, em primeiro plano, do lado direito. O Barbosa faz-se acompanhar da sua inseparável boina...verde).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados

Texto recebido em 8 de Novembro de 2006.


Caro Luís, conforme prometido, aqui vai mais uma contribuição semanal. Estou a escrever sobre Novembro de 1968. Começou o derramamento de sangue no Cuor. Mas há peripécias fartas, muito barro do quotidiano e começo a ter o pelotão fisicamente esgotado. Não me peças sugestões para ilustrações, pois não tenho mais nada a não ser a capa do livro Uma Abelha na Chuva que hoje vai seguir pelo correio. Contudo, faço referência a uma fotografia que está em teu poder, com o furriel Ferreira, o Adão enfermeiro e o Barbosa da boina verde, entre outros. Tudo farei para nos encontrarmos no princípio de Dezembro e festejarmos precocemente o Natal (um bom Natal festeja-se todos os dias). A minha prenda será o meu livro Este consumo que nos consome que entretanto já estará editado (Porto, Campo das Letras, 2006) (1).

Nada mais por hoje e recebe um grande abraço do Mário.

Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, o Tigre de Missirá - como era conhecido entre os as chefias militares e os seus camaradas de Bambadinca-, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).


Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

por Beja Santos

À saída de Finete, onde vim depois de patrulhamento de Mato de Cão acompanhar as obras em dois abrigos, sou apresentado a Braima Mané. É um homem sorridente que me vem oferecer pepinos e ovos, nos trinta anos, de bigodinho bem aparado e, reparo, um braço tolhido. Bacari Soncó dá-me explicações. Braima foi uma das grandes vítimas do ataque a Missirá, em Maio de 1966, uma infelicidade monumental aconteceu-lhe: uma granada de morteiro destrui-lhe a morança e matou-lhe duas mulheres e dois filhos. A desgraça não ficou por aqui, pois Braima enquanto procurava salvar a família foi atingido no peito com estilhaços e um outro maior rasgou-lhe os nervos da mão e do braço, agora em irremediável imobilidade. Braima, que estava nas milícias, foi dado como incapaz para servir nas fileiras, e preferiu viver em Finete.

Combinámos que ele vai ser visto por David Payne, o novo médico de Bambadinca. E, na semana seguinte, ele irá a uma consulta a Bissau, e um dia ele regressará ao Cuor mostrando como os seus braços mexem e estão igualmente ágeis.

Cherno Suane, o novo guarda-costa do nosso alfero

Ieró, o meu precioso guarda costas, parte de férias e sugere substituto, Cherno Suane. Mal sei eu que vai nascer a mais gratíssima das amizades. Até agora, Cherno era o herói do morteiro 60, na noite de 6 de Setembro [de 1968]. A partir de amanhã será ele que me vai arrumar a morança com absoluto desvelo, lavar as botas de lona, engraxar as de cabedal, sacudir as esteiras e o folhelho do meu colchão, arrumar os livros, dobrar a roupa, remover as teias de aranha e sacudir a mosquitada.

Falamos do mesmo Cherno que, a 15 de Março próximo, se quer atirar para dentro de casa para salvar as coisas de alfero (felizmente, foi impedido de se imolar nas chamas e nos rebentamentos subsequentes), se vai salvar milagrosamente na mina anticarro de Canturé, que me acompanhará em todas as operações, ombro a ombro. Este mesmo Cherno, não caberá nesta história, conhecerá o inferno com a independência e virá comigo para Portugal em 1991. É hoje cidadão português, passa temporadas na Guiné e trabalha como a segurança num armazém de electrodomésticos no Bairro Angola, em Camarate.

Casanova e o pequeno Braima, uma história de amor

Quero falar de uma outra história de amor e que envolve outro Braima. Este é raquítico e filho de Galem e Mariá. O furriel Casanova tomou a iniciativa de o alimentar. Um dia fomos a Bambadinca, a pretexto de termos de ir a Bafatá buscar os vencimentos dos caçadores nativos e dos milícias, o Casanova foi a uma farmácia comprar um biberão e uma lata de Nestogeno. Não vai ser invulgar o Casanova olhar para o relógio, chamar um miúdo que passa pela parada e dizer-lhe:
- Vai ali a casa da Mariá e dizer-lhe que são horas de o Braima comer. Serão meses de idílio, o Braima ganhará peso, ninguém se atreverá a brincar com os sentimentos do Casanova.


Tenho o pelotão exausto, muita gente doente, faço o possível para manter os patrulhamentos, pedi mesmo ajuda aos milícias de Finete, a escola funciona bem, com a intervenção do professor que fui buscar a Bambadincazinho mas também com o Ferreira, o Casanova e o Zé Pereira.

Sempre que posso, a meio da tarde, convido o Malã e Lansanâ para tomarmos chá. Lânsana mostra-me as suas poesias religiosas que ele desenha em árabe em tábuas de pau sangue e vai-me dando explicações:
- Esta oração quer dizer Deus abençoe a bianda (refeição); aqui está escrito alarramano melafo (obrigado Deus pelas boas chuvas que nos dão a comida deste dia) - . Mas quanto perguntei ao Abudu Soncó o verdadeiro significado desta expressão, ele disse-me que esta frase não existe... mas como a registei, peço a todos que aceitem com o mesmo sentido como me pareceu ter interpretado).

Escrevo para Lisboa a pedir a todos que mandem pelos oficiais, sargentos e praças que foram de férias comida natalícia, o que vai acontecer e será um bálsamo no nosso Natal desolador.

Aumentámos as medidas de prevenção pois a guerrilha tem-se intensificado e há flagelações por toda a parte. Amanhã, a mulher grande de Missirá, Jaira, a octogenária mãe de Quebá Soncó, vai à consulta e peço ao David Payne para ver o que se pode fazer do seu corpo esquelético. Em sua companhia seguirá Sari, a mulher de Bacari Soncó, hoje régulo do Cuor. Sari está grávida de três meses e sofre de paludismo.

A morte, emboscada, em Chicri


Acaba de chegar o Teixeira com uma mensagem que diz "Cavalgue Berlim", o que significa "Pelo meio dia amanhã esteja em Mato de Cão". Informo os furriéis que, depois de pôr os doentes em Finete, sigo para Mato de Cão e depois vou fazer uma emboscada nocturna em Chicri. Saio de Mato de Cão pela uma da tarde, comemos o nosso farnel e seguimos para Chicri. Está um céu de chumbo, tem chovido muito, percorremos a velha tabanca à procura de indícios de passagem recente da gente de Madina/Belel.

À saída da tabanca, perto de uma estrutura rochosa, encontra-se um caminho bem pronunciado com marcas de pés calçados e recente. Anoitece e organizo com Bacari Soncó e Fodé Dahaba uma emboscada em meia lua, uma bazuca e um morteiro nos extremos, a meio eu, dois apontadores de dilagrama e de pé um vigia, para poder avistar uma eventual chegada a partir de Gambaná do grupo rebelde, e assim termos tempo de inverter o grupo emboscado.

É uma noite sem lua, não há o piar das aves, ao fundo o bruxulear das luzes do porto de Bambadinca. Depois de instalado o grupo, com auxílio do Domingos Silva explico aos 20 e tal homens (e Domingos precisa tudo em crioulo) que a ordem de atirar partirá de mim, que o primeiro fogo será de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, que a retirada será igualmente decidida por mim e que o itinerário a seguir passará por Gambaná, Canturé e Missirá, ninguém poderá ficar para trás, de meia em meia hora far-se-à uma paragem e a verificação dos presentes.

Todos a postos, o silêncio adensa-se, e pelas 7:30 da tarde Mamadu Camará avisa-me ao ouvido: - Está gente a aproximar-se, vejo sombras a sair da mata -. E de facto, um grupo de mais de uma dezena de pessoas avança de uma forma despreocupada (ou fui eu que pensei que a coluna rebelde não vinha com muita precaução).

Quando estão a cerca de 20 metros de nós, exactamente no trilho onde estava ajoelhado, levanto-me sem ruído e grito:
- Fogo, muito fogo! - E o fogo foi atordoador, logo com a bazuca, o morteiro e os dilagramas que alvejam quem ainda vem dentro da mata, aterrorizando, desbaratando, impedindo qualquer reacção. E assim como o fogo teve uma cadência infernal, assim se silenciou quando decretei a retirada.

A boina verde do Barbosa

Lestos, correndo pela picada, alcançámos a estrada de Mato de Cão, aqui fez-se a contagem dos homens, o grupo estava coeso e arfante. Em passada rápida rumámos para Canturé, por dentro do mato, por sinal usando um trilho alternativo quando íamos para Mato de Cão. É aqui que se vai passar um episódio insólito. O Barbosa (que consta de uma fotografia ao lado do Quim motorista, do furriel Ferreira e do Adão enfermeiro), chega ao pé de mim e diz-me com voz trémula e quase ciciando:
- Meu alferes, perdi a minha boina verde em Chicri, não sei viver sem ela, vou voltar para a recuperar.

Seguiram-se alguns minutos amalucados em que eu procurava lembrar ao Barbosa que ele não podia comprometer mais de 20 vidas por causa de uma boina. Na noite escura, ele abanava a cabeça e insistia que não saía dali:
- Ou volto convosco ou vou lá sozinho!

Debalde os camaradas insistiam na insignificância da boina. A conversa arrastava-se num círculo delirante e tive que jogar o mais mirabolante dos acordos possíveis:
- Barbosa, nós vamos regressar todos a Missirá, e garanto-te sob palavra de honra que amanhã eu e os mesmos homens que aqui estão viremos contigo buscar a boina.

E assim foi. Só numa guerra daquelas é que era possível fazer um contrato de mais 25 km de perigos para ir procurar um objecto fetiche. Nessa noite converso com Lânsana e peço-lhe que reze por nós. O que ele respondeu eu não percebi, mas o Cherno explicou-me:
- O que o Marabu acaba de dizer é que Deus é grande. Ele vai rezar para que nada nos aconteça.

E de facto, nada aconteceu. A aproximação de Chicri foi penosa, à procura de qualquer sinal onde encontrássemos uma cilada à nossa espera. O terror que infringimos fora poderoso. Dois cadáveres jaziam a céu aberto. Foram enterrados mesmo com o ar contrafeito de tropa. A boina apareceu no local onde tínhamos estado emboscados e regressámos sem beliscadura.

Uma abelha na chuva.. em Missirá

Continua a chover a cântaros, andamos enlameados e procuro estar atento ao sofrimento físico dos militares. O Ramadão caminha para o auge e fui convidado para a cerimónia da mesquita. O irmão de Braima Mané, um alfaiate exímio, está a fazer-me uma sabadora com um belo bordado em azul e fio dourado. Irei usá-la (aliás, como todo o traje de cerimónia) nesse dia e tirarei uma fotografia ao lado de Malã e o seu séquito.

É muito importante que vos fale das minhas leituras, nesse momento. A razão é muito simples: acabei de ler um dos livros mais influentes da minha vida, Uma abelha na chuva, do Carlos de Oliveira.

Este escritor neo-realista era um operário da escrita. A minha mãe tinha a primeira edição desta obra, li as outras duas edições seguintes, tudo diferente, o estilo cada vez mais castigado, as imagens mais ricas, o ritmo avassalador. A abelha é uma história de timbre ultra-romântico e talvez o mais significativo romance com história rural até aos anos 60, em contexto modernista. É uma escrita que vai directa ao fim, mostrando a decadência de uma fidalguia provinciana obrigada a alianças de conveniência com os negociantes. Maria dos Prazeres é figura dessa fidalguia obrigada a suportar um marido cobarde, Álvaro Silvestre. A trama inclui uma paixão destruída pelo vingativo Álvaro Silvestre que, cavilosamente, desperta o ódio do pai de Clara que vai matar Jacinto numa das cenas mais empolgantes do romance (2).

Eu leio e releio a obra de Carlos de Oliveira nessas noites de Missirá, é o prazer da escrita é o saber pelos ambientes de fatalidade, é o saber que aquele mundo ainda existe mas que está em vias de extinção. Um dia de província asfixiante que arrasta todos os sonhos e projectos. E assim termina a obra:

"A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a ferirem-lhe o voo; sacolojões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra e a chuva espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas".

A ironia do destino é que a Cristina me mandou outra obra prima que a partir de agora vai andar sempre comigo, como se de uma nova pele se tratasse: O Delfim, do José Cardoso Pires, publicado neste ano. Leio e degusto. Finalizo um capítulo e recomeço como se a emoção cheia fosse segura por uma cabeça vazia.

É uma história marialva passada na Lagoa que faz parte da Gafeira. Lá longe há um oceano, há dunas e até um mouchão, a vila estará a mais de 100 km de Lisboa. Personagens principais: o Engenheiro, Maria das Mercês, o narrador disfarçado de caçador e o maneta, uma espécie de escudeiro desse marialva que dá pelo nome de Tomás da Palma Bravo. O Delfim é a agonia de uma ruralidade mesclada pelas incursões de uma industrialização e de um ciclo de progresso que está a asfixiar a velha ordem personificada por esse engenheiro culto, tradicionalista e amigo da sua gente que teme e repudia os novos valores que começam a chegar à Gafeira.

Não será a última vez que iremos falar aqui desta obra prima. Só depois, já em Lisboa, me vou render à escrita de Nuno Bragança e Maria Velho da Costa. Com os anos 80, irei admirar Saramago e Lobo Antunes. Mas naquela Guiné este livrinho que ainda hoje guardo apodrecido por tantas andanças e sacolejos foi bálsamo e revelação definitiva do mundo que vai morrer em 25 de Abril de 74.

Daqui até Dezembro iremos viver outras atribulações. Aproxima-se o Natal e eu vou viver o presépio de Chicri. Não sei se terei a coragem de contar.

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Notas de L.G.:

(1) Nota da editor, Campo das Letras, Porto:

"Este consumo que nos consome / Mário Beja Santos [ver biografia]

"O mais recente livro do professor universitário Mário Beja Santos, pioneiro da defesa dos direitos do consumidor em Portugal, Assessor Principal do Instituto do Consumidor, editor do Jornal dos Consumidores e fundador da Plataforma Saúde em Diálogo. Este livro não é um ensaio nem um manual prático dos direitos dos consumidores. Trata-se de um compêndio de diferentes olhares em torno das realidades do consumo no mundo actual. O funcionamento da sociedade de consumo mudou radicalmente, e é preciso dizer como, onde e em quê. O principal desafio a que me propus foi oferecer a todos os interessados pelo consumo uma explicação abrangente e não alinhada acerca das transformações a que este fenómeno aparece associado no nosso tempo (Beja Santos).

(2) Vd. último post desta série > 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(...) "Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego" (...).

(3) Extractos de Uma abelha na chuva, de Carlosd e Oliveira, 3ª ed. rev. Lisboa, Portug´+alia Editora, 1963, pp. 136-139:


Saíram-lhe no rasto, cautelosos como dois ladrões. E foram acoitar-se entre o arvoredo, ao pé da fonte.
- Quem é que está com ela ? – quis saber o velho.
- Nãos e vê quase nada, mas penso que é o ruivo.
- O cocheiro do Silvestre ?
- parece-me que sim.
- Parece-te ou é mesmo ?
Marcelo firmopu a vista no crepúsculo:
- É ele.
O cego puxou-lhe pela manga:
- Toca para a azinhaga.
- Fazer o quê, mestre António ?
- Há-de por lá passar o cão no regresso da fonte.
A chuva engrossava pouco a pouco. Ao longe, o céu abriu-se ao fogo dum relâmpago.
- Aí vem a trovoada, mestre. Sente-a?
- Não.
Rodearam a fonte e, cortando pelas terras de cultivo, caíram na azinhaga.
- Já é noite cerrada ?
- Quase.
Estiveram em silêncio algum tempo, abrigados nas moitas. E depois, Marcelo perguntou, um pouco receoso:
- Que vamos nós fazer ao ruivo?
O velho perdeu a paciência:
- Estás a roer a corda, malandro? Queres ou não queres a rapariga?
E Marcelo calou-se. A chuva, cada vez mais pesada, ia ajoujando os sillvedos. O vento crescia e arrastou da distância o marulho dum trovão maior.
- Ouviu agora, mestre ?
Mas o cego deu-lhe uma cotovelada rápida:
- Cala-te, ladrão. O que eu oiço são passos.
Ficaram alerta, de respiração suspensa. O velho ciciou:
- Vai agarrando no cacete, Marcelo.
O vulto surgia ao topo da azinhaga. Uma sombra móvel entre montões de espinheiros derreados de água. Cantarolava. Reconheceram-lhe a voz e mestre António segredou ao moço:
- Arreia-lhe a matar.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anónima e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas. Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia.
A cajadada de Marcelo apanhou Jacinto pela cabeça:
-Ai!
Abriu os braços e foi de escantilhão aninhar-se no lamaçal da estrada. Chape. Inerte como um pedregulho.
Mestre António ordenou:
- Temos de o deixar escondido no silvado e dar um pulo a casa, não vá a rapariga suspeitar da ausência. Come-se o caldo e, mal ela disser as boas-noites, saltamos ao palheiro. Traz-se o jumento, como quem não quer a coisa, põe-se-lhe o corpo em cima e ala para o mar. As águas lá se encarregam de lhe dar sumiço.

E assim fizeram.