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terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26387: História de vida (53): Mário Gaspar ex-fur mil art, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), lapidador de diamantes reformado... mas começou por ser um "rapaz de Alhandra"



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > ... "É preciso ser doido para vir para aqui a 4 mil quilómetros da minha Alhandra", parece dizer o nosso Mário Gaspar, em 1968, "apanhado do clima".



Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Gadael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  "Uma foto importante para os tempos de hoje. Sempre no mato na Guiné. De vez em quando, ou me vestia à civil ou então era um Militar vestido a rigor. À direita nota-se movimentação de naturais. Abandonado o aquartelamento de Sangonhá, sucede a distribuição da população. É a instalação da população e o princípio de muitas asneiras militares, (...) Foi em 1968. Outra curiosidade, essa bem mais forte:  Estou sobre um paiol construído pela CART 1659, Gadamael Porto, com cimento e ferro, material que sobrou da construção do cais, Na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, onde frequentei o XX Curso de Minas e Armadilhas, os Paióis eram - e de certeza que ainda são - em tijolo. É obrigatório que um paiol seja um cofre forte."



Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Gadamael, 1968


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  Gadamael, s/d, sem legenda...



 
Foto nº 5 > Guiné > Bissau > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > "Eu com alguns Bravos Militares que comandei na Guiné, no regresso a Bissau no fim da comissão... Estou em cima, ao centro, de pé".


Foto nº 6 > Guiné > Bissau > 1968 > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  Despedida: foto do Mário Gaspar tirada junto á estátua do cap Teixeira Pinto (ou "capitão-diabo", para os guineenses)

Fotos do álbum foto gráfico do Mário Gaspar, disponíveis no seu Facebook.

 Fotos (e legendas): © Mário Gaspar (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art,  minas e armadilhas, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), está connosco desde  8/12/2013 (*). Tem mais de 140 referências no blogue.


(i) nasceu na freguesia de Santa Maria, em Sintra, e foi no antigo edifício dos Bombeiros Voluntários de Sintra que foi à Inspecção, embora desde os três anos morasse em Alhandra: 

(ii) Alhandra; "vila industrial, foi aí que aprendi a ser Homem, embora tenha estudado no então famoso Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira";

(iii) "desde os meus treze anos namorei com uma sueca, linda boneca, Ingrid Margaretha Gustavsom: Alhandra foi a minha Universidade, tive como Professores Sábios Avieiros e os Operários";

(iv) à vila de Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira, estão ligados os nomes de grandes portugueses como Afonso de Albuquerque (Alhandra, 1452 -Goa, 1515), o médico Sousa Martins (Alhandra, 1843- Alhandra, 1897) (que o povo transformou em santo) ou o escritor Soeiro Pereira Gomes (Baião, 1909 - Lisboa, 1949), autor de "Esteiros" (1941) (obra ilustrada por Álvaro Cunhal, e dedicada aos "filhos dos homens que nunca foram meninos");

(iv) durante a pandemia de Covid-19, o Mário foi  também um dos nossos bons e fiéis companheiros, mandando-nos quase todos os dias emails, alimentando o nosso blogue com imenso material, desde poemas a vídeos, mesmo que muito desse material  não fosse publicável, por razões editoriais (por exemplo, tudo o que era referente à atualidade política, social e cultural);

(v) é também um exemplo, corajoso, de um camarada nosso que, apesar dos seus diversos problemas de saúde nos últimos anos, tem sabido remar contra a maré da infelicidade, e ensinar-nos a maneira como podemos envelhecer, ativa, proativa, produtiva e saudável:  escrita, no nosso blogue ou em boletins como  "O Olhar do Mocho", é apenas um dos muitos meios que ele aponta; 

(vi) é DFA.



Foto nº 7 > Vila Franca de Xira > Alhandra > O Mário, na escola primária


Foto nº 8 > Vila Franca de Xira > Alhandra >  A sua querida mãe



Foto nº 9 > Lisboa > Sede da Dialap– Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA (posteriormente foi edifício da Expo 98 e atualmente da RTP). Peça emblemática da arquitetura fabril de Lisboa na década de 60 (arquitectos: Carlos Manuel Ramos e António Teixeira Guerra) (LG).


 "Trabalhei lá perto de 30 anos. Éramos, nós Portugueses, os Melhores Lapidadores de Diamantes do Mundo, e a Dialap talvez a maior Empresa de Portugal. 

"Alterámos e criámos novas ferramentas e ultrapassámos tudo e todos. Após o 25 de Abril houve uma troca de galhardetes entre os dois Estados. Portugal nacionaliza o capital angolano na Dialap e Angola nacionaliza o capital Português da Diamang. Nada se fez para se encontrar uma solução. A Empresa de quase 700 trabalhadores, a pouco e pouco sumiu-se. Os trabalhadores foram simplesmente títeres, robertos e palhaços. A Administração deixou de administrar e passou a ter quotas em tudo que era da Dialap. Abrem uma Empresa em Viseu (Porcut) ficando o Estado com 49% e eram nossos adversários e concorrentes. A Dialap é feita de pedaços. Qual a razão de não terem ficado com 51%? 

"E trabalhámos pedras que ninguém queria lapidar. Foram as administrações e o Estado que mataram a Dialap. Fui dos últimos a ser despedido. Falou-se sempre em reestruturar. Existiam hipóteses da Dialap ser maior. Verdade que houve trabalhadores que tiveram culpas no desmanchar da Empresa. A Dialap pagou tudo para a Expo 98 se instalar e a Secção de Pessoal desta chegou a abrir a minha correspondência. Queixei-me ao senhor administrador Sá Pires que nada fez. Fui à Judiciária queixar-me e responderam-me que a Expo 98 era forte e com poder e perdia tempo. Acrescentou que a Empresa era para acabar. Este um muito pequeno resumo da extinção de uma Grande Empresa."






Foto nº 10 > Lisboa > Dialap– Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA > Cartão profissional do Mário Gaspar, lapidador qualificado, secção de facetagem.

Fotos do álbum fotográfico do Mário Gaspar, disponíveis no seu Facebook.,,, (Com a devida vénia.)

 Fotos (e legendas): © Mário Gaspar (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Mensagem do Mário Gaspar, que fomos recuperar, e onde podemos saber algo mais sobre a sua singular história de vida (**), em complemento de outros postes dele já aqui publicados (***):

Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16
Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

Conheci muita boa gente. Além dos meus Pais, fixo a minha "padeira de Aljubarrota", a Mãe. E a "Tia Quitéria".

Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.

E os avieiros? Aprendi com homens e mulheres muito pobres que vieram de Vieira de Leiria para o Tejo.

E os operários das fábricas de Alhandra, onde cresci?

Tanto que aprendi... Conheci um Senhor da Nossa Literatura, Alves Redol. Reunia com ele, nem sequer inicialmente pensei estar com aquele Homem que também me ensinou a crescer. Sonhava. Nunca ser rico, milionário, antes operário. 

A primeira profissão depois de deixar de estudar, foi de "Ajudante de Padeiro", com Carteira Profissional. Portanto Operário, trabalhava todos os 7 dias – visto ter de suportar de sexta para sábado o dobro de horas. Tinha uma pequena Venda de Pão, deslocava-me à casa do cliente. 

Fui Operário e continuo a ser um mero Operário. Lapidador, palavra nem sequer é reconhecida. Sou Lapidador de Diamantes na situação de Reformado. Fui Sindicalista. Cooperativista (fiz parte de um Grupo que fundou uma estrutura – pensou-se ser Nacional), existem uns restos em algumas terras – a"COOP Lisboa".

Na Dialap – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA, foi onde passei toda a minha vida de trabalho, após cumprir o Serviço Militar – nem fui voluntário, e obrigaram-me a passar por Comandos, essa tropa de elites. Também passei pelos Rangers, em Lamego. 

Acabei por novamente ser obrigado a tirar um Curso de Minas e Armadilhas, após julgar estar a terminar essa vida militar. 

Fui para a Guiné, como Furriel Miliciano, Atirador e de Minas e Armadilhas. Sou Deficiente das Forças Armadas. 

Na Dialap fui eleito e fiz parte da Comissão Negociadora após Greve, antes do 25 de Abril, nos princípios de 1974. Se não acontecesse o Abril,  bem arranjados estávamos. Fui eleito para o Grupo de Reestruturação da Empresa, era um dos três executivos. Colocaram a hipótese de representarmos os Trabalhadores como Administradores. 

Conheci muito escritor da nossa praça. Fui fundador de Comissões de Moradores e fui Autarca. Mais tarde, em 1996 fui fundador da Associação Apoiar – Associação de Apoio aos Ex Combatentes Vítimas do Stress de Guerra. Onze anos Dirigente, os últimos seis como Presidente. Fundador e Director do Jornal Apoiar.

Conseguimos vencer todos os objetivos que se pretendia. Percorri o país. Reuni com Ministros, Deputados, Presidentes e de tudo um pouco. Após muitos dias sem dormir – por tal venci – caí como um passarinho que voa alto.

Operado ao coração e em coma. Acordei, voltei e assinei Protocolos. Fui para uma Academia Sénior e ainda fui fundador e primeiro diretor do jornal "Olhar do Mocho"

A vida ofereceu-me tudo. Recusei. Sonhava, um sonho que se evaporou. Foi uma onda que molhou areias e se afundou nelas. Se ainda sonho? Espero sonhar sempre – até acordado – vejo-me pequeno, tão minúsculo no meio de uma multidão.

Estive num debate e o tema era o "Dia da Liberdade", ou o "Dia Mundial da Liberdade". Desconhecia essa homenagem a esse "dia de liberdade", anunciada.

Liberdade,  onde estás tu ?!... Encontrei-me com o Jornalista José Luís Fernandes que foi director do "Diário de Notícias". Conheci-o, nunca mais nos vimos. Foi ele que me reconheceu.

Neste momento, o meu computador também teve uma síncope, não tem cura e ficou em coma.

Reconheceram que não temos essa Liberdade, tal como a Liberdade de Imprensa. Quem domina é o dinheiro. Os portugueses andam nas penumbras do medo.

Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na Literatura. Grandes Senhores e Esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci.

Mário Vitorino Gaspar

PS -  O Mário mandou-nos em anexo dois poemas do José Gomes Ferreira ("Viver Sempre Também Cansa!"  e "Devia Morrer-se de Outra Maneira"): um deles talvez venha a ser escolhido para figurar oportunamente na série "A Nossa Poemateca". Obrigado, Mário. E força para ti!

_________________
 
Notas do editor:

(*) Vd. poste de;


10 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12426: Tabanca Grande (414): Ainda o "zorba" Mário Gaspar (ex-fur mil, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), natural de Sintra, residente em Lisboa, e lapidador de diamantes reformado

 (***) Vd. postes de:



13 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14356: A minha mãe, Maria Eugénia da Conceição Vitorino Gaspar, a minha Padeira de Aljubarrota (Mário Vitorino Gaspar)

sábado, 6 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25347: Reordenamentos (5): Nalus para Cacine e biafadas para Gadamael, na sequência da retração dos aquartelamentos de Sangonhá e Cacoca, em 29 de julho de 1968


Guiné > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael-Porto > c. 1967/69  > Vista aérea do destacamento e da sua pista de aviação, de terra batida (como em todo o lado), na altura em que estava a chegar uma coluna militar [visível no lado esquerdo]. Foto tirada de uma aeronave DO 27 (nº 3490 ?). (*)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/d > Tabanca, reordenada pelas NT.

Fotos: Autor desconhecido. Álbum fotográfico Guiledje Virtual.

Fotos:  © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2007).  Todos os direitos reservados (Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.L.G.).


Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana >  Título da foto: Morreu Salifo Camará, Rei dos Nalus; Data de Publicação: 30 de Janeiro de 2011; Data da foto: 22 de Janeiro de 2011; Legenda:

"Salifo Camará, rei dos Nalus, sábio, filósofo e combatente da independência da Guiné-Bissau, despediu-se desta vida no dia 21 de Janeiro de 2011, em Cadique, onde sempre viveu" (...) . (****)

Foto (e legenda): Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2011) (com a devida vénia...)


1. Mal tomou posse, em finais de maio de 1968, o novo governador e com-hefe da Guiné, o brig António Spínola,  prodeceu ao "reajustamento do dispositivo", com destaque para a região de Tombali, no sul,  e com implicações em muitas das suas guarnições (Aldeia Formosa, Sangonhá, Cacoca, Gadamael, Cacine, Ilha do Como, Empada, Ualada, Gubia, Cabedú, Guile, Mejo, Gandembel,  etc.)

Pode ler-se no livro 2 da CECA, relativo à atividdae operacional no CTIG (de 1967 a 1970) (pp. 170/171);

(...) Pela Directiva n° 3/68 (sem data) é imposto ao CTIG, ouvido o Comando local, que proceda a um estudo sobre a possibilidade de reajustamento a curto prazo do dispositivo das NT, no 'corredor' do Guileje, à luz do princípio da concentração de meios.

Em continuação da alteração do dispositivo, é difundida a Directiva nº 4/68 (sem data) - reajustamento do dispositivo nas áreas de Sangonhá - Cacoca e do Cantanhez, a qual fixa ao CTIG o estudo, emcolaboração com o Comando local, da possibilidade de recuperar a Companhia implantada na área de Sangonhá - Cacoca e idêntico procedimento à Companhia implantada na área de Cabedú.

Igualmente em sequência do tema da Directiva n° 4/68 e no que diz respeito ao reajustamento do dispositivo na área de Sangonhá- Cacoca e reordenamento das populações prescreve a Directiva n° 14/68, de 25jun,  que:

 "Os aquartelamentos de Sangonhá e Cacoca serão abandonados em Jul/Ago próximo quando da rendição da CCaç 1621.(*)

"As populações de Sangonhá e Cacoca devem ser deslocadas desde já, por forma a que possam ainda cultivar as terras das regiões de Cacine e Gadamael.

"Em princípio, as populações de Sangonhá devem recolher à área de Gadamael, e as de Cacoca à área de Cacine, procurando-se paralelamente aproveitar este reagrupamento das populações para resolver o litígio da sucessão em Sangonhá, transferindo os Nalús para Cacine e os Beafadas para Gadamael. [... ]"

Os reordenamentos de Gadamael e Cacibe, ara realogar as popukações de Sangonha e Cacoa, respetivamente, deve, ter começado logo no 2º semestre de 1968. 

Segundo informçõ do nosso amigo e camarada cor art ref António J. Pereira fa Costa, "em Maio/Junho de 1968, o brig Spínola determinou o abandono dos quartéis de Sangonhá e Cacoca. Houve que transportar, para Gadamael e Cacine, a população que ali residia e que, em Cacine, ficou instalada na antiga Missão do Sono que agora já não existia, visto que a doença estava erradicada.

"Foram feitas mais de 30 colunas em pouco mais de 15 dias. À chegada foi necessário construir as casas com o auxílio do pessoal da CART 1692. Pela sequência das fotos é possível ver que se podem construir casas a partir do telhado. A qualidade das fotos não será a melhor, mas este poderá ter sido o primeiro Reordenamento da Guiné" (**).

Em 13 de julho de 1968, a CCAÇ 1621 ainda estava em Sangonhá, com um pelotrão destacado em Cacoca, a sul de Gadamael- Porto, junto à fronteira com a República da Guiné.


Guiné > Mapa geral da província ( 1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Sangonhá e Cacoca,  a sul de Gadamael e a leste de Cacine. na estrada fronteiriça Aldeia Formosa-Cacine...  

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

 Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 2 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, 604 pp.)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos: LG)
__________


(**) Vd, poste de 2 de julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3013: Reordenamentos Populacionais (1): Gadamael, o primeiro, na sequência da retirada de Sangonhá e Cacoca em meados de 1968 (António J. Pereira da Costa)

(***) Último poste da série > 6 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25344: Reordenamentos Populacionais (4): Uma perspetiva mais "securitária", no final do mandato de Arnaldo Schulz: em março e abril de 1968, foram deslocadas e reagrupadas cerca de 3 mil pessoas do "chão balanta"

(****) Vd. 22 de fevereiro e 2011 Guiné 63/74 - P7836: (In)citações (26): A morte de Salifo Camará, rei dos nalus, e pai espiritual adoptivo do nosso amigo Pepito (Luís Graça)

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25341: Reordenamentos Populacionais (3): Na construção de casas usa-se, como vigas, as rachas de palmeira (de cibe, mas também de dendém) (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné-Bissau > Borassus aethiopum, conhecida vulgarmente por cibe, é uma palmeira de grande importância na construção civil:  do seu espique se extraem as rachas de cibe, vigas para a construção das moranças


Guiné-Bissau > Elaeis guineensis, a palmeira dendém: o seu espique tem idêntica utilidade ao cibefornecendo ainda óleo alimentar, palmito, folhas para fabrico de vedações e seiva como bebida refrescante ou matéria prima para bebida alcoólica.

Fonte: Maria Adélia Diniz - Gestão tradicional dos recursos naturais da Guiné-Bissau.  Atas do Colóquio Internacional Cabo Verde e Guiné-Bissau: percursos do saber  e da ciência. Lisboa, 21-23 de junho de 2012. (Com a devida vénia...)



Guiné > Região de Tombali > Gadamael - Porto > 1968 > A construção de uma casa, que em vez de vigas de cimento leva "rachas de cibe"... Foto do álbum do cor art ref António J. Pereira da Costa (na sua opinião, este, em Gadamael, em 1968, terá sido o  primeiro reordenamento do CTIG, alojando população deslocada de Sangonhá e Cacoca.

Foto (e legenda) : © António José Pereira da Costa (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné]



O dr. Cherno Baldé (Bissau),
nosso colaborador permanente,
com o pelouro das questões
etno-linguísticas
1. Comentário de Cherno Baldé (Bissau), ao poste P25336 (*)

É preciso esclarecer que para a estrutura das coberturas utilizavam-se, e ainda se utilizam, tanto rachas de cibes propriamente ditos (uma espécie muito resistente e diferente da palmeira vulgar das bolanhas da Guiné e que só se encontravam nas zonas costeiras) e rachas de palmeiras vulgares que, também, são boas quando bem maduras.

Acho que em algumas zonas, caso do nordeste, exceptuando os zincos, cimento e pregos que eram importados e saíam de Bissau, os restantes materiais utilizados eram locais e como não tinham cibes utilizavam-se as rachas das palmeiras locais que eram de qualidade inferior, mas também serviam para o efeito, permitindo uma economia de recursos raros. 

A grande diferença é que os cibes maduros eram duros como o ferro e quase "eternos" porque não tinham medo da chuva e dos omnipresentes e teimosos baga-bagas vermelhos que são  os grandes "destruidores" e regeneradores da natureza nos solos  das regiões tropicais.

Encontrei em muitas localidades estas casas feitas nos anos 70 que ainda resistem ao desgaste do tempo e que, para os padrões de hoje, parecem muito pequenas e baixinhas, mas que ainda continuam a prestar bom serviço. 

Em alguns casos os zincos originais que eram de melhor qualidade,  já tinham sido trocados, mas muitos ainda continuam a fazer o serviço mesmo estando velhinhos e cobertos de ferrugem.

Pelos meus cálculos, uma casa de 4 quartos (4 x 4), como era a maioria na altura,  podia precisar, em média, entre 60 a 80 rachas de palmeiras ou de cibes, supondo que a asna e as ripas são feitas de barrotes e tábuas de madeira.

Hoje em dia, a estrutura da cobertura completa é feita de cibes e precisa entre 100 a 150 rachas de cibes, mínimo.

Cherno Baldé



2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Cherno, pelas tuas "achegas" a este assunto dos reordenamentos (**), e em especial sobre as rachas de palmeira que eram (e continuam a ser) utilizadas na construção de casas. 

A palmeira de cibe (nome científico, Borassus aethiopum var. senegalense), pelo que tive oportunidade de ler, é de facto um "monumento da natureza" (***)... Os materiais (as rachas) que se obtêm do seu espique são verdadeiras "vigas de aço" que resistem à ação do tempo e das térmitas... Daí o seu uso tradicional na construção civil. Mas, confesso, ao fim destes anos todos, eu não sabia distinguir bem uma palameira de cibe de uma palmeira de dendém...

Sabendo agora que a palmeira de cibe poderá atingir 20-30 metros de altura com um diâmetro variável (que pode chegar a um metro), tenho que reconsiderar o número de árvores abatidas, para o programa dos reordenamentos da época colonial (aponta-se para qualquer coisa como 110 o número de reordenamentos no final da guerra, e 15 mil as casas construídas com a ajuda das Forças Armadas, umas com cobertura de colmo e outras de chapa de zinco) ...

Eu apontaria então para um abate, não de 180 mil palmeiras, mas de um terço (c. 60 mil). Um tronco de palmeira tinha que dar, não 4 rachas de cibe, mas pelo menos 12 ou até 16 (ou até mais), dependendo da altura e do diâmetro. Mesmo assim foram muitas palmeiras...
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25336: A nossa guerra em números (25): Reordenamentos populacionais: materiais (das rachas de cibe às chapas de zinco) e custos

(**) Último poste da série > 5 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25340: Reordenamentos Populacionais (2): Em louvor do BENG 447 e do PTE - Pelotão de Transportes Especiais (João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt do PTE / BENG 447, Brá, 1967/1971)

(***) Também conhecida como Palmeira-Leque Africana... Vd. aqui descrição:

A forma típica de Borassus aethiopum é uma palmeira solitária de 25 metros de altura e 1 metro  de diâmetro na base. 

Nos fundos dos rios (planícies aluviais), em muitos dos  rios da África Oriental (o Rufiji na Tanzânia e o Tana no Quénia, entre outros), uma forma intimamente relacionada pode ter até 2,1 metros de espessura a cerca de 1,2 metros acima do solo,  e a mesma espessura na ventricosidade superior. 

Esta palmeira Pode chegar a ter  30 metros de altura.

As folhas em forma de leque têm 3 metros  de largura (as maiores, até 3,7 metros).  com pecíolos de 2 metros de comprimento. As pontas  estão guarnecidas com espinhos. 

Nas plantas masculinas, as flores pequenas ficam em grande parte escondidas nos amentilhos escamosos; as flores femininas,  muito maiores. atingem 2 centímetros de largura e produzem frutos de cor amarelo e castanha.  Cada fruta contém de 1 a 3 sementes, cada uma encerrada num endocarpo lenhoso. A variedade que cresce nas zonas aluviais é quase certamente a mais imponente  de todas as palmeiras, comparável à Jubaea chilensis, a palmeira vinífera chilena.

(...) A árvore tem muitos usos: os frutos são comestíveis, assim como as tenras raízes produzidas pela planta jovem; fibras podem ser obtidas das folhas; e a madeira (que tem fama de ser à prova de térmitas) é usada na construção.

(Adapt. de íNaturalist, e Wikipedia, com a devida vénia)

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25082: Em busca de... (323): Susana Coelho procura camaradas de seu pai, falecido em 2007, Afonso Henriques Maia Coelho, 1.º Cabo(?) Radiomontador da CCS / BCAÇ 513 (Buba, Cacine, Aldeia Formosa, Gadamael, Sangonhá e Guileje, 1963/65)

Buba - Janeiro de 1964 - 1.º Cabo(?) Radiomontador Afonso Henriques Maia Coelho da CCS / BCAÇ 513


1. Mensagem de Susana Coelho, filha do nosso camarada Afonso Henriques Maia Coelho, ex-1.º Cabo(?) Radiomontador da CCS/BCAÇ 513, com data de 16 de Janeiro de 2024:

Bom dia Sr. Luís Graça
Sou a Susana e o meu pai esteve na Guiné de 1963 a 1965 no Batalhão 513.
O meu pai faleceu em Janeiro de 2007.
Ontem estive a reler umas memórias que ele escreveu onde fala na guerra colonial e na Guiné e depois comecei a pesquisar e encontrei o seu blog e um livro que eu desconhecia "História do Batalhão 513".
Por acaso conhece alguém deste Batalhão e que se recorde do meu pai Afonso Henriques Maia Coelho da Figueira da Foz?
Muito obrigada e parabéns pelo vosso blog.

Com os melhores cumprimentos
Susana Coelho


********************

2. No mesmo dia foi enviada mensagem resposta à nossa nova amiga Susana

Cara Susana, muito boa tarde
Incumbiu-me o editor Luís Graça de a contactar no sentido de a podermos ajudar.
Se possível diga-nos qual era o Posto e a especialidade do pai. Envie-nos também uma ou duas fotos dele, fardado, do tempo da Guiné, para que possa ser mais rapidamente reconhecido.
Como o Batalhão 513 foi para a Guiné só com a Companhia de Comando e Serviços (CCS), isto é, sem Companhias operacionais, ele pertenceria à CCS. Confirme se souber.
Informo já que será muito difícil encontrar alguém do tempo do pai uma vez que a idade não perdoa e a lei da vida, ou da morte, vai fazendo a sua selecção, mas tudo aquilo que me puder arranjar será útil.
Depois de termos em posse os elementos que lhe pedimos, faremos uma publicação no Blogue, da qual será informada em devido tempo.
Muito obrigado pelo seu contacto e pela curiosidade saudável de saber do passado militar do senhor seu pai.

Creia-nos ao seu dispor
Carlos Vinhal
Co-editor


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3. Nova mensagem da Susana ainda no mesmo dia:

Boa tarde Sr. Carlos Vinhal
Sim. O meu pai pertencia à CCS.
Aqui na minha casa não tenho fotografias do meu pai da Guiné.
Só encontrei uma e vou enviar.
O meu pai trabalhava nas comunicações e era rádio montador mas também combatia e contou-nos muito do que passou em Buba, Cacine, Gadamael Cacoca, Sangonhã e Guileje.
Foi para lá em Setembro de 1963 e voltou no navio Niassa dia 5 de Agosto de 1965.
Envio uma fotografia na Guiné em Buba, Janeiro de 1964.
Outra comigo em 1971 e a ultima em 2003.
Por acaso sabe de mais sítios onde possa ler sobre o BC 513 e ver fotografias?
Muito obrigada!

Cumprimentos
Susana Coelho


1971 - s/l - Afonso Henriques com a filha Suana ao colo
Afonso Henriques em 2003. Viria a falecer em Janeiro de 2007

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4. Mensagem da Susana Coelho em resposta a uma do coeditor, no mesmo dia:

Muito obrigado Carlos Vinhal!
Sim. Vou comprar esse livro.
Estou muito curiosa para o ler.
Já li tudo o que o Dr. Mário Beja Santos escreveu no blog sobre o 513.
Posso perguntar o que significa o A e o Ç de BCAÇ?
Vou continuar a acompanhar o vosso blog.
Tenho muitas saudades do meu pai.
Faz-me tanta fata.
Mas é assim a vida e a morte.
Obrigada mais uma vez!

Cumprimentos
Susana


********************
Síntese da Actividade Operacional do BCCAÇ 513 - Reprodução das págs. 53 e 54 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné, da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974; edição do Estado-Maior do Exército (CECA)

Capa do livro "BC 513 História do Batalhão", por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, ano 2000.
Este livro pode ser adquirido consultando este sítio da internet: https://leituria.com/pt/os-livros/historia/historia-do-batalhao-513


5. Comentário do coeditor CV:

Resta-nos esperar que entre os nossos leitores esteja pelo menos um camarada que tenha pertencido ao BCAÇ 513 e se lembre do seu companheiro Afonso Henriques, infelizmente já falecido, ou apareça alguém que conheça um combatente deste Batalhão para contactar a Susana Coelho, sua filha. Podem-nos escrever através do Formulário do Contacto do Blogger, por exemplo, que nós estabeleceremos a ligação.

Para a nossa amiga Susana Coelho as nossas felicitações pela sua iniciativa. A partir de hoje passa a ser como uma filha para cada um de nós, porque o nosso lema é: filha(o) de um nosso camarada nossa(o) filha(o) é.
Continuamos por aqui ao seu dispor

CV - Coeditor

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24907: Em busca de... (322): Combatentes do CTIG que tivessem conhecido o então Tenente-Coronel Acácio Dias da Silva, Oficial do Serviço de Administração Militar, que cumpriu comissão(ões) de serviço entre 1964 e 1968

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a estas histórias e memórias com que Luís Cadete nos mimoseou, tudo decorreu naqueles vastos pontos da região Sul por onde ele terá andarilhado, diz ter passado 8 meses e meio em Mejo, todo o aliciante desta narrativa passa pelo rigor com que ele apresenta os diferentes locais, o modo como entremeia risos e lágrimas, dores e alegrias, felizes acasos e momentos funestos. Excelente contador, lamentarei se este livro não vier a conhecer uma reedição e divulgação que permita, a quem gosta de boa leitura que a literatura de guerra permite, esta oferenda de memórias que vêm enriquecer o que há de melhor na literatura memorial da Guiné.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (3)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Como já se referiu, Luís Cadete dá-nos quadros muito precisos sobre a situação dos destacamentos, fala dos militares e dos civis, veja-se o que diz de Gadamael Porto, poderá estar relacionado este episódio com a ida da sua Companhia para Mejo. Fala na implantação de Gadamael Porto à beira de um dos braços do rio Cacine, tão à beira estava que, quando a maré subia as águas entravam, pacifica e parcialmente pelo destacamento adentro, de tal modo que as barcaças encalhavam dentro do recinto. Foram muito bem recebidos, houve direito a almoço, e lá se conta a história de que apareceu um novo comandante de Companhia que pouco tempo depois de ter chegado verificou um dado insólito: faltavam 177 capacetes de aço modelo 940, rebuscou-se a papelada, ficou-se a saber que era um artigo que fazia parte da carga da primeira Companhia que ali assentara arraiais nos idos de 1963. Consultou-se Bissau, não havia dúvidas, a Companhia tinha os capacetes em carga e por eles teria de responder quando terminasse a comissão. Andou-se à procura da melhor solução, talvez um auto de ruína prematura alegando que tinham sido roídos pelo baga-baga. Assim se procedeu, o comandante militar despachou: “Concordo com o proposto. A Companhia elabora o respetivo auto de abate.”

Mudemos de localidade, vamos agora às colunas de reabastecimento a Madina de Boé, do Gabu até à transposição do Corubal eram 60 quilómetros de mais estrada, a transposição do rio era um quebra-cabeças. “A cerca de 5 quilómetros do Ché-Ché a estrada bifurca-se: para a esquerda segue a picada para Béli, cerca de 40 quilómetros de poeira e buracos; para a direita, segue a estrada para Madina a mais de 25 quilómetros de distância. Madina de Boé era nessa altura uma tabanca reduzida à sua expressão mais simples, dominada a norte, Leste e Oeste – a não mais de 300/400 metros da tabanca – por duas linhas de alturas com cerca de 112 metros de altitude e cerca de 1500 de comprimento no sentido dos meridianos. A Sul, afastada mais ou menos 1000 metros, fica uma outra linha de alturas com cerca de 171 metros de altitude e cerca de 2600 metros de extensão, correndo no sentido Leste-Oeste e 1300 no sentido Norte-Sul que, qual triângulo isósceles, dá pelo pomposo nome de Dongol Dandum, de topo plano, careca, amplo e juncado de gravilha. Com a fronteira a pouco mais de 8 quilómetros, em linha reta, Madina passou a ser flagelada e atacada quase diariamente – quando não sucedia sê-lo várias vezes por dia – e, do alto das colinas que a enquadravam, o inimigo fazia tiro ao alvo, segundo se dizia".

Também não esquece de contar aqueles achados ditados pela boa sorte, caso daquela operação lá para os lados de Empada, um soldado ao aliviar a bexiga, reparou em algo que brilhava por baixo da cobertura. Meteu a mão àquilo que brilhava, apareceu-lhe uma espingarda AK, chamou os camaradas, tinha sido descoberto um depósito de armamento, dali saíram espingardas, metralhadoras, pistolas, minas e granadas de mão. Não esconde que terá sido um erro não se ter ocupado Salancaur, decisão tomada por Arnaldo Schulz, depois da ocupação de Mejo, aquele ponto era uma pedra no sapato das nossas tropas, e ele explica o porquê:
“Com cerca 400 metros no sentido Este-Oeste e o topo careca em forma de tampo de mesa, ligeiramente inclinado para Leste, Salancaur dominava uma vasta área em redor, nomeadamente o corredor de Guileje. É óbvio que a ocupação de Salancaur não impediria, em definitivo, as infiltrações do PAIGC, mas permitiria um melhor controlo da zona e forçaria o Inimigo a diligenciar itinerário alternativo. De encostas íngremes, exceto na ponta Leste, inçadas de matagal e de enormes poilões de tronco pregueado que davam proteção a ambos os contendores, Salancaur obrigava a nossas tropas a atacar a subir, coisa pouco agradável e que conferia vantagem manifesta às gentes do PAIGC.”

Tenho vindo a desenvolver estas pequenas histórias de Luís Cadete por as considerar muitíssimo bem elaboradas, por iluminarem a atividade militar desenvolvida nesta região Sul entre 1966 e 1968, tempos de Mejo, de Sangonhá e de Cameconde, posições que Spínola deliberou abandonar. Histórias de afetos, de dramas de guerra onde não falta a mina bailarina, o fornecimento de peixe e carne por expeditos nativos na pesca e na caça, as penosidades do abastecimento, havia que comer sem remissão o pãozinho com gorgulho; é manifestamente crítico com o abandono de certas posições, descreve a importância de Contabane, que depois de um ataque devastador, foi abandonada. As histórias multiplicam-se, andaremos entre Fulacunda-Buba-Catió, Aldeia Formosa, de Guileje a Gadamael, tudo enroupado com apreciações nem sempre positivas à burocracia militar, há notas soltas sobre obsessões de gente que só bebia água engarrafada, infidelidades conjugais, porventura com caráter autobiográfico será mencionada a aventura do cultivo de abacaxis que não surtiu efeito porque as cabras encontraram ali alimento. Sempre dentro desta linha que houve abandono de posições que se tornaram verdadeiras vitórias militares do PAIGC, volta-se a falar em Madina do Boé, e conta-se a história que havia para lá um corneteiro destemido que se punha em campo aberto a executar o toque de silêncio.

A última história que nos presenteia Luís Cadete é seguramente fidedigna, passou-se em Mejo e em 1966. Ouviu-se roncar motor de helicóptero, voava a Sul da estrada Guileje-Bedanda, notificou-se superiormente, e meses depois apareceu um outro helicóptero e ali aterrou, o piloto desfez-se em desculpas, confundira aquela pista com a de Boke. “Comunicado o facto superiormente, com o grau de prioridade máxima que a situação aconselhava, foi a Companhia informada de que a FAP iria tomar conta da situação. E cerca de quinze minutos depois havia dois T-6 sobre a pista e pouco depois um helicóptero.” Era um Antonov An-2, soviético. O aparelho levantou voo escoltado pelos T-6 e terá seguido para Bissalanca. Lá na Companhia não se soube mais nada, abateu-se um manto de silêncio. “Uma aeronave estrangeira, oriunda de um país apoiantes ostensivo do PAIGC, sobrevoara parte considerável do território português em guerra e dera-se ao desplante de nele aterrar sem que ninguém o referenciasse nem a FAP o intercetasse. E isto em pleno dia, com excelentes condições atmosféricas e não menos excelentes e extensa visibilidade!”

Insista-se que se trata de leitura imperdível.

Guileje, 1973
Numa vala no quartel de Guileje, CCAV 8350 ‘Os Piratas de Guileje’, imagem retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

26 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

2 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

sábado, 7 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23958: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965


Lisboa > Terreiro do Paço > 10 de Junho de 1965 > O Almirante Américo Tomás a condecorar o ten mil 'comando' Maurício Saraiva, comandante do Grupo de Comandos "Os Fantasmas", com a Medalha de Valor Militar com Palma, e entretanto pronovido a capitão. Branco, nascido em Angola, Saraiva, idolatrado por uns, odiado por outros, foi um "mal amado", diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez, foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1.º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de agosto de 1964... Integraria depois o o Gr Cmds "Os Fantasmas", de outubro de 1964 a maio de 1965. O seu último comandante de secção foi o fur mil 'comando' Joaquim Carlos Fereira Morais, natural de Lisboa, oriundo da CAÇ 412 / BCAÇ 512. Morreu na Op Ciaio. Foram também feridos, da sua secção, o Amadu Fajló e o Tomás Camará. Outro ferido do grupo foi o João Parreira. (*)


Guiné > Bissau > 11 de junho de 1965 > "Foto tirada em frente ao Hotel Portugal, num dia que nunca mais esqueço, e por várias razões (i) era o dia dos meus anos; (ii) fui a Bissau buscar o 2º sgt. José Cabedo e Lencastre que vinha para o Centro de Instrução de Comandos; (iii) foi um dia depois da condecoração e promoção (a capitão) do Saraiva; (iv) os sapatos de pala castanhos que calçava atravessaram algumas bolanhas; (v) de tarde saímos para instrução e à noite fui ao cinema UDIB ver o filme “Noites de Casablanca", com a Sara Montiel".


Guiné > Região do Oio >   Tita Sambo (Camjambari) > 1965 > O Grupo Cmds "Os Fantasmas". Final da operação Ebro, em 26 de março. Para completar os intervenientes da Op Ciao (6-7 de maio de 1965, e Catunco, Cacine), falta apenas a presença do cap art 'comando' Nuno Rubim que acompanhou o Grupo. Em pé: o Cmdt Grupo ten Saraiva, 5º da esq. (MS);  e eu o 9º (FP). O fur mil Joaquim Carlos Ferreira Morais )JM) está em frente do Saraiva e o soldado Amadú Dajló (AD) à minha frente.

Fotos (e legendas): © João Parreira (2006). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um precioso  excerto das memórias do Amadu Djaló (**), neste caso relativas ao tempo em que integrou o Gr Comandos "Os Fantasmas" (comandado pelo alf mil cmd Maurício Saraiva, entretanto promovido a tenente e depois capitão). 

Descreve aqui a última operação, a Op Ciao, que ele realizou (junto com outros camaradas com os fur mil Morais e João Parreira, o primeiro ferido mortalmemte, e o segundo também evacuado para o HM 241; o próprio Amadu é ferido nesta operaçao). Foi em 6 de maio de 1965,  no sector de Cacine; tratou-se de um golpe de mão contra um acampamento IN em Catunco,

Recorde-se, aqui o percurso anterior do então sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015):
(i) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite pelo alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano; (ii) requentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964; (iii) deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros; (iv) deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: "Os Camaleões", "Os Fantasmas" e "Os Panteras".

O Amadu passou a pertencer ao Grupo "Os Fantasmas" comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva. Logo no fim do curso, os três grupos participaram na primeira operação, a Op Confiança, realizada entre 25 de outubro e 4 de bovembro de 1964 no Oio,   na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. Muitos dos novos leitores do nosso blogue  estão agora a ter contacto com as memórias do Amadu Djaló.


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A leitura, mais atenta,  do livro continua a ser uma verdadeira surpresa para mim.   Nunca é demais sublinhar que  é um testemunho humano, singelo, de valor grande documental, e com muito interesse, do ponto de vista socioantropológico, para um melhor conhecimento do passado da Guiné-Bissau e em especial do período da guerra colonial. O Amadu Djaló esteve 12 anos, de 1962 a 1974, ao serviço do Exército Português. 

Como já tivemos ocasião de o dizer noutra ocasião, o título do livro pode parecer ter pouco a ver com o conteúdo. Terá sido, aliás, mais ditado pelo marketing, com o objectivo de vender, o que no caso do Amadu até era um objectivo relevante, sabendo-se que ele tinha 10% sobre o preço de capa e era um homem pobre e doente. (Infelizmente, não enriqueceu com o livro.) "Guineense, comando, português" foi  claramente uma concessão aos "brancos" ou "europeus" (como ele nos chamava, quase sempre), Mas ele sentia-se português e um verdadeiro comando, sem nunca, por outro lado, ter renegado a sua pátria de origem (onde está , de resto, seputaldo).

Se um homem é sempre ele próprio mais as suas circunstâncias (não podendo escapar à historicidade), o Amadú foi porventura uma espécie de Sancho Pança guineense, servindo diversos Dom Quixotes, do Mauricio Saraiva ao Antónioo Spínola, mas também poderia ter estado ao lado do 'Nino Vieira e do Amílcar Cabral, como ele próprio admitiu, quando a páginas 30/31 evocou  a tentativa de aliciamento, para ingressar nas hostes do PAIGC, em julho de 1961, por parte de Adulai Djá, um colega seu de Bissau"  (que, tendo militado nas fileiras do PAIGC, chegaria a ser 2º comandante da base principal do Morés; mais tarde morto num ataque de comandos helitransportados, em data não especificada pelo Amadu, p. 30, nota de rodapé).

O Amadú acabou por ir para a tropa portuguesa em 1962 ("tropa era uma obrigação"), depois de um série de peripécias que meteram o pai, os primos do Senegal (militares do Exército francês), o administrador de Bafatá, o tenente Carrasquinha, do BCAÇ 238 (que tinha um fraquinho pela prima, bonita, Aua Djaló)...  .

Tenho igualmente chamado a atenção  para o talento narrativo do Amadu. Como bom africano, ele era um homem da cultura oral e, logo, um grande contador de histórias. E essa oralidade, espontânea (mesmo em português que não era a sua língua materna), perpassa por todo o livro, graças ao talento de outro homem, o Virgínio Briote, o seu "editor literário" (Ou "copydesk"), à sua paciência, perserverança, bom senso, bom gosto, sentido de ética e camaradagem.

Voltamos aqui a ter, neste excerto, duas boas histórias:

 (i) uma, cómica, burlesca e divertida, na I parte (já em parte aqui reproduzida) (***), em que ele descreve as peripécias da sua (e do Tomás Camará) viagem de DO-27, de Bissau até Cufar e depois Cacine, pilotado por esse "glorioso maluco das máquinas voadoras", que já era então o fur pil Honório Brito da Costa, nascido em Cabo Verde: sobre o Honório (Srgt Pil Av) temos mais de 3 dezenas de referências no blogue; 

(ii) outra bem mais dramática, pungente, reveladora da grande coragem mas também da nobreza humana do Amadu, a última operação do Gr Cmd "Os Fantasmas", em que morre o seu comandante de secção, o fur mil Morais,  e ele próprio é ferido com mais camaradas (*).


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965 (pp. 123-130)

por AmaduDjaló

(i) Voando com o "maluco" do Honório até Cacine


Em Maio[1] de 1965, fomos para Cacine, com o objectivo de executar um golpe de mão a um acampamento em Catunco. Era a última operação do grupo “Os Fantasmas” e, por isso, o tenente [Maurício Saraiva] pôs-lhe o nome de “Ciao”.

Em Brá tivemos a manhã para preparar tudo. Depois, fomos em viaturas para o aeroporto de Bissalanca, onde estavam quatro avionetas à nossa espera. O tenente dirigiu-se ao furriel Morais, que já tinha acabado o tempo de comissão e disse-lhe:

– Vocês esperam pelo Honório[2], que parece que ainda não está pronto.

– Meu tenente, eu não vou no avião do Honório! Custa-me muito faltar à operação, mas eu não vou! – disse eu.

O Tomás Camará disse também que, com o Honório, não ia.

Então, o tenente disse que as avionetas que os iam levar,  regressavam para depois levar o resto do grupo. Visto que um dos pilotos concordou, eu e o Tomás Camará ficámos a aguardar.

As três avionetas levantaram com o pessoal e, passados dez minutos vimos o furriel Honório a dirigir-se para a sua Dornier. Virou-se para nós e disse:

–Vamos?

O furriel Morais e um soldado europeu foram ter com ele.

– Só vão vocês os dois?

– É, eles dizem que não vão na sua avioneta!

– Mas, porque não?

Saiu da avioneta e dirigiu-se para nós. Cumprimentou-nos e perguntou:

– Por que é que vocês não querem ir comigo?

Olhámos para o lado, nenhum de nós deu resposta. Ele disse:

  É pá, isso é uma grande vergonha para nós! Eu sou preto, levo brancos, que têm confiança em mim e vocês, que são meus patrícios, não querem ir na minha avioneta? Vamos embora, pá, não há problemas!

–  Eu não gosto de manobras no ar e o Tomás também não!

 
–  Eu não faço nenhum tipo de manobras!

Depois, pegou nos nossos equipamentos e disse:

– Vamos embora!

Não havia outra maneira. Muito contrariados, embarcámos na avioneta. Tomou altura, virou para sul e o voo correu muito bem até ao campo de Cufar. Aí, o Honório viu um homem a andar sozinho, apontou-lhe o dedo e disse alto:

– Vou assustá-lo.

Aí, eu já não sabia onde me meter. Ele baixou a avioneta e passou por cima do homem, que continuou a andar com calma.

– Ai, ele não fugiu?!...  Então, vou-lhe acertar com a asa da avioneta! 

E baixou outra vez e ainda mais, parecia que ia aterrar ali. O homem viu aquilo, que não era nada normal, e saltou para junto de uma árvore. Mas agora, para retomar altura,  é que me parecia mesmo muito difícil.

Ao homem, a árvore tinha-lhe salvo a vida e a nós, pouco faltou para perdermos as nossas. A partir deste incidente, nenhum de nós abriu mais a boca, até chegarmos a Cacine.

Esta pequena vila fica junto ao rio. O piloto parou o motor e mergulhou, mergulhou. Só víamos água à nossa frente. Naquela altura, eu disse para comigo, "até aqui foi brincadeira, mas agora ele não vai poder controlar a avioneta e vamos morrer todos". Era só água que eu estava a ver, tapei a cara para não ver mais nada e gritei com força. Ouvi o Tomás também aos gritos.

De um momento para o outro, senti o estômago na boca, o avião estava a levantar, outra vez, a pique. Mesmo assim, vi os mangueiros bem perto e, logo depois, entrou directo na pista e aterrou.

Saltou cá para fora, abriu a porta a cada um de nós e, quando, sem qualquer tipo de fala, lhe virámos costas, ele apalpou-me o rabo e cheirou a mão, para saber se eu tinha borrado as calças.

Mesmo na pista, estava uma coluna à nossa espera, que nos transportou para Cameconde.



Guiné > Mapa geral da província ( 1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Cameconde, a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine...  
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Cameconde não tinha tabanca, só quartel. Os únicos vizinhos da tropa eram do PAIGC. Os nossos militares mal podiam sair do arame farpado. Aquele local foi um castigo doloroso para quem cumpriu lá a comissão.

Cameconde fica num cruzamento. Para entrar em Cacine tem que se passar por Cameconde, venha de onde se vier. As fronteiras são em Sangonhá, Cacoca, Camissorã e Banire, este por via marítima. A estrada continua até Cassacá e Campeane. É um cruzamento que separa tudo.

Chegámos depois do almoço e ficámos a descansar até às 17h00, mais ou menos. O tenente chamou-me e levou-me junto do guia, que era nalu.

Perguntou-lhe se tinha coragem para nos levar ao acampamento. Se não tivesse, mandava vir outro guia, amanhã, de Cacine. Mas o guia, à nossa frente, assegurou que não era preciso vir mais ninguém, que ele nos levava até ao acampamento da guerrilha. Enquanto o tenente ia falando com ele e fazendo perguntas, nós ficámos a aguardar a hora de saída.


(ii) A morte do furriel Morais, meu comandante de secção

Por volta das 20h00, começámos a sair, rumo a Catunco Nalu, com a missão de executar um golpe de mão ao acampamento.

Saímos à nossa moda, como era costume, com muito cuidado e sempre no maior silêncio. Alguns minutos depois, saiu um pelotão de periquitos, pertencente à companhia de Cameconde. Fomos sempre ao lado da estrada de Cacine a Camissorã, que atravessa Cameconde, até Catunco. No cruzamento deixámos o pelotão para trás, com a missão de fazer a segurança do local e aguardar a nossa retirada.

Entrámos na direita e, a partir daqui, o guia ficou fora do nosso controlo. Já não andava mais. O tenente bem insistia e chegou a dar-lhe com a coronha da arma na cabeça, mas nada dava resultado. Rastejava um pouco e parava, levava uma coronhada, rastejava e parava outra vez. Assim, fomos andando até chegarmos a um local cheio de mangueiros, dos dois lados da picada. O local era muito escuro e o guia continuava a atrasar-nos. Não sabíamos onde o sentinela estava.

Logo que saímos da escuridão das sombras dos mangueiros, uma rajada, à minha esquerda, cortou o silêncio. Aterrámos no chão, primeiro, depois, aos gritos de "Comandos ao ataque", arrancámos na direcção de onde partiram os tiros, pensando que era o local do acampamento. Era apenas o posto da sentinela. O acampamento ficava um pouco afastado e, mais para a esquerda, viemos a saber pouco depois. Abrimos fogo e lançamos granadas incendiárias. Barracas não vimos nenhuma, o que ouvimos logo foram tiros, vindos do lado esquerdo.

Corremos nessa direcção e encontrámos uma horta, com barracas. Começámos a revistá-las e fomos encontrando equipamentos e bagagens.

Retirámos um pouco na direcção do cruzamento e, passados alguns minutos, o tenente Saraiva perguntou-me se eu tinha ouvido uma metralhadora pesada a cantar. Eu tinha ouvido muitos tiros, só não sabia se alguns eram de metralhadora pesada. Ele, então, perguntou ao furriel Morais a mesma coisa. Que não sabia se eram de metralhadora pesada, foi a mesma resposta.

E o tenente a dizer-lhe:

– Pois eu ouvi perfeitamente. Pega no guia, vai lá com o Amadú, leva duas equipas e vão vasculhar toda a área. De certeza que vão encontrar qualquer coisa interessante.

O furriel Morais e eu levantámo-nos.

– O guia para quê? Estamos a ver as barracas a arder!

Iniciámos a marcha em direcção das barracas, mas a perguntar a mim próprio, porque razão o comandante do grupo não vinha connosco. Ainda não eram 24h00 quando lá chegámos pela primeira vez, agora já eram quase 2h00 da madrugada.

A progressão até ao acampamento não teve problemas e, quando lá chegámos,  começámos outra vez a vasculhar tudo. Eu com uma lanterna na mão à procura da tal arma pesada. O furriel Morais perguntou se eu já tinha visto alguma coisa. Não, não tinha ainda visto nada.

O furriel dirigiu-se na minha direcção. O local onde eu estava tinha ídolos [3] e deuses e ele esteve naquele local ainda um bocado de tempo, sempre à procura de qualquer coisa interessante até que me disse:

– Amadú, temos que sair daqui!

Dirigimo-nos para o local onde estavam os restantes elementos. Vimos o 1º cabo Cruz com uma jarra na mão e a bater com ela no pé de uma árvore de cola, pam, pam, pam…

Eu pensei, bom, ele está a fazer este barulho para a guerrilha saber o local onde estamos. Só podia ser para essa finalidade, tanto barulho!

O Tomás Camará disse-me que o cabo Cruz lha tinha tirado, para a destruir. Daqui resultou uma discussão entre nós, dentro do acampamento, que só não deu mais barulho porque o furriel Morais pôs o pessoal na ordem.

Entretanto, as barracas ardiam com toda a força e o furriel deu ordem para sairmos do local. Perguntei-lhe qual era a equipa que ia à frente.

– É a nossa 
– disse.

Foi a última coisa que o furriel Morais disse. Mal dei o primeiro passo, uma granada de RPG [4] explodiu à nossa frente e atingiu quase todo o pessoal. O furriel Morais teve morte instantânea. Logo a seguir ao rebentamento da granada, sucedeu-se o tiroteio, que durou alguns minutos. Ninguém levantava a cabeça. Quando o fogo abrandou, já todos tínhamos pensado o mesmo, para onde, por onde, como e quando sair dali.

Entre nós estava uma grande árvore, que nós na Guiné chamamos poilão [5]. Tinha raízes de fora, com grandes lombas, eram tão grandes que podiam abrigar um bigrupo. Meti-me, deitado, numa das lombas e estava a sentir qualquer coisa a escorrer pelas minhas costas. Desabotoei o dólmen, meti a mão até à anca e pareceu-me que era sangue.

Ao mesmo tempo senti que o meu ombro esquerdo estava a doer. Cuspi na mão e tentei ver a cor do cuspo. Se fosse sangue era mau sinal, podia ter sido atingido nos pulmões ou até no coração. Não era sangue, fiquei mais tranquilo. Se a ferida é fatal, a gente nem sente.

Mas eu estava a ouvir gemidos de companheiros. Um chamava pela mãe e eu cheguei-me a ele. Que estava ferido, eu também estava e o Tomás Camará andava com as pernas abertas, a dizer que o furriel estava morto,  e que, como era agora o comandante, ia pedir apoio pelo rádio. Tomás comunicou com o tenente Saraiva, que lhe perguntou se nós não podíamos regressar pelos nossos próprios meios.

– Tenente, nós éramos onze! Há muitos feridos e um está morto! 

O tenente ainda insistiu:

– Então vocês não podem sair daí, nem se podem mexer?!

Nesse momento ouviam-se gritos de um companheiro ferido. Mas outros, gritavam alto para o PAIGC ouvir:

– Venham ter connosco aqui, pá! Estamos aqui à vossa espera!

Estes gritos serviram de incentivo. Outros começaram também a recuperar o ânimo.

Entretanto, uma secção do pelotão, que estava com a missão de nos apoiar e recolher, meteu pés ao caminho, para nos ajudar a recolher o morto e o ferido que não podia estar de pé. O único que não foi ferido foi o cabo Cruz. Dos outros, dez tinham sido atingidos, um deles mortalmente. Mas saímos dali, mal ou bem, a arrastarmo-nos como pudemos até ao cruzamento.

Ficámos a aguardar a chegada da manhã, para procedermos às evacuações. O corpo do furriel Morais esteve ali ao nosso lado, deitado e bem caladinho, num silêncio de quem nunca mais voltará. Nasceu em Portugal e veio acabar a vida neste lugar de Catunco, no sul da Guiné, em 7 de maio de 1965.

Os militares que cumpriram a comissão em Cameconde foram muito sacrificados. Estavam ali para segurança da pequena vila de Cacine. Como já disse, para entrar em Cacine, venha-se de onde vier, tem que se passar por Cameconde. E para sair é pelo mesmo cruzamento. De Cameconde para Cacine vira-se para norte. De qualquer parte que se venha, a entrada é a mesma e a saída na direcção do sul, é também a mesma. 

Em Cameconde há uma picada que liga Cacine a Camissorã, continua-se sempre para sul até chegarmos a Camissorã. Quando se chega a Cameconde, há uma estrada principal, que fica a leste, que leva a Bafatá, Enchudé, Catió, Empada, Bedanda, Quebo. Para qualquer lado que se queira ir a saída é a mesma e para oeste tem muitas tabancas, de que eu só conheço Banire, Cassacá e Campeane. Dos outros nomes, não me lembro.

Portanto, para cumprir o serviço militar em Cameconde, era como quem pegava arma e entrava na mata para atacar os acampamentos da guerrilha. Todas as horas de todos os dias eram perigosas aqui. E só passava o perigo quando se ficava longe de Cameconde. Enquanto aqui estivesse, o militar não podia sair do arame, porque a partir de 20 a 50 metros podia ser morto ou raptado pelo PAIGC.

De manhã, a avioneta pediu que indicássemos a nossa posição. O tenente mandou estender telas, a avioneta localizou-nos e, poucos minutos depois, chegou o helicóptero acompanhado de bombardeiros T-6.

O tenente indicou a posição onde podiam bombardear. Durante a noite, o PAIGC não esteve quieto, foi fazendo fogo sobre nós. Mas depois dos bombardeamentos, o tiroteio acabou. Os helis [6] puderam assim pousar com segurança. Um foi para Bissau com um ferido e o corpo do furriel Morais, eu e o Tomás Camará fomos noutro para Cacine, onde recebemos os primeiros socorros de um médico da Marinha. Estivemos deitados na enfermaria, até que chegou a coluna que nos transportou para a pista. Fomos recolhidos por avionetas e ainda não era meio-dia estávamos em Bissau.

Esta foi a “Ciao”, a última operação dos “Fantasmas”. Eu e o Tomás resolvemos abandonar os comandos. Entregámos as armas e os equipamentos e regressámos à CCS do QG.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
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Notas do autor e/ou do editor literário (VB);

[1] Nota do editor: 6 maio 1965.

[2] Furriel Piloto Aviador.

[3] Chifres, bonecos de pau, garrafas.

[4] Nota do editor: RPG ou la
nça-granadas-foguete. A abreviatura deve-se à expressão russa “lançador de granada anti-tanque portátil” (Ruchnoi Protivotankovye Granatamyot)

[5] Árvore grande, majestosa, muito frequente na Guiné. Aproveitamos a madeira para fazer canoas. Para os que adoram deuses é uma árvore sagrada, protege as tabancas, é morada tradicional de espíritos e local de cerimónias.

[6] Allouette II.
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Notas do editor:

(**) Último poste da série > 3 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23942: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVI: Op Faena e Açor, abril de 1965, no sector de Buba