Mostrar mensagens com a etiqueta Mejo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mejo. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26327: Notas de leitura (1759): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Começo por uma manifestação de interesse, no passado domingo, 1 de dezembro, falei desta preciosa obra de literatura memorial, quiçá tratado como romance, pelas gerações vindouras, na apresentação feita na Casa do Alentejo, num mano a mano com Carlos de Matos Gomes. A singularidade detetada em Vindimas no Capim reaparece em força neste Lavar dos Cestos, a própria arquitetura da obra se assemelha com o romance premiado, é um galopar permanente em terras vindimeiras e, súbito, podemos estar em Catió, voltar à recruta e à especialidade, ouvir os estrondos em Gandembel, ter por companhia aquelas noites intermináveis em Mejo, uma emboscada perto do Corredor da Morte, e aquele frio na espinha que acompanhava as colunas de abastecimento para Buba ou Gadamael. Se alguém duvida, ainda hoje, que há memórias da guerra colonial que são inapagáveis, dê-se ao louvor, à exultação, à dor incontida que todo este livro de José Brás encerra,a modos de nos provocar no final, como se estivesse a proferir sermão, se nós não sentimos as liturgias da vinha da guerra, quem afinal, as sentiu? A cada um de nós cabe responder.

Um abraço do
Mário


Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (3)

Mário Beja Santos


Vamos hoje despedirmo-nos de Filipe Bento/José Brás com pompa e circunstância, é uma revisitação do Sul da Guiné, onde passou maus bocados, mas igualmente neste seu livro "Lavar dos Cestos" avulta a memória de acontecimentos da sua juventude em terras vindimeiras. A arquitetura da narrativa da obra é um verdadeiro carrossel de acontecimentos em terras estremenhas, fala-se no padre Gata, no Larixa, no seu avô José da Bonança, no tio Capadinho, na Mulher-João-Granja, no João Malino, no Vidigal Cigano, no Pirolas, no Zé Nicolau, tudo condimentado com intrigas e naifada, e pronto, já está, voltamos a África, mas cuidando sempre de denunciar as relações de poder envolvendo gente sem terra, lembrando tarefas de extrema dureza e até mesmo atentatórias de saúde:
“Nos sulfatos, não imaginam vocês, pelo menos os que nunca ataram esta vidinha das vinhas entre abril e o fim de junho, o cobre da solução cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra no enrugado e os poros. Se passarmos as mãos apenas por água limpa do poço, ou se as deixarmos até ao fim do dia sem uma boa lavagem dos altos para as refeições… ou até ao fim de semana… ou, havia quem fizesse assim, até ao fim da campanha em junho, três meses puxados, aquilo já não eram mãos de gente, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um bicharoco tentacular, um polvo a agitar os seus tentáculos. Eu cá, no fim do dia, lavava as mãos com mijo. Acabava o trabalho, esperava a vontade, afastava-me um pouco da maralha, virava costas a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos.
Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias.”

Estamos agora na Guiné, há ainda a recordação do Padre Francês, era assim que chamavam o Alex, que desertou e foi para Paris, vão suceder-se peripécias, montam-se emboscadas no caminho para o corredor de Guileje, há lembranças do rio Cumbijã, que ele assim apresenta: “É um senhor rio que vai subindo, subindo mapa acima, cruzando terras deste pequeno quase novo país, dando voltas e reviravoltas, a bombordo, a estibordo e de novo a bombordo, por vezes parecendo que volta para baixo, criando e recebendo dezenas de grandes e de pequenos outros rios que se subdividem e se multiplicam eles próprios, alargando chãos, chegando a aldeias, enchendo e vazando bolanhas, terras de arroz, sonhos de gente que se quer ver livre de soldados tugas, de fuzileiros, de barcaças, de canhões e de guerras.”

Mas também descreve lugares: “Catió tinha organização e disciplina militar, com cornetada da alvorada e tudo; casernas alinhadas e com casas de banho mais ou menos; não mostrava ninguém de calção e chinela havaiana; tinha comércios e café com esplanada, e até tinha igreja, aposto que com missa matinal diária, ou pelo menos dominical, arruamentos e valetas com escoamento fluvial, enfim, diziam que ainda assim, com a chatice de um ou outro ataque do inimigo e base agitada para muitas operações de Comandos, de Paraquedistas, de Fuzileiros por esse mato do Cantanhez adentro, aviões, helicópteros, barcos… o eco de muitos combates revoando por matas e ilhotas e tarrafos e bolanhas.”

Há um retorno ao mundo estremenho, novas histórias sobre as rixas, estamos de novo na Guiné, desta vez em Bolama, é este vaivém absolutamente frenético que captura o leitor do princípio ao fim, porque no final da obra José Brás vai inquietar-nos quanto às consequências que podemos tirar das misérias da guerra, das agruras dos vindimeiros, das recordações que ele guarda do Estado Novo, despede-se e deixa-nos no desconforto:
“Perco-me aqui numa embrulhada interminável de historietas sem lhes conseguir encontrar a ligação e o principal fica por contar. E quando comecei a escrever tinha quase a certeza de que iria atingir esse objetivo. Mostrar que a guerra não caiu do céu. Que antes da guerra começar a vida já existia nas aldeias e nas cidades e que não parou só porque a guerra rebentou e os soldados iam e vinham aos milhares. E que nem os soldados nem os pais dos soldados sabiam explicar muito bem porque carga de água, de repente, começou tudo aos tiros. Soldado ia, soldado vinha, quando vinha, e sinais de Pátria não se encontrava senão nas fomes, na enxada e outras ferramentas, e agora, também na G3, no morteiro, na bazuca, no canhão sem recuo e no sangue vertido das veias dos camaradas (…) E vocês viram morrer o Lemos, viram morrer o Cabo Júlio, viram morrer o Madeirense e os dois de Barcelos… Viram é uma forma de dizer!
Mas é a mesma coisa, se sentiram como eu senti ao contar-nos, ainda mais do que senti ao ver de vista mesmo, no ato da sua morte. Não necessitaram sair de casa, claro, para terem notícias circunstanciadas sobre as suas mortes.

Não precisavam de os ver agonizar, de os procurar na mata as pernas decepadas; de os olhar nos olhos na despedida; de os carregar aos ombros ainda vivos já cadáveres inevitáveis; de lhes respirar os pesados cheiros, dias e dias, até que helicópteros lhes retirassem dali as negras caixas; não tiveram de morrer também de medo, de solidão, de impotência, de fome e de sede; de calor e de frio; de mil cansaços; nos estrondos, das rajadas e de semanas inteiras de mato; nos fornilhos de fósforo, nas febres, na água podre da bolanha, nas centenas de quilómetros de picada, de caminhos, de trilhos, de selva subtropical; nas emboscadas, nas flagelações, nas horas a rastejar sobre capim, sobre ramos e raízes, sobre lamas; na lentidão do tempo para o regresso; no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gandembel; na iminência do assalto final; na vertigem da última bala e na brasa do estilhaço… Não tiveram de sentir no ombro a mordidela do arco do caneco pesado na subida inclinada da vinha do Boeiro, nem de fazer ano a ano a viagem de comboio da Beira-Alta para as vinhas do Salazar, em S. Jerónimo, por uma merda de jorna, sardinhas de três meses e feijão-frade com bicho…

Não sentiram nas tripas a frieza metálica do canivete de volta do João Gato, nem o chumbo quente no peito, como o Arlindo.
Não sentiram nunca a alma a estraçalhar-se de desânimo nos trilhos perdidos dos Pirenéus.
Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas das praças de homens; valorados em lanços de coroa ou dez tostões; um quarto de pão escuro na mesa da ceia.
Não sentiram nunca…
Não sentiram vocês…
Não sentiram?
Então quem foi que sentiu?”


Um belíssimo romance de literatura memorial, é o mínimo dos mínimos que se pode dizer de "Lavar dos Cestos", de José Brás.

- José Brás foi Furriel Miliciano de Transmissões na CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras
_____________

Notas do editor

Posts anteriores de:

16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, José Brás e Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)
e
23 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de dezembro de 2024 >Guiné 61/74 - P26319: Notas de leitura (1758): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
A originalidade desta narrativa memorial passa pela bem conseguida assembleia de conversa que o José Brás urdiu numa estonteante viagem entre a infância e a adolescência e a comissão na Guiné, toda passada em quartéis do Sul. Usa o discurso direto, aponta-nos o dedo, quase que nos pede resposta, mas nos antípodas da diacronia a que é manifestamente avesso, saltita quase febrilmente nos tempos e lugares, é uma montanha-russa que mete quartéis como o das Caldas da Rainha e Tavira, tascas com cenas de naifada, corpos carbonizados na estrada para Buba, flagelações, tudo isto se vai passar num tabuleiro restrito daquele Sul da Guiné que ele não quer ver apagado do mapa, Mejo, Cutima-Fula, Guileje, Gadamael, não terá estacionado muito tempo em Aldeia Formosa e seguramente que ouviu os rebentamentos ali ao lado, no octógono de cimento e sofrimento que se chamou Gandembel. Se um bom livro é obrigatoriamente uma história bem contada, José Brás passa com distinção e louvor.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (2)

Mário Beja Santos

Vale a pena recordar que o mais recente livro de José Brás, "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", Chiado Books, 2024, tem uma matriz de gabarito, trata-se do, seu romance premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, em 1985, "Vindimas no Capim". Está de novo em ação Filipe Bento, continuamos numa ruralidade da Estremadura e naquele Sul da Guiné onde se combate ferozmente, Filipe Bento tem a sua comissão em Mejo e arredores, não esquece de nos contar que qualquer coluna de abastecimento seja a Buba ou a Gadamael é uma autêntica operação, por vezes próximo do inferno. O poder arquitetural da escrita de "Lavar dos Cestos" assemelha-se muito às "Vindimas no Capim", salta-se com a maior das facilidades das vinhas para o mato guineense, daquela vida duríssima do preparo da terra e das cepas, a puxar terra aos pés, a podar, a empar, a cavar, a sachar, a sulfatar, a enxofrar, a vindimar, tudo para ganhar uma miséria, era esta a condição deste povo vindimador, e num ápice estamos na guerra.

Toda a obra é uma sala de conferência, temos direito a desabafos íntimos: Daniel Padeiro era um vigarista, aldrabava no pão, no carvão, no que podia, apanhamos as conversas na tasca, irmanamos com a dureza do trabalho; e, como num salto sobre o abismo, caímos na Guiné, barquinho rio abaixo até Cacine, até Catió, Gadamael, mas também Gandembel, um octógono de cimento e sofrimento, Quebo ou Aldeia Formosa, é mais ou menos esta a quadricula de eleição onde se processa a liturgia da guerra; e saltamos ao passado, isto é, a terras estremenhas, à catequese, ao rio Tejo, ao major Leiria que era lá da terra e que Filipe Bento reconheceu no quartel, integrados somos na vida das instituições militares e, por artes mágicas, voltamos à floresta subtropical, também no quartel, é como se viajássemos de um pesadelo para outro, e as viagens pelos rios não têm graça nenhuma, como Filipe Bento conta quando foi de Bissau para Mejo no batelão Anita, furando a noite já funda, caiu uma chuvada das antigas, houve quem procurasse proteção no meio dos sacos de farinha, de lá saiu enfarinhado.

Foi gerente do bar, experiência para esquecer, ou não, pelo que se viu ter apanhado contas mal feitas. E voltamos às colunas, o cabo Júlio morreu entre labaredas, é uma descrição tremenda:
“Ali aos pés tinha o volume do resto do que fora o corpo do Júlio, meio aterrado ainda, com os coutos dos braços e das pernas a fumegarem, apontando ao alto. A pele da barriga esticara, rebentado, e mostrava um amontoado de carvão.
Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também.
A posição agora seria a mesma que seria sentado na viatura, de pernas de fora.
Só que das pernas restavam uns espetos, maior o da direita, mais curto o da esquerda, mas ambos dobrados na bacia, fazendo o ângulo da posição mal sentada.
Os braços, mostrando os ossos dos pulsos, estavam também estendidos para a frente, quase perpendiculares ao corpo. Apenas as mãos haviam desaparecido.”


A pirotecnia da escrita, acompanhada destes saltos bruscos em que andamos por dois continentes, surpreendentemente, não nos desorientam porque um bom livro é sempre uma história bem contada, ainda há pouco andávamos de sachola na vindima, o Filipe Bento fez a recruta e a especialidade, já está a caminho de Buba, recorda as delícias do seu amor com Luísa, soa a voz do capitão Velês a deitar os bofes pela boca, Filipe está agora em Cutima-Fula, recorda a tasca do João Gato e a preparação que teve em Tavira, seguem-se as colunas a que não falta metralha, mas bem vistas as coisas Cutima-Fula era o paraíso, em termos de comparação com Mejo e o que se seguiu. Mas aquelas colunas ao cais de Buba não tinham mesmo graça nenhuma, dito por ele, reafirmado mil vezes:
“Eram uns trinta quilómetros para cada lado, a picar estrada, a cinco à hora, com um calor lixado, a água nunca chegava… e com a emoção da busca e descoberta de uma mina ou outra, de um fogachal daqueles e a incerteza permanente na alma dos malteses embarcados em Lisboa.
Vergar a mola à bruta na estiva do cais de Buba a carregar o material nas carripanas. Toneladas de trampa a fingir de produtos alimentares, remédios, balas, granadas, vinho mais que duvidoso, cerveja e outras bugigangas que, durante o percurso de volta, haviam de ser descarregadas para desatascar as viaturas, e transportadas ao longo da malta para uns metros à frente, atolados na chafurdice da bolanha, e carregados de novo, várias vezes repetindo o exercício no tempo das chuvas, com o estômago vazio e muita sede.”


Os nomes sucedem-se: Mejo e Guileje, Sangonhá e Cacoca, Catió e Cufar, Cabedu e Bedanda, Cacine, Mato Farroba, Cufar e Caboxanque, Salancaur e Cumbijã, e há lembranças de uma viagem em que se passava fome e foi possível comprar doze peixinhos, eram bicudas, pelo peixe, lá se fez uma fogueira em Catió, impossível não invocar aqui o repasto.

E há a denúncia dos compadrios: “O furriel Machado regressou a Lisboa tuberculoso. Deixou o pessoal de boca aberta. Parecia vender saúde e, de repente, zás, um rádio de Bissau a chamá-lo ao Hospital Militar.
E o Espírito Santo, que dois dias depois regressava de férias no Puto, informava-nos que encontrara o gajo de boa saúde no aeroporto com guia de marcha para a metrópole. Mais tarde soubemos que a doença dele se chamava Beja ou Évora ou lá o que era… seu tio.”

Voltemos ao universo estremenho, não havia campo de futebol, fazia-se bola com o que calhava, na falta do campo o adro da igreja era o único lugar capaz para garantir alguma distância entre dois pares de calhaus a fazerem as balizas e com duas equipas de cinco ou sete jogadores. Filipe é adolescente e sentiu a campanha de Humberto Delgado, o seu pai sempre prudente, talvez medroso, empolga-se com a campanha e explica porquê:
“Ponham-se vocês no meu lugar, nascido numa aldeia de ganhões de vinhas, de terceiros, de meeiros… gente que rebentava a vida inteira a fuçar sem tirar os cornos das cepas; anos e anos a fazer vinho, a bem dizer, dos torrões; a tirá-lo das veias para meter nos tonéis do senhoritos, senhorões filhos da puta; a apodrecerem na lama do inverno, a estorricarem no Sol de verão, a endoidecerem na hora dos acertos com o merceeiro, com o armazenista, com o aldrabão, sem um protesto, sem uma praga, sem um gesto de insubmissão. Na minha aldeia era tudo boa gente.”
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras


(continua)
_____________

Notas do editor

Vid. post de 16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerras", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26294: Notas de leitura (1756): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
O José Brás/Filipe Bento volta a vindimar com a sua escrita assombrosa, creio que traz recados e avisos solenes de que isto de fazer a vindima vai até o lavar dos cestos, ou seja, que nós combatentes não fiquemos no belo recato de ler o que os outros escrevem atirando para trás das costas as tais memórias da guerra colonial que não se apagam. É um livro comprometedor, a arquitetura vem dos tempos do seu belíssimo romance Vindimas no Capim, mas o que agora nos oferece é mais o sinal dos tempos, constrói-se pelo poder da memória, revisitam-se lugares, gentes, pesadelos e solidariedades e posso-vos dizer que dentro deste processo de escrita onde se fala em termos litúrgicos, como antífona, a oração sobre as oblatas, a oração dos fiéis, despede-se de nós com um solene aviso: compete-nos também o registo de deixar para os outros aquilo que sentimos não foi em vão que por ali andámos a penar para tudo cair no esquecimento.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (1)

Mário Beja Santos

A década de 1980 revelou que a literatura da guerra colonial estava a dar um salto qualitativo, entrara-se num período de acalmia e o pulsar da memória levedou numa quase inesperada ficção, podia aqui citar um conjunto de influentes romances, até ensaios, obras de historiografia, poesia, alguma investida memorial, mas fixo-me num surpreendente romance, justamente premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, "Vindimas no Capim", de José Brás, então um autor desconhecido. Tratava-se de um romance de formulação invulgar, uma permanente conversa com o leitor, como se estive a acirrá-lo com perguntas, dando ele próprio respostas exclamativas, uma autobiografia de alguém que passara a sua juventude em meios agrícolas, e depois no Sul da Guiné, aqui as vindimas foram outras, havia Guileje, Mejo, Gandembel, lá ao fundo, sempre próximo do Corredor da Morte, havia Cacoca, Sangonhá e Cameconde, lá em cima Balana e, claro está, Aldeia Formosa, Filipe Bento estacionará em Mejo e noutros lugares de permanente sobressalto, confessará as suas dores e amargores, escreverá de forma inequívoca aquilo que muitos de nós já sabíamos e que se veio a comprovar: há memórias da guerra colonial que não se apagam. Mas nas "Vindimas no Capim" sentia-se aquela onda de calor em comunicar a quem quer que seja que aqueles jovens saídos de terras pobres, ordenados numa vida áspera, tinham sido lançados na defesa de uma parcela colonial, acoitados nuns fortins improvisados, a experimentar as penas do inferno. E Filipe Bento perguntava vezes sem fim porque é que tinha andado naquela vindima de pesadelo e porquê tudo por que passara estava agora tão esquecido, quem iria ganhar com o desmemoriamento de tanta luta inglória.


É nisto que o octogenário José Brás salta do esquecimento em que caiu tanta vindima e nos vem alertar do seguinte modo: “Na liturgia das vinhas a vindima seria o seu último salmo. Todavia, na voz do povo se diz que não acaba a missa no corte do último cacho; na derradeira lagarada; no bago que fecha o tonel, e que muita vindima há ainda por fazer até ao lavar dos cestos. Nas courelas que restaram deste anacrónico império, depois da colheita, quantos cestos continuam melados com o mosto das repisadas uvas brancas e tintas?” Presumo que aquilo que ele nos quer dizer é que temos todos a obrigação de fazermos a nossa vindima até ao lavar dos cestos, é assim o dever de memória para que as novas gerações guardem na sua identidade um sofrimento inaudito dos seus ancestrais, participantes num desastre anunciado.

Temos agora o "Lavar dos Cestos", José Brás e Chiado Books, 2024, Filipe Bento regressa ao Sul da Guiné, quartel de Guileje, estão a ouvir-se estrondos em Gandembel, quem aqui está vive o pesadelo, um quotidiano de infortúnio, fez-se um octógono que até parece inexpugnável, ali no Corredor da Morte, o PAIGC não se intimida com aquele fortim solitário, espicaça quem lá vive com tormentosas flagelações, Filipe acordou arrelampado com tanto estrondo, reflete em voz alta:
“Mejo e Guileje, buracos abertos na mata subtropical do Sul da chamada província ultramarina da Guiné, quadrados de cem, cento e poucos metros de lado, paliçada a todo o perímetro construída por duas paredes de cibes, rijíssimas árvores cortadas a propósito e sobrepondo-se, tronco deitado sobre tronco, deitado até uma altura de um homem baixo, separadas as ditas paredes por cerca de um meio metro de vazio que seria cheio de terra, finalmente, quando não mesmo, muitas vezes ainda, e com isso, nesses casos, lá fica desasada a palavra finalmente, muitas vezes ainda, volto a dizer, cosida exteriormente a chapa dos dois lados, lata recuperada dos bidões de duzentos litros da gasolina que alimentava as viaturas, unimogs, jipes e GMC’s, e o gerador elétrico do local destas praças militares portuguesas intervaladas por postos e aquartelamentos do inimigo a escassas distâncias, quatro, cinco, sete quilómetros de mata densa e alta.”

Pode parecer absurdo um inimigo, feroz e destemido, altamente motivado, estar posicionado a tão curta distância, mas as coisas passaram-se assim, aquele corredor da morte era um cordão umbilical para abastecimentos do PAIGC, de gentes, armamento, coisas de hospital e farmácia e mantimentos para a boca. E Filipe Bento já sonha com a passagem para Bolama, mas para ali chegar há que percorrer uma boa distância até Gadamael-Porto, e então, por lancha ou batelão e rio abaixo até Bolama. Mas, ó gente, vamo-nos preparar porque Filipe Bento tem histórias passadas para contar, fez recruta e especialidade, passou pela Carregueira, vai-nos contar ao pormenor e com palavreado da caserna, tudo quanto ali viveu, nas Caldas da Rainha ou em Tavira, entra em cena o major Leiria, associado àquele território onde ele passou a juventude, o pessoal das vinhas. O segredo desta vibração da escrita passa pela recuperação da arquitetura que o José Brás já utilizara em "Vindimas no Capim", a interpelação que tanto desassossega o leitor, ora estamos no quartel ora na taberna, e até se aproveita a circunstância para se dar ensinamento ao leitor urbano:
“Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, a bendizer só a palavra, desenganem-se!
Enxada de dois ferros, um pouco mais curta na chapa, a fim de realizar uma cava mais funda com duas enxadadas no mesmo exato lugar. Enxada de um ferro, mais compridita para cavar num só golpe, não tão fundo, mas envolvendo uma amplitude maior de terra. Enxada de dois bicos que, como o nome indicia, alongava a meia-lua nos bicos, mais grossa e pesada, com um cabo direito para cavar terra seca e amontoar levas atrás do cavador a fim de facilitar a entrada da luz do Sol até mais fundo.”


Umas vezes estamos lá na terra das vindimas, outras vezes nas Caldas, em Tavira ou em Caçadores de Infantaria. Mas importa que se saiba onde vivia Filipe Bento antes de pegar em armas:
“A aldeia é pequena. Apesar de ser sede de Freguesia, de ter igreja paroquial, procissão dos passos anualmente, duas mercearias, festas de verão, escola de rapazes e raparigas, tem apenas a rua principal que sobe desde o cemitério, mesmo ao pé das abegoarias do Manel, outro Manel, Cortador, dono do talho, perto também da forja do Tóino Ferreiro, e passa pela farmácia, à esquerda, sempre a subir e do mesmo lado, a loja debaixo, o casarão apalaçado do Zé Fernandes, os Figueiras com a padaria.” E a descrição vai até ao largo, ficamos também a saber que o caminho que nos levaria à Seteirinha se à Seteirinha quiséssemos ir, tínhamos duas casas grandes do lado direito de quem entra, subindo como vínhamos subindo, olhando as fachadas, tentando perceber a gente que atrás delas vive. No canto direito do limite do largo, a loja de cima que fica por baixo da escola dos rapazes.

E depois, o Filipe Bento vai-nos falar de vinhas e enxertias e até de podas, prepare-se o leitor para uma exaltação das magnificências do que se extrai da terra, que beleza de escrita.
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras

(continua)
_____________

Notas do editor

Vd. post de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

“LAVAR DOS CESTOS - Liturgia de Vinhas e de Guerra” pode ser adquirido na rede de livrarias independentes espalhadas por todo o país;
É também comercializado Online na seguinte rede:
- AtlanticBookshop.pt
- Fnac.pt
- Bertrand.pt
- Wook.pt
- e ainda a pedido via mensagem na página Facebook do autor ou e-mail jasbras1@sapo.pt e enviado via correio CTT.

Último post da série de 13 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25152: O Nosso Blogue como fonte de informação e conhecimento (105): Na Morte do Coronel Nuno Rubim (Alfredo Pinheiro Marques / Centro de Estudos do Mar)

Cor Nuno Rubim (1938-2023). Foto de Luís Graça (2006)

1. Ainda a propósito do falecimento do Coronel Nuno Rubim, recebemos a seguinte mensagem com data de 31 de Janeiro de 2024, enviada pelo Director do CEMAR, Doutor Alfredo Pinheiro Marques:
De: CEMAR
Date: quarta, 31/01/2024 à(s) 11:17
Subject: Na Morte do Coronel Nuno Varela Rubim

Prezado Doutor Luís Graça, e demais responsáveis do Blog "Luís Graça & Camaradas da Guiné":
Nesta mensagem e na seguinte remetemos um reencaminhamento das mensagens que enviámos para a lista de "mailing" do CEMAR acerca do falecimento do nosso Ex.º Amigo Coronel Nuno Varela Rubim, e em que nos socorremos de, e citámos, muita da informação que, pela V. parte, disponibilizam no vosso Blog (uma vossa iniciativa meritória, e merecedora dos maiores elogios, e pela qual felicitamos, e desejamos os melhores votos de continuidade do bom trabalho)


Com as melhores e mais cordiais saudações, e votos de tudo de bom neste novo ano 2024
Alfredo Pinheiro Marques
Director do Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque - CEMAR
(Figueira da Foz do Mondego - Praia de Mira)


************************************************

2. Início da mensagem reencaminhada:

De: INFORMAR
Assunto: Na Morte do Coronel Nuno Varela Rubim
Data: 30 de janeiro de 2024, 01:01:12 WET
Para: mail@cemar.pt

NA MORTE DO CORONEL NUNO VARELA RUBIM

Só agora tomámos conhecimento, através de notícias publicadas no Blog "Luís Graça & Camaradas da Guiné" (o principal fórum de informação e discussão sobre a história da Guerra portuguesa no teatro de operações da Guiné-Bissau), na "Revista de Artilharia", e em outras fontes, da triste notícia do falecimento do nosso Ex.º Amigo, Coronel de Artilharia, Comando, na situação de reforma, Nuno José Varela Rubim (1938-2023), historiador militar que tivemos a honra de contar no número dos membros do Conselho Consultivo e Científico do CEMAR - Centro de Estudos do Mar, e pelo qual sentimos, e manifestámos, sempre, uma extraordinária admiração e um profundo respeito, em termos científicos e em termos humanos.

Nuno José Varela Rubim - a que as populações africanas chamaram o "Capitão Fula" (e cuja morte ocorreu, agora, no passado dia de Natal… em 25.12.2023) - foi um homem extraordinário, e com uma vida invulgar, e extraordinária, de heroísmo, de coragem, de lucidez e de inteireza.
Uma vida apontada, ao mesmo tempo, quer para o serviço militar quer para a compreensão do mundo e do seu país: para a História e para a investigação histórica. Provindo de uma tradição familiar apontada para o serviço do Exército Português, e mais concretamente para a Artilharia, ele veio a ser um militar de grande coragem, detentor de uma folha de serviços invulgar, e um historiador de grande lucidez e criticismo, o mais competente nas matérias específicas de História Militar a que se dedicou. De grande coragem científica, para além da coragem pessoal e humana.

Em nove anos em África, com quatro comissões de serviço, foi um dos militares mais condecorados do Exército Português no terrível teatro de operações da Guiné-Bissau, o mais duro e difícil para os Portugueses, na segunda metade do século XX. Comandou, lá, em comissões de serviço sucessivas, como Capitão, duas Companhias de Caçadores (CCaç 726, e CCaç 1424), e uma Companhia de Artilharia (CArt 644), e foi o criador, formador, e comandante, lá, dos "Comandos da Guiné" do Exército Português, entre 1964 e 1966.

As Companhias que comandou estiveram localizadas no aquartelamento de Guileje (Guiledje), na parte desse território que foi a mais problemática para os Portugueses, nas regiões do "Corredor da Morte" de Guileje, Gadamael e Guidaje, e das Matas do Cantanhez, e de Madina do Boé (onde, por fim, em 1973, o PAIGC acabou por proclamar unilateralmente a sua independência). Nessas regiões tiveram lugar alguns dos momentos mais penosos para o Exército Português. Nomeadamente quando, em Maio de 1973 (alguns anos depois de Rubim já lá não ser comandante), esse aquartelamento de Guileje chegou a ser abandonado pelas tropas portuguesas, e ocupado temporariamente pelas tropas do PAIGC (o único caso desse tipo, nas guerras africanas portuguesas da segunda metade do século XX).

Depois disso, entre 1972 e 1974, Nuno Varela Rubim ainda desempenhou também funções no Quartel-General português em Bissau, em serviços secretos de informações, transmissões e criptografia (CHERET), e já então promovido ao posto de Major (e, nessas funções, os serviços portugueses conseguiram decifrar os códigos das comunicações militares dos países vizinhos).
Esteve presente, desde o primeiro momento, lá, na Guiné, na conspiração do "Movimento dos Capitães" que levou ao 25 de Abril de 1974.

Depois, em Portugal, nas convulsões políticas do pós-25 de Abril, esteve envolvido nas difíceis situações que confluíram no 25 de Novembro (1975), no seguimento do qual viu a sua carreira militar ser bloqueada, e esteve preso em Custóias e em Caxias. Alguns anos depois, reconstituída essa carreira, e concedida a mais do que merecida promoção a Coronel (sem ter tido que ser, como então disse, "a título póstumo"…), foi passado à reserva e veio a dedicar-se sobretudo à sua paixão pela História e pela investigação de temas militares, sobretudo de História da Artilharia.

Foi Director de Investigação no Museu Militar de Lisboa, exerceu funções de docência na Academia Militar, na Universidade de Lisboa, etc. (de facto, exerceu-as em toda a espécie de escolas, desde escolas universitárias até humildes escolas primárias e profissionais). Publicou na "Revista de Artilharia" e em outras revistas militares. Organizou exposições e instalações museológicas de grande significado e qualidade (Museu da Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas, Artilharia da Fragata Dom Fernando II e Glória, Artilharia do Forte de Oitavos em Cascais, etc.). Deu-nos a honra de, na Figueira da Foz, ter sido um dos membros do Conselho Consultivo e Científico do nosso Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque (CEMAR), desde Novembro de 2012.

Teve, sobretudo, um interesse muito especial, e competente dedicação, à história do "Príncipe Perfeito", o Príncipe e Rei Dom João II "próprio e verdadeiro coração da República" (nomeadamente à sua invenção do tiro naval rasante), à arquitectura naval, e às fortificações marítimas costeiras (Torre de Belém, etc.).

Na primeira década do século XX (em 2006-2008) — em parceria com a organização de cooperação AD-Acção para o Desenvolvimento, com o supracitado Blog "Luís Graça & Camaradas da Guiné" dedicado aos combatentes portugueses e guineenses da guerra da Guiné-Bissau, e com entidades oficiais desse país independente de Língua Oficial Portuguesa —, Nuno Rubim esteve presente na celebração no Projecto Guiledje, de reencontro entre Portugueses e Guineeenses, nas suas várias vertentes ("triunfo da vida sobre a morte, da paz sobre a guerra, da memória colectiva sobre o esquecimento e o branqueamento da historia"...).
Esteve presente, nomeadamente, no Simpósio Internacional de Guiledje, em Março de 2008, em Bissau (onde foi um dos oradores), e na criação de um Núcleo Museológico de Guiledje (Guileje), para o qual construiu carinhosamente, pelas suas próprias mãos, e levou consigo, para oferecer, um precioso diorama constituído por um modelo à escala 1/72, de grandes dimensões, do aquartelamento português de Guileje tal como ele era na década de 60 do século XX (1966), quando ele próprio, e muitos dos combatentes de ambos os lados dessa guerra, lá haviam estado, e lá haviam combatido.

O Coronel Nuno José Varela Rubim teve um carinho muito especial pela Guiné, e pelas suas gentes, onde havia vivido durante uma década. E teve como esposa uma Ex.ª Senhora africana, de lá originária, que agora deixou viúva, e à qual devemos apresentar as mais sentidas condolências.

Quando, em 2008, voltou à Guiné, e regressou a Guileje e Mejo, foi reconhecido e acarinhado por muita gente que ainda se lembrava dele de há 41 anos atrás (!), e se lembrava da sua sensibilidade e proximidade com as populações locais, que logo então haviam dado origem ao seu cognome de então, de "Capitão Fula".

E, em Bissau, visitou o cemitério, onde estão sepultados centenas de militares do Exército Português, e alguns desconhecidos, e alguns pertencentes a Companhias que por ele haviam sido comandadas.

Muita informação sobre este notável militar e historiador português, e homem de grande carácter, pode ser encontrada em muitas das páginas do tão meritório Blog na Internet, criado por Luís Graça, que já aqui citámos "Luís Graça & Camaradas da Guiné" (em https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com).


Filmes com parte da sessão do Simpósio Internacional de Guilege, em Março de 2008, em Bissau, com Nuno Varela Rubim e Carlos Matos Gomes, ambos Coronéis, Comandos, do Exército Português, em que o primeiro explica o isolamento em que foi deixado cair o quartel português de Guileje e o aparecimento no teatro de operações da Guiné dos mísseis terra-ar Strela que iriam mudar o curso da guerra, e o segundo explica o agravamento da situação militar no ano de 1973 para as tropas portuguesas, nas vésperas do 25 de Abril de 1974:

https://www.youtube.com/watch?v=rd8O523REL4
https://www.youtube.com/watch?v=CceUuqHQCc4


***************************************************
"HISTÓRIA, MEMÓRIA E EXEMPLO DO PASSADO, PARA LIBERTAÇÃO DO FUTURO"

"(…) Ser ignorante do Passado é como ser uma criança para sempre (…)”… [ Marco Túlio Cícero, 106 a.C - 43 a.C]

"(…) Que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar (…)”… [ Aldous Huxley, 1959 ]

https://www.youtube.com/user/CentroEstudosDoMar


***************************************************
Centro de Estudos do Mar - CEMAR
Rua Mestre Augusto Fragata, 8 - Buarcos
3080-900 - FIGUEIRA DA FOZ - PORTUGAL
e-mail: cemar@cemar.pt
tel.: (351) 969070009
(telemóvel)
tel.: (351) 233434450
(chamada para a rede fixa nacional)

____________

Nota do editor

Vd. post anterior de 8 de Fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25149: O Nosso Blogue como fonte de informação e conhecimento (104): O Coronel Nuno Varela Rubim e o CEMAR (Centro de Estudos do Mar)

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24825: Casos: a verdade sobre...(35): Op Revistar, programada no ar condicionado de Bissau, uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaura, e que acabou por abortar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68 / José Brás, ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obús 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref  José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.

Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (entrou para a Tabanca Grande em 8/12/2013; tem 135 referências no nosso blogue; por razões de saúde não tem prestado maior colaboração ao blogue nos últimos tempos; alegramo-nos com
o seu reaparecimento).

Data - 4/11/2023 04:39  
Assunto - Operação Revistar  
Caros Camaradas, Luís e Carlos

Capa do livro
de José Brás, "Lugares de passagem",
Lisboa, Chiado, Editora, 2011


Dia 5 deste mês faz precisamente 55 anos que regressou da Guiné a CART 1659. Desembarcámos só na manhã de 6, passando mais de 12 horas ao largo de Lisboa.

Cheguei com muitas dúvidas, tendo a sorte de desvendar todas,  com uma falha: a "Operação Revistar”.

No Blogue não surgiu ninguém que tivesse conhecimento da mesma. Passei horas no Arquivo Histórico-Militar, esclarecendo muitas dúvidas. Sabia que só era possível levar-se a efeito tal Operação, com objectivos tão ambiciosos, direi inclusive estúpidos. Pretendiam esses senhores de gabinete acabar com a guerra, inclusive matar os líderes ('Nino' Vieira) e apanharem toda a documentação confidencial.

Chegara de licença e em Bissau não se falava de outro assunto. (*)

Um Abraço a todos os Camaradas
Mário Vitorino Gaspar

PS - Podem publicar no Blogue. Continuo bastante doente, mas acrescentar a informação de José Brás à minha, a tudo que assisti, deixou-me melhor. Até parece que tenho menos dores.

2. Operação Revistar (não consta do livro da CECA, 2015, relativo à atividade operacional no CTIG, de 1967 a 1970)(**)



José Brás, (ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, 
Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),

Do livro de José Brás “Lugares de Passagem” (texto que me enviou, a mim, Mário Gaspar, o amigo José Brás; conheço-o desde o início dos anos 60; estudei no Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira): 

(..) Mas nada disto de que venho a falar-vos tem importância e a importância dou-lha eu no
 engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que desde o início vos quero relatar. 

Comecemos pelo princípio! Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que em tempo certo… em certo mau tempo, direi, foi programada no ar condicionado de Bissau uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur (...). Salancaur, imaginem…  

Tal operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitadas pelo chão do acanhado quartel de Medjo e incluía bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, Fiats, T6’s (...), e DO-27 no ar a horas que deveriam ser as do assalto, e bojardas dos tais obuses do Santos a partir de Medjo, tudo antes da planeada entrada da tropa apeada. 

As quatro peças de artilharia foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas em paralelo ao objetivo como dedos de deuses vingativos. A regulação do tiro seria feita, e foi, a partir do voo de um DO-27, Major de operações mais que duvidoso a mandar vir, tantos graus à esquerda, alongar o tiro mais cem metros…

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe. Dizia Fernando Pessoa que Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. Que Deus quisesse tal coisa, quer dizer, o assalto a Salancaur, é duvidoso, ainda que num mundo como este nem em deuses se possa confiar, e esta parte digo eu que tanta desgraça vi naquelas terras. O sonho, neste caso, o sonho seria do mastronço que ocupava a cadeira do poder de Bissau, ou de alguns dos seus bengalinhas querendo mostrar serviço, movendo pioneses coloridos no amplo mapa que ornamentava paredes nas competentes salas do QG (...) e do palácio do Governador. 

Pesadelo se deveria dizer, em vez de sonho, já que sonho é palavra mais adequada a gente que luta e morre por liberdade de sua terra e povos, e por justiça, o que ali, claramente, não era o caso, mas bem o seu contrário. Pesadelo, portanto, também querendo justificar-se a coisa torta e deformada, causadora de sofrimento e dores, talvez mortes a somar a mortes nos dois lados da contenda. 

A operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, avançando nos poucos quilómetros à força de catana para evitar sinais de picada antiga, chegou à antecâmara do destino apenas na terceira madrugada. Sete quilómetros, a bem dizer, se medidos em linha reta, acho que era a leitura dos generais em Bissau. Fomes, sedes, exaustão, desidratação, medos, esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas de necessidade absolutamente comprovada e outras aproveitadas no ressalto, todas, vi eu, mais que justificadas no limite de cada um, nas caras torcidas de esgar, nos olhos febris. Na frente da tropa que se aprestava para o ataque, havia agora um enorme espaço de bolanha nua e rasa que era necessário passar para chegar ao objetivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus em Mejdo. Tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador. Em PRC-10 (...) ouvia eu as ordens do DO ao Santinhos, e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa esta, em especial, para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, mais abafada ainda pelo stress da espera de meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças, encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu; a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

− Primeira bateria?

− Pronto,  meu Alferes!

− Segunda bateria?

− Pronto.  meu Alferes!

− Terceira bateria?

− Pronto. meu Alferes!

− Quarta bateria?

− Quarta bateria?!

− Quarta bateria?!!!

− Foooooda-se!

BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!! Quatro buuuns num só, ecoaram inesperados nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voava em frente, não muito acima da linha de tiro!

− Tirem-me daqui!!!  − esganiçou o Alferes.  − Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali ficara para a possibilidade de ter de servir na operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes. O helicóptero que o veio buscar,  carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude. Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição. 

Os obuses não teriam mais serventia naquela operação acabada por ordem superior, como superior havia sido a do seu início. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi de recuar porque do outro lado daquele largo espaço aberto, eram muitos os morteiros, canhões sem recuo, possíveis foguetões terra-terra dissimulados e outros materiais eficazes na função de matar, prontos para bater a bolanha nua e rasa.

Não havia tropas helitransportadas. E que houvesse! A morte de dezenas estaria assim mais que certa, ainda por cima, para nada, segundo concluíram os chefes. Sensatamente, desta vez.

Não morreu ninguém, portanto, do nosso lado, pelo menos.

Só fomes.

Só sedes.

Só medos.

Só pragas.

Só raivas!

E do Santinhos, Alferes e civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi fosse o que fosse, por palavras escritas, ou ditas… ou (des)ditas.


In "Lugares de Passagem" (com a devida vénia...)

Nota do editor: nesta altura devia estar em Mejo o 6º Pel Art / BCAC (8,8 cm). OU o 7º, que depois foi para Guileje.
 



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)
  

3. Sobre a  “Operação Revistar” ver o texto que publiquei no blogue, Poste P14302 (***).

(...) A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação. (...)

(...) Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT. Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço. (,,,)


4. E agora acrescento eu, para se percebeu o meu reencontro como Zé Brás:

No início dos anos 60 um grupo de 9 estudantes do Externato Sousa Martins fundaram o Jornal “Eco Académico”, entre eles estava eu. A Direcção do Externato pensou ser um Jornal tipo “quadro de honra”. Através do Padre, Professor de Moral, conseguiu-se que fosse composto e impresso na Tipografia do Centro de Apoio Social Infantil (CASI).

Conseguimos assinantes e publicidade, após cada um de nós entrar, penso com 50$00.

Começámos por inserir artigos que foram contestados pelo Externato e o CASI deixou de nos apoiar. Falou-se em desistirmos mas continuámos. Foi complicado visto termos de pagar a uma Tipografia.

Entretanto já tínhamos sido convidados para colaborar na Criação da Secção Cultural do União Desportivo Vilafranquense (UDV).

Quem nos coordena é o escritor Alves Redol em reuniões semanais (?).

Já deixara de estudar mas continuei a frequentar esses encontros. Nasci em Sintra e desde os meus 3 anos que vivia em Alhandra – rival nº 1 do União. Os meus Amigos chamaram-me traidor por colaborar com o clube de Vila Franca. Trabalhava mas continuei a frequentar o Restaurante Maioral, local onde anteriormente nos juntávamos diariamente e que continuava por ser o “local de encontro”. Vítor Manuel Caetano Dias, meu primo, é um dos obreiros.

A Secção Cultural nasce, já com o amigo José Brás que a compõe. Outras figuras surgem. O Cineclube do UDV faz história.

A 3 de Maio de 1965 sou obrigado a iniciar o Serviço Militar no RI 5, nas Caldas da Rainha o Curso de Sargentos Milicianos. José Brás encontra-se na mesma unidade. Finda a Recruta vou para Tavira em Agosto, e o Amigo José Brás também.

O meu Comandante de Pelotão é o Alferes de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete.

Devido a ter sido hospitalizado no Hospital Militar de Évora, perco a Especialidade – Armas Pesadas – e vou de Licença Registada para casa. Em Janeiro mandam-me apresentar na Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas e termino a Especialidade e sou promovido após ter sido forçado contra vontade a prestar Provas para os Comandos – recusei, tive a sorte de me safar – e após Licença sou colocado no RI 14, Viseu. Monitor em várias Recrutas, com sucesso. Imagine-se. 

Quando penso estar prestes em terminar o Serviço Militar vou, contra vontade, Prestar Provas para os Rangeres. Após concluir todas as provas, foram 9 dias, e uma caminhada de 40 quilómetros, regresso a Viseu, onde integro a Equipa de Natação no Campeonato da Região Militar. Sou o único elemento da equipa a apurar-se para os Campeonatos das Regiões Militares Nacionais. Volto a ter esperança, mas sou destacado para o RAC, em Oeiras. Dai sigo para a Escola Prática de Engenharia, Tancos para frequentar o Curso de Minas e Armadilhas. Acontecem aqui umas histórias curiosas, mas noto ter sido deveras enganado. Preferível ter ido para os Comandos ou Rangeres. Passei o Curso com 14,8 (?), recebi um diploma e fui mobilizado para a Guiné.

Chego a Bissau em Janeiro de 1967 – não desembarcamos na cidade – e seguimos de LDM para o desconhecido. Defronte de Cacine dizem irmos para Gadamael Porto. Visto um Pelotão e uma Secção ter de ir para o Destacamento de Ganturé, toca-me esse destino.

Vários Furriéis Milicianos, Amigos e conhecidos que estavam já destacados na zona falam-me que o meu amigo – já Capitão Cadete – se encontrava em Mejo, entre eles o Amigo José Brás. Sempre que era destacado para Operações nesse aquartelamento, tentava que ele não me visse. Em Dezembro de 1967 dou de caras com o Capitão na falada “Operação Revistar”.

Devido a um Rebentamento, no dia 4 de Julho, quando morrem (dizem) 10 nativos e mais de 20 feridos graves,  vou para Gadamael. Entretanto já tenho o doutoramento de Minas e Armadilhas.

Não li o livro de José Brásm  “Lugares de Passagem”, só por mero acaso há poucos dias, tomei conhecimento. É notório que a Operação é a mesma – uma mancha tremenda na História que se recusam em falar – História da Guerra Colonial.


5. Lisboa > 
Hospital Júlio de Matos >  25 de Setembro de 1998 > Colóquio "Amor em Tempo de Guerra"

Volto a encontrar-me com José Brás, Aqui fica uma resumo,

O Amor em Tempo de Guerra

 por Mário Vitorino Gaspar

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um Colóquio com o tema “Amor em Tempo de Guerra – A Guerra Colonial Portuguesa”, no Anfiteatro do Hospital Júlio de Matos. Para além do Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque e da Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, esteve presente um convidado surpresa, José Brás, ex-combatente que publicou o livro “Vindimas do Capim”, Prémio Revelação do Ano de 1986,  que começou por afirmar: 

– Na Guerra Colonial não existiram, quanto sei, orgias, como as vistas nos filmes americanos da Guerra do Vietname. (…). Que soldados portugueses eram estes? Alguns fizeram-se homens com as prostitutas das feiras anuais da província. E vão para a guerra. Guiné, onde cumpri o serviço militar, é um território pequeno… mas a solidão era maior. O soldado, na maioria carente de bens materiais, e muitas vezes de sexo, vai para a guerra e sente-se mais livre em combate que no quartel. 

Continua: 
– A masturbação, essa, sim, existia, até pela descoberta do corpo.

O Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu o serviço militar como Médico em Moçambique, referiu: 
– A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. Quando parti para Moçambique chorei … limpei as lágrimas e lancei o lenço ao mar… Chegado à zona onde se instalou a minha Companhia, as prostitutas quando souberam que estavam nas imediações novos militares instalados, surgiram logo. Existia uma mulher branca, por cada dez europeus. Os perigos das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência. Sucedeu que um número de militares analfabetos, e não só, acabaram por ter experiências sexuais com animais.

Falou-se da homossexualidade existente na Guerra Colonial.

A Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, disse: 

– Era natural que a namorada ou noiva fosse virgem. Casos houve que antes da partida para a guerra deixava de o ser. Decerto que algum pacto foi feito por mulheres de ex-combatentes, visto esses casamentos durarem ainda hoje.

Mário Vitorino Gaspar, fez notar:

– Importante referir, pela minha experiência, que o amor em tempo de guerra, estava aqui e não no sul da Guiné em 1967/1968. Lá existia guerra e não amor. Em Ganturé, destacamento de Gadamael Porto, o Régulo da zona, o beafada Abibo Injasso, Tenente de 2ª Linha, e elo de ligação entre o Exército Português e os “informadores” – que jogavam com um “pau de dois bicos” – e pago com uma viagem anual a Meca pelo Estado Português, proibia que as mulheres, e principalmente as bajudas (raparigas novas e em princípio virgens) de terem relações sexuais com os militares, sendo castigadas se o fizessem. Quando confrontadas com a tropa para terem relações sexuais, as mulheres ou bajudas recusavam com uma frase: - “Mim cá nega!”

Amor era o amor de pais, família, da noiva ou namorada.

Mas até se fazia sexo por correio – por carta ou aerograma – sexo por escrita, com noiva, namorada ou madrinha de guerra, por vezes até havia masturbação! Os militares na zona onde me encontrava só podiam ter relações sexuais, quando evacuados por ferimentos ou doença para Bissau, onde existiam prostitutas

Muitas vezes ficava imensamente triste por receber tanta correspondência e soldados nem um simples aerograma terem. Estes quando me falavam choravam e queixavam-se que as namoradas andavam com outros, por vezes até familiares, principalmente primos.

O Dr. Santinho Martins completou: 
– Necessário fazermos a distinção entre oficiais, sargentos e praças. É que estes últimos não tinham dinheiro. As prostitutas eram mulheres na decadência, já com uma certa idade.

Foi levantada a questão:
– Até que ponto o amor pode ser uma boa terapia para o Ex-Combatente que sofre de Perturbações do Stress Pós Traumático de Guerra?

A Doutora Fani Lopes, ao terminar afirmou: 
– Um ou outro regressa da guerra e posteriormente isola-se de tudo e de todos. O isolamento consigo próprio é uma situação de risco. A vida não é aquilo que queremos, mas aquilo que ela é!

Discutiu-se o “Amor em Tempo de Guerra – o Sexo em Tempo de Guerra”

NOTA: Este texto foi publicado no Jornal APOIAR, fui um dos seus fundadores e 1º Director.
 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

(**) Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015).

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24308: Noites de Mejo (1): O mistério do Extractor perdido (Cor Inf Ref Luís Cadete, ex Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591, 1966/68)

Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > O Fur Mil José Carlos Lopes posando ao lado da temível Browning, 12.7, uma metralhadora pesada.
Era uma arma devastadora, com uma cadência de 500 disparos por minuto e com um alcance, à superfície, de 1500 metros. Pesava cerca de 45 kg.

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados



O Mistério do Extractor Perdido

Luís Cadete

Um patusco qualquer, com veia para o romance de terror, alcunhou-o de ANTECÂMARA DO INFERNO. E sempre que alguém fazia menção ao sítio, o pessoal a ele destinado arrepiava-se; depois de lá estar uns tempos, esquecia-se do facto e até fazia gala em dizer que por ali estanciava. Estar naquele sítio, muito para lá do sol-posto, que nem sequer Judas parecia ter pisado para ali perder as botas, era um posto, um penduricalho que mais ninguém tinha hipótese de alcançar.

De facto, o sítio ficava a meio de uma extensa e infecta picada, que parecia nunca estar reparada por mais que o pessoal, no intervalo das operações, se esforçasse por tal conseguir, a despeito dos 45º à sombra e da chuva diluviana, que convidavam ao ripanço, mas que o Capitão K*****, nado lá para o Alentejo profundo, além-Guadiana, não permitia. Quer se fosse para Leste ou para Oeste, as bolanhas a transpor, qual delas a mais larga, eram seis para um lado e doze para o outro, segundo o jornal-da-caserna. Uma havia, para Oeste, cuja travessia obrigava a manobras complicadas, demoradas e esgotantes, aquando dos reabastecimentos. De facto, para além de implicar a descarga dos abastecimentos dos Unimog 411 e seu transporte, a braço, para a margem oriental, para de novo serem carregados nas viaturas, necessário se fazia passar estas para a citada margem, sem descurar a segurança das operações de transposição da bolanha, o que era um bico-de-obra de todo o tamanho, que requeria engenho e arte. Graças a Deus, era coisa que não faltava ao pessoal daquela Companhia de Caçadores cuja experiência destas e doutras manobras já levava mais de ano e dia. E então, era assim.

À ordem do Comandante da coluna, avançava o Unimog com guincho cujo cabo era puxado para a margem oriental e abraçado a um frondoso e robusto poilão, que ali estava, quiçá, desde o tempo em que Deus ainda andava pelo mundo; logo que confirmado que a manobra estava executada a preceito, o condutor punha o guincho em marcha e a viatura lá avançava com todos os vagares, atasca aqui, desatasca acolá, auto-rebocada e empurrada, quando necessário, pelo pessoal. Seguidamente, fazendo inversão de marcha, fixava-se o Unimog com um cabo sobressalente ao poilão pelo engate da retaguarda e passava-se o cabo do guincho para a margem oposta da bolanha para rebocar as restantes viaturas, descarregadas, que o pessoal se apressava a recarregar para seguir viagem até à dita ANTECÂMARA DO INFERNO.

Claro que na estação do cacimbo, logo que as bolanhas secavam, a operação estava simplificada, salvo algum atascanso inesperado, que o solo da bolanha não era de confiança. Se não fora o «trabalho de estrada», como o Capitão baptizara as operações de reparação dos troços de estrada entre bolanhas e as operações propriamente ditas contra os quadrilheiros do PAIGC, que se intensificavam, a estação do cacimbo seria o descanso do guerreiro. Malfadadamente, estava longe de o ser. Como era norma, os ditos aquartelamentos não possuíam pontos de água no seu interior, um poço, um furo que debitasse água potável em abundância sem esforço. Assim, com chuva diluviana e calor tórrido ou temperaturas amenas e céu azul, havia que realizar, quotidianamente, a «operação da água», que é como quem diz, era necessário ir com os dois atrelados-tanque de água e respectiva escolta até uma nascente situada a distância imprópria da ANTECÂMARA DO INFERNO para garantir o abastecimento do precioso líquido à Companhia. E o mesmo se passava para a lenha necessária ao funcionamento da cozinha onde pontificava o «chef» 1.º cabo cozinheiro M***** e seus ajudantes.

Todavia, a grande dor de cabeça do Capitão era o abastecimento de água, não só à tropa, mas também à população que com ela vivia numa simbiose perfeita. Segundo ele explicava aos seus oficiais, um poçozinho no interior da tabanca-aquartelamento que debitasse água potável com fartura e pouco trabalho era coisa muito mais importante para a contra-subversão do que uma dúzia ou duas de emboscadas e outros tantos assaltos às posições dos quadrilheiros do PAIGC.

Nesta convicção, quiçá pouco canónica, algum tempo depois de ali chegar e verificar a situação do abastecimento de água, como era homem dado a engenhoquices, imaginou canalizar a água da nascente para o interior da posição por intermédio de tubagem que vira ser utilizada para o efeito lá para os lados da sua terra natal. Segundo ele, abria-se uma trincheira entre a nascente e um dado ponto da tabanca para colocar a tubagem ao abrigo de eventuais acções do IN e estava a coisa feita; era só aterrar a trincheira e pronto, a água jorraria onde era necessária. Então, dirigiu-se aos seus superiores hierárquicos, expondo a questão e a sua importância, solicitando que a Engenharia fornecesse à Companhia os elementos da tubagem julgados necessários à obra. Os meses passaram-se, abateram-se dois quadrilheiros numa emboscada montada na nascente, levantaram-se mais umas quantas minas TM-46, que o pessoal era cuidadoso e eficaz nas picagens, e atacaram-se as organizações do inimigo existentes no sector, mas de Bissau nem novas nem mandadas.

O Capitão, que nunca ninguém vira sair do sério, mudou de estratégia: decidiu solicitar que a Engenharia ali abrisse um furo ou poço, explicando, novamente, a importância de tal melhoramento. Na volta do correio, coisa que o surpreendeu pela positiva, recebe a Companhia um avantajado envelope do Batalhão de Engenharia da Guiné dentro do qual um significativo número de folhas de papel explicavam, com bonecos e tudo, como a Companhia devia abrir um poço a pá e picareta! Quanto à deslocação da Engenharia e do equipamento adequado para a obra pretendida, era coisa fora de cogitação por inadequado. De facto, a distância era grande, as viagens de batelão incómodas, as minas um bico-de-obra e os mosquitos e a outra bicharada que inçavam o destino pouco convidativas eram para quem estanciava por Bissau com tudo do bom e do melhor.

O Capitão leu e releu a resposta, enfiou as manápulas cabeludas pela farta cabeleira castanha na qual já brilhavam alguns fios brancos, a despeito da idade, e começou a bufar. Levantou-se daquela coisa que lhe servia de secretária com as negregadas folhas na mão direita e saiu do edifício que lhe servia de gabinete e de secretaria à Companhia onde pontificava o 1.º sargento D*****, homem competente, honesto e ponderado, com vários anos de tarimba a responder por companhias. A bufar como bicho enjaulado, pôs-se a andar para cá e para lá e a falar sozinho. De repente, parou e num ataque de fúria que nunca ninguém lhe vira, com os olhos injectados, rasgou toda aquela papelada e lançou-a num dos tambores de recolha de lixo, que mandara instalar para não haver desculpas quanto à limpeza. Mais calmo, e como quem fala consigo, berrou:
- Como é que estes filhos-da-puta de Bissau se atrevem a sugerir-me que mande abrir um poço a pá e picareta se nem sequer tenho quem o saiba fazer nem material para o entivar e garantir a segurança do pessoal dentro do buraco? Estão a mangar com a tropa ou comem trampa?

A largas passadas entrou no gabinete, sentou-se à secretária e começou a redigir uma nota, daquelas de caixão à cova, que passou ao 1.º sargento D***** para que a mandasse dactilografar.

O 1.º sargento, que assistira à fúria do seu comandante, leu, pausadamente, o texto e, tirando-se dos seus cuidados, foi ao gabinete do Capitão. Este estava recostado na cadeira, calmo, com ar satisfeito com o que escrevera.
- O meu comandante dá-me licença? - disse o 1.º sargento.
- Entre, ó D*****, e já agora diga-me aí à ordenança que me traga uma bazuca fresquinha que me deu uma sede desgraçada!

Vinda a bazuca fresquinha e um copo, o D***** entrou de rascunho em punho e plantou-se em frente da secretária.
- O meu comandante vai-me perdoar o atrevimento, mas a minha consciência e a estima que tenho por Vossa Senhoria não me permitem mandar dactilografar este texto -, começou o 1.º sargento. - Se Vossa Senhoria me permite, passo a explicar.
O Capitão sorriu-se.
- Então explique lá, mas explicadinho, explicadinho para militar perceber -, respondeu o Capitão de boa catadura.
- Como Vossa Senhoria sabe tão bem ou melhor do que eu, a despeito da razão que assiste ao meu comandante, este texto é excessivamente violento, foi escrito com a cabeça quente. Vossa Senhoria, meu comandante, sabe que se isto seguir assim vai dar origem a um processo disciplinar que não vai resolver problema nenhum, mas vai prejudicar a vida de Vossa Senhoria, meu comandante, e, por tabela, a nossa companhia.

O Capitão debruçara-se sobre a secretária a escutar, atentamente, o que o seu 1.º sargento lhe ia dizendo, sem o interromper.

- Vossa Senhoria, meu comandante, sabe melhor do que eu que há aqui expressões ofensivas da hierarquia e que o RDM não admite - continuou o D***** a suar em bica. - Se Vossa Senhoria, meu comandante me permite, eu tomo a liberdade de pedir a Vossa Senhoria que reveja este texto. Vossa Senhoria é oficial do QP, sabe que eu tenho razão e que não lucra nada em insultar, embora eu não duvide da razão que assiste ao meu comandante, quem teve o topete de enviar à nossa companhia aquela papelada toda. Obviamente, se Vossa Senhoria reiterar a ordem, far-se-á como está escrito neste rascunho, mas quero que o meu comandante saiba que ninguém aqui está interessado em que Vossa Senhoria deixe a companhia e ainda por cima com uma porrada às costas.

O Capitão sorriu-se, um sorriso pleno de tristeza e profunda e insanável desilusão.
- Agradeço-lhe a frontalidade. Dê cá essa merda! - disse o Capitão estendendo a mão por sobre a secretária. - Responder-lhes assim ou assado é dar-lhes uma confiança que não merecem. Portanto, vamos fazer de conta que zurrou um burro. Espero contar sempre com essa sua frontalidade.

Como para a hierarquia era indiferente a construção do poço, melhoramento importante para a guarnição e para a população da tabanca, nem lá iria para ver a obra, o Capitão arrumou o assunto no cesto dos papéis.

Entretanto, para espanto do pessoal e desgosto da população que se afeiçoara àquela tropa, a hierarquia congeminou a rotação da Companhia para uma posição lá para o norte da Zona de Acção Sul próxima da fronteira com a La Guinée. Segundo constava, era sítio relativamente sossegado, com três ou quatro cantinas de libaneses que vendiam de tudo e mais alguma coisa, e instalações para a tropa de boa qualidade, cedidas por uma empresa com sede em Bissau e que ali exercera a sua actividade até ao início dos confuson, expressão que a população usava para designar a guerra. A preocupação do Capitão passou a ser o planeamento da rotação, que implicava entrega de todo o tipo de materiais da Companhia à que a iria substituir na famigerada ANTECÂMARA DO INFERNO.

Entre o material de guerra a entregar, cuja manutenção estivera a cargo do furriel de Armas Pesadas V*****, homem do Norte, rigoroso, competente, dedicado ao serviço e afeiçoado ao Capitão, estava uma metralhadora pesada Browning 12,7 mm m/951, que sempre cumprira a sua função sem falha alguma. A Browning fora sempre, tal como o restante armamento pesado de defesa do “aquartelamento”, uma máquina a debitar lume. Apenas os quadrilheiros do PAIGC, que teimavam em meter-se-lhe no sector de tiro, tinham razão de queixa.

Trocadas as Secções de Quartéis para a recepção do material e dois grupos de combate, a entrega e recepção dos materiais decorreu sem incidentes e, consequentemente, as Guias de Entrega foram assinadas por ambas as partes em rotação sem qualquer observação. E assim se completou a transferência das companhias, transferência essa que não agradou à nova Companhia da ANTECÂMARA DO INFERNO que, na realidade, passava de cavalo a burro. Coisas… Ora, o capitão de Artilharia A*****, comandante da Companhia de Artilharia***** recém-transferida mais para o sul, decidiu que se desmontasse completamente a metralhadora para ser devidamente limpa, pois não confiava em quem lha passara, embora a tivesse visto a funcionar como um relógio e não tivesse tido dúvidas em assinar a respectiva Guia de Entrega após assistir à conferência do respectivo completo, prova de que tudo estava em ordem.

E descansou.

Descansou ele e a guarnição da metralhadora, dada ao ripanço, ao que parecia. E pelas três da madrugada do dia seguinte, sem se fazerem anunciar, os quadrilheiros do PAIGC flagelaram à grande e à francesa a nova companhia que, surpreendida com a novidade, tardou em responder com eficácia, permitindo que o inimigo fizesse estragos, nomeadamente na tabanca, o que caiu muito mal à população. Montada a toda a pressa no meio da escuridão, a já mais do que citada Browning não correspondeu ao que dela se esperava; ficou em silêncio, um silêncio inexplicável, porquanto toda a gente a ouvira cantar aquando da entrega.

Mal a aurora despontou lá para Oriente, verificou-se que faltava uma peça naquela máquina de cuspir ferro e fogo: nada mais nada menos que o extractor, segundo informação da ignara guarnição da metralhadora! E no relatório da flagelação, que fez seguir até ao topo da hierarquia, à falta de melhor justificação da ineficácia da resposta, o capitão A***** não hesitou em culpar a Companhia de Caçadores**** que lhe passara uma arma inoperacional, embora não tivesse tido dúvidas em assinar a respectiva Guia de Entrega sem observações que pudessem vir a justificar alguma falha posterior. E sem ter tido a hombridade de colocar a questão ao seu homólogo para que este, eventualmente, a resolvesse. Bem vistas as coisas, a falta de um extractor é questão de lana-caprina, que qualquer capitão sabe como resolver sem estardalhaço.

Ora, no Comando Militar, onde tudo parecia indicar que se percebia tanto de metralhadoras Browning 12,7 mm como de lagares de azeite, ninguém duvidou da narrativa do capitão A*****, manifestamente ressabiado com a rotação que lhe calhara em rifa. E vai daí, remete-se uma nota, confidencial-pessoal, ao capitão K***** para que respondesse à funesta questão do extractor, logo ali transformada em casus belli, à falta de melhor que demonstrasse o empenho do topo da hierarquia na satisfação das necessidades das companhias em sector. Claro que o assunto era um não-assunto, porquanto se havia uma peça em falta, ainda por cima coisa tão corriqueira como um extractor, bastava oficiar o capitão A***** para que o requisitasse ao Serviço de Material em Bissau e elaborasse o competente auto de extravio ou incapacidade do especioso extractor para apreciação superior ou, mais eficaz ainda, ordenar ao dito que enviasse um extractor à companhia que dele carecia. Mas não. A nota confidencial-pessoal pareceu ser a coisa mais eficiente e eficaz para resolver aquele caso bicudo do extractor alegadamente em falta e devolver, num abrir e fechar de olhos, a total operacionalidade à companhia do capitão A***** na defesa do “aquartelamento”.

Enquanto o pau ia e vinha, a companhia do capitão K***** estava entretida a reconstruir um abrigo que herdara derruído e a restaurar o espaldão do morteiro 8 cm que fora invadido pelo baga-baga e se encontrava inoperacional por herança, tudo isto e mais não sei o quê sem espalhafato nem relatórios lamurientos.

Face ao conteúdo da confidencial-pessoal, o capitão K***** rascunhou uma resposta cordata, que se resumia a explicar que, segundo o Manual de Funcionamento da Metralhadora Pesada Browning 12,7 mm m/951, esta arma não possuía extractor amovível que pudesse, consequentemente, extraviar-se ou danificar-se; de resto, a Companhia de Caçadores ***** possuía o duplicado da Guia de Entrega devidamente assinado sem observações, mas mais do que isso, a citada arma sempre funcionara durante a permanência da Companhia na anterior posição e voltara a fazê-lo durante a entrega do material na presença do capitão A*****. E ponto final.

Ao chegar ao Quartel-general do Comando Militar, a resposta à confidêncial-pessoal desencadeou uma verdadeira tempestade de comentários, qual deles o mais inadequado. O conteúdo daquele pedaço de papel, mais ou menos rectangular, era um escândalo! E por tal razão foi levado, com urgência, ao gabinete do Chefe da Repartição de Logística onde se encontrava o capitão G*****, recém-chegado à Guiné no comando da *****.ª Companhia de Comandos, a tratar de assuntos relacionados com a sua companhia aquartelada em Brá, uma pequena cidade militar entre Bissau e o aeroporto de Bissalanca. Para aumentar a confusão e dar opiniões do estilo «Eu acho que…», o chefe da Secção que recebera a resposta do capitão K***** fazia-se acompanhar de três ou quatro majores do CEM.

Posto o tenente-coronel do CEM chefe da repartição ao corrente da resposta e dos antecedentes, houve logo quem adiantasse que o subscritor além de «intratável» era fulano que «tinha a mania de que sabia mais do que o capitão A*****». Para aquela oficialidade altamente qualificada, era inconcebível que o capitão A ***** não soubesse o que dizia e, portanto, a malfadada Browning tinha mesmo extractor amovível que o capitão K***** sonegara na transferência do material! A resposta deste capitão não passava de um disparate, de uma heresia, de uma espécie de desculpa de cabo quarteleiro apanhado em falta, a necessitar de acção adequada ao despautério!
O capitão G*****, aluno brilhante da Academia Militar e não menos brilhante oficial da Arma de Cavalaria e dos Comandos, que fora apanhado no meio daquela tempestade sem nada ter a ver com a questão, era velho conhecido e amigo do capitão K***** e não deixou de se irritar com aquela vozearia que nada adiantava, porquanto não passava de um conjunto de opiniões pessoais não fundamentadas, logo subjectivas, arbitrárias e gratuitas, de achismos, que nada valiam perante o que constava do Manual, ou seja, sem qualquer suporte na chamada Doutrina. E resolveu entrar na dança.

- Vossa Excelência, meu tenente-coronel, vai perdoar-me, mas não pude deixar de ouvir a conversa. E conhecendo eu o capitão K***** como conheço, não tenho a mais pequena dúvida de que se ele diz que a metralhadora pesada Browning 12,7 mm m/951 não tem extractor amovível é porque não tem. De resto, o capitão K***** foi durante três anos instrutor de armas pesadas dos Cursos de Sargentos Milicianos. De qualquer forma, se me é permitido o atrevimento, esta questão não carece de discussão, não é uma questão de opinião, porquanto basta consultar o Manual a que ele se refere. E o que lá está é lei, salvo melhor, mais douta e abalizada opinião.

Um silêncio incómodo inundou o amplo gabinete do Chefe da Repartição e ficou a pairar, por alguns instantes, deixando ouvir o zunir do ar condicionado.

- Bem… - disse, finalmente, o Chefe da Repartição um tanto ou quanto contrafeito - Ó M*****, faça-me o favor de dizer à ordenança para ir à biblioteca e trazer o manual da Browning.

E toda aquela oficialidade aguardou em silêncio expectante a chegada do tira-teimas.

E foi a desilusão. Preto no branco, sem qualquer margem para dúvida, não se falava naquele caderninho de capa parda de qualquer extractor, amovível ou outro que fosse; a maldita metralhadora do descontentamento daquela oficialidade, ainda há pouco pronta a lapidar, se necessário fosse, o atrevido capitão K***** e a sua heresia, não tinha extractor amovível!
E de fininho, sem mesmo pedirem a licença regulamentar ao Chefe da Repartição, foram saindo de orelha murcha e rabo entre as pernas, deixando o capitão G***** tratar do que ali o levara.

Afinal, o execrado e execrável capitão K***** sabia mesmo o que dizia.

____________