(...) Era linda! Por ironia do destino não consigo lembrar-me do seu nome. Sei, e afirmava o povo com certezas absolutas, que era filha de um camarada, furriel miliciano, que anteriormente esteve em Nova Lamego. Era uma criança dócil. Meiga. Recordo que a sua mãe era uma negra, muito negra, com um rosto lindo e um corpo divinal. Conheci-a e verguei-me perante a sua sensibilidade feminina. Da menina, agora feita senhora, nunca mais soube.(...) A menina foi, afinal, mais um dos “filhos do vento” que marcaram os conflitos em África. (*)
O Zé Saúde, alentejano de Aldeia Nova de São Bento, "ranger", jornalista e escritor, foi o primeiro a levantar aqui, entre nós, a dolorosa e delicada questão dos "filhos do vento"... Temos uma centena de referências a esta temãtica ("filhos do vento" e "fidju di tuga").
SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal.
In: Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.
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Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946):
(i) foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii) tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii) viveu em Angola até 1974; (iv) licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v) professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de desporto e cultura; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte; (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 85 referências no nosso blogue.
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1. Estamos a reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor), excertos do extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, sobre os 41 mortos do concelho de Fafe, na guerra do ultramar / guerra colonial. A última parte do capítulo é dedicada a testemunhos e depoimentos recolhidos pelo autor (pp. 67/82).
Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal [Excertos]
Parte IX: Testemumho 4: "Assumi a minha filha!" (Manuel Barros Caastro,ex-fur mil enf, CCAÇ 414, Catió, 1963/64, e Cabo Vderde, 1964/65) (pp. 75/77)
Testemunho 4
No seu relacionamento com a população nativa, quem deixou por lá os chamados “ filhos do vento” ou assumiu os filhos, perfilhando-os e trazendo-os consigo para a Metrópole?
Já perto do final da sessão, levantei esta questão pertinente, dirigindo-me aos presentes: "Quantos de nós deixaram por lá os, hoje, designados 'filhos do vento' e não assumiram?"
Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAC 414, Catió, 1963/64, e Cabo Verde, 1964/65) |
Ato contínuo, o ex-furriel Castro, presente na sala, levanta imediatamente o braço e diz: "Eu assumi".
O Manuel Barros Castro /foto à direita, c. 1963) fez o favor de me relatar esta sua história de vida no 28 de novembro de 2013. É natural de Fafe, e deu-me autorização para publicar este texto, lido por si, previamente.
Esteve na Guiné e pertenceu a uma companhia operacional ndependente (atiradores) , CCAÇ 414, sediada em Catió, onde o pessoal se instalou em tendas de lona. Tinha a especialidade de enfermeiro.
Desembarcou em Bissau no dia 21.3.63 e regressou a Portugal a 4.5.1965.
Formou Companhia em Chaves e, esta, esteve mobilizada para Moçambique, sendo à última hora desviada para a Guiné.
Nas conversas que, entretanto, ele fez o favor de ter comigo (eu conhecia a filha, mas não conhecia o contexto que tinha gerado a situação), ao falarmos do nosso relacionamento com as mulheres africanas, disse, eu, a determinada altura: "Até por que havia algumas facilidades de relacionamento pelo facto de algumas se oferecerem para ser as nossas lavadeiras"
- Não. Ela não era a minha lavadeira. Houve empatia entre os dois. Eu, como enfermeiro, dava apoio à população, distribuía medicamentos e foi nesta circunstância que a conheci, disse, emocionado. Emociono-me, sempre, que falo neste período da minha vida.
A gravidez foi problemática e a jovem, apesar de ser acompanhada por dois médicos militares, teve que ir para Bissau, por falta de condições.
Em Bissau, para onde a companhia (CCAÇ 414) se tinha deslocado temporariamente, soube, por uma tia da jovem, que esta estava hospitalizada e, numa das vezes qua a visitou, perguntou-lhe se ela concordava em entregar-lhe a filha, ao que ela respondeu que só queria que ela fosse branca. Era uma jovem sem instrução que, embora não fosse católica, concordou em batizar a filha.
Após 18 meses no mato, a Companhia, em vez de ficar em Bissau como estava previsto inicialmente, foi parar a Cabo Verde, alterando os planos do Furriel Castro. Disse que já tinha tudo preparado para instalar a filha, conhecida já como “a menina da Companhia” e protegida da esposa do Comandante da Companhia.
A menina nasceu a 16 de maio de 1964 e foi-lhe dado o nome de Lurdes Maria Biai Barros Castro. A Mimi, para a família e amigos.
A Companhia esteve nove meses em Cabo Verde e durante esse tempo a Mimi esteve, primeiro, internada num orfanato em Bissau, por interferência do Bispo de Bissau, depois ao cuidado da madrinha, uma senhora nativa que era funcionária nos CTT de Bissau, para quem o Castro mandava mensalmente uma pensão.
Alguns anos depois (1969) de ter terminado a Comissão, a madrinha da Mimi veio a Portugal trazer a menina, cuja mãe, entretanto, falecera.
A Mimi fez o seu percurso escolar em Fafe, tal como os irmãos (um irmão e uma irmã), concluiu o Curso de Professores do 1.º ciclo e casou com um colega professor.
Infelizmente, faleceu com 45 anos em setembro de 2009 de doença incurável, quando trabalhava numa escola do concelho da Póvoa do Varzim, Maceira da Lixa, deixando uma filha de 11 anos.
Disse-me, ainda, que sempre se revoltou contra a falta de responsabilidade daqueles camaradas de armas que não assumiram os filhos que deixaram por lá, e conheceu alguns casos, alguns de oficiais, tanto na Guiné como em Cabo Verde.
Contou-me um episódio, relativamente recente, em que uma mulher guineense a residir nos Estados Unidos, filha de uma situação ocorrida na sua Companhia e que tinha descoberto a morada do pai, fez questão de vir a Portugal encontrar-se com o pai no aeroporto, só para lhe dizer: "Eu sou sua filha, aquela mulher ali é a minha mãe. Eu não quero nada de si. Vim só para o conhecer. Passe muito bem!"
Na última vez em que nos encontrámos, comentámos a mentalidade daquela época, dos preconceitos sociais em relação à “cor” da pele e à rejeição social, sobretudo nas aldeias do Norte e interior do país, em aceitar casos destes.
Disse-me, ainda, que sempre se revoltou contra a falta de responsabilidade daqueles camaradas de armas que não assumiram os filhos que deixaram por lá, e conheceu alguns casos, alguns de oficiais, tanto na Guiné como em Cabo Verde.
Contou-me um episódio, relativamente recente, em que uma mulher guineense a residir nos Estados Unidos, filha de uma situação ocorrida na sua Companhia e que tinha descoberto a morada do pai, fez questão de vir a Portugal encontrar-se com o pai no aeroporto, só para lhe dizer: "Eu sou sua filha, aquela mulher ali é a minha mãe. Eu não quero nada de si. Vim só para o conhecer. Passe muito bem!"
Na última vez em que nos encontrámos, comentámos a mentalidade daquela época, dos preconceitos sociais em relação à “cor” da pele e à rejeição social, sobretudo nas aldeias do Norte e interior do país, em aceitar casos destes.
Diz que sentiu bem os “olhares” quando a filha chegou. Aliás, quando se referiam à filha, perguntavam-lhe: "Então como vai a sua filha adotiva?"... E o Manuel Castro respondia, perentório: “Eu não a adotei. A menina é mesmo minha filha”.
Disse-me, ainda, que no dia do funeral da filha, a madrinha (de quem já falei) estava em Portugal e esteve presente. Acrescentou que as pessoas, ainda hoje “cochichavam ao ouvido” e perguntaram-lhe se ela não seria a mãe. Teve que esclarecer que a mãe já tinha falecido e que aquela senhora era a madrinha da Mimi.
Contou-me, também, que num dos encontros da Companhia, alguém (que ele identificou) lhe perguntou: "Trouxe a miúda, porquê?”.
Uma história de vida edificante, sem dúvida. É exemplar e merece ser conhecida.
A história do Manuel Castro está contada, por sua autorização, no blogue sobre a Guerra Colonial, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, onde pode ser consultada. Uma história exemplar. (**)
Agradeço-lhe publicamente o seu testemunho. Muito obrigado.
(Revisão / fixação de texto: LG)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 19 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8798: Memórias de Gabú (José Saúde) (3): reflexos de uma guerra que deixou marcas no tempo: “Filhos do vento”
Último poste dasérie > 29 de agosto de 2024> Guiné 61/74 - P25892: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar: uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte VII: Depoimento 4. Furriel Mota dá sangue diretamente ao seu camarada e salva-o.
(**) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12687: Filhos do vento (27): Manuel Barros Castro, natural de Fafe, fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65) teve uma filha, de mãe guineense, e que ele de imediato perfilhou, Maria Biai Barros Castro (1964-2009)... Uma história exemplar (Jaime Bonifácio Marques da Silva)