«Cambança Final» foi, para muitos que fizeram a guerra na Guiné, a passagem desta margem de vida para a outra: essa que é definitiva.
«Cambança Final» foi, para a maioria, o regresso, dois anos depois, ao outro lado de onde tinham partido. Regressavam endurecidos, feitos homens em movimento sofrido e acelerado. (Entrementes, muitos iam regressando, mutilados no corpo ou na alma.)
Este livro é composto de pequenas histórias que abordam não só aspectos dramáticos da guerra, mas também situações pícaras ou bizarras e encontros/desencontros de culturas que foram obrigadas a conviver no mesmo espaço geográfico em tempo de guerra.
O homem aproximava-se, exibindo a lista da última extracção e, também, o jogo que tinha para vender.
Apresentou-se na Companhia, ainda em formação e antes do embarque, um rapaz cuja cara parecia uma caricatura. Olhos esbugalhados e assustados, nariz estreito, anguloso e projectado para a frente, quase ausência de malares, queixo pontiagudo e com a bochecha direita perfurada por uma fístula. Verificou-se mais tarde que era provocada pela infecção de um dente, que foi tratada. Parecia ter sido arrancado de um quadro de Hieronymus Bosch.
Pois este rapaz, depois da observação sagaz e agressiva, que era habitual no meio militar, passou a ser chamado de “Ver-a-lista”.
Assustado, olhando em volta, chegou-se à porta do espaço onde funcionava a secretaria, parou e grunhiu qualquer coisa. O sargento, que não era propriamente uma pessoa suave e de trato fácil, berrou-lhe:
− Que é que queres, ó rapaz?
Ele estendeu a mão, mostrando os papéis de apresentação. O sargento agarrou neles, olhou-o atentamente e fez-lhe algumas perguntas. Pela postura e pelo aspeto, constatou que devia ter um atraso mental.
− Qual é a tua especialidade?
− Atirador… de… de… morteiro.
O sargento bateu na porta ao lado.
− Meu capitão, dá licença?
Entrou. Pouco depois chamou o rapaz, que entrou no gabinete do capitão.
− Então não cumprimentas o nosso capitão?
Ele tropeçou bota contra bota, desequilibrou-se. O sargento amparou-o. O rapaz estendeu a mão para cumprimentar o capitão e o sargento berrou-lhe:
− Cumprimento militar!
− Deixe lá, nosso sargento. Então, ouve lá, rapaz. Disseste ao nosso sargento que és atirador de morteiro. É verdade?
O rapaz olhou o sargento com olhos assustados, olhou o capitão, olhou para as botas e, passado algum tempo, voltou a olhar o capitão e respondeu:
− Então como é que fazes fogo com o morteiro?
Ele levantou ambas as mãos à altura do ombro direito, como quem segura uma arma e respondeu:
− Tá… ta…rá…tá…tá. PUM!!!
− Está bem. Podes ir embora.
Saiu.
− Nosso sargento, vamos aproveitar o rapaz nos trabalhos de limpezas e outros afins.
(Nesses tempos aconteciam situações semelhantes. Havia que aproveitar todos os homens e, em caso de menos cuidado: “Apurado para todo o serviço militar”).
Depois de passar a curiosidade e, até, espanto pela presença daquele militar bizarro (até a marchar era diferente, pois, para além de não conseguir acertar o passo, marchava como se estivesse a pisar uvas), passou a ser protegido, pelo menos por alguns.
Ao receber o pagamento do pré, olhava espantado o sargento que lhe entregava o dinheiro – então, tinha cama, mesa e… (roupa lavada não, porque era ele que a “lavava”) e ainda lhe pagavam?
− Então, Ver-a-lista, disseram-me que fazes fogo de rajada com o morteiro?
Na Guiné, com o decorrer do tempo e com o crescer da agressividade entre os homens, criou um instinto de defesa, principalmente com os que não eram da Companhia.
− Ó Ver-a-lista tu sabes escrever?
− Xei calquer coijita.
− Tu não recebes correio. Não escreves à família?
− Eles xabem munto bem ond’é q’eu estou.
Durante o primeiro ataque ao quartel, alguém lhe berrou:
− Corre pr’ó abrigo, Ver-a-lista!!!
Teve que ser empurrado para dentro.
No final da comissão voltou para a aldeia, em Trás-os-Montes. Também ele estava ainda mais duro, como todos os outros, mas não estava marcado pela guerra. Terá, alguma vez, entendido a realidade dentro da qual viveu durante cerca de dois anos? Estava mais esperto e mais risonho, não só por voltar a casa, mas também devido à taleiga cheia de notas, amarrada à cintura.