1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2010:
Queridos amigos,
Li com indisfarçável prazer estes frescos e instantâneos que qualquer um de nós viu, soube da existência ou até teve inveja de não lhe ter acontecido.
É de bitola larga esta cambança do Alberto Branquinho, no fundo trechos das cambanças que acabámos por viver.
Um abraço do
Mário
Peripécias, choque cultural, bizarrias em tempo de guerra
por Beja Santos
O nosso confrade Alberto Branquinho* teve a feliz iniciativa de arregimentar histórias curtas (todas elas admissíveis, como o leitor irá comprovar) numa atmosfera de guerra em que o traço comum é a cambança. Para o Alberto Branquinho esta cambança tem um cunho filosófico, etnográfico, antropológico e, quiçá, militar em toda a sua latitude e longitude. Por isso define tal cambança como: é passagem para o outro lado, por vezes uma fuga ou uma mudança, pode ser uma partida ou um regresso, quase sempre com a vida em maré baixa. Temos logo na definição, e por arrasto, a dimensão de uma viagem que a todos transforma no ir e voltar, em que a atmosfera é mais deprimente que exaltante, cabendo ao militar saber-lhe «dar a volta». Aliás, de um escrito entre guerrilheiros que o Branquinho reproduz está lá uma frase que ainda hoje é matéria para pensar: “Não te preocupes da vinda ou da tua retirada é-lhe o momento mais decisivo da nossa luta”. No cambar é que está o ganho, ali nos reunimos todos. Esta a lição universal, o resto é treta. Por isso, como consta das advertências, as personagens das histórias do Branquinho podem ter semelhanças com pessoas que tenham vivido acontecimentos idênticos. Por outras palavras, se quiséssemos alardear erudição, temos aqui antonomásia ou figura metonímica, umas coisas significam outras, todas as peripécias em tempo de guerra poderiam ter tido lugar. Vamos agora à substância dos escritos.
Numa emboscada, há sempre a tentação de ver corpos em movimento, todos os sons ou estalidos na floresta levam a redobrar a vigilância. Ora o barulho da água podem ser crocodilos. Quando se descobre que é este o motivo da inquietação, assobia-se para o lado, que ninguém saiba que somos ignorantes quanto às forças da natureza...
O que vem na carta geográfica não é propriamente o terreno em que assentam os nossos pés e na Guiné a disparidade ainda é mais gritante. Aqui também se atravessam rios que serpenteiam o território para onde se vai, rios com centenas de metros de largura, com tarrafo na maré baixa, atravessa-se de uma lado ao outro numa canoa, quem dirige a operação é o remador, mas também se pode recorrer à autoridade suprema como aquele furriel que temendo que a canoa se virasse puxou a culatra atrás e sentenciou à tropa presente e irreverente: “Eu não sei nadar. Quero toda a gente com o cu sentado no fundo. Se esta merda vira, varo-vos a todos”.
Todas as unidades militares têm os seus palradores, e o território da guerra de guerrilha não é excepção. Chegou à sede do batalhão um jornalista e o alferes que o recebeu era todo um portento de lábia e prosápia. O jornalista vinha em missão de reportagem sobre a guerra da Guiné, o alferes respondeu que o que havia ali era uma insurreição armada, vinda e alimentada do exterior. O jornalista pede sugestões para sair para o mato, quer autenticidade na reportagem, e o palrador responde:
“Sabe, essas coisas não dependem de irmos para Norte ou para Sul. Depende mais das fases da lua, da orientação do vento ou da humidade do ar... com sorte ou com azar, pode alcançar a verdade e a vida a pouco mais 4/5 quilómetros. Sempre será melhor que estar para aí a filmar a mata ou meia dúzia de figurantes de armas na mão, tendo o homem da câmara encostado ao arame farpado”. Inevitavelmente, o comandante deu ordens para que o alferes tivesse tento na língua.
Nem sempre o que se escreve numa carta em teatro de guerra é entendido de igual modo. O marido escreve à mulher que saía para batidas, patrulhas, operações ou emboscadas. A mulher, na resposta, desabafa e recrimina: “Ainda dás uns passeios. Eu para aqui estou e é só de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Passear, passear é só à missa nos domingos e...”. Há incompreensões em que é muito difícil clarificar que as idas e vindas no mato não são turismo ao ar livre.
“Cambança” é uma colectânea de encontros e desencontros: frases mal interpretadas, tensões dialécticas entre oficiais; o linguajar remendado do crioulo; as bebedeiras que, de tanta inconsciência, podem saldar-se numa morte estúpida debaixo de fogo; os barulhos da mata que avançam para nós e que podem significar uma chacina de porcos do mato; aquele cabo que, depois de um ror de tempo isolado lá nos confins do mato, pensa que está a fazer boa figura recorrendo ao crioulo para o piropo em Bissau, recebendo da moça alvo das suas atenções o seguinte chiste: “Porque é que você não fala comigo português direito?”; a solidão infindável que pode culminar no álcool e numa vida destroçada... encontros imprevistos, situações imprevistas como ver formigas a devorarem restos de corpos de camaradas, o medo transformado em acto heróico, macacos que revolvem a picada pondo minas a descoberto, contribuindo assim para salvar vidas...
“O regional é universal”, não há máxima mais demonstrada pelo saber de experiência feito. Tudo leva a crer que o nosso confrade Alberto Branquinho forjou o rio Chibari, as povoações de Catafá e Fatilá, o rio Bandiel, e os nomes de oficiais, sargentos e praças são suficientemente inócuos e inconclusivos para que possamos imaginar que aquelas peripécias, aquele choque cultural, aquela bizarria sempre a destilar humor (casos há em que o humor tem o condão de caracterizar melhor a repulsa pelos horrores da guerra) aconteceram ali ao lado de nós, vivemo-las, conhecemo-las, no todo ou em parte.
Ficamos todos com uma enorme dívida de gratidão com o Alberto Branquinho: o picaresco dos desastres dos afazeres da guerra tem aqui uma galeria memorável de fotografias tipo passe que nunca mais esqueceremos
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Notas de CV:
(*) Alberto Branquinho foi Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69.
Vd. último poste da série de 15 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6741: Notas de leitura (130): Seminário 25 de Abril 10 Anos Depois (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Curioso, pela pena brilhante do nosso camarada Beja Santos, começam a aparecer no nosso Blogue análises de obra feita por escritores combatentes do nosso Blogue.
Tivemos há pouco " Vindimas no Capim", que foi "tão só" Prémio de Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura do nosso José Brás, furriel na Guiné há quarenta anos e hoje general da palavra escrita.
Temos hoje um livro do nosso Alberto Branquinho, exímio contador de histórias, ver os escritos com que de quando em vez nos delicia no nosso Blogue, com a sinopse da Cambança, esse livro de leitura obrigatória, Cambança que "pode ser uma partida ou um regresso, quase sempre com a vida em maré baixa."
Caro Mário, peço-te que não pares por aqui!
Temos ainda, não vou dizer nomes para não ferir eventuais susceptibilidades que o esquecimento deste ou daquele inevitavelmente provocaria, mas, tricas à parte, outras obras de " Água Pura", mereciam ser por ti analisadas para possibilitar a leitura por um público mais vasto, sabido que as tuas análises são seguidas por bastantes camaradas e não só.
Aguardo com ansiedade que os "meus escritores combatentes na Guiné" continuem a merecer a tua atenção.
Um abraço do amigo
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
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