1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2010:
Queridos amigos,
A minha preocupação é de procurar proceder ao levantamento da documentação que interesse a todos, aqui e na Guiné.
Não entender o que foi esta unidade, até ao extremo da irracionalidade, é não querer perceber as causas remotas e próximas da ruptura entre a Guiné e Cabo Verde.
Um abraço do
Mário
A questão da unidade no pensamento de Amílcar Cabral
por Beja Santos
O ensaio “Sobre a Unidade no Pensamento de Amílcar Cabral”, de Sérgio Ribeiro (Tricontinental Editora, 1983), aparece hoje completamente datado e provavelmente com reduzido interesse histórico e político, sobretudo se se pensar que são remotas as hipóteses de uma união política entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau. Ninguém desconhece que Amílcar Cabral invocara uma unidade mítica entre a Guiné e Cabo Verde para justificar um PAIGCV que a uma só voz e com uma só direcção representasse a luta libertadora das duas regiões. Digo unidade mítica na medida em que a aproximação da história e da sociedade tiveram um peso limitado, o que já não sucedeu com a economia das duas regiões, desde o povoamento de Cabo Verde que as relações económicas foram importantes, embora convenha prevalecer usando a expressão “Senegâmbia”, que é geograficamente mais ampla que a Guiné. A colonização de Cabo Verde não foi exactamente a que veio apregoada nos manuais do PAIGC: basta pensar na legião de judeus que o poder régio aqui desterrou. O arquipélago foi predominantemente, conheceu uma elevada taxa de alfabetização, dotou-se de uma língua veicular própria, ganhou identidade na música, na gastronomia, nas festividades, na literatura. É facto que a administração da Guiné teve historicamente uma presença elevadíssima de cabo-verdianos que, regra geral, conservavam os seus usos e costumes e não escondiam que se sentiam estatutariamente superiores. Durante décadas, desde a formação do PAI, nos anos 50, até à separação dos dois países, pretendia-se iludir as duas realidades à sombra de uma libertação que era entendida por Amílcar Cabral e os seus próceres cabo-verdianos como uma causa comum e alvo de unidade na acção. Após a ruptura de 1980, alguns intérpretes vieram dizer que afinal o pensamento de Amílcar Cabral no que tocava à unidade dos dois países tinha um alcance muito mais amplo do que alguns pretendiam: unidade africana, unidade combativa, unidade como meio e não como fim, unidade orgânica, etc.
O texto de Sérgio Ribeiro é um apanhado de reflexões que ele apresentou num simpósio dedicado a Amílcar Cabral, 10 anos depois do seu assassinato.
Cabral distinguia “unidade africana” (unidade a favor dos povos africanos, um meio e não um fim, uma construção, que ele encarava como uma cooperação e de acordo com a independência política e a coexistência das razoes de Estado) da “unidade Cabo Verde – Guiné” (prática revolucionária capaz de levar à libertação nacional, justificada pela natureza, história, geografia e até sangue). Escreve Sérgio Ribeiro para Amílcar Cabral que o problema desta unidade não existia, o que existia era o problema da união orgânica dos povos da Guiné e Cabo Verde, como fundamento nos laços de sangue e nos laços históricos que ligam esses povos. Goste-se ou não, foi desta análise enviesada (para não dizer completamente deturpada) que nasceu uma unidade que nunca existiu. O facto de ter havido, em meados do século XVI, um capitão geral nas ilhas de Cabo Verde e na Guiné, uma mesma organização e administração que se prolongou até 1889, de modo algum pode querer significar uma ligação histórica com vínculos poderosos a todos os níveis: os escravos vindos da “Costa da Guiné” não vinham todos da Guiné actual; a população das ilhas de Cabo Verde não provinha esmagadoramente da Guiné actual (aliás, mesmo que essa fosse a proveniência, a cultura sulcou, ao longo de séculos, distinções absolutas de que a religião, a língua e as atitudes civilizacionais passaram a ter um peso dominante.
Sérgio Ribeiro invocou um trabalho elaborado em 1980 para inventariar a proximidade de razões da história próxima, falando de comércio externo da divisão internacional do trabalho e da complementaridade que era desejável para essas duas economias que se julgava que iriam ficar planificadas, propondo mesmo uma união económica para essa complementaridade que pudesse ser forjada pelos panificadores. A história encarregou-se de separar os dois povos também pela abolição de economias planificadas.
Fica o registo, ainda há muito a escrever sobre esta unidade mítica que teve na sua base a contingência de os principais líderes do PAIGCVC terem sido de proveniência cabo-verdiana. Querer fingir que este problema não existiu só serve para esconder a realidade da história dos dois países.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6707: Notas de leitura (128): A Libertação da Guiné, de Basil Davidson (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Beja Santos, era interessante conhecermos de "onde vem e para onde vai" Sergio Ribeiro que acabas de nos mostrar.
Porque o que se passou com o golpe de 14 de Novembro de 1980, sobre Luis Cabral, foi concretamente, entre outras coisas, evitar que dali a uma semana se realizasse um congresso do PAIGC, em que ia ser consagrado e materializado o sonho de AMILCAR:
«Partido único, País único»
Se na cabeça de Amilcar era uma unidade mítica, o que não condizia com o que foi escrevendo e discursando em vida, não era nada mítica essa unidade para Luis Cabral, pois diariamente na rádio e no semanário Nô Pintcha, era só esse o discurso sobre a Unidade Guine-Caboverde.
E todos os ministros e directores Caboverdeanos, que eram em maioria, era ponto assente e visto como natural essa unidade.
Todos sabemos que a saida dos Caboverdeanos (os ultimos retornados do império), não foi nada benéfico para o povo guineense.
Mas, infelizmente, a nossa propria saida já não tinha sido boa para o povo, principalmente para os comandos africanos.
Entretanto, sairam suecos, russos...e já não sabemos o que será bom para a Guiné.
Talvez houvesse mesmo muitos mistérios na cabeça e na vida de Amilcar.
Mas Luis Cabral e os ministros caboverdeanos não tinham mistérios:
Era, efectivamente para materializar a Unidade, em Novembro de 1980.
Meu Caro Beja Santos,
comunicação telefónica amiga deu-me conta desta recensão. Muito obrigado por ela.
Haveria muito a dizer sobre esse tema, verdadeiramente apaixonante... E continuo estudioso de Amilcar.
Por agora, e em intenção do comentador que teria interesse em saber de onde vim e para onde vou, deixo a nota que o meu percurso de vida é transparente. Aliás, publiquei, em 2008, um livro com o título 50 anos de economia e militância que, não sendo biográfico, isto é, não me contando, pode ajudar a saber de onde vim e para onde vou.
Quem quiser saber onde estou, encontra-me no blog anonimosecxxi.blogspot.com
Um abraço, Beja Santos
Enviar um comentário