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segunda-feira, 27 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24172: Notas de leitura (1567): "Guinéus", por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Alexandre Barbosa terá sido administrador colonial ou representante de alguma grande empresa, conheceu bem o Sul, deixou-nos páginas expressivas de literatura colonial, estava atento a um islamismo que cultivava (como continua a cultivar) práticas animistas, exalta a natureza pródiga, deixa-nos um glossário onde nos fala da baguiche (planta comestível) do bentém (estrado feito de troncos ou bambus e que serve de ponto de reunião), da bicuda (peixe abundante nos rios de água salgada), do bindé (arado gentílico usado por Balantas), do bushel (medida que era então vulgar na Guiné, nome decorrente dos contatos com comerciantes ingleses, hoje substituído pelo termo alqueire), do cibe, do falar mantenhas, do fritambá (pequeno antílope), do guarda-de-corpo, da má-fé, da proroca ou macaréu, do terçado e do trabalho cansado. Histórias de êxito mas também tragédias, tudo redigido num português bem cuidado e quase vernacular, destacando o indígena que obteve por conta própria de muito trabalho a cidadania portuguesa. Páginas para reter no último ciclo da literatura colonial guineense.

Um abraço do
Mário



Guinéus, por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial

Mário Beja Santos

Alexandre Barbosa, que viveu décadas na Guiné, publicou em 1962 os contos, narrativas e crónicas que anteriormente dera à estampa no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, bem como também em Ecos da Guiné e no Bolamense. Não é a primeira vez que se fala do trabalho de alguém que prometia para breve um romance intitulado "Feitoria", tanto quanto se sabe jamais publicado. Alexandre Barbosa, na esteira de Fausto Duarte, gostava de um português castigado, com recurso ao castiço, deixou diversas estampas acerca da espiritualidade de diferentes etnias, terá conhecido com profundidade a região Sul, mas não deixará de destacar uma festa rija de Felupes. Gosta de palavras sonoras, tem um entusiasmo muito especial quando fala das danças, como exemplificou: “No terreiro os corpos movimentam-se em dança estranha. Há passos sinistros de corpos arqueados, bamboleantes, desengonçados, como que a desarticularem-se; cabeças que ora descaem ora são bruscamente atiradas para trás; braços pendentes, em oscilação amortecida, e pernas que se requebram ao jeito de pedestrianistas que vão acabar exaustos”. Tudo se avoluma em sonoridades, é o empolgamento dos tantãs e depois o silêncio, a multidão exausta descansa, pelo adiante a farra continuará, celebra-se o estímulo dos êxitos agrícolas, há para ali um comerciante português, o senhor Antunes, alguém que não fez fortuna e que já não está bem de saúde. E quem esteve na farra volta a descansar, no novo dia haverá mais regabofe.

Haverá páginas de tristeza, como aquele acidente em que se destrava uma arma e uma criança inocente é brutalmente atingida, o pai, conhecido caçador, desata a correr a caminho da missão à espera de um milagre, dá-se bem com o Dr. Ferrer da doença do sono, acompanha-o muitas vezes nas artes venatórias; corrida dramática pela estrada fora, a criança ao colo a pingar como torneira gotejante. É um autor que não mascara o fascínio que tem pela natureza, socorre-se de um português antigo, profundamente telúrico, para cantar a chegada de um novo arrozal, houvera medidas de bom-senso para que o povo se organizasse e fizesse uma barragem, os Balantas lançaram-se ao trabalho, a terra fértil germinou:
“Agora cabia ao sol esterilizar o raizame e aberta que estava a quadra pluviosa competia à chuva a saturação e dessalga das leivas em poisio, enquanto arrastava do mato a lixeirada vegetal, o adubo para a futura e grande bolanha. Corridos uns dois anos, na época própria, seria a lavra definitiva: valas abertas, camalhões levantados, pequenos ouriques compostos, estes a servirem de passadiço e traçado a marcar propriedades. Era chegada a vez da transplantação da gramínea, criada em alfobres, tabuleiros verdejantes resguardados pelo arvoredo, obstáculo à ventania e ao sol forte que cresta quando no auge. Então, em toda a interminável planura, havia de desenvolver-se o arrozal, vasto relvado a esconder a água estagnada que as purgas da barragem consentissem”.

Alexandre Barbosa fala-nos dos lutadores Felupes, as imagens falam por si, usam-se técnicas antigas que lembram a luta greco-romana:
“O mancebo Felupe sente pela luta uma paixão irresistível. A natureza dotou esta singular e sedentária raça guineense com apreciáveis dotes físicos, força notável e agilidade espantosa. Os prélios são disputados quase por via de regra, entre os elementos das povoações vizinhas e da mesma raça. O bombolon – telégrafo gentílico – anuncia o programa e, em complemento, as virtudes plásticas e aguerridas dos contendores. De todos os caminhos que riscam o mato surgem homens e mulheres, jovens e velhos, achegando-se ao terreno da competição. Forma-se o círculo mano a vedar a arena e até os felupezitos já sentem na guelra o sangue presente, acomodam-se nas pernas dos adultos. Os lutadores entram no terreno. Há principiantes desejosos de medir forças; há desforras de compromissos e há, principalmente, certos despiques a arrumar entre rivais que aspiram a mesma graça feminina. As claques incitam os lutadores e estes, inebriados pelos incitamentos, rondam o círculo em passadas ritmadas e coleantes até que fixam inexoravelmente o adversário... Está lançado o repto! Então reptador e desafiado lançam-se em volteios, aproximando-se lentamente com modos de serpente magnetizadora e num repente os braços atrelam-se vigorosamente e as cabeças unem-se rígidas como uma só peça, no estudo subtil de golpes de antecipação ou de contra-ataque ao flanco desprotegido. É o início da luta aberta entre rígidas e educadas contexturas musculares impondo violentos golpes ofensivos ou paradas firmes, corpos em rebuliço entre nuvens de poeira”.
Tudo terminará quando um deles bater com as costas no chão.

Diversos autores têm tecido hossanas sobre caçadas e caçadores, não há povoação na Guiné que não disponha de um ou mais caçadores, é desporto, é bravura e é meio de subsistência, este caçador tem jus a uma posição de prestígio, reconhecem-lhe as façanhas no mato, o sangue-frio e a mestria na pontaria. Não esquecer que estes relatos terão sido redigidos na década de 1950, daí falar-se do uso generalizado da Longa, espingarda de carregar pela boca, de acabamento grosseiro, fabricada parcialmente pelos melhores ferreiros da tribo. O caçador tem ao seu dispor uma infinidade de armadilhas, pode servir-se das queimadas, no mínimo interessa-lhe em abater pequenos antílopes, mas anseia por abater gazela ou javali, o sim-sim, o boca-branca e o búfalo, o maior sonho é prostrar o hipopótamo. Abater o leopardo é também uma ambição, até porque a pele é cobiçada.

Descreve a morte e as pompas fúnebres de Sampa, um importante Mancanha da ilha de Bolama, tinha 22 mulheres e 180 vacas; 3 foram abatidas para dar dignidade ao choro. Noutro apontamento, Alexandre Barbosa exalta os pescadores Bijagós, exímios a remar as suas canoas, no caso concreto fala-nos de ilhéus Canhabaques que viajam de ilha em ilha para comerciar.

Inevitavelmente, temos a história de um indígena que fez tropa em Bolama, Abu Camará, destacou-se na instrução, no manejo das armas ligeiras, nos rudimentos cívicos e militares, patenteou qualidades de assimilação. Foi dado como exemplo, frequentou a Escola de Cabos, ganhou amizades, quando o seu destacamento percorre Bolama ele vai na escolta de honra da bandeira, sempre garboso.

Teremos também páginas sobre músicos Mandingas e Fulas, fala-se obrigatoriamente do corá, mas também da viola e nhanhéru (violino) e também dos tambores. Há um pequeno agricultor, Sajá Camará, que irá percorrer a estrada do êxito, um lavrador Beafada que soube triunfar no Forreá, partiu com a mulher e filho, criou morança e lavrou os terrenos. Foi bem-sucedido. “O administrador vindo de Fulacunda e o chefe de posto de S. João nas suas visitas periódicas à Ponta de Sajá encontram o lavrador com a família e os trabalhadores Balantas nos mandiocais ou arrozais, ora limpando mais terreno ou a plantar mais pomares”. Passaram os anos, a Ponta de Sajá é hoje uma propriedade agrícola a sério, o filho de Sajá frequentou a escola primária das missões católicas, a sua formação coexiste sem tensões com o Corão. Sajá Camará, que tinha estatuto de indígena, é hoje cidadão português. As últimas páginas da coletânea de Alexandre Barbosa são dedicadas ao rio Corubal, a obra finda com um glossário de expressões de uso local e falares crioulos. Sem dúvida, textos significativos do último período da literatura colonial guineense.

Dança Felupe
Pescador Bijagó
Dançarino Bijagó
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Notado editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)

domingo, 15 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23984: Blogues da nossa blogosfera (172): O sítio da CCAÇ 13, Os Leões Negros, criado em 2003 pelo Carlos Fortunato, e descontinuado em finais de 2012 por estar alojado no Sapo (Felizmente fomos recuperá-lo através do Arquivo.pt)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 (1969/71) > O fur mil Carlos Fortunato e o soldado Calaboche Tchudá, balanta, natural da região Bissorã, apontador de LGFog, Cruz de Guerra de 4ª Classe, Prémio Governador da Guiné, em 1971...No regresso de uma patrulha, ao atravessar um riacho, perto de Bissorã, Calaboche agarra o furriel Fortunato e grita: "Tira uma fotografia e manda para a família a dizer que o furriel Fortunato foi apanhado por um turra"... Infelizmente, o Calaboche Tchudá seria fuzilado em Bissorã pelo PAIGC logo nos primeiros tempos, após o reconhecimento da independência por Portugal.



Guiné > Região do Oio > Bissorá > CCAÇ 13 (1961/71)
Um dos Grupos de Combate. 


Fotos (e legendas): © Carlos Fortunato (2003). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O
Carlos Fortunato é um dos histórios da Tabanca Grande. Tem mais de 80 referências no nosso blogue, foi fur mil 
arm pes inf, MA, CCAÇ 2591 / CCAÇ 13 ( Bolama, Bissorã, Binar, Encheia, Biambi, 1969/71); profissionalmente, trabalhou na área da informática (sendo especialista em Sistemas de Informação, Sistemas de Gestão da Qualidade e Web Design); foi dos primeiros a ter uma página na Net sobre a guerra colonial na Guiné, e mais especificamente sobre a sua subunidade, anterior mesmo ao nosso blogue,   criada logo no início de 2003... 

Sobre a sua página ele apresentou-a, a todos nós, em 2005, da seguinte forma (*):

(...) O 'site' CCAÇ 13 -Os Leões Negros: Memórias da Guerra na Guiné (1969/71) (orignalmente alojada aqui: http://leoesnegros.com.sapo.pt/index.html ) é um repositório de alguns dos momentos vividos pela CCAÇ 13, companhia constituída por balantas, enquadrados por oficiais, furriéis, cabos e especialistas vindos da metrópole, que os treinaram e depois conduziram em operações, nomeadamente no seu chão.

Em narrativas curtas, contam-se algumas das acções que ocorreram neste período, tentando dar uma imagem do que era a guerra na Guiné, não esquecendo o contributo dos soldados africanos nem o seu abandono.

A CCAÇ 13 era uma companhia de intervenção e, como tal, passou o seu tempo saltitando de um lado para o outro em operações. O 'site' descreve alguns dos eventos, que se passaram quando da sua passagem por Bissau, Bolama, Bissorã, Binar, Biambi, e Encheia, que incluíram uma visita ao pelo mítico Morés, e a deslocação a Bissau para participarem na famosa Operação Mar Verde.

Sempre documentado com fotos e curiosidades, umas vezes com humor, outras com mágoa, é um site que procura dar o seu pequeno contributo, para a constituição da nossa memória colectiva, e para que a verdade seja consolidada. Este site é actualizado anualmente.

Lista dos títulos dos artigos do site:

Bissau

Um mundo diferente
A boneca de osso
A invasão da Guiné Conackry (Operação Mar Verde)
A 13ª Companhia de Comandos

Bolama

A ilha de Bolama
O desembarque do dia "D"
Os felupes e os balantas
Realizando o impossível
Quem é melhor ? Manjaco, manjaco, manjaco
Inimigo à vista

Bissorã

A vila de Bissorã
A defesa de Bissorã
A equipa maravilha
O morto mata 4
Visita ao QG do PAIGC no Morés
Curiosidades sobre algum material capturado ao PAIGC
O ataques da bicharada
Presentes de guerra
Fotografando o inimigo

Binar

O quartel de Binar
Ataque a Binar
Os construtores de quartéis
Cubano capturado nos arredores de Binar
A morte vem de avião
Os periquitos

Encheia

A localidade de Encheia
O falso abrigo

Biambi

O quartel de Biambi
A "conquista" do Queré
A velhinha e o galo
Ataque ao Biambi
Os comandos do PAIGC
A morte dos 3 majores

Carlos Fortunato


2. Comentário do editor de L.G.


O Carlos Fortunato criou e manteve uma das primeiras páginas na Net sobre uma subunidade de intervenção, a africana CCAÇ 13,  a operar no teatro de operações da Guiné,  desde 1969 até ao final da guerra.  

A página abria com uma conhecida música dos Beach Boys, "I get around...",  uma forma bastante feliz de descrever as andanças ou a errância da CCAÇ 13.

As estórias do Carlos eram  bem contadas,  simples, coloquiais… Na altura até  achávamos que dariam para desenvolver um pouco mais, e que faltavam talvez links para fazer melhor a articulação entre as diversas partes dos textos…  Também havia ainda pouco uso das nossas cartas ou mapas,  para o visitante se poder localizar melhor… O "site" foi  aumentado e melhorado,  e atualizado com regularidade...

Interessantes eram as observações sobre os balantas e os felupes, e muito úteis, sobretudo para aqueles não tiveram o privilégio de conviver, como o Carlos,  com estes dois grupos étnicos.   Numa mensagem que ele mandou em tempos ao nosso editor,  escrevia o seguinte a respeito dos felupes e dos balantas:

"Os felupes devem ser os mais extraordinários guerreiros da Guiné, o alferes que me deu o curso de minas e armadilhas esteve com eles no mato, e contava que eram uma coisa incrível. O felupe que ia sempre à frente chamava-se Cowboy, e por vezes parava e dizia 'está ali uma mina, ali outra e ali outra'. E estavam mesmo!...

"Fizemos uma pequena competição de luta corpo a corpo entre balantas e felupes, e os balantas não ganharam uma única luta ... ".

Infelizmente a página do Carlos Fortunato foi descontinuada,  em finais de 2012,  por estar alojada no Sapo. Perdeu-se um manancial preciosíssimo sobre a Guiné do nosso tempo, e em especial sobre uma das valorosas companhias da então "nova força africana" do gen Spínola...

Mas, por sorte, fomos reencontrá-la, recuperada (em 1 de julho de 2011) pelo Arquivo.pt (**)... Eis o endereço;


Não sabemos ainda qual a intenção do Carlos Fortunato,  de repor ou não a página. Foram muitas horas e dias de trabalho perdido... E ele hoje tem outras missões, mais prementes, sendo presidente da ONGD Ajuda Amiga

Vamos "negociar" com ele a autorização para reproduzir, aqui,  alguns dos seus melhores textos e fotos, até por que há muitos dos nossos leitores, mais novos, que nunca chegaram a conhecer o sítio. Para já fica aqui a feliz notícia da recuperação da(s) sua(s) página(s), que ele com tanto carinho, competência e paixão desenhou, criou e manteve durante cerca de 10 anos.

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Notas do editor:

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Temos três versões documentais, René Pélissier consultou os arquivos franceses, o Capitão Velez Caroço elaborou relatórios sobre as suas idas e vindas acompanhando uma Comissão Franco-Portuguesa à cata de provas de que o avião francês aterrara em solo da colónia portuguesa, e temos as cartas do chefe do BNU de Bissau para a administração em Lisboa. O historiador francês sobrecarrega de pormenores as peripécias das missões vindas do Senegal à Guiné portuguesa e a brutalidade dos interrogatórios aos Felupes para apurar se efetivamente o avião desaparecido caíra em chão Felupe, esta etnia que dava sobejas provas de revolta, vendo tanta intimidação, desataram a fugir para os pântanos e para a colónia francesa; o Capitão Velez Caroço desmonta a argumentação de que o avião francês pudesse ter aterrado em solo da colónia portuguesa, e chegamos à tragicomédia de se percorrer os Bijagós para saber se os alemães tinham raptado os franceses...; o gerente do BNU revela sobretudo a preocupação de que era indispensável pôr cobro aos desmandos dos Felupes, declaradamente insubmissos, a verdade é que findo este período de revoltas dever-se-á ter chegado a um acordo tácito de que eles jamais provocariam as autoridades coloniais, ficando num discreto regime de uma quase auto-gestão, como se comprovou com o seu procedimento durante o período da luta armada.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3)

Mário Beja Santos

Aquele ano de 1933 em que ocorreu o desaparecimento do avião do piloto Gaté foi praticamente dominado pela chamada revolta dos Felupes. Na investigação a que procedi no então Arquivo Histórico do BNU, encontrei um telegrama datado de 10 de novembro desse ano, provém da administração em Lisboa, com o seguinte teor: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe-se se ordem restabelecida quem como foi sufocada a alteração. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando. Este telegrama é absolutamente confidencial para toda e qualquer pessoa seja qual for a sua categoria”.
No dia 13, o gerente de Bissau envia carta detalhada ao administrador do BNU:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar, com destino a Ziguinchor, um avião francês tripulado pelo aviador Gatti (na verdade, o seu nome era Gaté) acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira Norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo.
O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa acompanhada de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem por sua vez, novas pesquisas.

O administrador da circunscrição não consentiu nessas diligências sem autorização superior, essa equipa francesa foi a Bolama conferenciar com o governador, regressando ao posto de Susana acompanhada pelo ajudante de campo deste.
Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião e dois ou três dias depois seguia também para Susana o Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, capitão Velez Caroço. Afirma-se que este oficial, depois de iniciadas novas pesquisas, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes que desde sempre se têm mantido mais ou menos rebeldes, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.

No dia seguinte ao da ida daqueles oficiais a Bolama, regressaram a Bissau com um pequeno contingente, e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram dois soldados, ficando vários feridos. O facto foi comunicado ao governador, seguindo imediatamente para o local, com reforços, o Capitão Sinel de Cordes, Comandante da Polícia. Chegado este a Susana, e posto ocorrente do que se tinha passado, entendeu, e muitíssimo bem, que era preciso castigar energicamente os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a cinco soldados”
.

O relatório do chefe da delegação em Bissau do BNU é bastante minucioso, convocam-se Fulas para coadjuvarem as tropas regulares, dirigem-se a Jufunco, a povoação revoltada, aguardam-se ainda centenas de Fulas vindos de Bambadinca. Os rumores eram os mais desencontrados: que aos aviadores desaparecidos tinham sido cortadas as cabeças, por exemplo. Iniciada a batida, os revoltosos refugiavam-se nos pântanos, o governador seguiu para o campo de operações, voltou dias depois a Bissau, o chefe da delegação falou com ele, ficou informado que o gentio se tinha posto em fuga e que o governador tinha dado por fim a operação, deixando apenas na região uma pequena força para policiamento.

O chefe da delegação mostra-se contrariado coma decisão do governador, a região dos Felupes era uma verdadeira dor de cabeça. “A ação das nossas tropas está longe, muito longe mesmo, segundo as informações que temos, de se poder considerar decisiva. Ainda nos últimos dias foi assaltada pelos rebeldes uma camioneta que conduzia auxiliares, escapando, por milagre, o condutor do carro; aos outros foi a todos cortada a cabeça e membros e os troncos decapitados deixados na estrada alinhados, numa demonstração de ameaça e requintada selvajaria. Não desejamos comentar a medida governamental, porque isso não está na nossa índole, nem temos fundamento bastante para considerar desastrosa a ordem de retirada. A saída das nossas tropas da região revoltada sem terem infligido um exemplar castigo aos revoltosos é desprestigiante e será mal interpretada pelos vizinhos franceses, que estabeleceram postos militares ao longo da nossa fronteira.
Sabe-se que em Ziguinchor um francês que acompanhou as duas senhoras a que atrás fizemos menção ao referir-se a nossa ação nas pesquisas do avião desaparecido nos alcunhou de cobardes. Talvez tenha sido por isso que o Capitão Sinel de Cordes, calmo e sereno, mas decidido, tivesse a intenção de acabar de vez com a lenda dos Felupes, lenda que tem custado a vida a soldados e auxiliares indígenas”
.

Mais tarde, o gerente de Bissau volta a escrever uma carta para Lisboa, informando que se encontra na região dos Felupes apenas um oficial, o Tenente Dores Santos à frente de um destacamento, não se tinham registado até então novos atos de insubordinação ativa. “Consta que os chefes revoltosos – Alfredo e Coelho – das tabancas de Jufunco e Egine, respetivamente, se refugiaram com parte da sua gente no território francês, sendo ambos presos pelas autoridades respetivas. Iniciaram-se diligências oficiosas junto daquelas autoridades para que, às nossas, esses chefes fossem entregues”.

E mais não sabemos, jamais se voltará a encontrar documentação sobre o desaparecimento do avião, fica-se com um quadro claro de que no início da década de 1930 a região Felupe dava provas evidentes de insubmissão, tudo aponta para declarações forjadas de que o avião francês viera aterrar em território da Guiné portuguesa, no decurso do envio de tropas terá havido interrogatórios cruéis e altamente intimidantes, no somatório de todas estas rebeliões os Felupes entenderam que não possuíam capacidade para ripostar contra a autoridade colonial, terá sido essa a razão do chamado ensimesmamento dos Felupes, para lhes ser reconhecida a sua autonomia nem com o PAIGC pactuaram, mantiveram-se à margem, salvo exceções no período da luta armada. Assim se põe termo a este episódio rocambolesco de um avião desaparecido em território insubmisso.

Imagem do BNU em Bolama, ao tempo do desaparecimento do avião do piloto Gaté
Avião Potez-Salmson
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)
e
23 DE NOVEMBRO DE 2022 Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23807: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (30): Ilhotas no rio Cacheu, entre a tabanca de Elia e Susana, vistas pelo drone da doutoranda em agronomia Sofia Conde, da Universidade de Lisboa

 



Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Rio Cacheu > Fotos tiradas com um drone, pela doutoranda em agronomia Sofia Conde, engenheira agrónoma, Universidade de Lisboa, Forest Research Centre (CEF)

Fotos (e legendas): © Sofia Conde / Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. M
ensagem do Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem cerca de 130 referências no blogue: autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bssau"


Data - 20/11/2022, 16:33

Assunto - Fotos do Cacheu

Luís, bom dia desde Bissau.

Junto umas fotos, tiradas pela Sofia Conde no seu drone... nos seus trabalhos de doutoramento em  agronomia, e que lhe solicitei para partilhar.

São de lugares muito bonitos que existem no Norte da Guiné, entre a tabanca de Elia e Susana (vd. carta de Susana, 1955, escala 1/50 mil) (**)

Pequenas ilhas cercadas por água salgada do rio Cacheu, onde existem casas. Na tabanca de Elia, há poucos anos foram contruídas habitações para ecoturismo. Algumas ainda existem, como documentam as fotos.

Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau, Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
URL; www.imparbissau.com
Email: impar_bissau@hotmail.com



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Susana (1955) > Escala: 1/50 mil > Posição relativa de Susana, Arame, Elia e Jobel (**).

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)

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Notas do editor:

(**) 15 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20560: Antropologia (35): Djobel, uma tabanca vítima das alterações climáticas, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos)

Djobel, uma tabanca vítima das alterações climáticas

Por Lúcia Bayan

[Omitem-se as fotos,  numeradas de 1 a 6]


Djobel (...) é uma pequena tabanca baiote situada no noroeste da Guiné-Bissau, no sector de São Domingos, região de Cacheu. Os Baiote são, como os Felupe, um subgrupo Joola. Em tempos idos, os Baiote desceram do Senegal e conquistaram aos Felupe o seu chão actual, entre Suzana e São Domingos. A última batalha foi travada entre Arame, tabanca baiote, e Suzana, a principal tabanca felupe. Arame venceu e ficou com as bolanhas de Suzana, situadas entre as duas tabancas. Uma pequena ponte à entrada de Suzana marca a fronteira entre os dois grupos: Felupes a oeste e Baiotes a leste.

Djobel, a quem os Felupe chamam Nhabane, está situada a sul de Arame e de Elia, muito próxima desta, e é uma tabanca muito diferente das tabancas baiote e felupe. Instalada no meio dos mangais e da água (Foto 1), na maré alta, as casas parecem palafitas e só na maré baixa se percebe que estão situadas em pequenos montículos rodeados de lama.

O acesso a Djobel só é possível de barco e na maré alta. Para quem chega a tabanca é lindíssima, mas a sua beleza esconde um tipo de vida muito duro. Não há água potável, apenas a captada em depósitos na época da chuva (Foto 2) e a que as mulheres vão buscar de canoa a Elia (Foto 3). Sair ou entrar em casa, ir ao mercado, trabalhar, à escola, buscar água, visitar o vizinho ou obter ajuda, tudo depende das marés.

Em condições tão adversas a vida em Djobel só é possível devido à enorme mestria dos Joola na construção de diques. E é também em Djobel que melhor se pode observar esta técnica, pois os habitantes desta tabanca, além de construírem diques para os arrozais, as bolanhas, também utilizam diques para defender os pequenos montículos ou ilhas da subida da água (Foto 4), impedindo assim que chegue às casas, e para a comunicação entre as ilhas, como pode ser visto na imagem retirada do Google (Foto 1).

A construção destes diques envolve toda a população da tabanca. Todos os adultos contribuem para a compra dos materiais necessários, como kirintis, placas de entrelaçado de tiras de bambu ou palmeira utilizado para fazer vedações, e para o seu transporte. Os homens cortam os paus e tecem as cordas e, depois de reunidos todos os materiais necessários, é marcada a data da construção. Nesse dia, todos participam e a tabanca fica vazia (Fotos 5 e 6).

No entanto, a subida acentuada do nível do mar, provocada pelas alterações climáticas, traz consigo a morte de Djobel. A água já chega às casas e, apesar das suas técnicas e esforços, os habitantes de Djobel terão de abandonar a tabanca.

A Guiné-Bissau faz parte dos 10 países do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas, especialmente à subida do nível do mar. Em Varela o mar sobe cerca de 7 metros por ano. A mudança de populações será uma necessidade cada vez mais recorrente.

As negociações para a mudança da população de Djobel iniciou-se há algum tempo. Este é um processo muito complexo que, nos últimos meses, tem originado uma série de conflitos. A escolha do novo espaço foi feita recorrendo à história: Djobel foi fundada por um filho de Arame e, por isso, esta tabanca aceitou receber os habitantes da primeira. Mas não os seus santuários!

O local escolhido, e certificado pelas entidades oficiais, situado entre Arame e Elia, começou a ser desmatado para a construção das casas. Contudo, as queimadas para preparação do terreno abrangeram uma horta de caju de uma família de Elia que, além da perda da horta, alega o terreno ser da sua família. Claro está, que os direitos à terra desta horta de caju originaram um conflito entre Arame e Elia. Cada tabanca defende uma localização diferente da fronteira que as divide. O conflito agravou-se e despoletou alianças e rivalidades tradicionais entre tabancas, alastrando-se às tabancas vizinhas Kassu e Colage. Em 24/05/2019, houve tiros e morreram duas pessoas.

O ministro do interior Edmundo Mendes deslocou-se a Elia, foram estabelecidos percursos seguros para os habitantes de cada tabanca e a situação acalmou. No final do ano passado, em 10/12/2019, a Associação Onenoral dos Filhos e Amigos da Secção de Suzana (AOFASS), uma instituição de jovens, muito activa e muito influente, com sede em Bissau, e outras instituições realizaram, em Suzana, um encontro com os líderes tradicionais da secção de Suzana, «com o intuito de sensibilizá-los a serem patrocinadores da promoção do diálogo entre as tabancas de ELIA, ARAME, DJOBEL, KASSU E COLAGE» 

(https://www.facebook.com/aofass.suzana/).

 As fotos desta reunião, publicadas pela AOFASS, mostram que compareceram muitos líderes tradicionais: todos os que têm gorro vermelho, sendo os principais os também vestidos de vermelho. Um sinal de esperança para os habitantes de Djobel?

Lúcia Bayan, 11/01/2020

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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
A surpresa de dois extensos relatórios assinados pelo Capitão Jorge Frederico Velez Caroço e destinados ao governador da Guiné, Major Carvalho Viegas, encontrados nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, ressuscita alguns dados aqui já versados, caso do importante relatório do chefe da delegação do BNU da Guiné sobre os acontecimentos relacionados com as rebeliões Felupes, que dominaram o início da década de 1930. Valeu a pena regressar à leitura da obra de René Pélissier, "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Volume II, Editorial Estampa, 1997", ele trata com bastante detalhe o chamado L'Affaire Gaté, consultou as fontes documentais francesas que mostram claramente que este desastre aéreo ocorreu em território senegalês, não teve qualquer ligação com a Guiné Portuguesa. Mas acendeu-se o rastilho a uma tragicomédia onde até se fantasiou que havia uma base naval alemã nos Bijagós... Que o leitor se prepare para novos episódios.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e procuram clarificar um extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Volume II, Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Comecemos por René Pélissier, que teve a faculdade de consultar arquivos em França sobre o assunto, inicia o seu texto por nos falar nas rebeliões dos Felupes (1933, 1934, 1935), na mitologia de que eram antropófagos, o que nunca se demonstrou, e lança-se diretamente em L’Affaire Gaté, dando-nos a cronologia dos acontecimentos. Tudo começou no dia 30 de junho de 1933, enquanto executavam um exercício de voo em altitude, dois aviadores da Base Aérea de Dacar, o Ajudante-chefe Gaté e o Sargento Mecânico Brée, apanhados num tornado, desaparecem no seu Potez-Salmson; no mês seguinte, as autoridades da base procederam a buscas, não encontraram o aparelho nem os corpos, arquivaram o caso, não foram conhecidas buscas desenvolvidas pelas autoridades portuguesas; no verão, a Senhora Gaté, insatisfeita com o inquérito oficial, a expensas suas, ciente que o marido está vivo, vem ao Senegal, entra em contato com o Senhor Figuié, este encarrega um agente seu, Moussa N’Doye, de procurar saber mais em meio africano; na Gâmbia como no Casamansa, obtém informações de um avião avistado dirigindo-se para sul; a Senhora Gaté, acompanhada pelo casal Figuié e Moussa N’Doye entram em chão felupe guineense; esta missão contata em Susana Apaim-Ba, conhecido por Alfredo, feiticeiro de Jufunco, este declara não ter visto qualquer avião; o administrador de Canchungo, comandante Joaquim Esteves, junta-se aos franceses, convoca uma reunião com Felupes; os chefes declaram nada saber, mas Mamadu Sissé diz que viu um avião dirigindo-se para o sul que deve ter aterrado em Jufunco; a Senhora Gaté parte para Bissau e depois para Bolama, onde o Governador Carvalho Viegas mostra o processo das investigações e facilita a viagem à Senhora Gaté, que regressa aos Felupes; inopinadamente, há Felupes que afirmam que o avião está em Jufunco, entregam a Esteves um pedaço de lona do avião, trazido por um africano, dizendo que o encontrou em Jufunco, se tudo estava mirabolante mais mirabolante ficou quando o comandante Esteves declara que o dito Alfredo quis mandá-lo assassinar, ele vai ser interrogado pelos franceses; aparece agora Capitão Velez Caroço, manda prender Alfredo, em Susana o comandante Esteves interroga os suspeitos à palmatória, depois de torturado Alfredo confessa que o avião aterrou em Jufunco, dá informações contraditórias sobre os dois aviadores e diz que recebeu instruções do Deus da Guerra para destruir o avião, continua o interrogatório, as versões dos prisioneiros divergem cada vez mais, depois os prisioneiros invadem-se, chegam soldados e metralhadoras de Susana, Velez Caroço recomeça os interrogatórios, é-lhe dito que o avião foi desenterrado – temos aqui já todos os ingredientes para uma telenovela de aventura e ação, com pozinhos de crime e mistério; Velez Caroço e as tropas partem de Susana para Jufunco, a zona é militarizada, chegam dois oficiais aviadores franceses ao S. Domingos, há notícia de combates em frente de Jufunco, o capitão de armas de Bolama, Joaquim Sinel de Cordes, parte para ir buscar reforços e acabar com a resistência de Jufunco, vive-se já um clima de guerra, Alfredo invadiu-se e passou pela Casamansa, os Felupes refugiaram-se na floresta; já em novembro, Moussa N’Doye regressa a Dacar e anuncia que os portugueses queimaram Jufunco – esta é a versão dos factos nas fontes francesas, de uma hipótese nunca fundamentada de que um avião francês, por obra do acaso, ter aterrado em Jufunco, estalou a rebelião dos Felupes; toda esta sequência trágica irá prolongar-se por 1934 e 1935, como René Pélissier pormenoriza: o Exército está em chão Felupe, ali passa seis meses, desconhece-se o número real das baixas dos Felupes, tudo se agudiza em maio de 1934, nova ofensiva contra os Felupes; em Paris, a Senhora Gaté não desarma, escreve para os órgãos de soberania, diz que o marido está preso nos Bijagós pelos alemães, e diz mesmo existir no arquipélago uma base naval alemã, a tragicomédia refina-se, as operações contra os Felupes prosseguem.

É altura de fazer ouvir o responsável pelo BNU da Guiné, ele recebera de Lisboa o seguinte telegrama: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe se ordem restabelecida quem e como foi sufocada a operação. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando”.

A 13, em carta talhada o gerente de Bissau escreve para Lisboa:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar com destino a Ziguinchor um avião francês tripulado por aviador e acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo. O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana, a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa, acompanhadas de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem, por sua vez, novas pesquisas. O governador autorizou e este grupo regressou ao posto de Susana acompanhado pelo ajudante de campo do governador. Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião. O Capitão Velez Caroço, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes, que desde sempre se tem mantido mais ou menos rebelde, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.
Regressaram a Bissau e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram 2 soldados, ficando vários feridos. Imediatamente seguiu para o local o Capitão Sinel de Cordes, que castigou os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a 5 soldados. Entretanto, era mandado chamar Bora Sanhá, alferes de segunda linha, para se lhe ordenar que organizasse o mais rápido possível um grupo de irregulares Fulas, com o fim de coadjuvarem as tropas regulares. Poucas horas depois, Bora Sanhá escolhia 100 homens da sua confiança, alguns deles seus antigos companheiros de armas, embarcaram para Jufunco. Corriam os mais desencontrados boatos sobre o que se estava a passar com os Felupes. O Capitão Sinel de Cordes assumiu o comando de regulares e irregulares, ao todo cerca de 400 armas e 5 metralhadoras, começando a bater os revoltosos com a energia que o momento impunha. Os revoltosos refugiram-se entre pântanos. O governador seguiu para o campo de operações. Voltando a Bissau, o governador trocou impressões comigo sobre o que se passava com os Felupes. Que tinham sofrido importantes baixas, resolvera dar por finda as operações, visto que os acontecimentos não tinham a gravidade que lhes atribuía. As nossas tropas, à custa de sacrifícios grandes, tem avançado e arrasado todas as populações por onde têm passado, incendiando as palhotas e destruindo as culturas”
.

A carta é longa, tem o condão de introduzir importantes detalhes sobre tudo o que se passou e que, mais adiante encontrará os relatórios posteriores de Velez Caroço, depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, aspetos complementares de grande interesse, se bem que, há que o reconhecer, toda esta história não tem pés nem cabeça se atendermos aos relatórios franceses que davam como seguro que o desastre aéreo ocorrera noutras paragens. E vemos misturados a compreensível ansiedade da Senhora Gaté com o encadeamento de rebeliões Felupes que dão a toda esta trama o ar de uma telenovela de tempos coloniais, onde se cruzam hipóteses absurdas de uma base naval alemã nos Bijagós, interrogatórios brutais a Felupes e a ganância de informadores que a troco de compensações de alguns milhares de francos inventavam a queda de um avião que uns viam ter passado, mas que concretamente ninguém sabia dizer para onde. Que o leitor se prepare, há ainda mais condimentos para adubar esta história verdadeiramente estereofónica.

(continua)
Avião Potez-Salmson
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
René Pélissier
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23773: Historiografia da presença portuguesa em África (342): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23327: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (27): Tabanca felupe de Iale: o bombolom de cerimónias



 

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca felupe de Iale > 22 de maio de 2022  > "Bombolom de cerimónias"

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação das fotos que o Patrício Ribeiro, nosso correspondente em Bissau, nos mandou, em 23 de maio passado, relativas ao chão felupe: praia de Varela e tabanca de Iale.(*)

Desta feita temos um "bombolom de cerimónias". Diz o fotógrafo, que tem casa em Varela, que o bombolom  serve para transmitir mensagens para dentro e para fora da tabanca. 

Nunca tínhamos visto um com estas dimensões. Não sabemos nada sobre a sua técnica de construção nem de que madeira é feita...  Fomos à procura de informação na Net. 

Aqui vai um excerto da página Meloteca > Bombolom(com a devida vénia):


(...) Bombolom é um idiofone de percussão direta tradicional da Guiné-Bissau (África Ocidental). 

É um tambor de fenda construído a partir de um tronco de árvore (bissilon) escavado longitudinalmente. Existem bombolons com cerca de 1,5 metros e outros tamanhos. 

O instrumento é percutido com baquetas de madeira e pode ser tocado por um ou dois executantes em simultâneo. São sobretudo homens que o tocam, e dos mais velhos, de pé ou sentados no chão. O som varia conforme o lado. 

Este instrumento desempenha funções de comunicação, sendo utilizado para transmitir mensagens, designadamente sobre falecimentos.

É tradicionalmente usado em todas as manifestações sócio-culturais, cerimónias de iniciação (fanados), cerimónias de toca-choro (toca-tchur). Nesta cerimónia fúnebre tradicional e festiva, em memória de uma pessoa de certa idade que faleceu há algum tempo, são sacrificados animais (porco, cabra, vaca). O bombolom tem uma componente mística, de comunicação com as divindades.

O Atlas dos Instrumentos Tradicionais da Guiné-Bissau refere: “Na etnia mancanha, toca-se num conjunto de três bombolons e aquele que toca o mais pequeno tem de conhecer os parentes do defunto, transmitindo assim a história da família”. Quem toca o mais pequeno tem de conhecer os parentes do defunto, transmitindo a história da família. “Não se pode deslocar o instrumento de um lado para outro sem fazer uma pequena cerimónia que consiste em levar um litro de aguardente (cana). Durante o transporte e como determina a regra, o bombolon vai sendo tocado”. (AITGB). A aguardente é oferecida ao espírito para ter acesso ao instrumento. A palavra vem do crioulo bombolõ, com base em onomatopeia.

Colaboração: Wilson da Silva (...)

Guiné 61/74 - P23326: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (26): Tabanca felupe de Iale, e praia de Varela, a "minha praia"


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Iale, Varela > 22 de maio de 2022 > Casa felupe... Os jericãs, baldes e latas são hoje um utensílio doméstico de grande importãncia: há que ir buscar a água longe...



Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Iale, Varela > 22 de maio de 2022 > Transporte de água que agora é cada vez mais escassa... Trabalho de meninas e mulheres..




Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Iale, Varela > 22 de maio de 2022 > Palha para a cobertura das casas (moranças)




Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Iale, Varela > 22 de maio de 2022 > Espremer o caju para sumo e que depois fica vinho... Trabalho de crianças...




Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela, a minha praia > 22 de maio de 2022 > Crescentes sinais de erosão...


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela, a minha praia > 22 de maio de 2022 >

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Ribeiro Patrício, nosso correspondente em Bissau, mandou-nos, em 23 de maio passado, uma série de fotos da tabanca de Iale, Varela, bem como da praia de Varela onde ele tem casa... Publicamos a primeira parte. Em poste a seguir mostraremos depois um "bombolom de cerimónias".

Patrício Ribeiro: português, natural de Águeda, da colheita de 1947, criado e casado em Angola, com família no Huambo, antiga Nova Lisboa, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde 1984, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda, é o português que melhor conhece a Guiné e os guineenses, o último dos nossos africanistas: tem mais de 120 referências o nosso blogue; tem também uma "ponta", junto ao rio Vouga, Agueda, onde de tempos a tempos se refugia; é nosso colaborador permanente a partir de 25 de abril de 2022 (para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau)... É o autor da série "Bom dia, desde Bissau" (*)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23286: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (25): Cacheu, restos que o império teceu... - II (e última) Parte

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22956: Historiografia da presença histórica portuguesa em África (301): mapa francês dos anos de 1680 que mostra a região de Casamansa, Cacheu Farim e Bissau

 

La coste d'Afrique | A costa ocidental de África


La coste d'Afrique depuis la  rivière de Gambie  jusques à celle de |Cherbe (?) ou Madrebombe (?), presentée à Monsieur  "monseigneur de Pontchaulyaire (?) | Mapa da costa da África O´cidental desde o rio Gâmbia ao de Cherbe  (?) ou Madrebombe (?), apresentado a Monsenhor de Pontchaulyaire (?)

Eschelle de quarante lieuz (?) françaises et anglaises | Escala de quarenta lugares (?) franceses ingleses


Royaume de Cazamance | Reino de Casamansa

Feloupes sauvages |  Felupes selvagens



Feloupes sauvages | Felupes selvagens 

Feloupes dociles | Felupes pacíficos ... Fort portuguais | Forte português (Cacheu)...Royaume des Baguns  | Reinos dos Banhuns


 Farim colonie portugais... Gesves (?), colonie portugaise | Farim, colónia portuguesa... Geba (?), colónia portuguesa


Cacheau, colonie portugaise... Bolol... île de Boulama... Bissaau | Cacheu, colónia portuguesa...Ilha de Bolama,,,Bissau

R. de St. Domingue... Bolol.. Mata de Poutama (?) | Rio de São Domingos...  Bolor... Mapa de Putama



Fotos (e legendas): © João Schwarz da Silva (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de
 João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, nº 768, desde 30 de março de 2018. (Recorde-se que o João nasceu em Alcobaça em 1944, e foi para a Guiné pela primeira vez com 4 anos. Depois da morte do seu avô Samuel Schwarz em Lisboa, em 1953, voltou para Bissau onde frequentou o Colégio Liceu Honório Barreto, onde a mãe era professora, até à sua vinda para a universidade, em Lisboa, em 1960; vive em Paris; é o autor da página Des Gens Intéressants, onde tem perpetuado as memórias de amigos e familiares; Tem já uma dezena e meia  de referências no nosso blogue.)


Data - quarta, 26/01/2022, 08:52


Assunto - Mapas da Guiné

Caro Luis

Nas minhas andanças pela BNF - Biblioteca Nacional de França, em Paris,  descobri um mapa muito interessante que mostra a região da Guiné nos anos 1680. Aparentemente o mapa est baseado nas viagens de um Michel de la Courbe que era delegado da companhia do Senegal e que visitou Cacheu, Bissau e Farim.

Aqui vão as imagens.

Um grande abraço

João Schwarz da Silva

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22941: Historiografia da presença portuguesa em África (300): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (5) (Mário Beja Santos)