Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 16 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3135: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (11): Partida de Có para Mansabá
1. Mensagem de 5 de Agosto de 2008 do nosso camarada Raul Albino, ex-Alf Mil, CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70).
Caros amigos editores,
Faz cerca de um ano que vos enviei o último texto das memórias da CCaç 2402. Lembro-me bem porque os últimos relatos foram enviados no período morto das férias, um optimo periodo para voltar ao vosso convívio.
Se ainda estiverem recordados, informei-os que a razão desta ausência se relacionava com o esforço que estava a desenvolver para concluir o Volume II destas memórias, que neste momento já está editado. Não se trata de um volume de continuação de memórias como o do nosso amigo comum Beja Santos, mas sim o permitir registar em livro as memórias e opiniões de outros protagonistas da Companhia, entre elas as do nosso comandante Vargas Cardoso (Coronel na reforma) e do nosso vagomestre João Bonifácio (Ex-Fur Mil e pertencente ao nosso blogue), além de muitos outros. O meu contributo como narrador neste volume foi diminuto para dar a oportunidade a outros de se exprimirem. Na verdade, se eles tivessem participado a tempo e horas, o livro seria só um e não dois volumes. Tenho contribuido para o blogue com alguns excertos dos acontecimentos principais, mas os livros foram concebidos unicamente para os militares desta Companhia e seus familiares e é dessa maneira que os textos devem ser encarados em toda a sua organização e estrutura. Se eu tivesse de definir a obra, diria que se trata duma espécie de blogue/livro de sentido único onde todos puderam participar com os seus próprios pontos de vista. Sem a preciosa ferramenta informática que é a internete e a sua insubstituível interactividade, podem imaginar a carga de trabalho em que me meti, do qual não estou arrependido e muito prazer me proporcionou. Mas, convenhamos, é como tentar fazer uma omoleta sem ovos...
O último texto que enviei no ano passado foi também o útimo seleccionado da permanência da CCaç 2402 em Có. Hoje envio anexo um pequeno texto com fotos da nossa deslocação para Mansabá. Este foi um período curto em relação aos outros locais de permanência, mas bastante intenso em termos de acontecimentos militares.
Um abraço a todos e um pedido de desculpas por esta indesculpável ausência.
Raul Albino
2. Partida de Có para Mansabá
Por Raul Albino
A 19 de Março de 1969, a CCaç 2402 (-) a dois GCOMB (1.º e 4.º), iniciou o deslocamento para Mansabá, ficando em Có os restantes dois GCOMB (2.º e 3.º) a acompanhar a CCaç 2312 que assumiu o comando deste sub-sector, em termos de reforço operacional até à sua plena integração.
A 1 de Abril de 1969, os 2.º e 3.º GCOMB chegaram a Mansabá para se juntarem à restante Companhia.
As fotografias que se seguem, referem-se à deslocação para Mansabá da primeira metade da Companhia.
Foto 1 > Partida das viaturas de Có para Mansabá
Foto 2 > Passagem da coluna por João Landim
Foto 3 > Passagem da coluna por Safim-Mansoa
Fotos e legendas: © Raul Albino (2008). Direitos reservados.
3. Comentário de CV
Caro Raúl Albino
Já estávamos com saudades de receber os episódios da História da CCAÇ 2402. Ainda bem que voltas a ter disponibilidade para colaborar no Blogue.
Como julgo que sabes, Mansabá toca-me de muito perto, pois permaneci ali com a minha Companhia 22 meses.
Fomos render a CCAÇ 2403 em Fevereiro de 1970 e fomos rendidos pela CCAÇ 2753, do camarada Vitor Junqueira, em Fevereiro de 1972.
Fico à espera dos teus relatos e fotos referentes a Mansabá, embora julgue que a tua Companhia permanecesse lá pouco tempo.
Um abraço
_______________
Nota de CV
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2085: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (10): Enfermeiro em apuros
Guiné 63/74 - P3134: Blogoterapia (60): Memórias da CCAÇ 555, Cabedu, 1963/65 (Norberto Costa)
1. Mensagem, com data de ontem, do Norberto Gomes da Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 555, Cabedu (1963/65) (*):
Meu caro Carlos Vinhal,
Começo por te cumprimentar pessoalmente, já que é a primeira vez que a ti me dirijo. Ao mesmo tempo que te agradeço a disponibilidade e o modo como lidaste com o meu texto, bastante extenso, dividindo-o em três partes (**), dando-lhe títulos sujestivos e muito a propósito, revelando, da tua parte, talento na edição de textos. Foi um excelente trabalho da equipa editorial, que, neste momento, parece ser da tua responsabilidade.
Aproveito ainda a oportunidade para agradecer a todos que se me dirigiram, comentando, de algum modo, o que foi escrito sobre Cabedú dos anos 1963, 64 e 65, em particular ao meu amigo Mendes Gomes, colega de Empresa e parceiro de trabalho durante alguns anos e que já não vejo há uns tempos (***).
Um abraço
para ele que é extensivo a todos os animadores do blogue.
Saudações,
Norberto Gomes da Costa
_________
Notas de L.G.(ainda em férias):
(*) 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)
(**) Vd. postes de:
11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)
12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)
13 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)
(***) Comentário de Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes:
Ó seu pirata Gomes da Costa! Foste um óptimo programador da CGD em Lisboa. Trabalhei contigo, lado a lado, durante anos. E foste meu antecessor na guerra do Como. E nunca disseste nada!...Agora apareces-me aqui com a toga de Historiador!...Fico à espera de mais...
Recebe um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes ( o Gómes...como tu dizias)
Recorde-se que o nosso amigo e camarada Joaquim Mendes Gomes foi Alf Mil CCAÇ 728. Sobre a história desta unidade, vd. os seguintes posts:
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
Meu caro Carlos Vinhal,
Começo por te cumprimentar pessoalmente, já que é a primeira vez que a ti me dirijo. Ao mesmo tempo que te agradeço a disponibilidade e o modo como lidaste com o meu texto, bastante extenso, dividindo-o em três partes (**), dando-lhe títulos sujestivos e muito a propósito, revelando, da tua parte, talento na edição de textos. Foi um excelente trabalho da equipa editorial, que, neste momento, parece ser da tua responsabilidade.
Aproveito ainda a oportunidade para agradecer a todos que se me dirigiram, comentando, de algum modo, o que foi escrito sobre Cabedú dos anos 1963, 64 e 65, em particular ao meu amigo Mendes Gomes, colega de Empresa e parceiro de trabalho durante alguns anos e que já não vejo há uns tempos (***).
Um abraço
para ele que é extensivo a todos os animadores do blogue.
Saudações,
Norberto Gomes da Costa
_________
Notas de L.G.(ainda em férias):
(*) 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)
(**) Vd. postes de:
11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)
12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)
13 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)
(***) Comentário de Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes:
Ó seu pirata Gomes da Costa! Foste um óptimo programador da CGD em Lisboa. Trabalhei contigo, lado a lado, durante anos. E foste meu antecessor na guerra do Como. E nunca disseste nada!...Agora apareces-me aqui com a toga de Historiador!...Fico à espera de mais...
Recebe um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes ( o Gómes...como tu dizias)
Recorde-se que o nosso amigo e camarada Joaquim Mendes Gomes foi Alf Mil CCAÇ 728. Sobre a história desta unidade, vd. os seguintes posts:
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3133: Notas de leitura (11): A Guiné do século XVII ao século XIX (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado em 4 de Agosto de 2008
Carlos,
Aqui vai a capa e um curto comentário, o texto segue em separado, parece que és tu quem está no piquete.
Aproveito para te dizer que conto contigo em 11 de Novembro, no lançamento do segundo livro do meu diário da Guiné.
Um abraço do
Mário
A Guiné do século XVII ao século XIX: O testemunho dos manuscritos, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vasquez Rocha, Prefácio, 2004. Trata-se de uma importante colectânea de ensaios sobre a História da Guiné, com a consulta de importantes manuscritos. Torna-se mais fácil perceber onde e porquê falhou a nossa aculturação/colonização, depois desta leitura. (BS)
A GUINÉ DOS GRUMETES, DOS ESCRAVOS E DOS PRESÍDIOS
Por Beja Santos
Ninguém ignora que se publica muito pouco sobre a História da Guiné, quer em Portugal quer em Bissau. Pela pouco importância que teve no período colonial, sobretudo até à pacificação de 1936, os relatos existentes, sempre invocados da a exiguidade de testemunhos, tem a ver com clássicos do tipo “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de André Álvares de Almada, “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné”, de Senna Barcellos, mas também relatórios de governadores, relatórios de comandantes de campanha, notas oficiais, etc. Em 1938, um facultativo, João Barreto, publica a “História da Guiné, 1418-1918”, que até à “A Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, de 1954, foi a única obra de conjunto disponível para o público não iniciado. Deve-se igualmente a Teixeira da Mota, nos anos 40, o grande impulso para os estudos históricos com base científica, com a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, era aqui que se publicava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, obra incontornável para o conhecimento da Guiné nas suas múltiplas vertentes. Nos anos 80, René Pélissier escreve “História da Guiné – Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936”, a única obra que podemos agora adquirir (Editorial Estampa, 1989).
Felizmente que as melhores bibliotecas proporcionam acesso a alguns dos títulos indispensáveis, afortunadamente que a investigação contínua, lá e cá, e por isso se saúda “A Guiné, do século XVII ao século XIX, O testemunho dos manuscritos”, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha (Prefácio, 2004). Os autores optaram por analisar as seguintes áreas de investigação: os grandes impérios subsaharianos que precederam a chegada dos portugueses no século XV; a Guiné vista por escritores no período em apreço e também à luz de muitos manuscritos compulsados no Arquivo Histórico Ultramarino; a problemática da crença religiosa e a tensão entre o Islão, as crenças tradicionais e o cristianismo; por último, os problemas da missionação na Guiné, antes e depois do liberalismo.
Qual o significado para estudar o período anterior à nossa chegada à Guiné? A presença portuguesa na região foi sempre muito diluída, sujeita à pressão de outras potências coloniais, por isso optou-se por uma fixação em duas feitorias-praças (Cachéu e Bissau) e depois presídios (caso de Fá), ao sabor dos meios financeiros e militares. A aculturação fez-se graças ao “grumete”, o negro periférico das praças e presídios, em muitas casos de apelido português. Fazia-se comércio na ampla Senegâmbia, mas no território que virá a ser hoje a Guiné-Bissau o colonizador encontrou resistências quer dos mandingas quer de outras etnias que se revelaram hostis à progressão do colonizador no território, isto sem falar no clima devastador. O quadro e o papel desempenhado por estes impérios subsaharianos é de grande utilidade para compreender como é que eles actuaram como contra-poder e qual foi a interlocução possível com o colonizador e como este aproveitou as frestas possíveis para aprofundar mais as cisões interétnicas.
De igual modo, é incompreensível a história da Guiné sem conhecer o mosaico humano que os portugueses encontraram, ouvir os testemunhos do viajante ou do cronista, perceber como é que se estabeleceram zonas de influência, como é que as lideranças nativas reconheciam, duradoira ou episodicamente o poder político dos portugueses, fazendo ouvir ao mesmo tempo os interesses económicos e a ligação de interesses entre o arquipélago de Cabo Verde e esta região. Convém observar que a fixação dos portugueses só passou a ser uma realidade nos finais do século XVII, sobretudo numa tentativa de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções dos franceses. Os autores habilitam o leitor com a evolução do poder político e económico, citando documentos de incontestável importância como cartas de capitães-mores que dão conta da debilidade militar para suster a hostilidade das populações locais ou o importante significado das incursões de franceses, ingleses e espanhóis.
A questão religiosa é de análise indispensável para se perceber o grau de islamização estruturante e a incapacidade de aprofundar a cristianização, que teve sempre uma acção pouco ou nada eficaz, o que é surpreendente se se pensar no sucesso de Cabo Verde. Os autores descrevem as queixas sobre a presença missionária, os litígios nas praças da Guiné à volta da cristianização dos escravos, facto que não agradava aos contratadores. O acervo de manuscritos citados é de primordial importância para se perceber a natureza dos obstáculos postos é missionação, mesmos nos períodos áureos da acção missionária e o relativo sucesso da islamização que soube acolher e aculturar as sociedades negras tradicionais.
A Igreja no século XIX é também uma Igreja que falhou neste ponto de África e por diferentes razões: o período posterior à Guerra da Restauração (1640-1668) foi desgastante pelos conflitos dentro da própria Igreja e a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, assiste-se ao culminar da decadência já perceptível ao longo de todo o século XVIII; o despotismo esclarecido introduz um novo enfraquecimento com tensões permanentes dentro do poder político e a perseguição ao Clero, sendo a Companhia de Jesus o seu principal alvo. De novo os autores citam inúmera documentação que dão conta desta realidade, seja na Guiné de Cabo Verde seja no Distrito Autónomo da Guiné. Também aqui é incontornável a figura de Honório Pereira Barreto, procurando contrariar as sistemáticas tentativas de usurpação dos nossos territórios por estrangeiros, em particular pelos franceses, num tempo em que se desfez a autoridade e a presença cristã é praticamente nula. Como escrevem os autores nas conclusões: “A implantação do liberalismo, para além da grande instabilidade interna, provocou na relação Metrópole/Ultramar e, logo, na Guiné, todo um processo de vaivém de medidas, sobretudo quanto ao Clero e á própria Igreja, com as lógicas consequências da catolicidade no território”. A seguir, África irá ser sujeita a uma grande pressão internacional, acelera-se a ocupação, terminará o confinamento do colonizador às feitorias e presídios. Irá começar a época imperial até 1936, as lutas sangrentas pela ocupação do território, obrigando todos à obediência à bandeira portuguesa.
É neste sentido que esta obra se revela esclarecedora sobre as diferentes debilidades da colonização portuguesa na Guiné.
____________________
Nota de CV:
(1) - Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
Carlos,
Aqui vai a capa e um curto comentário, o texto segue em separado, parece que és tu quem está no piquete.
Aproveito para te dizer que conto contigo em 11 de Novembro, no lançamento do segundo livro do meu diário da Guiné.
Um abraço do
Mário
A Guiné do século XVII ao século XIX: O testemunho dos manuscritos, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vasquez Rocha, Prefácio, 2004. Trata-se de uma importante colectânea de ensaios sobre a História da Guiné, com a consulta de importantes manuscritos. Torna-se mais fácil perceber onde e porquê falhou a nossa aculturação/colonização, depois desta leitura. (BS)
A GUINÉ DOS GRUMETES, DOS ESCRAVOS E DOS PRESÍDIOS
Por Beja Santos
Ninguém ignora que se publica muito pouco sobre a História da Guiné, quer em Portugal quer em Bissau. Pela pouco importância que teve no período colonial, sobretudo até à pacificação de 1936, os relatos existentes, sempre invocados da a exiguidade de testemunhos, tem a ver com clássicos do tipo “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de André Álvares de Almada, “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné”, de Senna Barcellos, mas também relatórios de governadores, relatórios de comandantes de campanha, notas oficiais, etc. Em 1938, um facultativo, João Barreto, publica a “História da Guiné, 1418-1918”, que até à “A Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, de 1954, foi a única obra de conjunto disponível para o público não iniciado. Deve-se igualmente a Teixeira da Mota, nos anos 40, o grande impulso para os estudos históricos com base científica, com a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, era aqui que se publicava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, obra incontornável para o conhecimento da Guiné nas suas múltiplas vertentes. Nos anos 80, René Pélissier escreve “História da Guiné – Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936”, a única obra que podemos agora adquirir (Editorial Estampa, 1989).
Felizmente que as melhores bibliotecas proporcionam acesso a alguns dos títulos indispensáveis, afortunadamente que a investigação contínua, lá e cá, e por isso se saúda “A Guiné, do século XVII ao século XIX, O testemunho dos manuscritos”, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha (Prefácio, 2004). Os autores optaram por analisar as seguintes áreas de investigação: os grandes impérios subsaharianos que precederam a chegada dos portugueses no século XV; a Guiné vista por escritores no período em apreço e também à luz de muitos manuscritos compulsados no Arquivo Histórico Ultramarino; a problemática da crença religiosa e a tensão entre o Islão, as crenças tradicionais e o cristianismo; por último, os problemas da missionação na Guiné, antes e depois do liberalismo.
Qual o significado para estudar o período anterior à nossa chegada à Guiné? A presença portuguesa na região foi sempre muito diluída, sujeita à pressão de outras potências coloniais, por isso optou-se por uma fixação em duas feitorias-praças (Cachéu e Bissau) e depois presídios (caso de Fá), ao sabor dos meios financeiros e militares. A aculturação fez-se graças ao “grumete”, o negro periférico das praças e presídios, em muitas casos de apelido português. Fazia-se comércio na ampla Senegâmbia, mas no território que virá a ser hoje a Guiné-Bissau o colonizador encontrou resistências quer dos mandingas quer de outras etnias que se revelaram hostis à progressão do colonizador no território, isto sem falar no clima devastador. O quadro e o papel desempenhado por estes impérios subsaharianos é de grande utilidade para compreender como é que eles actuaram como contra-poder e qual foi a interlocução possível com o colonizador e como este aproveitou as frestas possíveis para aprofundar mais as cisões interétnicas.
De igual modo, é incompreensível a história da Guiné sem conhecer o mosaico humano que os portugueses encontraram, ouvir os testemunhos do viajante ou do cronista, perceber como é que se estabeleceram zonas de influência, como é que as lideranças nativas reconheciam, duradoira ou episodicamente o poder político dos portugueses, fazendo ouvir ao mesmo tempo os interesses económicos e a ligação de interesses entre o arquipélago de Cabo Verde e esta região. Convém observar que a fixação dos portugueses só passou a ser uma realidade nos finais do século XVII, sobretudo numa tentativa de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções dos franceses. Os autores habilitam o leitor com a evolução do poder político e económico, citando documentos de incontestável importância como cartas de capitães-mores que dão conta da debilidade militar para suster a hostilidade das populações locais ou o importante significado das incursões de franceses, ingleses e espanhóis.
A questão religiosa é de análise indispensável para se perceber o grau de islamização estruturante e a incapacidade de aprofundar a cristianização, que teve sempre uma acção pouco ou nada eficaz, o que é surpreendente se se pensar no sucesso de Cabo Verde. Os autores descrevem as queixas sobre a presença missionária, os litígios nas praças da Guiné à volta da cristianização dos escravos, facto que não agradava aos contratadores. O acervo de manuscritos citados é de primordial importância para se perceber a natureza dos obstáculos postos é missionação, mesmos nos períodos áureos da acção missionária e o relativo sucesso da islamização que soube acolher e aculturar as sociedades negras tradicionais.
A Igreja no século XIX é também uma Igreja que falhou neste ponto de África e por diferentes razões: o período posterior à Guerra da Restauração (1640-1668) foi desgastante pelos conflitos dentro da própria Igreja e a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, assiste-se ao culminar da decadência já perceptível ao longo de todo o século XVIII; o despotismo esclarecido introduz um novo enfraquecimento com tensões permanentes dentro do poder político e a perseguição ao Clero, sendo a Companhia de Jesus o seu principal alvo. De novo os autores citam inúmera documentação que dão conta desta realidade, seja na Guiné de Cabo Verde seja no Distrito Autónomo da Guiné. Também aqui é incontornável a figura de Honório Pereira Barreto, procurando contrariar as sistemáticas tentativas de usurpação dos nossos territórios por estrangeiros, em particular pelos franceses, num tempo em que se desfez a autoridade e a presença cristã é praticamente nula. Como escrevem os autores nas conclusões: “A implantação do liberalismo, para além da grande instabilidade interna, provocou na relação Metrópole/Ultramar e, logo, na Guiné, todo um processo de vaivém de medidas, sobretudo quanto ao Clero e á própria Igreja, com as lógicas consequências da catolicidade no território”. A seguir, África irá ser sujeita a uma grande pressão internacional, acelera-se a ocupação, terminará o confinamento do colonizador às feitorias e presídios. Irá começar a época imperial até 1936, as lutas sangrentas pela ocupação do território, obrigando todos à obediência à bandeira portuguesa.
É neste sentido que esta obra se revela esclarecedora sobre as diferentes debilidades da colonização portuguesa na Guiné.
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Nota de CV:
(1) - Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
1. Mensagem do Beja Santos, com data de 8 do corrente:
Carlos e Virgínio,
Fui aos saldos de livros e discos e encontrei duas obras de camaradas da Guiné. O primeiro relato segue agora, tenho a seguir que ler a história do tenente Lobato, um piloto da Força Aérea, capturado no Tombali, em 1965, resgatado na operação Mar Verde. Parece-me um relato pungente, nada sabia sobre este sofredor. A imagem de “A Minha Jornada em África” segue em email separado. Um abraço do Mário
A Minha Jornada em África
António Reis
Editora Ausência
FUI ENFERMEIRO NO HM 241
Por Beja Santos
António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (por António Reis, Editora Ausência, 1999).
Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:
“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.
Assentou praça no RI 7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:
“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.
Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. O António Reis fala das suas motivações para aquela guerra:
“Não sentia que ia defender nada que fosse meu. Nada me tinha motivado, ao longo dos meus vinte anos, para arriscar a vida. Para quem foi habituado a comer a sopa dos pobres na escola, para quem sempre teve, até aos doze anos, a sola dos pés como calçado, para quem foi posto a trabalhar com apenas doze anos de idade, após ter terminado a quarta classe, e tendo de percorrer vinte e quatro quilómetros sempre com as soletas enfiadas na cintura para que pudesse caminhar mais depressa e calçando-as, só após ter atravessado a ponte, para que a polícia não me multasse por andar descalço. A pé e sempre a pé porque eu ganhava de segunda a sábado, a moço de chapeiro na Avenida Camilo, apenas cinco escudos por dia e o transporte era seis escudos e sessenta centavos. Por quem tudo isto e muito mais tinha passado, como correr os quatro cantos de uma gaveta à procura de uma côdea e nada encontrar, nada devia à sociedade. A sociedade é que já me devia a mim”.
Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau:
“Estes mortos não eram uns mortos quaisquer, eram moços com vinte anos, com direito à vida e não me canso de o repetir porque há coisas que devem ser ditas muitas vezes”.
Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:
“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.
Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. E a rotina, sempre a rotina que nada tinha a ver com o sofrimento e as situações excepcionais vividas no HM 241:
“As refeições para os internados eram pedidas de um dia para o outro às 11 horas da manhã. De modo quem desse entrada após essa hora, só teria comida dois dias depois. Entretanto tinham sumos e leite, mas muito estavam ansiosos por uma refeição de quente porque fartos de ração de combate estavam eles. Pois, nenhum dos que me procuraram ficou sem uma refeição”.
As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...
Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim:
“Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”.
Carlos e Virgínio,
Fui aos saldos de livros e discos e encontrei duas obras de camaradas da Guiné. O primeiro relato segue agora, tenho a seguir que ler a história do tenente Lobato, um piloto da Força Aérea, capturado no Tombali, em 1965, resgatado na operação Mar Verde. Parece-me um relato pungente, nada sabia sobre este sofredor. A imagem de “A Minha Jornada em África” segue em email separado. Um abraço do Mário
A Minha Jornada em África
António Reis
Editora Ausência
FUI ENFERMEIRO NO HM 241
Por Beja Santos
António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (por António Reis, Editora Ausência, 1999).
Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:
“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.
Assentou praça no RI 7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:
“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.
Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. O António Reis fala das suas motivações para aquela guerra:
“Não sentia que ia defender nada que fosse meu. Nada me tinha motivado, ao longo dos meus vinte anos, para arriscar a vida. Para quem foi habituado a comer a sopa dos pobres na escola, para quem sempre teve, até aos doze anos, a sola dos pés como calçado, para quem foi posto a trabalhar com apenas doze anos de idade, após ter terminado a quarta classe, e tendo de percorrer vinte e quatro quilómetros sempre com as soletas enfiadas na cintura para que pudesse caminhar mais depressa e calçando-as, só após ter atravessado a ponte, para que a polícia não me multasse por andar descalço. A pé e sempre a pé porque eu ganhava de segunda a sábado, a moço de chapeiro na Avenida Camilo, apenas cinco escudos por dia e o transporte era seis escudos e sessenta centavos. Por quem tudo isto e muito mais tinha passado, como correr os quatro cantos de uma gaveta à procura de uma côdea e nada encontrar, nada devia à sociedade. A sociedade é que já me devia a mim”.
Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau:
“Estes mortos não eram uns mortos quaisquer, eram moços com vinte anos, com direito à vida e não me canso de o repetir porque há coisas que devem ser ditas muitas vezes”.
Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:
“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.
Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. E a rotina, sempre a rotina que nada tinha a ver com o sofrimento e as situações excepcionais vividas no HM 241:
“As refeições para os internados eram pedidas de um dia para o outro às 11 horas da manhã. De modo quem desse entrada após essa hora, só teria comida dois dias depois. Entretanto tinham sumos e leite, mas muito estavam ansiosos por uma refeição de quente porque fartos de ração de combate estavam eles. Pois, nenhum dos que me procuraram ficou sem uma refeição”.
As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...
Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim:
“Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”.
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)
Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65
GUERRA DA GUINÉ
MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555
CABEDÚ – 1963-1965
4 - Cabedú
(Continuação)
iv-Alimentação
A alimentação, embora, de algum modo, repetitiva, podia considerar-se, dadas as circunstâncias, razoável. Em situações de guerra não se espera comida de hotel, nem, tão pouco, uma confecção à base de produtos frescos, que a distância dos centros onde os havia tornava impossível. Ainda assim, consumindo, é certo, muitas conservas, tínhamos possibilidades de conseguir dietas de peixe fresco, de carne das mais variadas espécies, adquiridas aos indígenas, marisco da bolanha e até caça, como se sabe.
O peixe que era pescado junto à costa e nos canais (ou braços de mar) e rios que recortam o território guineense, e não no mar alto, não era, como é obvio, de grande qualidade, pois andava à volta da tainha (em grande parte) e, de quando em vez, de alguma corvina. Provinha de pescadores indígenas que, com as suas tarrafas (redes artesanais que em Portugal também se chamam chumbeiras) e em cima de frágeis canoas que construíam dos troncos de grandes árvores, não muito longe dos métodos usados pelo Homem do Neolítico, conseguiam grandes quantidades de pescado. Esses pescadores, a quem se comprava o produto da sua faina, eram credenciados pela Companhia.
Claro que às tantas já estávamos enjoados das conservas, mas também da tainha frita, que, é bom dizê-lo, não agradava por aí além. As restantes alternativas, por acontecerem de longe a longe, sabiam a pouco.
Foto 12 > Por um dia eram esquecidas as salsichas e as sardinhas de conserva
O modo como se faziam as compras dos animais para suprir as necessidades, que eram muitas, de carne fresca, envolve algumas curiosidades. As galinhas, que eram excelentes (penso que nunca mais comi aves daquela qualidade) e criadas ao ar livre em redor das tabancas, praticamente só iam à mesa dos graduados, que tinham, como sabem, uma messe à parte, dotada de verbas diferentes, ou seja, a importância que o Estado atribuía, por dia, para a alimentação, a uma praça, não era a mesma que cabia a um oficial ou mesmo a um sargento.
Como as galinhas eram sempre poucas, tornava-se impossível fazer-se com elas refeições para a messe geral. Mas como eram então compradas? Normalmente as populações das tabancas não queriam vendê-las, fosse por que preço fosse.
As “brigadas” de compra, chefiadas por um furriel (responsável pela messe, nesse mês), levavam consigo o famoso cão Galinheiro, que a Companhia anterior nos legou, treinado (não por nós, juro) para caçar galinhas sem as estragar. À ordem de: “agarra”, o cão investia e abocanhava a maior que descortinasse. O dono, vendo o galináceo na nossa mão, acedia imediatamente a fazer negócio, pagando nós a importância que ele exigisse. Recorrendo sucessivamente a este estratagema, voltávamos ao quartel com galinhas suficientes para o jantar de domingo.
Claro que o capitão Ritto não sabia nem sonhava como conseguíamos comer tantas vezes galinha de chabéu, pois, de contrário, acabava-se o petisco. A uma distância temporal destas, já nos podemos permitir confissões que, à altura, seriam incómodas.
Quanto aos carneiros, porcos e vacas, esses negócios eram assunto para o vagomestre, na pessoa do nosso amigo Teófilo Silveira, visto que se destinavam a ser consumidos no rancho geral. No entanto, lembro que as vacas provinham da ilha de Melo, onde viviam em liberdade, apesar de terem dono, e eram transportadas até à península de Cabedú em canoas, num trajecto considerável e arriscado.
De qualquer modo, garantia-se a compra a quem decidisse lá ir buscar um ou mais animais, independentemente de a quem pertencessem, para assim aumentarmos a manada que já tínhamos em carteira. Havia até uma pessoa encarregada de tratar dos bovinos, o nosso companheiro “vaqueiro”, de quem não recordo o nome.
E com esta diversificação conseguia-se uma alimentação, como disse, razoável e equilibrada, que não estava ao alcance da maior parte das companhias. Ainda assim, havia quem não se sentisse confortável com o que comia e, pelo contrário, os que nunca se tinham alimentado tão bem na vida.
Como a imagem abaixo testemunha, fabricava-se pão nas nossas instalações. Era um excelente produto resultante da mestria de três camaradas nossos que davam o melhor de si próprios, para que, todos os dias, o tivéssemos bem fresco às refeições.
Foto 13 > Os três padeiros em acção
Um episódio, no mínimo hilariante, aconteceu durante o almoço num dia de visita do comandante-chefe, brigadeiro Louro de Sousa, à nossa unidade em Cabedú. Estavam os soldados espalhados pela parada, com as suas marmitas entre as mãos, saboreando o repasto, que, naquele dia, constava de grão-de-bico, com não sei o quê. O brigadeiro, aproximando-se do nosso companheiro, que eu, francamente, não me recordo quem fosse, mas que tinha sempre resposta pronta para tudo, faz uma observação: “com que a então a saborear um belo dum gravanço. Está com um belíssimo aspecto”.O soldado, que não era da mesma opinião, quanto à qualidade do pitéu, não se calou: “Pois é, meu brigadeiro, é pena é o grão estar cru; está bom é para meter na G-3 e servir de balas”. Perante a risada geral, o comandante-chefe, com um sorriso amarelo, meteu a “viola no saco” e desandou. Não quer dizer que as palavras proferidas fossem, exactamente, estas, todavia, o sentido do diálogo corresponde inteiramente à verdade.
Como consta doutro capítulo, havia um grupo que ia muito à caça, que se traduzia quase sempre, dada a abundância de espécies, em belas caçadas, passe a redundância. Todavia, o entusiasmo levava-nos, por vezes, a pôr a nossa segurança em perigo, ao afastar-nos muito do perímetro considerado aceitável para um pequeno grupo (dois, três militares), se arriscar.
Recordo que um dia ultrapassei esse limite, acompanhado pelo nosso guia, Mamadú Canté, chegando até próximo da tabanca de Cacisse, onde havia uma bolanha, que quase sempre tinha gazelas a pastar. Um tiro certeiro fez tombar uma que, pelo seu elevado peso, não foi possível, a mim e ao meu acompanhante, transportá-la até à base. Assim, enquanto ele próprio foi à tabanca procurar alguém que nos auxiliasse nessa tarefa, eu esperei só, já de noite, junto do troféu. Dois habitantes de Cacisse, bem musculados, lá levaram a gazela até ao quartel, onde já tinham dado pela nossa falta e, com a noite a cair, havia até uma certa preocupação, enquanto o autor do leviano acto e o seu cúmplice respiravam de alívio. Confesso que nesse dia tive medo e jurei a mim mesmo que nunca mais cometeria semelhante loucura. Facilmente podíamos ter sido apanhados.
Fui, como não podia deixar de ter sido, censurado e bem pelo capitão Ritto, que, a partir daí, preocupado, começou a limitar-nos o campo de acção nas surtidas da caça. Por fim, quando já estava próxima a partida para Bissau, para embarcarmos, proibiu mesmo qualquer militar de sair para a caça, pois, pelo que nos disse, recebera a informação de que o IN se preparava para nos “caçar”. Episódios que acabaram bem, mas que podiam ter “dado para o torto”.
Ainda dentro da problemática da alimentação, às vezes, o azar aparente transforma-se em sorte para uns tantos. Tínhamos, como se sabe, uma boa reserva de galinhas que o Galinheiro e os seus mentores tinham criado e que estavam à espera de melhor ocasião para fazerem parte daquele chabéu, que um pequeno grupo costumava saborear ao domingo. Num dos vários ataques a que estivemos sujeitos, durante os quase dois anos em Cabedú, uma morteirada, talvez do famoso 82 mm, acertou em cheio na capoeira que ficava perto da secretaria. Resultado: todas as galinhas mortas, algumas despedaçadas. Mas, e esta é a parte agradável do acontecimento, estavam todas em condições de os cozinheiros fazerem com elas um excelente almoço para todos, ou seja, mesmo para aqueles que não estavam destinados a “meter-lhe o dente”, e que assim festejaram o tiroteio de véspera.
A hora das refeições, nomeadamente entre pessoas amigas ou conhecidas, comporta sempre um ritual que as retira do afã do dia-a-dia para as colocar num ambiente que envolve alguma serenidade, descontracção e, sobretudo, comunhão de sentimentos. Em plena guerra e nas matas da Guiné, com todas as diferenças que essas circunstâncias originavam, esse estado de espírito não era assim tão diferente. Porém, o clima de tensão que esse ambiente proporciona requer sempre, da parte de todos, uma actuação cuidadosa, em que o bom senso prevaleça, de modo a evitar conflitos ou a resolvê-los quando surgem.
Guardo um desses momentos demonstrativos da hipersensibilidade a que estávamos sujeitos: estava-se a servir o almoço ao pessoal e eis senão quando, por alguma falta de cuidado do cozinheiro que distribuía pelas marmitas a refeição ou, eventualmente, por o nosso companheiro, que não consigo identificar, ter desviado a mão que a segurava, a verdade é que parte do almoço, que, como é compreensível, estava bem quente, caiu-lhe em cheio no braço. Porque o soldado estivesse, eventualmente, num dia mau, no que respeita a esse stress, que nos afectava a todos; porque tivesse achado que o cozinheiro teria feito aquilo de propósito; enfim, por qualquer sentimento que só o protagonista poderia explicar, criou-se ali um momento de alguma violência física, que envolveu não só os dois actores principais, mas muitos outros que acorreram, tentando sanar o conflito. Uma cena de uma certa altercação, que acabou por ensombrar o ambiente de acalmia e confraternização que o almoço sempre proporcionava. Terei presenciado este episódio (não posso precisar) por estar de sargento-dia, que assistia à distribuição do rancho, ou então por ter passado por ali, aquando da eclosão deste momento um pouco mais quente.
Precisamente por ter reflectido sobre o assunto, tenho uma explicação que vai um pouco mais além das que, normalmente, nos acorrem numa situação destas. Como sempre acontece numa companhia militar composta, como se sabe, por diversas especialidades e funções, que em situações de guerra estão sujeitas a diferentes graus de perigosidade, sentia-se uma tensão latente, embora controlada, entre os que saiam constantemente para operações militares (os atiradores e os conhecidos elementos de apoio) e aqueles que raramente, ou nunca, tomavam parte nessas acções, não se expondo assim ao mesmo perigo que os primeiros (os cozinheiros, por exemplo). Sem se poder atribuir a culpa a ninguém, já que as funções correspondiam à especialidade que se tinha, mesmo assim, todos os momentos eram bons para expressar esses sentimentos. De qualquer modo, este tipo de acontecimentos, dentro da tal tensão referida, foram muito poucos e sem expressão visível.
v-Acontecimentos marcantes
Durante dois anos numa guerra de desgaste permanente, quer físico, quer psicológico, há sempre momentos que marcam para o bem ou para o mal a vida e a memória de quem os viveu.
O primeiro momento, penso eu, difícil e marcante para o grupo que o sofreu, foi o ataque ao barco em que viajávamos para Cabedú, em frente da ilha do Como, já atrás referido, até pelas consequências que teve: um nosso companheiro atingido gravemente por uma bala, que o terá incapacitado, segundo julgo saber, para o resto da vida. Também por ser, digamos, o nosso baptismo de fogo, que acaba por gerar sempre momentos de grande emoção.
Um outro momento, e não sigo uma ordem cronológica, terá sido a grande operação do Cantanhês, com fuzileiros, pára-quedistas, força aérea e marinha, durante alguns dias, com um desgaste muito grande para todos, apesar de não ter resultado em grandes danos físicos para os grupos de combate.
Provavelmente, o primeiro ataque ao quartel, quer pela novidade que constituiu, embora o esperássemos mais dia menos dia, quer como teste à nossa capacidade de reacção, que acabou por ser boa, embora fosse uma incógnita, dada a ansiedade que percorre cada ser humano, nos momentos difíceis, melhor controlada por uns do que por outros, também resultou num marco importante na nossa vida de combatentes.
Uma ou outra operação mais complicada que, a esta distância no tempo não posso precisar, entraram igualmente como referências no conjunto de memórias que guardamos. Porém, recordo uma em que até a nossa companhia não entrou, mas em que a pista de aeronaves serviu não só de base para o eventual reforço de homens e material, mas também de evacuação de mortos e feridos. Guardo o sentimento de tristeza que senti ao assistir à transferência de vários jovens mortos ou muito feridos, que iam chegando no helicóptero para a avioneta estacionada, para seguirem para Bissau. Para quem, como nós, está numa situação em que corria um perigo semelhante ao daqueles infelizes companheiros, é deveras traumatizante assistir a um espectáculo desta natureza. A operação referida ter-se-á realizado numa área junto do rio Cacine, se bem me recordo.
A queda de uma avioneta ainda no perímetro do quartel, levando a bordo um tenente do exército, um sargento e um cabo da força aérea, ao levantar voo, depois de terem recolhido mensagens de Natal para serem passadas na rádio, e que resultou na morte horrível dos três militares, carbonizados dentro da aeronave, em virtude do incêndio que deflagrou, após o seu contacto com o solo, terá sido o momento mais dramático vivido em Cabedú. Tudo isto se deu à nossa vista, poucos minutos após os três militares, que pertenciam ao sector encarregado destas acções meritórias destinadas a porem os combatentes em contacto com os seus familiares, se despedirem com grande simpatia da Companhia 555. Assistir ao dramático acidente sem poder fazer absolutamente nada por eles, marcou-nos, posso afirmá-lo, durante bastante tempo. A exumação dos cadáveres foi feita em Cabedú, onde os corpos permaneceram até serem transportados para Bissau. A guarda de honra foi feita por secções, em sistema de roulement. Até as próprias refeições dos dias seguintes, pelo menos para alguns (os mais sugestionáveis), foram fortemente afectadas. Havia sempre quem tivesse brincadeiras de mau gosto, lembrando o que eles sabiam condicionar esses tais mais sensíveis. Enfim, a juventude a tudo se permite. Eu conto isto, porque pertencia ao tal grupo que suportou, com uma paciência infinita, as “bocas” desses inveterados brincalhões.
vi-Dificuldades / Contras
África foi sempre e continua a ser um continente muito susceptível de, no seu território, se desenvolverem muito tipos de febres, provavelmente devido às características do clima, à má qualidade das águas, à possibilidade de mordedura de muitos insectos, ou mesmo à falta de higiene na confecção dos alimentos. O paludismo é uma dessas febres e aquela a que os militares mais estavam sujeitos. Porém, dada a boa cobertura de vacinações, os medicamentos disponíveis no âmbito das Forças armadas, o cuidado que se tinha em nunca beber água sem a submeter a filtros, fervura ou desinfectantes, evitou que esses problemas de saúde assolassem a Companhia. Tirando um caso ou outro, não foi um problema sério que tivéssemos de enfrentar. Mesmo assim era um risco que esteve presente, e com ele tivemos que viver durante todo o tempo da comissão.
O clima quente e húmido e um tanto ao quanto insalubre, o terreno pantanoso que nos criava obstáculos muito sérios na movimentação de tropas, (veja-se o caso de todos conhecido e que poderia ser complicado se a intervenção não fosse rápida, em que o Joaquim Rézio ficou enterrado num lamaçal, ao atravessar um rio na maré baixa e já não conseguia, por si só, sair dali, sendo então puxado por cordas e libertado da situação embaraçosa em que se encontrava), a pluviosidade abundante na época das chuvas, alagando muitas zonas por onde teríamos que passar, algumas carências alimentares (pouca diversificação e falta de produtos frescos), um inimigo aguerrido e razoavelmente bem equipado, foram dificuldades já apontadas ao longo deste trabalho.
Ao elenco de contrariedades sentidas pelos militares em terras guineenses há a acrescentar, apesar de parecerem marginais e até caricato enunciá-las, a acção maléfica de certos insectos, que no mínimo nos faziam a “vida negra”: as melgas, as matacanhas, as formigas (térmitas) e as abelhas africanas. Provavelmente haveria outros que também incomodariam o suficiente para merecerem aqui referência, porém é a estes, e com graus de nocividade diverso, que pretendo dedicar algumas linhas.
As melgas, esse bichinho “simpático” que nos punha os nervos em franja, merecem, da minha parte, uma referência especial, dadas as noites terríveis que me fizeram passar, não muito diferentes daquelas que proporcionavam aos meus colegas. Quando se dormia no aquartelamento, o mosquiteiro colocado nas camas obstava a que o “massacre” se realizasse, mas nas operações em que se tinham passar uma ou várias noites fora e em plena mata, onde a concentração desses insectos era enorme, aí, sim, sentia-se, e de que maneira, a sua presença. No que a mim diz respeito, confesso, com risco de parecer demagógico, que temia mais uma noite passada no exterior, em que tinha a certeza que ia ser mordido em todos os centímetros quadrados do corpo, do que o próprio inimigo. Refira-se que elas conseguiam morder mesmo através do camuflado, não havendo, portanto, nada que conseguisse travar os seus maléficos intentos. Havia uma rede que se levava para colocar na cabeça e sobre as partes descobertas, mas que não evitava, como se disse, que fôssemos atingidos seriamente. A época das chuvas era a pior no que respeita a este flagelo, já que a humidade, aliada ao calor abafado que se fazia sentir, proporcionava o ambiente ideal para o seu desenvolvimento.
As formigas, se tínhamos necessidade de nos abrigarmos atrás duma termiteira, essas construções curiosas (conhecidas por montes baga-baga) que erguiam para suas moradas, para nos protegermos dum ataque inimigo ou para melhor tomar posição para fazer fogo contra esse mesmo inimigo, e de alguma forma intervir no seu afã constante de reforçar o seu stock alimentar, podiam seriamente causar danos a esses incautos ou vítimas involuntárias. Estas formigas são perigosas, se atacam em conjunto e em simultâneo, de tal modo que podem causar a morte a essas pessoas. Porque só acidentalmente se poderia ter contacto com estes xilófagos insectos, não eram de molde a constituir grande problema, se para tal houvesse a devida atenção.
Quanto às abelhas, e quase pela mesma razão, que se traduzia em que só muito acidentalmente e por algum descuido se podia assanhar o enxame que, normalmente, se localizava em árvores velhas e carcomidas, poucas vezes houve incidentes, que não foram, mas podiam ser muito desagradáveis. É conhecida a ferocidade destas abelhas que, tal como as formigas, podem levar à morte de quem, incautamente, interferir no trabalho da colónia.
As matacanhas privilegiavam os pés que estivessem em contacto com a terra, portanto, o chão. Ou seja, as vítimas eram quem andasse descalço. Constava duma larva que se alojava no interior da pele dos pés. Tornava-se incómodo, mas evitável se houvesse algum cuidado. Para a sua extracção recomendava-se uma pequena cirurgia, que o Dr. Matos Ferreira ou o nosso amigo Rafael Mendes (carinhosamente alcunhado por nós de “Pastilhas”, pelos LM’s que receitava para toda e qualquer doença que surgisse), com toda a mestria executavam.
Os rios também ofereciam alguns perigos que, se atravessados em certas zonas, podiam ser efectivos. Na Guiné os crocodilos infestam a maior parte dos cursos de água, portanto este sáurio é sempre uma ameaça para o ser humano. As piranhas, muito abundantes na ex-colónia portuguesa, podiam igualmente potenciar alguma preocupação, se utilizássemos regularmente os rios e canais para fazer atravessamentos, o que não era o caso: os nossos espaços de actuação eram, preferencialmente, a mata e a bolanha.
Quanto a animais selvagens e ferozes, nem vê-los: algumas cobras, e pequenas (lembro-me apenas de uma, de um porte razoável, que encontrámos e matámos), uma onça ou outra fugidia e mais nada que mereça referência e que a minha memória retenha.
E, quanto a perigos e dificuldades, não me recordo de mais nada que mereça ser referido. Normalmente, recordamos mais e mais facilmente aquilo que nos correu menos bem, todavia aqueles momentos sérios que, digamos, fizeram mossa, não foram assim tantos como isso. Consequência dum bom planeamento e duma boa actuação, como já foi amplamente dissecado? Provavelmente, sim.
vii-A despedida
O regresso a Bissau para aguardar embarque para a Metrópole (2º e último grupo), que se dá em finais de Setembro de 1965 foi, não só no que a mim diz respeito, mas também pelo que senti em relação a companheiros nossos, um misto de alegria, já que significava o início do regresso a casa, e de nostalgia, para não dizer tristeza, de deixar pessoas que confiavam em nós e que nos consideravam amigos. Vi gente a chorar (os Mamadús, por exemplo), parecendo já, de algum modo, antever o drama que se haveria de abater sobre eles, a partir de 1974. Como é sabido, a colaboração com os militares portugueses havia de custar-lhes muito caro, o que implicou, segundo julgo saber, na maior parte dos casos, a perda da própria vida. Foi um dos assuntos mal defendido ou, de todo, irresponsavelmente negligenciado pelo Estado português (potência colonizadora), aquando das negociações para a independência da ex-colónia.
Aquela comunidade identificou-se muito connosco, provavelmente pela política da Companhia, que foi sempre a de eleger a componente psicossocial como prioritária para resolver, ou ajudar a resolver, um conflito que tinha vindo para ficar e levou àquilo que todos conhecemos.
Quem acha que o teatro de guerra não permite relações sociais equilibradas, amizades profundas e humanidade no tratamento daqueles que, duma maneira ou de outra, se encontram no campo do inimigo, está redondamente enganado. Será, admito-o, uma característica tipicamente portuguesa, que nos distingue de outros povos e de outras culturas, e que é o darmo-nos e sentirmo-nos bem em qualquer ambiente e situação e conviver sem preconceitos com outras culturas, religiões e etnias muito diversa das nossas, mas também o de termos um comportamento humano para com os nossos inimigos.
Foto 14 > Cumprimentos de despedida: o comandante com alguns “homens-grandes”
Há a ideia generalizada e assumida, mas nunca é demais lembrá-la, de que as populações civis são sempre as maiores vítimas das guerras, sejam elas de que tipo forem, em que época e em que lugar se desencadeiem. Encontram-se entre os dois fogos, são olhadas com desconfiança pelos contendores e sofrem as represálias de um ou de outro lado, conforme optam por colaborar com qualquer parte do conflito. A guerra de África e, concretamente, a da Guiné foi, neste particular, exemplar no passar à prática esta teoria. Foi uma realidade, a nível da Província, nem sempre bem compreendida pelos militares portugueses, talvez pela situação vivida, pelo stress que a guerra origina em todos e em cada um de nós. Cabedú, também nesse aspecto, pelo menos enquanto estivemos lá, foi diferente e, quanto a mim, desenvolveu a melhor política.
Por vezes interrogo-me se os que nos substituíram seguiram os métodos desenvolvidos pela CCAÇ 555 ou se, pelo contrário, abandonou à sua sorte aquelas comunidades indefesas e à mercê de métodos pouco ortodoxos e desumanos que os independentistas utilizavam para as obrigar a ter do seu lado. Tenho na memória o que fizeram, num período já muito próximo da nossa partida, ao incendiar a tabanca Sosso, obrigando os seus habitantes a refugiarem-se junto ao quartel e a ficarem sob a nossa protecção e responsabilidade.
Assim sendo, o que me resta? Falar de sentimentos (meus e dos demais) da tal dualidade de sensações que refiro, da tristeza que vi estampada no rosto de muitos, da incerteza no amanhã que adivinhei nos semblantes daqueles que nos foram acompanhar ao cais onde embarcaríamos numa lancha da marinha com destino a Bissau.
Ao afastar-me do tarrafe que cobre as margens do riozinho, ou braço de mar, que permitia que os barcos entrassem e saíssem de Cabedú, dei comigo a interrogar-me qual o futuro que caberia àquela terra e àquelas gentes já martirizadas pela guerra, mas que ainda iria durar mais nove anos e, agora sabemo-lo, pelo que se iria seguir que, como constatámos e continuamos a constatar, não foi e continua a não ser risonho.
Ainda a propósito dessa despedida, não consigo esquecer a atitude do guia Mamadú Canté (e será também por isso que eu guardo o sentimento que aqui expressei) ao pedir-me que o trouxesse connosco para a Metrópole. Passava, se bem me lembro, ele próprio por uma fase de algum abatimento psicológico, o que tornava as coisas menos fáceis para quem partia e deixava um colaborador fiel em todas as circunstâncias, inclusivamente, nas já comentadas aventuras, que ambos vivemos nas caçadas às gazelas e às galinhas de mato. Todas aquelas pessoas que, ao fim e ao cabo, nos ajudaram a suportar os dois anos de guerra com a sua colaboração, com a sua companhia, com as sua histórias, que ouvíamos com muito interesse, e (porque não?) com a sua amizade, e nos viram partir, estou certo, com mágoa, deram-nos certeza que algo fizemos, ou ajudamos a fazer, de útil por elas, o que constitui um marco positivo e muito importante da nossa passagem por terras guineenses.
Gostaria muito de descrever esses momentos do adeus a Cabedú com pormenores, concretizando atitudes, discursos, acções, enfim, produzir um relato que nos transpusesse para aquele dia, vivendo-o com muita realidade. Todavia, isso é, de todo, impossível: aquilo que se passou já se apresenta aos meus olhos dum modo difuso, muito distante no espaço e no tempo.
5 - Conclusão
A mobilização para a guerra de África provocou nos militares reacções de receio, mas também de curiosidade. Os portugueses em geral ainda tinham de África, por altura dos princípios da década de 60, ideias povoadas de mitos e fantasias construídos acerca de populações estranhas, que habitavam lugares infestados de animais selvagens e, portanto, perigosos. Passou a acrescer a essa realidade, em certa medida virtual, a situação de insurreição armada lançada a partir de 1961, essa sim real, que obrigava os militares a enfrentarem um inimigo perigoso, até em certos momentos, sanguinário. Todo este caldo de cultura não ajudava em nada a moral de jovens camponeses e citadinos, que se prepararam o melhor possível, mas, porventura, não o suficiente, para viver e combater no teatro de guerra africano.
No que respeita à Guiné, e concretamente a nós, Companhia 555, pouco a pouco foram-se desconstruindo os clichés, as ideias criadas pelo desconhecimento e, não raras vezes, pela ignorância de quem as difunde e começa-se a ter contacto com uma realidade que não é bem aquela que nos tinham vendido, nem tão pouco a que pensávamos existir. Só o perigo se mantinha e, provavelmente, maior do que julgávamos ser possível. Mas até esse interiorizámos bem, tomando as medidas que se impunham para que os dois anos em contacto com essa realidade não interferissem negativamente no regresso, que se desejava feliz.
O dia-a-dia, o nosso dia-a-dia no quartel do mato passava-se, como ficou amplamente expresso, entre as tarefas da segurança, as operações militares e a rotina dos longos dias. Felizmente que a pressão da guerrilha não nos tirava duma normalidade que construímos e que cultivávamos em cada dia que passava (lembram-se do içar e do arrear da bandeira, com honras militares, como se estivéssemos num quartel normal na Metrópole?), como parecia não acontecer em certos pontos da Guiné.
Assim, os dias cumpriam-se no contacto com as populações, nas idas ao bar, na troca de correspondência com os familiares e a namorada, na prática de algum desporto e até na caça. Tudo isto intervalado de perigos iminentes, de descargas de fogo impiedosas, de morteiradas, de lançamentos de granadas foguete, dum lado e do outro, de tiros de canhão.
Os quartéis do mato e, concretamente, o de Cabedú, reproduziam um pouco, se estivermos atentos, a cultura e modo de ser e estar dos seus ocupantes, ou seja, de nós mesmos. Não se lembram das vacas que pastavam, ali mesmo, junto ao arame farpado? Das galinhas que haveriam de ter um fim triste? Da horta que se cultivava? Enfim, daqueles rituais transportados das nossas aldeias e também cidades para o interior da mata guineense.
Chegados a casa, interrogámo-nos se daquele tempo que passámos na guerra tirámos algo de útil para as nossas vidas futuras. Pondo de parte aquele princípio, que não se discute ou, pelo menos, não se discutia, e que era o termos a certeza do dever cumprido para com a Pátria, não haveria mais nada, além disso? Pessoalmente acho que sim, que beneficiámos com a passagem pela guerra. Senão vejamos: não teremos crescido como homens? Quanto valem as amizades que fizemos, que perduram até ao fim das nossas vidas? O próprio conhecimento de terras muito diferentes da nossa, de culturas estranhas e, por vezes, exóticas, mas dum valor enorme para a nossa própria formação? O contacto com uma flora e uma fauna riquíssimas?. Costumo dizer que ganharam todos os que conseguiram regressar vivos e com saúde; perderam os que tiveram a infelicidade de as coisas para eles não correrem da melhor maneira. Para esses e para aqueles que já não estão entre nós, resta-nos curvar-nos perante a sua memória.
6 - Glossário
Bajuda: rapariga indígena ainda virgem
Bate-estrada: aerograma
Bolanha: terreno plano e alagadiço para cultivar arroz
“Cana”: aguardente de cana-de-açúcar
Chabéu: molho de baga de palmeira para cozinhar frango
“Chuvas“: anos de vida
“Homens-grandes”: chefes de etnia ou de tabanca
“Maçarico”: militar com pouco tempo de guerra
Matacanha: larva africana que se infiltra na pele dos pés
Tabanca: aldeia guineense
Tarrafe: vegetação rasteira junto aos rios ou braços de mar
7 - Mapa da Guiné
Foto 15 > Mapa da Guiné
Norberto Gomes da Costa
Mestre em História
Ex-Fur Mil Inf
CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65
______________
Nota de CV:
Vd. Postes anteriores de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)
12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)
terça-feira, 12 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)
Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65
GUERRA DA GUINÉ
MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555
CABEDÚ – 1963-1965
4 - Cabedú
Dar um aspecto mínimo de conforto e segurança ao local, onde haveríamos de permanecer cerca de 2 anos, foi a primeira decisão, e em boa hora tomada, pelo comando da Companhia. Recordo o entusiasmo com que todos, desde o responsável máximo até ao elemento mais modesto, tomou em ombros essa tarefa, já que não havia tempo a perder:
- construção de abrigos com cobertura de palmeiras, à prova de morteiros e LGF, junto das casernas e quartos;
- colocação de chuveiros feitos de bidões em espaço aberto para todos;
- abertura de poços com água suficiente para as necessidades, que eram muitas;
- compra e instalação de um gerador de electricidade;
- postes de iluminação eléctrica em toda a extensão à volta do quartel que nos permitia ver até bem dentro da mata, que fora desbastada num perímetro considerável;
- um cais acostável e uma pista para aeronaves larga e com extensão suficiente;
- um forno de cozer pão e outras infra-estruturas melhoradas ou feitas de novo.
Enfim, foram tomadas medidas que se provaram fundamentais para o êxito da missão. A frase “VISITE CABEDÚ”, pintada nos telhados das casernas, funcionou durante todo o tempo como chamariz demonstrativo da simpatia com que seriam recebidas todas as pessoas que nos visitassem. São estes pequenos pormenores que, por vezes, fazem a diferença, pelos efeitos positivos que se conseguem. Todos os pilotos achavam graça ao convite e era a Cabedú que sempre iam de bom grado.
Foto 3 > “Fortaleza” de Cabedú
i-Acções militares.
Os primeiros tempos envolvem normalmente um misto de curiosidade e algum receio da realidade existente, mas não conhecida em toda a sua extensão, mais a mais, num contexto de guerra de guerrilha, que começava a tornar-se complicada para as tropas portuguesas, em todo o território da então província da Guiné. E isso notava-se nas acções que voluntariamente empreendíamos ou a que éramos forçados a responder. Pertencíamos ao famoso grupo dos “maçaricos” (nome do conhecido pássaro, muito abundante na Guiné, de cor esverdeada, como o nosso fato camuflado, ainda novo e limpo). Denominação que, evidentemente, repudiávamos, por ser um insulto à nossa condição de militares “experimentados” e “corajosos”. Todavia, cumprindo as regras assumidas na gíria militar, ainda levaria algum tempo até que deixássemos de o ser.
Foto 4 > Visita do Comandante-Chefe a Cabedú: o General Schulz com o Cap Ritto
Pouco tempo após a nossa chegada começámos a ser “visitados” por grupos de guerrilheiros, como se estivessem ansiosos por nos darem as “boas vindas”. Fustigavam, durante horas, o quartel, já com armas de calibre apreciável, que incluíam o famoso morteiro 82 de fabrico russo, criando algum alvoroço nos primeiros tempos, mas que, passada a surpresa do primeiro choque, se transformou em rotina, apesar de nos obrigarem a uma resposta à altura das circunstâncias, que, normalmente, se saldava por alguns mortos deixados no campo de batalha, da parte do inimigo, acompanhados de muito material, igualmente abandonado.
Apesar deste cenário se repetir ao longo do tempo em que permanecemos em Cabedú, as vítimas do nosso lado foram mínimas, não obstante numa dessas investidas, um soldado africano ter sido atingido mortalmente. Não me recordo de mais situações dignas de registo.
Num dos ataques ao nosso aquartelamento, tomou parte, como sabemos, o actual Presidente da Guiné- Bissau, Nino Vieira, na altura comandante, penso, da região sul, na estrutura da guerrilha. Foi ferido e veio um helicóptero da vizinha Guiné Conacri recuperá-lo num local bem perto das nossas posições. Foi visível a aeronave baixar e levantar de seguida, com toda a certeza levando a bordo o Nino, na altura já uma personalidade importante na hierarquia do seu partido.
Num dos ataques ao nosso aquartelamento, tomou parte, como sabemos, o actual Presidente da Guiné- Bissau, Nino Vieira, na altura comandante, penso, da região sul, na estrutura da guerrilha. Foi ferido e veio um helicóptero da vizinha Guiné Conacri recuperá-lo num local bem perto das nossas posições. Foi visível a aeronave baixar e levantar de seguida, com toda a certeza levando a bordo o Nino, na altura já uma personalidade importante na hierarquia do seu partido.
Comunicado o facto ao comando de Bissau, foi mandado, se não estou equivocado, um avião de combate em sua perseguição que, no entanto, não chegou a tempo de interceptar o hélio, escapando assim Nino Vieira de ter caído nas nossas mãos. Uma guerra faz-se de êxitos e fracassos, mas também de acontecimentos curiosos e este foi, sem dúvida, um deles.
Foto 5 > Grupo de Combate em acção de reconhecimento
As flagelações ao nosso quartel eram feitas sempre de noite e a altas horas. Querendo surpreender-nos a horas mortas, pensando que a vigilância seria menor da nossa parte, a verdade é que esses ataques, que eram feitos com muitos efectivos e com grande quantidade de material, nunca constituíram um grande problema para a nossa defesa.
Foto 5 > Grupo de Combate em acção de reconhecimento
As flagelações ao nosso quartel eram feitas sempre de noite e a altas horas. Querendo surpreender-nos a horas mortas, pensando que a vigilância seria menor da nossa parte, a verdade é que esses ataques, que eram feitos com muitos efectivos e com grande quantidade de material, nunca constituíram um grande problema para a nossa defesa.
O sistema estava bem montado, mesmo antes de termos o pelotão de artilharia, que a determinada altura veio reforçar a estrutura militar de Cabedú. Eram sempre repelidos com perdas importantes de homens e de material, visíveis ao nascer do dia, quando se fazia o reconhecimento dos despojos da refrega, deixados no terreno. A partir do conhecimento de que o inimigo tinha morteiros, e aconteceu pouco tempo após a nossa chegada a Cabedú, a instabilidade emocional das nossas tropas cresceu um pouco, na medida em que eles podiam ter feito muito estragos, se a precisão de tiro fosse melhor, o que, felizmente, nunca aconteceu.
A zona de intervenção da nossa Companhia era, como todos sabemos, das mais activas, no que à guerrilha diz respeito, dado os dois grandes centros de concentração de efectivos do PAIGC, Ilha do Como e Cantanhês, (onde, alternadamente, tiveram sempre grande domínio), se encontrarem perto da nossa base. Foi um problema com que tivemos de conviver, durante todo o tempo da nossa permanência aí, com soluções à medida das necessidades.
Inúmeras operações militares foram desencadeadas pela nossa Companhia, quer individualmente (só a 555 ou alguns dos seus pelotões), quer em conjunto com os pára-quedistas, fuzileiros, marinha e força aérea.
A zona de intervenção da nossa Companhia era, como todos sabemos, das mais activas, no que à guerrilha diz respeito, dado os dois grandes centros de concentração de efectivos do PAIGC, Ilha do Como e Cantanhês, (onde, alternadamente, tiveram sempre grande domínio), se encontrarem perto da nossa base. Foi um problema com que tivemos de conviver, durante todo o tempo da nossa permanência aí, com soluções à medida das necessidades.
Inúmeras operações militares foram desencadeadas pela nossa Companhia, quer individualmente (só a 555 ou alguns dos seus pelotões), quer em conjunto com os pára-quedistas, fuzileiros, marinha e força aérea.
A operação Tornado, em plena mata do Cantanhês, foi disso um exemplo, na medida em que envolveu toda essa panóplia de efectivos, durante alguns dias. Recordo a Companhia de fuzileiros, comandada pelo já famoso (nem sempre pelos melhores motivos) 1º tenente Alpoim Calvão, militar que, mais tarde, no princípio da década de 70, já no tempo do General Spínola governador e comandante-chefe, se haveria de destacar ao comandar a força que invadiu a Guiné-Conacri e libertou os militares portugueses que estavam nas prisões de Sekou Touré, não conseguindo, no entanto, todos os objectivos a que se propusera.
Tenho presente ainda duas acções militares, de alguma envergadura, em que tomámos parte: a operação Remate que foi desencadeada pela nossa Companhia em conjunto com os Fuzileiros navais e que correu bem, pelo menos no que diz respeito aos nossos militares; igualmente me recordo da operação Tufão, aqui com a Força Aérea e a Marinha, não havendo, mais uma vez, danos físicos para a Companhia.
Chegados a Cabedú, demos conta de uma grande operação na Ilha do Como, de que ouvíamos apenas os rebentamentos e tiros constantes e as aeronaves a cruzarem o espaço aéreo do nosso aquartelamento de Cabedú. Soube tratar-se da importante operação Tridente, uma das maiores feitas na guerra da Guiné, em que tomaram parte forças do Exército, Marinha e Força Aérea. Como o teatro de operações não era muito distante da nossa zona, tivemos oportunidade de acompanhar, embora à distância, o desenrolar desses combates, servindo, inclusivamente, para ficarmos cientes, se é que ainda não estávamos, da zona perigosa em que a Companhia estava inserida na função de quadrícula.
Tenho presente ainda duas acções militares, de alguma envergadura, em que tomámos parte: a operação Remate que foi desencadeada pela nossa Companhia em conjunto com os Fuzileiros navais e que correu bem, pelo menos no que diz respeito aos nossos militares; igualmente me recordo da operação Tufão, aqui com a Força Aérea e a Marinha, não havendo, mais uma vez, danos físicos para a Companhia.
Chegados a Cabedú, demos conta de uma grande operação na Ilha do Como, de que ouvíamos apenas os rebentamentos e tiros constantes e as aeronaves a cruzarem o espaço aéreo do nosso aquartelamento de Cabedú. Soube tratar-se da importante operação Tridente, uma das maiores feitas na guerra da Guiné, em que tomaram parte forças do Exército, Marinha e Força Aérea. Como o teatro de operações não era muito distante da nossa zona, tivemos oportunidade de acompanhar, embora à distância, o desenrolar desses combates, servindo, inclusivamente, para ficarmos cientes, se é que ainda não estávamos, da zona perigosa em que a Companhia estava inserida na função de quadrícula.
Porém, lá no fundo, pelo menos alguns de nós, estávamos a gostar e sentíamo-nos, de certo modo, vingados com o tratamento impiedoso que estavam a ter os guerrilheiros do PAIGC, que nos tinham atacado poucos dias antes, ao passarmos de barco em frente à Ilha. Aliás, foi a partir daí que o Como deixou de ser uma zona importante, como local de refúgio, e que os independentistas ocuparam grande parte do Cantanhês (vidè Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes), trazendo complicações para os aquartelamentos de Bedanda, Catió e Cabedú. (Tinha que sobrar para nós!.)
Foto 6 > Içar da bandeira portuguesa em Cabedú
Na minha modesta opinião, umas das razões - talvez a mais determinante - no relativo sucesso da Companhia ter regressado com um número mínimo de baixas, sem deixar de cumprir as missões que lhe foram atribuídas, foi o bom senso demonstrado pelo seu comandante, ao longo de toda a comissão, e que se traduziu em nunca nos ter arrastado levianamente para situações que poderiam ser complicadas, e até com desfechos dramáticos, como aconteceu, infelizmente, com companheiros de outras companhias, em vários pontos da Guiné. Cumprir com seriedade, sem falsos heroísmos, foi o lema, com o qual todos saímos beneficiados. É o que penso, admitindo que outra ou outras razões se sobreponham à que aqui expresso.
Em dois anos foram muitas, como acima refiro, as acções militares desencadeadas por nós, algumas delas não deixando sequer memória, por serem de pouco aparato ou envergadura, ou então por terem corrido bem, não deixando sequelas nos efectivos comandados por António Ritto. De qualquer modo, ponderando toda a missão, na área de intervenção do nosso grupo, os resultados são, sem dúvida, positivos. Nem tudo do que aconteceu nos podemos orgulhar (é assim em todas as guerras); todavia, dadas as circunstância em que decorria a nossa acção, o que a Companhia fez, seguindo as orientações de Lisboa através de Bissau, é de molde a deixar-nos minimamente com o sentimento do dever cumprido.
ii-Relações sociais
No aspecto social – relação dos militares com as populações das tabancas vizinhas – os contactos tiveram sempre um carácter amistoso. Havia a relação institucional do comando da Companhia, no âmbito da chamada acção psicossocial, com os “homens grandes” representantes das etnias que constituíam a sociedade indígena, que estava, como sabemos, muito dependente da tropa. Penso que essa relação funcionou sempre bem e até com frutos para o nosso lado. Porém, o que aqui merece ser realçado, digamos assim, é o relacionamento das populações com todos os elementos da Companhia. E esse, como se disse, funcionou sempre bem, tirando alguns, poucos, episódios desagradáveis, que foram sanados rapidamente (lembremos até alguns castigos bastantes duros aplicados a companheiros nossos, por assédio sexual sobre bajudas, usando a força da sua condição de militares).
Foto 7 > Convívio entre jovens das duas comunidades
De entre todas aquelas pessoas havia duas figuras para mim incontornáveis, representantes de etnias muito significativas da localidade: o velho Mansoa, de etnia balanta, e Seco Aidara, líder influente dos Sossos.
Foto 6 > Içar da bandeira portuguesa em Cabedú
Na minha modesta opinião, umas das razões - talvez a mais determinante - no relativo sucesso da Companhia ter regressado com um número mínimo de baixas, sem deixar de cumprir as missões que lhe foram atribuídas, foi o bom senso demonstrado pelo seu comandante, ao longo de toda a comissão, e que se traduziu em nunca nos ter arrastado levianamente para situações que poderiam ser complicadas, e até com desfechos dramáticos, como aconteceu, infelizmente, com companheiros de outras companhias, em vários pontos da Guiné. Cumprir com seriedade, sem falsos heroísmos, foi o lema, com o qual todos saímos beneficiados. É o que penso, admitindo que outra ou outras razões se sobreponham à que aqui expresso.
Em dois anos foram muitas, como acima refiro, as acções militares desencadeadas por nós, algumas delas não deixando sequer memória, por serem de pouco aparato ou envergadura, ou então por terem corrido bem, não deixando sequelas nos efectivos comandados por António Ritto. De qualquer modo, ponderando toda a missão, na área de intervenção do nosso grupo, os resultados são, sem dúvida, positivos. Nem tudo do que aconteceu nos podemos orgulhar (é assim em todas as guerras); todavia, dadas as circunstância em que decorria a nossa acção, o que a Companhia fez, seguindo as orientações de Lisboa através de Bissau, é de molde a deixar-nos minimamente com o sentimento do dever cumprido.
ii-Relações sociais
No aspecto social – relação dos militares com as populações das tabancas vizinhas – os contactos tiveram sempre um carácter amistoso. Havia a relação institucional do comando da Companhia, no âmbito da chamada acção psicossocial, com os “homens grandes” representantes das etnias que constituíam a sociedade indígena, que estava, como sabemos, muito dependente da tropa. Penso que essa relação funcionou sempre bem e até com frutos para o nosso lado. Porém, o que aqui merece ser realçado, digamos assim, é o relacionamento das populações com todos os elementos da Companhia. E esse, como se disse, funcionou sempre bem, tirando alguns, poucos, episódios desagradáveis, que foram sanados rapidamente (lembremos até alguns castigos bastantes duros aplicados a companheiros nossos, por assédio sexual sobre bajudas, usando a força da sua condição de militares).
Foto 7 > Convívio entre jovens das duas comunidades
De entre todas aquelas pessoas havia duas figuras para mim incontornáveis, representantes de etnias muito significativas da localidade: o velho Mansoa, de etnia balanta, e Seco Aidara, líder influente dos Sossos.
Outros líderes havia, mas importa falar um pouco sobre estas duas personalidades interessantes, que me marcaram bastante, embora de modos diferentes. Mansoa, com muitas “chuvas” contadas, com um rol impressionante de mulheres no activo, ao longo da sua vida (a poligamia era normalmente praticada), em que a mais nova do grupo que então pertencia ao seu “harém” era uma jovem que, à vontade, podia ser sua neta, bebia “cana” como nós bebemos água, o que lhe garantia a embriaguês permanente. Diziam os seus amigos ou vizinhos que o velho homem que um dia (que ele já não conseguia recordar) chegou a Cabedú, vindo da cidade de Mansoa – daí a sua alcunha – só tinha apanhado uma bebedeira, que ele conseguia manter com toda a boa disposição e eficácia, ao longo da sua já longa vida. Claro que Mansoa teria outras qualidades, que o tornariam útil no seio da sua comunidade, pois a sua importância não derivaria apenas das aqui referidas, mas que nós desconhecíamos.
Seco Aidara, de um comportamento social irrepreensível, era, provavelmente, a pessoa que o comandante mais ouvia e com quem mais contava para um bom relacionamento, que, ao fim e ao cabo, sempre se desenvolveu entre os militares e a comunidade indígena. Seguidor da região islamita (os balantas eram animistas), já tinha ido a Meca, o que lhe outorgava um estatuto que nem todos possuíam. Este homem, recordo, teve sempre a preocupação dum relacionamento próximo, quer com o comando da Companhia, quer mesmo com muitos outros militares. Sabendo da minha paixão pela caça, um dia foi ao quartel oferecer-me uma perdiz, que tinha caçado na sua plantação de mancarra. Fiquei-lhe eternamente grato, como devem calcular, pois merecer uma honraria destas não acontecia todos os dias.
Estes dois personagens despertaram-me sempre a atenção, por razões particulares e nem sempre coincidentes. Todavia, outros ”homens grandes”, como já referi, havia, e com importância no seu meio: Lamina Sissi, Braima Camará, Bacra e muitos outros, que exerciam autoridade nas suas comunidades.
As bajudas (jovens ainda virgens) e as mulheres mais velhas com os seus trajes coloridos e, por vezes, exóticos, davam um ar festivo ao quartel, durante as suas visitas para vender produtos e comprar panos e outros artigos necessários à sua vida, nas casas comerciais (Gouveia e Ultramarina) que se mantinham abertas no interior das nossas instalações. Jovens do sexo masculino ou mesmo homens novos escasseavam nas tabancas, o que teria a ver com o recrutamento (muitas vezes à força), que a guerrilha fazia, principalmente para tarefas de apoio logístico aos grupos de combate.
A este respeito, convém lembrar que a situação das populações civis que viviam no mato, perto das bases da guerrilha não era, nem de perto nem de longe, satisfatória. Se colaboravam connosco sofriam represálias, de certo modo violentas, dos independentistas; se a sua atitude era de apoio à causa nacionalista, tinham-nos “à perna”. Restava-lhes manter o equilíbrio, sem se comprometerem muito, mas dando a entender a um lado e ao outro que estavam com eles.
Foto 8 > Militares entre a comunidade indígena
De entre os produtos que nos eram vendidos, saliente-se animais criados nas suas tabancas, como porcos, carneiros, mas também camarão e outros mariscos recolhidos nas bolanhas, aquando da baixa-mar. Se se tratava de Balantas, o dinheiro (pesos) era, quase na sua totalidade, gasto na compra de “cana”, bebida no local e levada para casa, onde afogavam as mágoas que os atormentavam.
Todo este intercâmbio servia as duas comunidades, no que respeita à vida do dia-a-dia das pessoas envolvidas, mas também tinha outro efeito, para mim mais importante, que era o facto de estes contactos servirem para manterem a nossa sanidade mental em bom estado, em virtude de induzirem um ambiente de alguma normalidade, como contraponto ao isolamento a que estávamos sujeitos. É preciso não esquecer, e penso que já foi referido, que alguns de nós entraram em depressão: estou a lembrar-me do nosso companheiro “Toirão” (Eleutério dos Santos Marçal) que, atingindo um nível demencial relevante, fugiu para a margem dum rio, relativamente distante do quartel, e só foi localizado com a ajuda de um helicóptero. Foram momentos de muita preocupação para todos nós, que, embora tristes com a situação do nosso companheiro, terminaram em bem.
iii-Actividade lúdica
O divertimento é sempre muito importante, seja em que situação for que se encontrem as pessoas que dele podem usufruir. Em situações de guerra, então, é fundamental ter-se momentos de descontracção e lazer, que ajudem a suportar outros de enorme responsabilidade e preocupação. Estes momentos de disponibilidade eram sempre vividos com uma grande entrega, de modo a tirar deles o máximo de prazer e bem-estar. Numa comunidade de cerca de centena e meia de pessoas, com alguma diversidade no âmbito cultural e nos interesses sociais, dificilmente se consegue uma identidade total entre todos os seus elementos. De modo que se formavam sempre grupinhos, maiores ou menores que, pela maior identidade de pontos de vista, se sentiam mais próximos. Jogos de cartas pela noite fora, jogos de futebol, em que, muitas vezes, as equipas se faziam tendo como base a simpatia pelos grandes clubes portugueses; outras por pelotões, e até por especialidade!.. Tudo servia, o importante era jogar.
Não me esqueço das conversas (cá estão os tais grupinhos que referi) até tarde, em que se falava de tudo: de cinema, de música (ter em conta que os Beatles apareceram nessa altura), de política (pouco, que as paredes tinham ouvidos), de mulheres, claro. Passeios pela parada, em que se discutiam maneiras de salvar o planeta, de vivermos (todos os seres humanos) em paz e felicidade, de acabar com as injustiças no mundo. A juventude tem destas coisas: é sempre bem intencionada, solidária, mas infinitamente ingénua. O cepticismo, o calculismo e, sobretudo, o realismo chegam mais tarde.
Foto 9 > O descanso dos “guerreiros”
Ainda acerca dos momentos de ócio, tenho uma vaga ideia, correndo o risco de estar enganado, de que, pelos menos, uma vez fez-se um jogo com jovens das tabancas, os que o PAIGC ainda considerava muito novos para levar para a mata.
Tanto talento era exibido nessas “peladinhas” e quantos “fora de série” se perderam pelo caminho!..No que respeita aos jovens indígenas, observava-se claramente um jeito inato para o desporto. A etnia africana, no seu conjunto, foi sempre, e será, um alfobre de predestinados para o futebol. Todavia, e agora centrando-me nos nossos camaradas, havia muita gente com jeito para a bola. Não me lembro de todos os que, nas minhas observações (era para isso que eu tinha mais jeito), referenciei como tendo algumas qualidades para a prática do futebol, mas, pelo menos, o Nunes (condutor), o Júlio Fontes, o João de Matos (apesar de ter mais queda para o rugby), o José Oliveira, o “Mestiço” (João Manuel Moreira da Silva) e o “Porto” (António da Costa Baptista) não eram toscos de todo.
A caça, que desde os primórdios da humanidade sempre ocupou os homens, exerce um fascínio muito grande em muita gente que, desde a juventude, experimentou esse desporto, hoje cada vez menos interessante, dada a escassez de espécies cinegéticas. Por isso, alguns levaram de cá esse vício e, logo que foi possível, ei-los a demonstrar as suas aptidões na caça às gazelas, galinhas de mato, perdizes, patos e pombos verdes. O Joaquim Rézio, eu próprio, o “Bigodes” (Agostinho Félix), o Vidaúl Andrade e não sei se mais alguém, demos algum desbaste nessas espécies, para nosso gáudio mas, sobretudo, para satisfação de todos, em virtude do rancho melhorado em dias de caça grossa.
Foto 10 > Está visto que o almoço do domingo seguinte foi arroz de pato..
A alimentação do espírito também conta muito, particularmente para os crentes, sobretudo em situações de aperto, que o mesmo é dizer, de perigo iminente, a que estávamos expostos. O capelão do batalhão (padre Pinho, se não estou equivocado), sedeado em Catió, de quando em vez, lá estava em Cabedú a celebrar missa ao ar livre, em plena parada, para muitos militares que, normalmente, seguiam o sacerdote com uma certa atenção.
E quem não se lembra dos filmes que vimos em sessões, igualmente, ao ar livre, e com agrado geral? O Costa do Castelo, o Pátio das Cantigas, o Leão da Estrela, com actores que ainda hoje fazem as delícias de quem gosta de cinema: António Silva, Ribeirinho, Vasco Santana, Milú e tantos outros talentos portugueses, que fazem corar de vergonha alguns que hoje exercem essa profissão. Eram, sem sombra de dúvida, momentos de grande satisfação e divertimento para mais de uma centena de pessoas, entre as quais havia quem nunca tivesse visto um filme.
A chegada do barco com os mantimentos era sempre recebida com grande alvoroço e emoção. Pudera, era a sobrevivência garantida por mais um mês!...E o correio, com os “bate-estradas”, trazendo notícias da família, e as cartas, em papel de seda, da namorada ou da madrinha de guerra? Tenho presente a imagem da rapaziada à volta do Encarnação, que lia o nome ou número do militar a quem se dirigia a missiva: quantos saltos de alegria e quantas lágrimas teimosas a despontarem, quando a esperada notícia não chegava!...
Seco Aidara, de um comportamento social irrepreensível, era, provavelmente, a pessoa que o comandante mais ouvia e com quem mais contava para um bom relacionamento, que, ao fim e ao cabo, sempre se desenvolveu entre os militares e a comunidade indígena. Seguidor da região islamita (os balantas eram animistas), já tinha ido a Meca, o que lhe outorgava um estatuto que nem todos possuíam. Este homem, recordo, teve sempre a preocupação dum relacionamento próximo, quer com o comando da Companhia, quer mesmo com muitos outros militares. Sabendo da minha paixão pela caça, um dia foi ao quartel oferecer-me uma perdiz, que tinha caçado na sua plantação de mancarra. Fiquei-lhe eternamente grato, como devem calcular, pois merecer uma honraria destas não acontecia todos os dias.
Estes dois personagens despertaram-me sempre a atenção, por razões particulares e nem sempre coincidentes. Todavia, outros ”homens grandes”, como já referi, havia, e com importância no seu meio: Lamina Sissi, Braima Camará, Bacra e muitos outros, que exerciam autoridade nas suas comunidades.
As bajudas (jovens ainda virgens) e as mulheres mais velhas com os seus trajes coloridos e, por vezes, exóticos, davam um ar festivo ao quartel, durante as suas visitas para vender produtos e comprar panos e outros artigos necessários à sua vida, nas casas comerciais (Gouveia e Ultramarina) que se mantinham abertas no interior das nossas instalações. Jovens do sexo masculino ou mesmo homens novos escasseavam nas tabancas, o que teria a ver com o recrutamento (muitas vezes à força), que a guerrilha fazia, principalmente para tarefas de apoio logístico aos grupos de combate.
A este respeito, convém lembrar que a situação das populações civis que viviam no mato, perto das bases da guerrilha não era, nem de perto nem de longe, satisfatória. Se colaboravam connosco sofriam represálias, de certo modo violentas, dos independentistas; se a sua atitude era de apoio à causa nacionalista, tinham-nos “à perna”. Restava-lhes manter o equilíbrio, sem se comprometerem muito, mas dando a entender a um lado e ao outro que estavam com eles.
Foto 8 > Militares entre a comunidade indígena
De entre os produtos que nos eram vendidos, saliente-se animais criados nas suas tabancas, como porcos, carneiros, mas também camarão e outros mariscos recolhidos nas bolanhas, aquando da baixa-mar. Se se tratava de Balantas, o dinheiro (pesos) era, quase na sua totalidade, gasto na compra de “cana”, bebida no local e levada para casa, onde afogavam as mágoas que os atormentavam.
Todo este intercâmbio servia as duas comunidades, no que respeita à vida do dia-a-dia das pessoas envolvidas, mas também tinha outro efeito, para mim mais importante, que era o facto de estes contactos servirem para manterem a nossa sanidade mental em bom estado, em virtude de induzirem um ambiente de alguma normalidade, como contraponto ao isolamento a que estávamos sujeitos. É preciso não esquecer, e penso que já foi referido, que alguns de nós entraram em depressão: estou a lembrar-me do nosso companheiro “Toirão” (Eleutério dos Santos Marçal) que, atingindo um nível demencial relevante, fugiu para a margem dum rio, relativamente distante do quartel, e só foi localizado com a ajuda de um helicóptero. Foram momentos de muita preocupação para todos nós, que, embora tristes com a situação do nosso companheiro, terminaram em bem.
iii-Actividade lúdica
O divertimento é sempre muito importante, seja em que situação for que se encontrem as pessoas que dele podem usufruir. Em situações de guerra, então, é fundamental ter-se momentos de descontracção e lazer, que ajudem a suportar outros de enorme responsabilidade e preocupação. Estes momentos de disponibilidade eram sempre vividos com uma grande entrega, de modo a tirar deles o máximo de prazer e bem-estar. Numa comunidade de cerca de centena e meia de pessoas, com alguma diversidade no âmbito cultural e nos interesses sociais, dificilmente se consegue uma identidade total entre todos os seus elementos. De modo que se formavam sempre grupinhos, maiores ou menores que, pela maior identidade de pontos de vista, se sentiam mais próximos. Jogos de cartas pela noite fora, jogos de futebol, em que, muitas vezes, as equipas se faziam tendo como base a simpatia pelos grandes clubes portugueses; outras por pelotões, e até por especialidade!.. Tudo servia, o importante era jogar.
Não me esqueço das conversas (cá estão os tais grupinhos que referi) até tarde, em que se falava de tudo: de cinema, de música (ter em conta que os Beatles apareceram nessa altura), de política (pouco, que as paredes tinham ouvidos), de mulheres, claro. Passeios pela parada, em que se discutiam maneiras de salvar o planeta, de vivermos (todos os seres humanos) em paz e felicidade, de acabar com as injustiças no mundo. A juventude tem destas coisas: é sempre bem intencionada, solidária, mas infinitamente ingénua. O cepticismo, o calculismo e, sobretudo, o realismo chegam mais tarde.
Foto 9 > O descanso dos “guerreiros”
Ainda acerca dos momentos de ócio, tenho uma vaga ideia, correndo o risco de estar enganado, de que, pelos menos, uma vez fez-se um jogo com jovens das tabancas, os que o PAIGC ainda considerava muito novos para levar para a mata.
Tanto talento era exibido nessas “peladinhas” e quantos “fora de série” se perderam pelo caminho!..No que respeita aos jovens indígenas, observava-se claramente um jeito inato para o desporto. A etnia africana, no seu conjunto, foi sempre, e será, um alfobre de predestinados para o futebol. Todavia, e agora centrando-me nos nossos camaradas, havia muita gente com jeito para a bola. Não me lembro de todos os que, nas minhas observações (era para isso que eu tinha mais jeito), referenciei como tendo algumas qualidades para a prática do futebol, mas, pelo menos, o Nunes (condutor), o Júlio Fontes, o João de Matos (apesar de ter mais queda para o rugby), o José Oliveira, o “Mestiço” (João Manuel Moreira da Silva) e o “Porto” (António da Costa Baptista) não eram toscos de todo.
A caça, que desde os primórdios da humanidade sempre ocupou os homens, exerce um fascínio muito grande em muita gente que, desde a juventude, experimentou esse desporto, hoje cada vez menos interessante, dada a escassez de espécies cinegéticas. Por isso, alguns levaram de cá esse vício e, logo que foi possível, ei-los a demonstrar as suas aptidões na caça às gazelas, galinhas de mato, perdizes, patos e pombos verdes. O Joaquim Rézio, eu próprio, o “Bigodes” (Agostinho Félix), o Vidaúl Andrade e não sei se mais alguém, demos algum desbaste nessas espécies, para nosso gáudio mas, sobretudo, para satisfação de todos, em virtude do rancho melhorado em dias de caça grossa.
Foto 10 > Está visto que o almoço do domingo seguinte foi arroz de pato..
A alimentação do espírito também conta muito, particularmente para os crentes, sobretudo em situações de aperto, que o mesmo é dizer, de perigo iminente, a que estávamos expostos. O capelão do batalhão (padre Pinho, se não estou equivocado), sedeado em Catió, de quando em vez, lá estava em Cabedú a celebrar missa ao ar livre, em plena parada, para muitos militares que, normalmente, seguiam o sacerdote com uma certa atenção.
E quem não se lembra dos filmes que vimos em sessões, igualmente, ao ar livre, e com agrado geral? O Costa do Castelo, o Pátio das Cantigas, o Leão da Estrela, com actores que ainda hoje fazem as delícias de quem gosta de cinema: António Silva, Ribeirinho, Vasco Santana, Milú e tantos outros talentos portugueses, que fazem corar de vergonha alguns que hoje exercem essa profissão. Eram, sem sombra de dúvida, momentos de grande satisfação e divertimento para mais de uma centena de pessoas, entre as quais havia quem nunca tivesse visto um filme.
A chegada do barco com os mantimentos era sempre recebida com grande alvoroço e emoção. Pudera, era a sobrevivência garantida por mais um mês!...E o correio, com os “bate-estradas”, trazendo notícias da família, e as cartas, em papel de seda, da namorada ou da madrinha de guerra? Tenho presente a imagem da rapaziada à volta do Encarnação, que lia o nome ou número do militar a quem se dirigia a missiva: quantos saltos de alegria e quantas lágrimas teimosas a despontarem, quando a esperada notícia não chegava!...
No dia da aterragem da avioneta, pilotada pelo Honório, pelo Melo ou outro qualquer piloto, que ia a Cabedú (dito por eles) sempre com muito agrado, olhava-se para o céu à hora prevista, procurando descortinar no horizonte qualquer pontinho que denunciasse a chegada iminente de algo que nos aquecesse a alma ou repusesse o ânimo perdido por dias de incerteza. Enfim, tentava-se “matar” o tempo o melhor possível, contando os dias, ou melhor, descontando-os no calendário, tendo na mente os momentos de fim de comissão.
Foto 11 > Chegada do correio: “assalto” da rapaziada, ávida de notícias, à avioneta
Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.
Além disso, tínhamos direito a trinta dias de férias, que, normalmente, se gozavam na Metrópole, com a família, ou em Bissau. Houve muitos (a esmagadora maioria) que nem sequer as aproveitou e acabou por não sair de Cabedú, em todo o tempo da comissão. Uma viagem até Lisboa de avião ficava bastante dispendiosa, e havia a circunstância de o regresso à guerra, após as férias, ser muito penoso, de modo que poucos utilizaram essa alternativa.
Foto 11 > Chegada do correio: “assalto” da rapaziada, ávida de notícias, à avioneta
Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.
Além disso, tínhamos direito a trinta dias de férias, que, normalmente, se gozavam na Metrópole, com a família, ou em Bissau. Houve muitos (a esmagadora maioria) que nem sequer as aproveitou e acabou por não sair de Cabedú, em todo o tempo da comissão. Uma viagem até Lisboa de avião ficava bastante dispendiosa, e havia a circunstância de o regresso à guerra, após as férias, ser muito penoso, de modo que poucos utilizaram essa alternativa.
Passá-las em Bissau também era agradável e não havia os inconvenientes apontados. Conseguia-se, se assim o desejássemos, alojamento gratuito nas muitas instalações militares que havia na capital da Província, ou então tínhamos hotel ou pensões, a preços não muito elevados. No que a mim diz respeito, as férias do primeiro ano foram passadas na Metrópole com a família; as segundas, em Bissau, que, se bem me recordo, foram óptimas, e guardo delas boas recordações.
Para isso, claro, tínhamos que sair de Cabedú. E como? Conseguia-se com certa facilidade transporte para Bissau na avioneta que ia levar o correio ou fazer outro serviço, marcando com antecedência, já que havia sempre muita concorrência nos quartéis do mato onde a aeronave fazia escala.
Para isso, claro, tínhamos que sair de Cabedú. E como? Conseguia-se com certa facilidade transporte para Bissau na avioneta que ia levar o correio ou fazer outro serviço, marcando com antecedência, já que havia sempre muita concorrência nos quartéis do mato onde a aeronave fazia escala.
Nesse aspecto, os pilotos eram normalmente atenciosos para o pessoal de Cabedú, e raramente negavam uma boleia a quem dela necessitasse. Era, por sinal, um passeio sempre muito agradável o que se fazia de avioneta, de onde se desfrutava uma deslumbrante vista sobre o território da Guiné, com a sua vegetação compacta e completamente verde, recortada pelos inúmeros canais e rios e salpicada de bolanhas e tabancas, que lhe davam um aspecto curioso, mas infinitamente belo.
Igualmente se podia viajar para a capital da Província de barco (batelão ou lancha da marinha), que, pelo menos uma vez por mês, tocava o nosso porto. Porém, pelo tempo que demorava e pela perigosidade que oferecia (lembremos o ataque em frente à Ilha do Como), não era aconselhável, e raramente se optava por este meio.
Mesmo em ambiente de guerra se podem fazer coisas que, em princípio, estão vocacionadas para tempos de paz e de estabilidade emocional dos protagonistas. À partida seria impensável que em plena zona de conflito, no interior da mata africana, se poderia improvisar uma escola, em que os professores e os alunos, nas horas de descanso dos seus afazeres militares, se dedicassem (uns a ensinar, outros a aprender) a essa nobre tarefa de tornar homens mais úteis à sociedade. Estimulados pelo comandante da Companhia, criou-se um pequeno corpo de professores, oriundos do quadro de graduados, pessoas que na sua maioria, para não dizer na sua totalidade, nunca tinham exercido essa função, estando, no entanto, à altura de ensinar as matérias exigidas.
Eu próprio, o Joaquim Moura Lopes, o Joaquim Rézio, o António Ferreira, de entre um conjunto de elementos que, francamente, não consigo identificar na totalidade, dava o melhor de si para, como disse, valorizar aqueles homens que, nas circunstâncias descritas, quiseram aproveitar denodadamente o que lhes era oferecido.
Então, apareceram soldados que pretendiam completar a instrução primária (4ª classe) e até cabos que se candidataram a fazer o primeiro ciclo (2º ano) dos liceus. É certo que uma parte desistiu ou não conseguiu passar no exame; porém, o resultado foi francamente positivo. A esta distância temporal é praticamente impossível contabilizar com exactidão o número dos que concluíram com êxito os seus estudos. Todavia, penso que posso afirmar, sem receio de faltar à verdade, que vários acabaram a instrução primária e, pelo menos, dois fizeram o 2º ano dos liceus: o Joaquim Flores Bispo e o José da Silva Correia.
Como é expectável, foi uma alegria muito grande para os principais interessados, aqueles que viram os seus esforços coroados de êxito, mas também para os que para isso contribuíram, quem ofereceu tempo do seu período de lazer para que isso fosse possível.
Os exames realizavam-se em Bissau, e para isso os nossos homens tinham que se deslocar à capital da Província, a fim de prestarem as respectivas provas.
Desconheço se mais alguma unidade sedeada no interior, em zona de guerra permanente, se mobilizou no sentido que acabo de descrever. Porém, se tal aconteceu, os casos afirmativos devem contar-se pelos dedos duma mão. Uma coisa era a tropa que estava em Bissau, essencialmente em funções administrativas, e que até podia frequentar aulas com professores diplomados, outra bem diferente era o que os nossos companheiros fizeram, em plena zona de guerrilha, nas situações físicas e psicológicas que todos conhecemos. Também nesse aspecto fomos diferentes: deve-se ao comandante, mas também, penso eu, ao bom grupo de militares que se conseguiu reunir.
Num dos capítulos deste trabalho farei referência a um dos elementos da pequena matilha (3 cães) sedeada no nosso quartel, concretamente ao sempre muito útil Galinheiro. Porém, de modo algum poderia deixar de falar desse carismático cão, verdadeiro líder dos seus pares, chamado Zorro. Era um bonito exemplar de cor branca, tamanho médio, meigo e companheiro de quem, no seu insondável critério canino, o merecesse. Nunca consegui compreender, confesso-o, por que este cão, já de uma idade avançada, só acompanhava com graduados. Como facilmente se entende, esta atitude garantia-lhe a hostilidade, mais ou menos velada, da esmagadora maioria da Companhia e o carinho dos poucos que faziam parte da sua selecção de amigos. Recordo com alguma saudade os passeios que com ele dei pelos terrenos adjacentes ao aquartelamento, mas, sobretudo, as noitadas de ronda às sentinelas que velavam pela nossa segurança, tendo como companhia o velho Zorro. Ele fazia questão de estar sempre por perto quando se iniciava essa importante tarefa, parecendo que conhecia a própria escala de serviço. Estes cães foram-nos legados pela anterior companhia e, do mesmo modo, os transmitimos a quem nos sucedeu em Cabedú.
(Continua)
_________________
Nota de CV
(1) - Vd. Primeiro poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)
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