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Fonte: © Navios Mercantes Portugueses , página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...).
XI (e última) Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (1).
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À cadência de uma grande operação de 15 em 15 dias, o tempo foi passando penosamente. Os olhos estavam cada vez mais presos ao final da comissão. Acima de tudo, havia que defender a pele… queimar o tempo da melhor forma e regressar inteiro de cada saída.
Uma ida a Bissau, por umas breves semanas, de vez em quando, por desgaste nervoso, não era difícil de conseguir, junto do castiço médico tripeiro.
O alferes Arlindo, cujo pelotão, logo de início, fora distribuido pelos restantes pelotões, como melhor forma de gerir a companhia, como sub-comandante, por si e oficiosamente, estava sempre disponível para suprir as nossas preciosas ausências.
São inesquecíveis aqueles descolares trepidantes na pandeireta desengonçada do Dornier do correio, a vencer, raivosa, a minúscula pista de terra barrenta e abaulada, ver a geometria das ruelas esquadrinhadas de Catió a afastarem-se, lá em baixo, as bolanhas verdes e imensas recortadas pelos braços tentaculares duma rede serpenteada de rios mansos e uma manta espectacular de matas densas, pejadas de turras no seu seio e de aparência tão calma, e chegar ao casario mais denso de Bissau, meia hora depois.
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Em finais de Junho de 66, a tão ansiada notícia da rendição da companhia chegou. Ninguém queria acreditar. Mais cedo do que o esperado…porquê, nunca se soube…
Sem regatear confortos, toda a companhia coube numa velha embarcação de madeira da carreira regular, à mistura com indígenas, mulheres, crianças, galinhas e toda a bicharia doméstica… a servir de escudo protector. Eficaz.
O regresso a Bissau foi muito mais saudado por toda a gente que, dois meses, após, iria ser a viagem no faustoso Uíge, transatlântico… para Lisboa, depois de todas as desparasitações, intestinas, da praxe.
Aqui, foi mais a sensação do acordar de um terrível e estéril pesadelo…
Mal sabíamos nós que outro iria começar. A Pátria, atenta e carinhosa que nos mandou p’ra guerra, não foi a mesma que nos acolheu…ingrata, como, com justeza, clama o certeiro e bem merecido
HINO AOS COMBATENTES DO ULTRAMAR
1
Corriam os anos sessenta.
Os clarins da guerra ressoaram, frementes,
Nos céus de Portugal, há muito,
Por artes do divino, do fado ou do destino,
Uma terra de paz, alegria e brandas gentes.
A cobiça de corsários, falsos,
Arautos de ideologias, vãs e malsãs,
Da igualdade e da fraternidade,
Servos do capital, cego e voraz,
Só do ouro, petróleo e diamante,
Da madeira, rica e do minério abundante,
Em filões,
Vestiu, de agna pele, e fez aliados,
Os eslavos cegos, os yanques e os saxões.
2
Avançar p'ràs terras da Índia, distantes,
E africanas, bem portuguesas.
Já e em força.
Foi o grito, presidente.
Imperativo, indiscutível, se tornou.
Defender as gentes e os haveres,
Muitos e imensos,
Até ao extremo,
Como glórias, lusas e sacras. Nossas.
Foi o lema, pronto e certo!
Queira ou se não queira,
A história do porvir, logo, aberto,
Bem claro, o demonstrou:
3
Aos sonhos do trabalho, da escola e da esperança,
Na flor d’aurora e no fulgor primeiro,
As gerações sucessivas, a gente jovem,
Pronta e digna, disse, adeus…
Vestiu farda e pegou armas, de guerreiro.
Fez-se aos mares, rasgou os ares,
Correu riscos…tantos… sofreu tormentos.
Só Deus o sabe…
Ofereceu tudo, a saúde e a vida, pela Paz!
Oh! Loucura e vã tristeza!… Para quê?!…
Tudo… em vão!
4
Com os ventos da discórdia,
em desvario e revolução
Não foi a mesma a pátria que os acolheu!
A que os mandou à guerra,
Cobarde e lesta, se despediu…
De tudo, aquela, hipócrita, se esqueceu.
Ou, bem pior, tudo… denegriu:
O sangue, o suor e as lágrimas,
Que Portugal, inteiro, verteu.
Ficou tudo letra morta…
5
Desfeitos os sonhos, a noite de bréu
Dos novos mundos, incertos,
Pós-revolução,
Toldou-lhes as vontades traídas
E, em pé de igualdade, abertos
Foram os caminhos da fortuna,
Da escola e do sucesso…
Como se nada fosse e nada houvesse,
Ou
Do zero, tudo começasse…
Oh!…Vil e imperdoável traição,
A desta pátria, secular…
Que tão ingrata se tornou
Para os guerreiros nobres do ultramar!?…
____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
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