Continuação da publicação das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a quinta parte das crónicas de um Paimeirim de Catió (1).
2.7. O baptismo de fogo
Ao fim de um mês, podia dizer-se que a Companhia tinha encontrado a própria rotina. Cada pelotão com a sua tarefa da semana e cada secção com a sua tarefa do dia. A escala da guarda ao quartel estava montada e a dos oficiais e sargentos-de-dia, também; a da secção de segurança à lancha que ia buscar água a Catió; a da capinagem do campo de aviação e a da limpeza ao quartel.
Um grupo de combate montaria emboscadas, de dia ou de noite, na mata, não muito longe do acampamento, para criar insegurança e afastar tentações aos nossos vizinhos.
Faltava, porém, a dura e temida experiência do contacto directo com o inimigo, em teatro de guerra. Um dia, teria de acontecer. E aconteceu mais depressa do que se desejava.
Uma grande operação iria ser desencadeada no Cantanhez, com companhias de intervenção, pertencentes aos vários batalhões, ali ao pé, mais uma de fuzileiros e a força aérea.
À [CCAÇ] 728, ainda inexperiente, competiria apenas manter a segurança na retirada, na zona de Cufar, a uns 12 km de Catió.
Partida, de lancha, pela noitinha, até Catió, dali seguiu-se, de madrugada, estrada fora, a pé, rumo a Cufar. Lentamente e em total silêncio, foi uma noite inteira de caminho, até ao cruzamento de Cufar, que teríamos de defender.
Durante a noite, apenas se ouvia, muito ao longe e de forma dispersa, o ribombar de morteiros ou artilharia, que tanto podia ser nosso como deles, à mistura com o piar lúgubre e o esvoaçar constante da bicharada da noite, em nosso redor.
Todos tínhamos consciência de que, de um momento para o outro, poderíamos estar a ser alvejados por uma chuva de tiroteio ou por metralha pesada de bazooka ou morteiro. Daquela vez, não seria, por certo, devido a falta de cuidado de ninguém, desde o capitão ao soldado mais insignificante. Todos éramos importantes e responsáveis, por todos e cada um.
Foram doze quilmetros de tensão, palmilhados a tactear o terreno, pé ante pé, de respiração contrita.
Pelo amanhecer, envolvidos na bruma húmida de nevoeiro, estávamos a instalar as secções, ao longo da berma, virada a norte.
À medida que o tempo passava, sem nada acontecer, foi-se instalando uma certa descompressão geral. Um certo à-vontade se apoderou dos mais irrequietos. Às vezes, já se via, aqui e ali, um soldado levantado; uma conversa cochichada, mais descontraída, apesar da repressão constante dos comandantes das secções.
Não fosse o tiroteio, ao longe e disperso, mais intenso e insistente que durante a noite, o deslumbramento da floresta pujante de vida e esmagadora, nas plantas e animais, nunca vistos, ali ao nosso pé, far-nos-ia sentir maravilhados.
O último troço de estrada térrea palmilhado, até à curva, estava coberto por autêntico rebanho denso de curiosos macacos-cães, especados, em plateia, a ver a nossa vida, intrusa.
De repente, debandaram em fuga, saltando para o cimo das árvores e nela desapareceram, à boa moda de Tarzan e da companheira, Jane, para melhor… A nossa inexperiência não deixou perceber a razão da debandada. Era o aviso infalível do que lhe sucedeu, imediatamente, tal como o relâmpago arrasta o trovão…
Uma chuva intensa de tiroteio varreu, impetuosa, as nossas cabeças coladas ao chão mais fundo das bermas. Várias granadas rugiram, atrás de nós, em estrondos infernais, cavando crateras no chão e espalhando metralha mortífera em redor.
O sítio escolhido não podia ter sido melhor. Foi a nossa sorte. A reacção tardou, mas foi esmagadora. Os ânimos acenderam-se e já alguns dos nossos se levantavam, afoitos, a lançar granadas e bazucadas para o seio da mata cerrada, obrigando-os a calar e a debandar.
Uns quinze minutos medonhos que pareceram anos. Em turbilhão, tudo passou pela cabeça. Pedra Maria nunca me apareceu tão linda…Os montes de Santa Quitéria, tão verdes… O sol manso da minha terra…
O desespero e a prece levaram-me à ermida da minha aldeia:
De quem é a ermida branca,
Erguida num rochedo de pedra,
No cimo do monte mais alto
Desta terra tão formosa?…
Senhora de Pedra Maria.
Rainha de Varziela…
Quem é aquela Senhora, bela,
De manto de renda, dourado,
Alumia inteira a capela,
No monte mais elevado
Desta bem formosa terra?..
Senhora de Pedra Maria.
Rainha de Varziela…
Quem é aquela Senhora,
Lá no alto do altar…
Mais brilhante que a aurora,
De tão doce e terno olhar?…
Com ele,
Enxugou as lágrimas meninas,
De nossos pais e avós…
É a Senhora de todo o mundo…
Rainha de Varziela…
Bendita é a Rainha e Senhora
Que mora no rochedo de pedra,
No monte mais altaneiro
Das terras de Varziela,
Senhora de Pedra Maria!…
...tornando-se num sentimento vivo de fortaleza… e, por fim, a serenidade da esperança.
O bravo capitão de Évora (2), nunca o vi tão branco…calou-se, ensimesmado, durante todo o caminho, no regresso, até ao quartel. Uma semana depois, desapareceu para Bissau e ninguém mais lhe pôs os olhos… Constou que regressara à metrópole, sob custódia e nas masmorras do cárcere, sepultou, para sempre, o sonho do generalato…
Espevitados por aquele banho inesperado de fogo, dali em diante, ficámos em alerta constante para o mais leve rumor de uma nova intervenção.
Um misto de gozo sublime e de medo era a sensação que nos invadia. A exaltação total do nosso ser que a operação causara, fascinava e atraía-nos para a repetição… Ao mesmo tempo, a consciência do risco de vida, extremo, trazía-nos estarrecidos perante um simples rumor ou hipótese de saída…
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
(...) "Em dia certo de Outubro [de 1964], a Companhia 728 fez as malas e teve de avançar para o sul da Guiné [, para a ilha do Como].
"A companhia 726 já tinha seguido para Guileje, de má fama. Seria lá que tudo iria ser jogado. O nervosismo inicial, de quando se conheceu o destino, foi abrandando e o desejo geral era de que, quanto mais depressa, melhor.
"A secção de espólio, comandada pelo alferes Barros dos Santos, com o 1º sargento Santos e o sargento Gaspar, já tinha feito a recepção do material, no próprio quartel, na ilha do Como. As suas impressões não eram tão más como isso.
"A companhia que íamos render [a CCAV 488 ?] já tivera o grande trabalho de construir, de raíz, as instalações mínimas que havia e, segundo disseram, limitava-se a marcar presença no terreno. Nunca fora atacada, depois de terminar a grande operação que a deixou lá [, a Op Tridente]" (...).
(2) Vd. crónicas anteriores:
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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