Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta Virgínio Briote. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Virgínio Briote. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26479: As nossas geografias emocionais (41): Café Bento / 5ª Rep: excertos de postes e comentários - Parte I: E tudo o vento levou.... [ Luís Graça / Jaime Machado / Patrício Ribeiro / Oliveira Miranda / Hélder Sousa / Virgínio Briote / Manuel Luís Lomba / Virgílio Ferreira / José Pardete Ferreira (1941 - 2021) ]



Guiné > Bissau > s/d (c. fev / abril de 1970) > Início da Av da República... O polícia sinaleiro que regulava o "trânsito" de Bissau, e, do lado direito , vê-se a bomba de gasolina que na época era da Shell (no letreiro falta-lhe uma letra, um "l"). Tapada pelo arvoredo, a esplanada do Café Bento. É a melhor foto que temos, até agora, no blogue sobre a localização da 5ª Rep.

Foto do belíssimo álbum do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968 / fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1904 e BCAÇ 2852)

Foto (e legenda): © Jaime Machado (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Mapa de parte da Bissau Velha, entre a Avenida da República (hoje, Av Amílcar Cabral) e a fortaleza da Amura. A escuro, dois prédios que pertenciam a Nha Bijagó. Com uma estrela a vermelho, a localização do edifício do antigo Café Bento, que foi demolido. Fonte: António Estácio, em "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il.).



1. Alguns excertos de postes e comentários sobre o Café Bento / 5ª Rep:

O Café tinha o nome do seu proprietário. Há camaradas (Victor Tavares) e amigos (Lucinda Aranha) que chegaram a conhecer o senhor Bento. Vivia para os lados de Coimbra e teria uma filha médica. Mas não sabemos quando deixou a Guiné, nem em que circunstàncias, muito provavelmente por altura da independência.

O edifício, de um só piso, com uma ampla esplanada coberta de árvores, no início da antiga Avenidade da República, foi demolido. Do seu lado direito, tinha o edifício, de arquitetura colonial, dos anos 50, que era a sede da administração civil (e, depois da independència, passou a ser tribunal e tesouraria das finanças).

Interessa-nos falar do tempo em que o Café Bento era uma referência para os militares que viviam em Bissau ou passavam por lá, incluindo os "desenfiados". A famosa 5ª Rep (designação bem humorada que era aceite, inclusive, pelo gen Spínola e seus colaboradores mais próximos, do QG/CCFAG).

O Patrício Ribeiro, empresário, que vive em Bissau desde 1984, diz que já não o comheceu a funcionar. Assistiu às obras para ser um novo restaurante, de arquitetura moderna, propriedade do conhecido empresário hoteleiro, Fernando Barata que tinha negócios na Guiné Bissau (Cacheu, Bijagós...) e que foi cônsul honorário da Guiné-Bisau em Albufeira, ao tempo do 'Nino' Vieira.

" Depois foi entregue a um antigo presidente, foi alugado à RTP África, até há pouco mais de um ano. De onde retirei parte dos equipamentos, para o novo edifício da Delegação da RTP no Chão de Papel." (*)

(i) O nosso editor, Luís Graça, escreveu:

No meu tempo (1969/71) o Café (e cervejaria) Bento , era provavelmente a mais famosa esplanada de Bissau, até pela sua localização, na zona portuária.(Tem já 19 referências no nosso blogue) ...

Também era conhecido com a 5ª Rep, o maior "mentidero" da cidade: era um dos nossos locais de convívio, dos gajos do mato, dos desenfiados e sobretudo dos heróis da guerra do ar condicionado. (**)

Rcorde-se que havia 4 grandes repartições militares em Bissau, no QG/CCFAG, na Amura, mas a 5ª Rep, o Café Bento, era a mais famosa, porque era lá que paravam todos os "tugas" que estavam em (ou iam a) Bissau, gozar as "delícias do sistema"; era lá que se fazia "contra-informação", de um lado e do outro; era lá que se contavam as bravatas, os boatos e as mentiras da guerra... (Sabe-se que o QG/CFAG utilizou o Café Bento para lançar a atoarda de que iria haver uma grande operação em Buruntuma em dezembro de 1972; o PAIGC seria depois surpreendido com a Op Grande Empresa, a invasão do Cantanhez).

O Café Bento ficava na esquina da Av da República (hoje Av Amílcar Cabral) (do lado esquerdo, de quem descia), com a Rua Tomás Ribeiro (hoje António Nbana) (localização assinalada a vermelho no croquis acima publicado), no início da única avenida de Bissau, digna desse nome (a que ia da marginal e cais do Pidjiguiti até à Praça do Império e Palácio do Governador).

Do outro lado dessa artéria, ficava a Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF.

No lugar do antigo edifício do Café Bento irá constuir-se um outro, de maior volumetria, e que passou a ser, mais tarda, a sede da delegação da RTP África (hoje, com novas instalações, inauguradas em 2021, na Rua Angola, 78, Chão de Papel, já fora portanto da "Bissau Vellha", a cidadezinha colonial, a do asfalto, que conhecemos e calcorreámos.

De qualquer modo, aceitemos a "bocarra": Quem nunca lá foi, ao Café Bento, não pode dizer que esteve na Guiné, ou pelo menos em Bissau (***)

Depois, tudo o vento (da História) levou...

A Casa Gouveia passou a Armazém do Povo e o Café Bento fechou por falta de cerveja, de "apanhados do clima" (que eram os clientes e bebedores de cerveja) e, claro, da matéria-prima (que era a guerra) com que se faziam combatentes, da frente e da retaguarda, heróis, cobardes, coirões, espiões, pides,"turras", bufos, etc. (Logo ali ao lado, era a Amura, a sede do QG/CCFAG, com os seus centenários poilões.)

A 5ª Rep era a "fábrica de boatos" da guerra... Também tinha como em Saigão, "djubis" que engraxavam as botas das tropa...Nunca lá puseram, felizmente, nenhum engenho explosivo...

No final da guerra, sim, haverá um atentado terrorista contra o Café Ronda (café e pensáo, uma espelunca), em 26 de fevereiro de 1974. E foi da responsabilidade do PAIGC, que quis mostrar, no 1º aniversário da morte de Amílcar Cabral, que podia atingir alvos urbanos e civis no coração da capital...

Felizmente que a incursão pela "guerrilha urbana" ficou por ali...mas foi o suficiente para causar algum alarme entre os militares e suas famílias, que viviam em Bissau... Provocou um princípio de debandada... (Resta saber se Amílcar Cabral, se fosse vivo, aprovaria este tipo de escalada da guerra, com recurso a atentados cegos, causando vítimas inocentes entre a população civil.)

O Cafe Ronda situava-se também na Av da República, um pouco mais abaixo do cinema UDIB e do lado contrário ao deste,

Quem disse que a Guiné foi o nosso Vietname ?... Era uma das bocas com que se "emprenhavam os ouvidos aos piriquitos" quando chegavam esbaforidos e sequiosos a Bissau...


(ii) Oliveira Miranda (**)

Parabéns ao editor deste comentário que me deixou emocionado, pois o café Bento era o local onde tomava a minha cerveja, chegado do hospital militar onde estava em consulta após ser ferido em combate.

Ainda revejo passados 55 anos as piruetas que os meninos faziam com a escova de de engraxar, embora ao lado via a miséria de leprosos a pedir uns pesos (moeda local).

Passado é passado, mas não esqueço a fome, peste e guerra que alguns de nós vivemos no mato. Saudações a todos os vivos e paz àqueles que já partiram.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025 às 14:45:00 WET" (....)


(iii) Hélder Sousa (***)

(...) Assim, de repente não me faz lembrar nada o "Café do Bento".

Isto porque, tanto quanto me lembro (eu frequentei alguma vezes esse café/esplanada mas não era muito assíduo, tinha a ideia que haviam por lá "muitos ouvidos") a esplanada não seria assim tão comprida mas muito mais larga. As árvores seriam de maior porte (...)

Além disso, o espaço da esplanada, entre a estrada e a edificação do "Café" era muito maior do que se vê. (...)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 às 14:36:00 WET


(iv) Virgínio Briote (***)

Eu tive quarto em Brá, entre maio65 e 10kan67, e quando estava em Brá, ia quase todos os dias a Bissau e era frequente passar pelo Café Bento. Quando lá estava, o Solar dos 10 era mais conhecido pelo Restaurante Fonseca, onde se comia frango assado, ostras e vinhos verdes e maduros.

Entre 65/66 e a altura em que estas fotos foram tiradas não tenho dúvidas que as feições da cidade iam mudando.

A foto em questão (do Jorge Pinto, de agosto de 1974) leva-me mais para o Império (na rotunda do Palácio) e não coincide com a imagem que tenho do café Bento, cá mais para baixo, à esquerda de quem descia a Avenida.

Ainda se descia um pouco até uma pequena rotunda onde estava um polícia sinaleiro a regular o trânsito. E a seguir era a marginal e o cais do Pidjiguiti. Não posso garantir a pés juntos mas é o que retenho na memória.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 às 19:53:00 WET


(v) Manuel Luís Lomba (***)

O nosso Batalhão de Cavalaria esteve uma ano de intervenção no no Forte da Amura , juntamente com a Companhia de Polícia Militar, a que pertencia o então alferes Mário Tomé.

A esplanada com guarda-sóis e o seu edifício não são o Café Bento: o seu edifício era apenas de um piso, muito envidraçado, as mesas e cadeiras eram pintados de verde, as suas árvores eram mais corpulentas, troco e copas.

Voltei à Guiné nos princípios da década de oitenta e a esplanada eram bombas de gasolina da Galp.

A Cervejaria Somar não existia. A restauração mais importante eram o Asdrúbal, dos frangos, e o Restaurante Tropical, do bife, ostras e verde branco de Amarante, da marca Vinhos Borges.

Lembro-me de ter na mesa ao lado o tenente-coronel Fernando Cavaleiro e outros oficiais. Dizia-se que quando descia de Farim a Bissau, a malta do ar condicionado do QG entrava em polvorosa: "Vem aí a guerra!"

Também lembro de o alferes Mário Tomé, em patrulhamento, ter expulsado da esplanada do Café Bento um primeiro-sargento que se refastelara numa cadeira, os seus calções eram largos, e os seus "pendentes", por acaso bem pretos, saíam-lhe por uma perneira.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 às 19:55:00 WET


(vi) Virgílio Teixeira (**)

(...) Conheci muitíssimo bem o Bento. Mas até julho 69.

Depois disso nada sei. (...) Alguns estabelecimentos aqui referidos já não são do meu tempo.

Só em 1984 e 1985, voltei lá e já não conheci nada. Pois nada existia.

Tempos do caranho. Nunca mais vi um tasco aberto e o Grande Hotel estava em ruínas
Ficámos numa pensão perto da estátua do Honório, na rua Mondlane, de alguém que era amigo da dona de uma pensão aqui em Vila do Conde. (Esta pensão chama-se Manco da Areia.)

Tudo mudou muito depois do meu regresso em 1969 e depois em 1985.

sábado, 1 de fevereiro de 2025 às 01:44:00 WET

(vii) José Pardete Ferreira (1941-2021) (****)

Este livro, "O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971", publicada sob a chancela editorial da Prefácio, surge numa coleção , "História Militar" (...) que se reclama de um "conceito inovador": pretende conciliar a investigação historiográfica com a produção literária e memorialística, como é o caso deste livro do nosso saudoso camarada José Pardete Ferreira (1941-2021), que foi alf médico, no CAOP1, Teixeira Pinto (1969) e no HM 241 (1969/71).

O alferes miliciano médico João Pekoff (heterónimo criado pelo José Pardete Ferreira, ou se não mesmo o seu "alter ego") chega a Teixeira Pinto, ao CAOP, em meados de fevereiro de 1969 (pág. 30). Em Bissau, onde o seu batalhão de origem (que apostamos ter sido o BCAÇ 2861) desembarcou em 11/2/1969, deve ter estado alguns escassos dias, em trânsito, antes de apanhar uma DO-27 que o levou até à capital do chão manjaco , de qualquer modo o tempo suficiente para começar a conhecer alguns dos pontos obrigatórios do roteiro dos cafés e restaurantes da tropa...

Alguns eram obrigatórios como o café Bento, mais conhecido por 5ª Rep, junto à fortaleza da Amura onde estava instalado o QG/CCFAG [Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné], com as suas 4 Rep[artições].

Era o grande "mentidero" de Bissau, onde os "apanhados do clima", vindos do mato, "desenfiados" ou em trânsito, partilhavam notícias e histórias com a malta do "ar condicionado"...

Chegados a Bissau, os "periquitos" apanhavam logo ali os "primeiros cagaços", histórias tenebrosas de Madina do Boé, de Gandembel, de Guileje, etc., aquartelamentos no mato, felizmente, longe, muito longe de Bissau e do seu "bem-bom"...

Pardete Ferreira, de cultura francófona, descreve assim a 5ª Rep, com inegável bom humor, para não dizer sarcasmo, comparanda-a com a situação de um aquartelamento do mato, Tite, na região de Quínara, perto de Bissau em linha recta, pelo que, quando era atacado ou flagelado, toda a gente ficava a saber e até a ver (pp. 54/55):

"(...) Toda a Guiné Portuguesa tinha esta classificação de zona cem por cento de risco. Naquele território, era indiferente passar calmamente uma soirée [sic] na 5ª Rep ou no aquartelamento de Tite.

"Na 5a. Rep, a arma era um copo de uma beberagem qualquer, que ia aquecendo na mão e que ia sendo municiada periodicamente. O único risco era constituído pelos perdigotos, por vezes sólidos estilhaços de mancarra, que o companheiro de conversa lançava, aproveitando o estar longe do interface do corpo a corpo.

"Em Tite, que se situa mesmo em frente da 5ª Rep, do outro lado do Geba [, na margem esquerda], apenas a alguns quilómetros à vol d'oiseau [sic], a arma que se tinha na mão era das verdadeiras, daquelas que matam.

"Aquela cómoda sala do QG [Quartel General], no teatro operacional, dava lugar a um abrigo onde o combate mordia. No QG, pelo barulho podia adivinhar-se que Tite estava seguramente a embrulhar, podendo ver-se as cores das balas tracejantes e ter uma ideia da intensidade do assalto,pela quantidade e duração do fogo de artifício.

"Na 5ª Rep, assistindo-se ao espetáculo, beberricando um whisky ou despejando rapidamente uma mulher grande [ basuca ?], quase sem tempo para descascar a mancarra acompanhante, estava-se exactamente dentro dos limites do mesmo Teatro Operacional da Guerra. Todo o pedaço daquela terra era território de guerra. O risco tinha uma graduação muito relativa, embora fosse sempre uma probabilidade.

"Não se fizeram operações de black out [sic] como treino para a remotíssima hipótese de um ataque dos MiGs da Guiné-Conacry ? Houve quem dissesse que afirmar isto era um verdadeiro disparate, na medida em que os MiGs de Conacry eram de um modelo tão antigo que. se atacassem Bissau, teriam que pedir o favor de ser reabastecidos em combustível no aeroporto de Bissalanca, a fim de poderem regressar à sua base de partida" (...).



Estes excertos vão inseridos na série "As nossas georgrafias emocionais" (**).

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)

_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26459: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (53): O antigo Café Bento já não é do meu tempo, e foi vítima do "bota-abaixo"...Foi remodelado e até 2023 estave lá instalada a delegação da RTP África

(**) Vd, poste de 5 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26461: As nossas geografias emocionais (40): A Casa Gouveia e o Café Bento num conhecido postal da época, da coleção do Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74)

(***) Vd. poste de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26443: Fotos à procura de... uma legenda (192): Bissau, agosto de 1974: qual a mais famosa esplanada da cidade ? Café Bento ou cervejaria Solmar ? E esta foto é da 5ª Rep ou da Solmar ?

(****) Vd. poste de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26416: Os 111 históricos do nosso blogue, que agora passam a "senadores" (2): a entrada do Virgínio Briote, em 17/10/2005, com a publicação de um conto traducional "Ansumane, o caçador de crocodilos"


Guiné > Região de Tombali > Catió > Ganjola > c. 1967/69 > Um crocodilo apanhado por militares no rio de Ganjola. O zebro devia ser dos fuzileiros. Poucos camaradas viram, ao  vivo os furtivos crocodilos, mas havia-os por todo o lado, do rio Cacheu ao rio Cumbijá... Alguns eram pequenos e  eram confundidos com jacarés (repteis que náo existiam na Guiné nem no resto da África.

Foto (e legenda): © Alcides Silva (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Foi assim que o Virgínio entrou paara o nosso blogue, em 18 de outubro de 2005. Tratou-me cerimoniosamente por você (*): o que era natural, não nos conhecíamo-nos,  pessoalmente...  E contou-nos uma história, muito bonita, não de caça ao crocodilo, mas de amor, entre um caçador de crocodil0s, Ansumane, e a uma jovem, Cadi, que foi forçada a casar-se com outro homem...



Caro Luís Graça,

Descobri há pouco tempo o seu interessante blogue. Todos os dias à noite passo por ele e vou-me actualizando, lembrando aqueles tempos. Passei também por aquelas terras. Fui mobilizado, em rendição individual, para a Guiné em Janeiro de 65, para um batalhão que tinha participado na Op Tridente, na Ilha do Como e que mais tarde esteve em quadrícula, sediado em Farim.

Fui colocado em Cuntima, na fronteira norte. E, quando o Batalhão se preparava para regressar, ingressei nos comandos em Brá. Corri com o meu grupo a Guiné quase toda. Também fui a Satecuta, ao Galo Corubal e por lá andei 19 dias, na época das chuvas.

Tenho muita coisa escrita, coisas que guardei para mim, que fechei numa mala, quase durante 40 anos. Envio-lhe uma história que ouvi lá.

Um abraço,
V. Briote


2. Comentário do editor LG, com data de 19/10/2005:

(...) Como vês, Virgínio, a malta vai juntando peças para fazer o puzzle da memória da guerra (colonial ou do Ultramar, como queiras), sem sentimentos de culpa, sem acusações, sem vanglórias... Tem sído bonito, dizem-me,  e eu também sinto que sim. E talvez para o ano, a gente se possa juntar, conhecer pessoalmente e beber um copo. (...) (**)

_____________

ANSUMANE, O CAÇADOR DE CROCODILOS

(conto tradicional guineense, 
recolhido por Virgínio Briote)


A agitação interior que eu sentia, miudinha, contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio.

− Boa noite, patrão! 

O Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dafé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes.

 Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?

Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo. A agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu.

− O que é aquilo, Braima?

 
− Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo. Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora...

... Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Cadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres. Cadi a crescer, o coração fraco a palpitar, começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região.

Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Cadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Cadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe.

Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda noturna como era costume, viu a adorada Cadi, ao ar fresco da noite na varanda.

Cadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado.

− Tens que ser minha!.

 
− Não posso, Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou!

− Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei!

 É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher.

Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Cadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir:

− Cadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos, Cadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. 

Cadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar:

− Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Cadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane.

 
− Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos!

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de 'buco'  (#talvez ficasse melhor, diria a Cadi que lho preparasse.

−  Cadi, Cadi! 

A voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Cadi, devia estar a repousar, não a viu, Cadi, outra e outra vez o eco sem resposta. Onde estaria Cadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria?

A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Cadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, "Caaadiii!!!", …um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se!

Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse!

Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar.

Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Cadi que agora mais que nunca era sua. E,  erguendo-se para o céu, pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar!

Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

... Quando Braima acabou a história, fixei melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar.

O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão! Braima respondeu com um prolongado:

− Eh! eeeeh! 

E estalou repetidamente com a língua…

−  Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! 

Umas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida. (***)

Virgínio Briote

(Revisão / fixação de texto / nota: LG)


(#) Nota de LG: "Buco", do crioulo da Guiné-Bissau: planta medicinal de cujas folhas se faz um chá usado na prevenção do paludismo e no pós-parto. Fonte: Porto Editora – buco no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2025-01-22 18:13:25]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/buco

____________

Notas de L.G.


(*) Vd. pposte de 17 de outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)

(**) Vd, poste de 19 de outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P228: Virgínio Briote, velhinho de 65, comando, contador de estórias

(***) Último poste da série > 22 de janeiro de 2025 >
Guiné 61/74 - P26414: Os 111 históricos do nosso blogue, que agora passam a "senadores"  (1): Virgínio Briote e Rogério Freire, que hoje fazem anos

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26414: Os 111 históricos do nosso blogue, que agora passam a "senadores" (1): Virgínio Briote e Rogério Freire, que hoje fazem anos


Virgínio Briote, ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima)  e ex-alf mil 'cmd', Comandos do CTIG,  cmdt do Grupo Diabólicos (Brá) (set 1965/ set 67); nascido em Cascais, frequentou a Academia Militar; fez o 2º curso de Comandos do CTIG. Comandou o Grupo Diabólicos (Set 1965 / Set 1966); regressou a casa em Jan 1967: casado com a Maria Irene Fleming,prof de liceu, reformada; foi quadro superior da indústria farmacêutica; entrou para a Tabanca Grande em 17/10/2005 (*).

Tem mais de 300 referências no nosso blogue; é autor de notáveis séries como "Guiné, ir e cvoltar", "Brá, SPM 0418", " Memórias de um comando em Barro", "Recordando o Amadu Djaló (...)"; é editor (jubilado) do no blogue desde 11/7/2007 (**); é também autor de um dos melhores blogues intimistas sobre a experiência de um antigo combatente: Guiné, ir e voltar: Tantas Vidas" (foi descontinuado em 2008, mas pode ser acedido aqui no Arquivo.pt)




Rogério Freire (foto atual do Facebook)


Rogério Freire é autor e editor da página,  CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67), uma das mais antigas da nossa blogosfera, centrada numa só companhia e, ainda por cima, das mais completas em termos de informação (*). 

É uma página que ele vai vai mantendo, com tenacidade e paixão,  e que também está agora preservada no Arquivo.pt (última "captura" pelo robôs em 1/2/2023, 07:07).

O Rogério Freire, que foi alf mil daquela companhia, e profissionalmente foi delegado de propaganda médica e esteve ligado  à área da informática, é também um dos históricos do nosso blogue (entrou em 13/10/2005) (***), eonde tem 32 referências. e é um dos que mais se tem preocupado com o futuro dos nossos blogues e páginas na Net. Infelizmente, ele é também o único representante dos "Falcões" na Tabanca Grande... 


1.  Em   1 de junho de 2006, éramos 111, os amigos e camaradas da Guiné.  São (ou foram, alguns infelizmente já morreram: 21, ou seja, 18,9%) os históricos da I série do nosso blogue. Mudámos de "instalações" no final de maio de 2006.  Vamos recordá-los individualmente,  com destaque para os que continuaram connosco e se mostratam mais ativos ao longo destes anos.



  • A. Marques Lopes (1944-2024),
  • A. Mendes,
  • Abel Maria Rodrigues,
  • Afonso M.F. Sousa,
  • Aires Ferreira,
  • Albano Costa,
  • Amaro Samúdio,
  • Américo Marques (1951-2019),
  • Ana Ferreira,
  • Antero F. C. Santos,
  • António Baia,
  • António Duarte,
  • António J. Serradas Pereira,
  • António (ou Tony) Levezinho,
  • António Rosinha,
  • António Santos,
  • António Santos Almeida,
  • Armindo Batata,
  • Artur Ramos,
  • Belmiro Vaqueiro,
  • Carlos Fortunato,
  • Carlos Marques dos Santos (1943-2019), 
  • Carlos Schwarz ("Pepito") (1949-2014),
  • Carlos Vinhal,
  • Carvalhido da Ponte,
  • David Guimarães,
  • Eduardo Magalhães Ribeiro,
  • Ernesto Ribeiro,
  • Fernando Chapouto,
  • Fernando Franco (1951-2020),
  • Fernando Gomes de Carvalho,
  • Hernani Acácio Figueiredo,
  • Hugo Costa,
  • Hugo Moura Ferreira,
  • Humberto Reis,
  • Idálio Reis,
  • J. C. Mussá Biai,
  • J. L. Mendes Gomes,
  • J. L. Vacas de Carvalho,
  • João Carvalho,
  • João S. Parreira,
  • João Santiago,
  • João Tunes,
  • João Varanda,
  • Joaquim Fernandes,
  • Joaquim Guimarães,
  • Joaquim Mexia Alves,
  • Jorge Cabral (1944-2021) 
  • Jorge Rijo,
  • Jorge Rosmaninho,
  • Jorge Santos,
  • Jorge Tavares,
  • José Barreto Pires,
  • José Bastos,
  • José Casimiro Caravalho,
  • José Luís de Sousa,
  • José Manuel Samouco,
  • José Martins,
  • José (ou Zé) Neto (1927-2007),
  • José (ou Zé) Teixeira,
  • Júlio Benavente
  • Leopoldo Amado (1960-2021), 
  • Luis Carvalhido,
  • Luís Graça,
  • Luís F. Moreira (1948-2013), 
  • Luís Moreira,
  • Manuel Carvalhido,
  • Manuel Castro,
  • Manuel Correia Bastos,
  • Manuel Cruz,
  • Manuel Domingues,
  • Manuel G. Ferreira,
  • Manuel Lema Santos,
  • Manuel Mata,
  • Manuel Melo,
  • Manuel Oliveira Pereira,
  • Manuel Rebocho,
  • Manuela Gonçalves ("Nela") (1946-2019), 
  • Mário Armas de Sousa,
  • Mário Beja Santos,
  • Mário Cruz,
  • Mário de Oliveira (Padre) (1937-2022),
  • Mário Dias (ou Mário Roseira Dias),
  • Mário Migueis,
  • Martins Julião,
  • Maurício Nunes Vieira,
  • Nuno Rubim (1938-2023), 
  • Orlando Figueiredo,
  • Paula Salgado,
  • Paulo Lage Raposo,
  • Paulo & Conceição Salgado,
  • Paulo Santiago,
  • Pedro Lauret,
  • Raul Albino (1945-2020), 
  • Renato Monteiro (1946-20121), 
  • Rogério Freire, 
  • Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022),
  • Rui Esteves,
  • Rui Felício,
  • Sadibo Dabo,
  • Sérgio Pereira,
  • Sousa de Castro,
  • Tino (ou Constantino) Neves,
  • Tomás Oliveira,
  • Torcato Mendonça (1944-2021), 
  • Victor Barata (1951-2021).
  • Victor Condeço (1943-2010),
  • Victor David (1944-2024),
  • Victor Tavares, 
  • Virgínio Briote, 
  • Vitor Junqueira, 
  • Xico Allen (1950-2022),
  • Zélia Neno (1953-2023).
(Total=111)

Guiné 61/74 - P26411: Parabéns a você (2345): Rogério Freire, ex-Alf Mil Art MA da CART 1525 (Bissorã, 1966/67) e Virgínio Briote, ex-Alf Mil Cav da CCAV 489 e Alf Mil CMD, CMDT do Grupo de Comandos "Os Diabólicos" (Cuntima e Brá, 1965/67)

____________

Nota do editor

Último post da série de 21 de Janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26407: Parabéns a você (2344): João Graça, médico psiquiatra, nosso Grã-Tabanqueiro, filho da nossa Grã-Tabanqueira Alice Carneiro e do nosso Editor Luís Graça

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26074: (De) Caras (224): Maurício Saraiva, cofundador e instrutor dos Comandos do CTIG, cmdt do Gr Cmds Fantasmas - Parte II: Um dos momentos mais dramáticos que vivi, na sequência da terrível emboscada com mina A/C, em 28 de novembro de 1964, na estrada de Madina do Boé para Contabane, perto de Gobije (Antóno Pinto, ex-alf mil, Pirada, Madina do Boé e Béli, 1963/65)



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > c. 1964 > Emblema de braço do Grupo Fantasmas, que pertenceu ao alferes  mil 'comando' Maurício Saraiva.

Angola > CIC - Centro de Instrução de Comandos > 1963  > O alferes mil Maurício Saraiva em Angola, aquando da frequência do curso de Cmds; no CTIG  será depois promoviodo, por mérito, a tenente e a capitão. 
  

Fotos (e  legendas): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Madina do Boé > 1966 > Vista aérea do aquartelamento (1966). Imagem reproduzida, sem menção da fonte, no Blogue do Fernando Gil > Moçambique para todas. Presumer-se que a sua autoria seja de Jorge Monteiro (ex-cap mil CCAÇ 1416, Madina do Boé, 1965/67) ou de Manuel Domingues, nosso tabanqueiro, ex-alf mil, CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/66 (autor do livro: Uma campanha na Guiné, 1965/67).



1. Alferes, tenente e depois cap mil 'comando' (até  chegar a cor inf, na reforma extraordinária), Maurício Saraiva (1939-2002) foi idolatrado por uns, odiado por outros, "um mal amado", no dizer do Virgínio Briote (*)... 

A nível operacional, começou por integrar a 4ª CCAÇ (Bedanda, 1961) e,  depois de frequentar o curso de comand0s (em Angola, sua terra, 1963), voltou ao CTIG como instrutor e também como comandante operacional. 

A seguir à da Op Tridente (jan - mnar de 1964), irá  comandar o  Grupo Fantasmas, de que fez parte, entre outros, o nosso querido e saudoso tabanqueiro Amadu Djaló (1940-2015).  Recorde-se que o sold cond auto Amadú Djaló alistou-se nos comandos do CTIG, a convite do Maurício Saraiva.

O Amadu Djaló frequentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. Desse curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. Deste curso sairam ainda  os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras

Interessa-nos conhecer melhor o percurso do nosso camarada Maurício Saraiva, no CTIG, embora saibamos que ele virá a ser gravemente ferido, por mina A/P, em Moçambique, em 1968, enquanto comandante da 9ª CCmds. (Altamente medalhado por feitos em combate, é agraciado em 1970 com o o grau de Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; passaria em 1973 à situação de reforma extraordinária: vd. o seu impressiomnante CV militar, no portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar.)

Mas demos voz também àqueles que o conheceram,  para além  do Virgínio Briote (*) e da família (**). Foi o caso do António Pinto (***),  ex-alf mil inf, BCAÇ 506 (Guiné, 1963/65), um veterano de Madina do Boé e de Beli mas também um dos veteranos do nosso blogue. É mais um pequeno contributo para o seu "retrato" que o Virgínio Briote ainda há de fazer, se Deus lhe der vida e saúde... (****). 

 

António Pinto, II Encontro Nacional
da Tabanca Grande, Pombal, 2007

Um dos momentos mais dramáticos que vivi, na sequência  da terrível emboscada com mina A/C, em 28 de novembro de 1964, na estrada de Madina do Boé para Contabane, perto de Gobije


por António Pinto 

(...) A memória já me vai traindo um bocado, mas há momentos que jamais poderei esquecer e com certeza que me acompanharão para sempre. 

Guardei alguns documentos daquele tempo e, vasculhando-os, verifico que pertenci à 3ª Companhia de Caçadores, em Nova Lamego, e aos Batalhões de Caçadores, sediados em Bafatá, nºs 506 e 512 e,  finalmente,  ao Batalhão de Cavalaria nº 705.

Sobre Madina do Boé,  estive lá no 2º ano de comissão, lembro-me que fomos os primeiros a lá chegar e montar o 1º aquartelamento que ficou ao fundo da estrada, onde havia uma escola desactivada. 

Os primeiros tempos passámo-los sem sobressaltos de maior até que houve o 1º ataque, não posso precisar a data. Não tivemos feridos.

Há um episódio, no entanto, entre vários, que me marcou bastante. Vou tentar resumi-lo:

Uma tarde estávamos no destacamento, quando, de repente, ao fundo da tal estrada vimos chegar, com grande alarido,  dois ou três jipes com uma velocidade inusitada e alguém aos gritos, que só conseguimos entender quando chegaram à nossa beira. 

Era um grupo de comandos, chefiados pelo alferes  [Mauríco] Saraiva [um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de familiares seus, (dizia-se)].

Aos berros, pediu-nos viaturas e homens para efectuar uma operação (de que eu não tinha conhecimento ) nos arredores de Madina.

 De tal maneira ele estava transtornado que chegou a puxar de pistola para um furriel do destacamento, que estava a apertar as botas, tal era a sua pressa.

O que não posso esquecer é o pedido que um dos nossos soldados fez para substituir o condutor duma viatura, salvo erro, uma Mercedes, argumentando que, sendo ele pequeno ( e era-o de facto), se uma mina rebentasse,  ele saltava com mais facilidade, pedindo só para deixar tirar a capota da viatura. Não me recordo do nome dele mas vejo-o constantemente...

Essa patrulha, em que não participei, pois o Saraiva não o permitiu, foi atacada, após o rebentamento de minas. Morreram vários camaradas nossos, entre eles o referido condutor, que teve uma morte horrorosa.

Alguns desses camaradas deixaram este mundo nos meus braços e nos do médico que, na altura, estava conosco e que é por demais conhecido - o Luiz Goes, que todos conhecem, com certeza, pelos seus fados de Coimbra.

Este foi um dos momentos mais dramáticos que vivi na Guiné, para além de outros, especialmente em Beli, onde fui ferido (....)


______________

Notas do editor:

(*) 11 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25832: (De) Caras (308): Maurício Saraiva, cofundador e instrutor dos Comandos do CTIG, cmdt do Gr Cmds Fantasmas - Parte I: O "capitão Manilha", por Virgínio Briote (ex-alf mil cav, CCAV 489, Cuntima; e ex-alf mil 'cmd', Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67)

(**) Vd. poste de 6 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11531: As Nossas Tropas - Quem foi quem (12): Maurício Leonel de Sousa Saraiva, ex-cap inf comando (Brá, 1965/67) (Luciana Saraiva Guerra)

Vd. também poste de:


(...) Tenho muito material sobre o cor Maurício Leonel Saraiva. Fotos, documentos e memórias de acontecimentos, histórias que corriam na altura, outras de que fui testemunha e uma ou outra em que até fui protagonista. Gostaria de fazer um trabalho sobre o Saraiva (já em tempos encomendado pelo Presidente da Associação de Comandos, mas que não pude levar adiante).

Foi ele, o Saraiva, que como tenente me convidou a concorrer aos comandos e, dois meses mais tarde, como capitão, foi meu director de instrução.(..:)


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25862: O segredo de... (44): Aos 70 anos, comecei a ficar farto da guerra (Torcato Mendonça, 1944-2021)... Um "segredo póstumo" que chega ao blogue por mão da Ana Mendonça e do Virgínio Briote


Foto nº 2



Foto nº 3




Foto nº 8



Foto nº 5



Foto nº 1



Foto nº 4



Foto nº 10



Foto nº 9
 

Foto nº 11


Foto nº 7


Foto nº 6


Guiné > Zona Leste > Regiáo de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".



Fotos (e legendas):  © Torcato Mendonça (2007) Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. Mensagem. com data de 19 do corrente,  do Virgínio Briote: (i) nosso coeditor jubilado; (ii) ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e ex-9alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67); (iii) frequentou a Academia Militar (1962/64); (iv) autor do blogue, desativado (a partir de 2009), Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas (recuperado pelo Arquivo.pt em 25/9/2009).



No sábado ao jantar, a Maria Irene lembrou-me que era já na 2ª feira, 19, que iríamos festejar os 57 anos de união e que no dia seguinte, 20, iríamos ter em casa a festa de aniversário dos 24 anos da nossa neta Catarina e que viriam os parentes mais próximos. Estava-me a dizer que era urgente eu limpar o local onde eu tenho tudo o que é só meu, escritos, pastas, livros, tralhas.

Comecei ontem a limpeza e arrumação e foi durante esta operação que encontrei um escrito do Torcato Mendonça, nosso saudoso Camarada. Este breve escrito, que é talvez mais um desabafo, foi-me enviado pelo correio pela Ana Mendonça, sua Mulher, que ainda hoje, fala com muita saudade do seu Torcato. Não sei mas imagino que a Ana M. deve ter encontrado este rascunho nalguma limpeza que tenha estado a fazer.

Segue-se o texto, tal como está, sem qualquer correcção da minha parte. Vb





Foto nº 12
Olá Virgínio

Deves ter razão. Hoje, quando abri o telemóvel vi este post (*). De facto, quem vê caras nem sempre vê corações. 

Falei com o Luís Graça e, agora já noite, tentei escrever (escorrer?). Falhou o coração e nada escrevi. Arranquei agora umas palavras ao ler-te e ao título “Apocalipse”. Mesmo nesta amostragem de uma dúzia de fotos vemos muito.

É um rapaz que se deixa fotografar e fotografa aquela loucura ou, porque não, a loucura dele a aparecer. Melhor, se houvesse uma listagem cronológica. 

A 12 é do início da comissão, a 2 é o “Fula” que não sou, é o olhar já marcado e o fotografado sorri, feliz por ter uma criança ao colo, pois gosta delas (Foto nº 4). 

Há mais uma, com os vapores do álcool, ou o olhar louco (turvo?) na emboscada montada (Foto nº 7). 

A camaradagem com o sargento milícia (Foto nº 10),  um amigo que já se foi, certamente de morte natural ou fuzilado pelos libertadores da Pátria. Disseram os ventos que muitos dos que comigo andaram foram assim tratados.

Mansambo era mato e, aos poucos, foi sendo um aquartelamento. Quadrado com, mais ou menos, cem por cem metros, oito casernas, abrigos e mais uns edifícios sem qualificação de nome, mais tarde onde era a cozinha, a arrecadação disto ou daquilo, a enfermaria, ou os abrigos dos obuses 10.5 (Foto nº 9), atrás da tabanca com uma dúzia de
moradores. 

Ao redor estava o IN detestando o despudor daquela rapaziada (Foto nº 11). Tentaram demovê-los e nada conseguiram. Levaram forte aos fortes ataques. Até tivera ajuda de mercenários cubanos, os ataques eram mais certos, mais organizados, mas os rapazes resolviam.

Aquilo ficou fortemente gravado e não passou. Éramos, meu caro Virgínio, uns rapazes na força da nossa juventude (Fotos nºs 1, 3, 6, 8). Hoje já batemos os 70 e tentamos ir saltando um, dia de cada vez (Foto nº 5). 

Vou ao ginásio e sinto um olhar, aqui ou ali, a interrogar-se: o velhote ainda por aqui anda…e eu tento ir andando e espero que a saúde não seja tão madrasta. Comigo ou com os meus, sejam familiares, amigos ou não mas que sejam apenas seres vivos e pessoas de bem.

E, já num tom intimista, só para ele mesmo (**): começo a ficar farto da “guerra” aonde participei e que outros participaram. Parece-me qua andaram por lá e só hoje vão compreendendo o que era aquela Guerra.

(Transcrição: VB / Revisão e fixação de texto: VB / LG)

2. Comentário do Virgínio Briote ao poste P15299 (*)



Torcato:

Das inúmeras imagens que vi daqueles anos da guerra, em Angola, na Guiné, em Moçambique, as que mais me despertaram a atenção até hoje foram as que te pertencem.

E se me pedissem para dar um título a esse álbum, eu escolheria "Apocalipse". Porquê? Porque, tal como no filme 'Apocalipse Now".  de Coppola, vejo um mundo do "outro mundo". Loucura, inocência, violência, rostos falsamente alegres de jovens sorridentes, um mundo surreal.

São fotos, Torcato, que retratam uma "Mansambo" que muitos, mas mesmo muitos de nós, nunca conheceram.

Obrigado por as mostrares, caro Camarada!

Um abraço do V Briote


28 de outubro de 2015 às 21:48 




Torcato Mendonça, Fundão, 27 de janeiro de 2007.

Foto: LG (2007)

3.  Excerto de comentário anterior do Torcato Mendonça (Poste P14309):


(...) "Sim, mudei muito"! Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)



4.  Comentário do editor LG (a propósito do Poste P15299 (*) e deste "segredo póstumo" do nosso muito querido e saudoso Torcato Mendonça (****):

Em 2014 demos início a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora quatro. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... 

No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos...

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)...

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material que andamos, há anos, desde pelo menos 2004, a tentar salvar das garras do esquecimento, do abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande foi o do Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúlia, e um dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 265 referências). Foi também, de há muito, e enquanto vivo, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Foi autor de várias séries:
  • Pensar em voz alta;
  • Ao correr da bolha;
  • Estórias de Mansambo, I e II
  • Nós da memória

A partir de 2015, porém, e até por razões de saúde (da Ana e dele próprio), o Torcato Mendonça  tornou-se muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário, embora continuando nosso fiel leitor.  

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade e autenticidade. São hoje uma referência incontornável...

(...) Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas, às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... De um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste (*), quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vivia no Fundão (embora tivesse nascido no sul, sendo de origem algarvia e alentejana). São fotos da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, foi nossa. Bem como a sua edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... 

Em sua homenagem (****), voltamos a publicar estas fotos, agora mais do que reeditadas..., acompanhando a partilha do seu "segredo póstumo", que a Ana Mendonça mandou, em forma  manuscrita,  ao Virgínio Briote, e que este achou por bem não mandar para a "cesta secção"... 

(Que saudades tenho de ti, Torcato!... Que saudades temos todos de ti, camarada!)


(***) Último poste da série > 22 de maio de 2024 > uiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...