(...) "As circunstâncias extraordinárias e completamente anormais em que nos encontramos, sujeitos a todos os perigos e
consequências da guerra, e guerra a valer, impõem ao fiel servidor muito maiores deveres, grande paciência, abnegação, sacrifícios sem conta e muitas vezes dificuldades insuperáveis, que
a história mal virá a conhecer, sendo dificílimo destrinçar e
avaliar com inteira justiça os serviços prestados à Pátria, quer
colectiva quer individualmente.
"A crítica histórica tem de ser feita passados os acontecimentos, com calma e sem paixões. Não é, pois, ocasião para a
fazer. Porém os factos devem ser registados, embora, por
enquanto, não possam ser comentados, nem se possa também
investigar a sua razão de ser, o que deverá ser feito mais tarde,
recompensando-se os que cumpriram e castigando-se os prevaricadores se os houver.
"É por ter considerado estas proposições que me julgo na
obrigação de juntar a este relatório uma resenha dos factos
principais respeitante ao serviço, dos quais tive conhecimento,
a qual será completada ou mesmo corrigida com o testemunhe
dos funcionários da Repartição que agora não posso obter.
"Apresento assim um esboço de história (...).
"Também, sem dúvida, interessará sobremaneira, saber das
condições de vida dos portugueses durante o período de guerra.
Por esse motivo incluo neste relatório (que obviamente deveria
começar na data da minha posse, em 2 de agosto de 1943) a
descrição das circunstâncias de interesse para a Saúde Pública, desde o ajuntamento dos portugueses na zona de concentração
(Novembro de 1942), tanto mais que o estado de guerra, as
ansiedades e incertezas do futuro e mesmo a falta de expediente
impediram que fossem elaborados os variados documentos da
estatística normal.
"Feitas estas ligeiríssimas considerações, preâmbulo que me
parece necessário, entro agora no relatório propriamente dito." (...)
Medicamentos, Material Cirúrgico, Utensílios,
Roupas, etc.
(...) "Foi com a maior tristeza e quase com desespero que os dois
médicos a quem coube prestar assistência aos portugueses,
verificaram que, além dos seus esforços e boa vontade de bem
servir, com pouco mais poderiam contar para cumprirem a sua
humanitária missão.
"Praticamente todo o recheio do hospital
Dr. Carvalho, transferido para Quelicai, aí se perdeu; e o mesmo
aconteceu nas sedes de delegação (Aileu e Baucau) a não ser
uma malinha de mão, em que o signatário tinha juntado alguns
medicamentos de urgência e instrumentos de pequena cirurgia
para o caso, que se deu, de ser impossível empacotar para
transporte, pelo menos o mais útil.
"Em suma, ficamos reduzidos às existências das ambulâncias de Lahane e Liquiçá, as
quais eram muito pobres, salvando-se todavia alguns utensílios
de valor (autoclaves, mesa de operações, aparelho de Clayton),
livros técnicos, etc, assim como bastantes frascos com medicamentos (infelizmente de pouco valor terapêutico por serem
muito antigos) (...)-
"Feito o inventário, encontram-se ainda, em barricas e latas,
razoáveis quantidades de:
- sulfato de sódio,
- borato de sódio,
- ácido bórico,
- sulfato de cobre,
- enxofre,
- vaselina
- e permanganato
de potássio.
"Têm sido estes medicamentos, generosa dádiva da
Providência, largamente empregados.
"O material de penso existia em quantidade mínima, e temo-nos aguentado, poupando-o com a mais profunda avareza;
hoje está reduzido praticamente a zero com exceção de uma
quantidade mínima guardada para ferimentos graves, sempre
prováveis.
"Operações cirúrgicas, em condições de sucesso, são impossíveis.
Falta o material cirúrgico e de penso, luvas, batas, toalhas,
etc; e todo o material de anestesia, além dos medicamentos necessários para acudir prontamente aos acidentados. Esterilizações perfeitas também não podem ser efectuadas por não
termos petróleo para aquecer os autoclaves.
"Foi devido a estes factos que foi solicitado, que os quatro
timorenses, auxiliares dos europeus, gravemente feridos por
estilhaços de bomba (que ficaram profundamente situados nos
tecidos), a quando do bombardeamento das vizinhanças do hospital, fossem operados no hospital nipónico. Os curativos consecutivos foram feitos por mim e enfermeiros em serviço no hospital, transferindo-se mais tarde os feridos: para a ambulância
de Liquiçá, onde parecia não haver perigo de bombardeamentos.
"As operações de pequena cirurgia e os curativos de feridas
e úlceras têm-se feito todavia, utilizando-se os mais diversos
recursos como, pano de roupa muito usada (a substituir a gaze). sumaúma (para almofadar as lesões da pele), ataduras de qualquer pano e mesmo de folhas de palmeira (servindo-nos as
folhas verdes de palmeira esterilizadas à chama do álcool indígena, para tornar impermeáveis certos pensos) e tantas improvisações a que a penúria obriga.
"Foram cedidos alguns medicamentos pelas forças nipónicas. Assim receberam-se em dezembro de 1942, dois mil e quinhentos comprimidos de quinino, e em maio de 1943 uma
pequena quantidade de medicamentos, entre os quais havia 170
gramas de euquinina, que muito jeito fizeram para o tratamento do sezonismo das crianças.
"Em 18 de maio do mesmo ano
foi entregue, ao senhor Cônsul do Japão, uma lista dos medicamentos, material de penso e utensílios, essenciais para os portugueses.
"Em 10 de setembro foram internados no hospital
Dr. Carvalho dois timorenses com várias lesões traumáticas,
tendo o médico nipónico, que os acompanhou, enviado algum
material de penso para o seu tratamento.
"Em novembro, ainda no mesmo ano de 1943, registaram-se casos de varicela tendo-se pedido, e obtido, alguns medicamentos, embora em pequeníssima quantidade. Em outubro, recebemos 400 tablóides de quinino a 0,10 g." (...)
Estado sanitário da população
(...) "Não nos afligiu, até agora, o cataclismo das grandes e mortíferas epidemias que tão facilmente se instalam nos aglomerados humanos em que o ajuntamento de várias famílias sob o
mesmo teto, sem qualquer espécie de conforto, com falta de
quase tudo, desde as roupas e material doméstico até à alimentação, que por ser pouco variada e reduzida (devido à sua dificílima aquisição, visto aparecer nos mercados em pouca quantidade e com custo incrível) não corresponde às normais necessidades da fisiologia nutritiva, por lhe faltarem quantidades
suficientes de gorduras, proteínas e os princípios vitamínicos
essenciais à manutenção da vida sã.
"A alimentação é pouquíssimo variada e é quase exclusivamente constituída por feculentos (milho assado, cozido ou em papa, arroz, mandioca, batata
doce e inhames, sendo raras as batatas); fazem muita falta os
ovos, carne e peixe em quantidade suficiente, os variados legumes, fruta, hortaliças e gorduras animais ou vegetais, pois não
havendo há muito tempo o azeite de oliveira, são quase impossíveis de obter a banha e os produtos vegetais oleosos (óleos de
amendoim e de coco, e amêndoas de "quiar"— 'Canarium molucannum', Blume — ). O leite é tão pouco que teve de ser racionado pelos doentes e crianças, exclusivamente.
"Se acrescentarmos as preocupações diárias, o quase invencível desânimo, a
vida sedentária, ou para muitos os rudes trabalhos das «hortas»
a céu descoberto em clima tropical (ótimas ajudas para a acção
dos agentes microbianos), facilmente concluiremos que fatalmente seríamos presa de doença, se não fora a sorte, segundo
alguns, ou a ajuda Divina conforme a maioria crê.
"Também não
apareceram moléstias que, não existindo até agora em Timor,r poderiam ter sido veiculadas pelos soldados (dengue, cólera,
febre amarela, tifo exantemático, bilharzíase, per exemplo).
"Durante o mês de dezembro registou-se em Liquiçá e Maubara
o aparecimento de gripe com laringite e angina com carácter
bastante transmissível, doenças que o sr. Delegado de Saúde
de Liquiçá conseguiu tratar e evitar a sua difusão, lamentando-se o falecimento de duas crianças (filhas de europeus), uma
de dois anos e outra de cinco anos de idade." (...)
(ii) Eis a listagem alguns casos benignos de doenças ocorridos em 1943,
segundo o relatório da autoridade de saúde:
- sezonismo;
- disenteria bacilar e alguns casos de disenteria
amibiana crónica;
- gripe;
- reumatismo;
- anginas;
- sarna (devido
à falta de sabão) ;
- úlceras tropicais;
- corizas banais;
- parotidites;
- varicela;
- alastrim;
- cáries dentárias, com ou sem abcesso;
- boubas (entre os timorenses);
- cólicas hepáticas; e várias neurastenias e histerismos próprios das circunstâncias.
(...) "Alguns portugueses que foram forçados a viver no mato
durante meses, apresentaram sinais de beribéri: paresias e
insensibilidade ligeiras dos membros inferiores, astenia cardíaca
e edemas na face e nos pés (dorso e à roda dos maléolos). Estes
sintomas curaram facilmente com o tratamento baseado em
alimentação rica em vitamina B1.
"Infelizmente já se registaram óbitos entre a população
europeia. Os dois primeiros deram-se em Liquiçá no mês de novembro de 1943: um, devido a tuberculose pulmonar crónica (...); e outro devido a angina de Ludwig (...), ambos em adultos.
"Em dezembro faleceram duas crianças, na epidemia de
gripe com laringite e angina, de que acima falei." (...)
Direcção dos serviços
(...) "Também tive a honra de obter o assentimento de V Exª para a minha proposta da abertura imediata de um curso de
enfermagem. Esse curso tem funcionado com bastante regularidade, tendo eu escrito as lições para os alunos a meu cargo, circunstância bastante útil pois até agora não existia um guia
para o estudo dos alunos. Também, acabadas as lições, cada
futuro enfermeiro terá um formulário com os medicamentos
usuais e já conhecidos por ele o que será de grande vantagem
atendendo a que o enfermeiro isolado tem de atuar como clínico
"Em Liquiça, o senhor Delegado de Saúde [ dr. Francisco Rodrigues] faz também um curso
semelhante, devendo os exames ser feitos em abril do ano
de 1944, no Hospital Dr. Carvalho
" Os doentes internados têm sido poucos pelo motivo de os
timorenses terem receio dos bombardeamentos, preferindo viver
e... morrer no mato.
"Ao contrário, o posto médico é relativamente bastante frequentado para consulta, curativos e tratamentos ambulatórios dos quais se tem obtido resultados que
satisfazem, embora não possuamos o material de penso e desinfetantes convenientes; como felizmente nos restava um pouco
de salicilato de bismuto pudemos tratar boubas do pessoal timorense, preparando uma suspensão a 10% em óleo de coco, com
magníficos resultados, como há muito tempo foi verificado pelos
médicos desta Colónia, " (...)
(iii) O dr. José dos Santos Carvalho diz que, nesse ano de 1943, foram hospitalizados "44
doentes sendo a média diária de 7",
por doenças tais como:
- varicela,
- parotidite,
- sarna,
- feridas,
- gripe,
- úlceras,
- blenorragia
- e tuberculose pulmonar.
(...) "Faleceram 3 timorenses (parotidite complicada, 1; gangrena, 1; úlcera crónica, 1); e um chinês (tuberculose pulmonar crónica) .
"Foi também internada uma mulher em estado de parto que
verifiquei ser distócico; por felicidade existia no hospital um
fórceps de modelo arcaico, o qual, todavia, não me deixou
ficar mal. " (...)
Secretaria da Repartição
(...) "O arquivo da Repartição perdeu-se em Quelicai. Tendo sido
feita, por ordem de V. Ex. a , uma escolha de documentos nos
montes de livros e papelada constituídos por arquivos de várias
repartições, resultou encontrarem-se alguns respeitantes a esta
repartição (pouco importantes), várias revistas médicas e a
colecção quase completa do Boletim Sanitário da Colónia que
guardei e ordenei.
"Assim consegui juntar os elementos suficientes para a preparação consciente de um projecto minucioso
de remodelação dos Serviços de Saúde em que trabalho há
tempos.
Também foram encontrados estudos botânicos sobre a Colónia de Timor, que me facilitaram extraordinariamente a elaboração de um trabalho sobre medicamentos vegetais provenientes de plantas de Timor, nativas ou já aclimadas, com o fim de
divulgar propriedades terapêuticas dessas plantas, pouco conhecidas, visto que poucas drogas farmacêuticas possuímos." (..,)
Funcionários
(iv) Sobre o comportamento e o movimento dos seus funcionários, o chefe (interino) da repartição técnica de higiene e saúde, faz o ponto da situação em 31 de dezembro de 1943 (pp. 155/156).
Resumindo:
- Dos 4 médicos, 2 tinham morrido;
- O farmacêutico estava ausente;
- Dos 16 enfermeiros, 2 tinham falecido, 1 estava desaparecido e 7 estavam ausentes;
- Dos 31 auxiliares de enfermagem, 19 estavam ausentes,
- Dos 4 enfermeiros estagiários, 1 estava ausente e outro pedira a exoneração.
Ou seja, de um total de 52 profissionais de saúde, 34 (c. de dois terços) tinham falecido, ou desaparecido, ou estavam ausentes.
Conclusões