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segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26386: Humor de caserna (95): Os meus Natais de 66 e 67 no HM 241, em Bissau (António Reis)


Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > Natal de 1967 > "Foto que me foi oferecida pelo grande amigo  António Malheiro (natural de Lamego, vive no Porto)."


Foto (e legenda): © António Reis (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 1423 > Monumento funerário, à memória dos Fur Mil Condeço e Boneca, mortos na tarde de 24 de dezembro de 1966 (ainda evacuados para o HM 241). (****)

Foto (e legenda): © Ex-1º Cabo Gandra / Hugo Moura Ferreira (2006). 
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68; natural de Avintes, V. N. Gaia, é membro da nossa Tabanca Grande, nº 882; é autor de dois livrinhos de memórias da Guiné; tem página no Facebook... Vai fazer 81 anos no próximo dia 28 de fevereiro.

Gosto de reler o seu título "A minha jornada em África", com as as suas pequenas histórias do dia dia do HM 241 (Bissau), onde há uma sempre uma mistura de ternura, compaixão, humanidade, humildade, gratidão... e ironia". Tem uma boa memória.

Algumas delas tem perfeito cabimento na nossa série "Humor de caserna". Como esta que vamos aqui reproduzir, com a devida vénia, "Os Natais"...

Ele passou dois, no CTIG, o de 1966 e 1967. Um, o de 66, passado em família, a grande família do hospital, onde não faltaram oficiais e sargentos, médicos e enfermeiros, esposas que vieram da metrópole, etc., e onde não faltou nada do bom e do melhor... O de 67, bom... "também não foi mau", mesmo sem convidados... À boa melhor maneira portuguesa, ele justifica-se: havia quem estivesse pior, no mato...

Os meus Natais de 66 e 67 no HM 241, em Bissau...

por António Reis


O de 66 foi um Natal passado em família, a família do hospital mais os convidados. 

As mesas forma postas cá fora; foram os oficiais médicos e os não médicos, os sargentos... Foram muitas esposas da metrópole para passarem o Natal.

Para quem estava habituado a pouco como eu, diria que nada faltou. Na nossa mesa andava, à vez, um de nós quase sempre de pé para desenrascar o que faltava.

Para quem estava em guerra foi um bom Natal, mas para que não esquecêssemos que estávamos em guerra, não faltaram  os helicópteros com mortos e feridos, por mais de uma vez, uma das quais com um capitão, já morto (**), e outra com dois furriéis gravemente feridos.

Um deles, se bem me lembro era uma figura do mundo do desporto, conhecido por "furriel boneco": ficaram ambos na minha enfermaria. Não me lembro se morreram os dois, mas pelo menos o "boneco" morreu. (***)

Assim se passou o Natal de 66, só que depois veio janeiro e passámo-lo, nós, as praças, a comer "bianda" (arroz) ao almoço e "bianda" ao jantar, para pagar a fatura do que foi gasto na noite de Natal.

No Natal de 67, como não foram  convidados nem médicos nem sargentos, nem ninguém estranho ao serviço, passámo-lo no nosso modesto refeitório, feito em hexágonos de cimento, tendo como telhado chapas de zinco, sem nada a lembar qiue era o Natal.

Não foi mau, porque outros o passaram metidos em abrigos que tinham furado, ou tinham sido feitos com camadas de troncos de árvores, e  a frazerem uma prece para chegarem ao dia seguinte.



Fonte: António Reis, "Os Natais". In: A minha jornada de África, 1ª ed., s/l, Palavras e Rimas, Lda, 2015, pp. 75/76,

(Revisão/ fixação de texto, título: LG)

____________

Notas do editor:

(*) Ultimo poste da série > 11 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26377: Humor de caserna (94): "Ó meu alferes, telefone à minha mulher e diga-lhe que morri a pensar nela!" ... Ou para o que davam as sezões!... (Alberto Branquinho, "Cambança Final", 2013)

(**) Vd,. poste de 17 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4968: In Memoriam (32): Cap Mil Art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, CART 1613, morto pelo Sold Cavaco, na véspera do Natal de 1966

(***) Não era alcunha mas apelido: "Boneca" e não "boneco": José Manuel Caracol Boneca, algarvio de Portimão...Vd. aqui os dois furriéis, gravemente feridos, que vão morrer no HM 241 na Consoada de 1966, ambos vítimas de rebentamento de uma armadilha, no Cachil:

Álvaro Nuno Florentino Condeço, fur mil at inf, CCAÇ 1423 / BCAÇ 1858, natural de Évora,

José Manuel Caracol Boneca,  fur mil sapador,  CCAÇ 1423 / BCAÇ 1858, natural de Portimão.


(****) Vd. poste de 18 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2361: O meu Natal no mato (4): Cachil, 1966: A morte do Condeço e do Boneca, CCAÇ 1423 (Hugo Moura Ferreira / Guimarães do Carmo )

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26375: Pensamento do dia (28): "A gente, afinal, só se ri do mal que não faz mal a ninguém, nem a nós nem aos outros"... (Luís Graça)


1. Comentário ao poste P26369 (*):


Bom, João, não se pode dizer que é "humor... negro", porque a expressão (pelo menos, até há pouco tempo) é ou era "politicamente incorreta"... nem muito menos "humor... branco", para mais na tua "nova terra prometida", os "United States of America" (USA)... Seríamos logo apodados de racistas ou supremacistas...

Mas se a sentinela do Enxalé viu, é porque viu. É pressuposto a sentinela ver tudo, para lá e para cá do arame farpado... 

Portanto, a "tua" história só pode ser verdadeira e de resto tu estavas lá, entre as testemunhas (não por teres visto o "ato em si", mas por teres ouvido contar a cena e observado depois a reação do enfermeiro)...

Na época (c. 1965/67) não havia drones, por isso os nossos postes de vigia, no Enxalé,  estavam acima das nossas cabeças bem como do arame farpado. 

Algumas sentinelas tinham alucinações à noite (em Bambadinca um básico viu uma manada de elefantes ao pé do arame farpado, no meu tempo)...Não terá sido o caso do teu sentinela, que, pelo que contas,  era "de olho vivo", não lhe escapava nada ..
Mas essa "cena",  digamos,  de tipo "porno bizarro", e que ajudou a matar o tédio da tua sentinela,  não é coisa assim tão invulgar como isso, na vastidão dos nossos campos ou ou nos exíguos espaços dos nossos apartamentos... 

O comportamento sexual do "homo sapiens sapiens" (que é, antes de mais, um "bicho", um animal, primata, territorial, social e sexualmente promíscuo)...e qualquer que seja o seu fenótipo, tem uma amplitude maior que o espectro do arco-íris, as paleta do pintor, ou a imaginação do contador de "estórias"...

As parafilias, incluindo as zoofilias, são um catálogo quase infindável... E a internet está cheia de vídeos de zoofilias (pornográficas), em que os pobres  animais são vítimas de exploração sexual... (Mas, também é verdade, nunca vi os respeitáveis e púdicos partidos dos animais indignarem-se publicamente contra contra esta e outras violações dos direitos dos animais.)

Mas, abreviando... Esta "cena" diz muito sobre o "teatro do absurdo" que era aquela p*ta de guerra, bem como sobre a "miséria" do nosso quotidiano, nos Enxalés da Guiné... 

De facto, o que é que um gajo podia fazer entre duas "saídas para o mato" ou duas "colunas logísticas" até à vilória mais próxima (para se ir abastecer) ?... Nada, não havia programas de tempos livres, distrações, centros comerciais, restaurantes, cinemas, e coisas dessas... 

Então como se matava o tempo durante dois anos ? (Ainda por cima só havia duas estações, intermináveis, a da chuva e a do tempo seco, e a noite começava cedo como o caraças!)...

O leque de escolhas do combatente era muito limitado: dormir (mal), comer (porcamente), beber (muito, havendo cerveja e uisque), "jogar à lerpa", dar uns chutos na bola, escavar mais o buraco, ler e escrever aerogramas, contar anedotas (parvas), ir a Bissá comprar vacas, apanhar um "esquentamento"  (por causa de uma "cambalhota) ou uma "bilharziose" (por um simples mergulho  no rio ou travessia de uma bolanha),  e pouco mais... (E o pouco mais podia ser, por exemplo, uma minazinha A/P ou A/C, ou uma "bailarina" ou uma roquetada...).

Alguns de nós estavam à beira da loucura: a sorte da tropa é que não havia psiquiatras, e os loucos já viviam enterrados nos seus manicómios (do Enxalé a Missirá, de Mansambo a Guileje, de Jumbembém a Gadamael, do Xime a Canquelifa, etc., sem esquecer o manicómio maior que era Bissau, onde estavam os loucos mais famosos...).

João, no Enxalé, hoje estaríamos todos agarrados aos telemóveis (como estão, dizem os "mentideros" das redes sociais, os desgraçados dos soldados norte-coreanos arrebanhados para a guerra da Ucrânia, a devorar, pobres diabos, filmes pornográficos e a "tocar pívias" entre duas barragens de artilharia...).

Felizmente, João, que hoje aquele tipo de guerra, a do nosso tempo,  de guerrilha e contra-guerrilha ("subversiva e contrassubversiva", diziam os nossos "man...jores"), do toca-e -foge- senão - eu-mato-te, não mais é possível, de um lado e do outro... 

O pobre do Amílcar Cabral, se tivesse nascido setenta anos mais tarde, não ganharia coisa nenhuma, apenas a fama de ter chegado tarde demais à Guiné... Ou nem o Spínola, para se poder cobrir de "honra e glória"...

A Guiné está cada vez mais desflorestada... E com os satélites, os drones, os robôs, a inteligência artificial, o laser, etc., não há mais "heróis do ultramar" nem muito menos "combatentes da liberdade da Pátria"... 

Além disso, João, no nosso tempo havia a 5ª Rep, o Café Bento, onde, de um lado e do outro, se propalavam as pequenas grandes mentiras daquela guerra... Hoje tens uma gigantesca 5ª Rep, à escala mundial, globalizada, a trabalhar para os multimultimilionários que são os donos disto tudo...

João, começo a ter saudades das piedosas mentirolas do Café Bento... E até desses grandes dois grandes atores de opereta que eram o Cabral e o Spinola...

Mas valha-nos, ao menos, o humor de caserna!... Da "nossa caserna"....Saibamos cultivá-lo até ao fim dos nossos dias, sinal de que os nossos neurónios ainda não estão em curto-circuito...

Obrigado, mano, por este pequena preciosidade, que te ocorreu quando ias a caminho do teu ginásio, lá no teu "bairro" de Queens, em Nova Iorque... Não és só tu a rir-te sozinho com "cenas caricatas" (e afinal tão humanas) como estas, a do "dono" da bezerrinha atrás do patife do "djubi" violador... (Quiçá de bisturi em punho, já que o homem era o "barbeiro-sangrador" da companhia: eis um detalhe picaresco com que podes enriquecer a próxima versão desta "estória"...).

Às vezes também me apanho, a mim próprio, a rir sozinho de cenas destas (caricatas, estúpidas, humanas, inofensivas, inocentes, pícaras, deliciosas): a gente, afinal, só se ri do mal que não faz mal a ninguém, nem a nós nem aos outros)...

O nosso "humor de caserna baseia-se assim no velho princípio do "Primum non nocere" da medicina hipocrática (em primeir... Trocando por miúdos, pode- se dizer mal, mas não fazer mal... Nos tempos de correm, de atropelos á liberdade, há muita gente a confundir maledicência com maleficência ...

 (**)

Luís Graça
_____________

Notas do editor:

Guiné 61/74 - P26369: Humor de caserna (93): o guardador das vacas do Enxalé que violou... a bezerrinha do furriel enfermeiro (João Crisóstomo, ex.afl mil, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)

 



Guiné >  Zona Leste > Pel Caç Nat 54 > Enxalé > Agosto de 1966 >  Vacas compradas em Bissá, pelo comandante da CCAÇ 1439, cap Pires.

Foto (e legenda): © José António Viegas  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do João Crisóstomo   [(foto abaixo à esquerda com a Vilma): (i) é um luso-americano, natural de Paradas, A-dos-Cunhados, Torres Vedras; (ii) conhecido ativista de causas que muito nos dizem, a todos nós, portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes; (iii) Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, tendo sido alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): (iv) vive desde 1975 em Nova Iorque, depois de ter passado por Inglaterra e Brasil; (v) é casado, em segundas núpcias, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun; (v) tem mais de 250 referências no nosso blogue;  (vi) está aqui "atabancado" desde 26 de julho de 2010 (nº 432)].

 
Data - 9 jan 2025 02:40  

Assunto .- Humor de caserna

Caro Luís Graça,

Certos postes, uns mais que outros, como os teus recentes postes sob o tema "humor de caserna” (e dentre estes, sem desprimor para os outros, tenho de destacar os relacionados com os baseados nos feitos e vida do "alfero Cabral”) ocasionam sempre resultados por vezes inesperados. 

De repente vejo-me a reler (pela terceira ou quarta vez) as “Estórias Cabralianas”, ou outros livros que me tocam por dentro e por fora. E não é a primeira vez que isso sucede: neste caso porque Missirá foi quartel general para tantas “estórias" e histórias, esta tem-me levado a reler os livros do Beja Santos, o livro do Abel Rei, e outras fontes que me fazem vaguear por essas terras por onde também andei. 

Por acaso até mais cedo que a maior parte destes nossos camaradas: eu estive lá em 1965 a 1967 ; o José António Viegas, em 1966; o Abel Rei esteve em 1967/68; e o Beja Santos de 68/69, o Jorge Cabral, em 1970/71, o que me faz “sénior" senão na intensidade de experiências vividas, pelo menos na escala cronológica.

Mas desta vez a minha vagueação andou mais por Porto Gole e por Enxalé, sede da minha companhia, a  CCAÇ 1439. E comecei-me a lembrar de coisas que lá vivi, algumas delas más, mesmo muito más; e outras boas, algumas muito boas. Boas, no sentido de bom ambiente e camaradagem que lá experimentei. 


Vilma e João (2013)


Lembro que a nossa companhia era muito diversificada quanto a crenças, valores e costumes. E havia uma compreensão grande e aceitação por parte de todos das posições dos outros, mesmo que estas fossem completamente diferentes das suas. Eu verifiquei e experimentei isso várias vezes. 

 Mas entre as "outras boas” …"muito boas mesmo”, lembro-me de algumas que ainda hoje me fazem rir. Hoje de manhã foi uma destas ocasiões.

Estávamos a caminho do ginásio, que eu a Vilma frequentamos (ela pelo prazer da natação e sauna;  e eu porque a minha velhice exige exercícios terapêuticos aquáticos). 

 A Vilma, enfermeira de profissão, que agora,  além de ser minha esposa,    acumula os encargos de chofer, deu comigo a rir sózinho e perguntou-me qual a razão. 

Contei-lhe então que há poucos dias, nos vários telefonemas que fiz para dar um abraço de Boas Festas, vim a saber que alguns dos meus colegas na Guiné estão, como me sucede a mim, duma maneira ou outra experimentando os efeitos da idade. E que me veio à memória uma história engraçada de um deles, que por acaso até era o furriel enfermeiro da Companhia. E vi que a curiosidade dela, enfermeira, arrebitou imediatamente. Aqui vai a "estória" para a série... "Humor de caserna". JC

PS - A "cena" passa-se no Enxalé ( que a Vilma agora já "conhece", pelos contactos com camaradas e pelas muitas vezes que dele falo).


Humor de caserna > o guardador das vacas do Enxalé que violou... a bezerrinha do furriel enfermeiro

por João Crisóstomo 


O furriel enfermeiro da CCAÇ 1438, como profissional era extraordinário, com conhecimento práticos muito além dum simples enfermeiro, sendo-lhe creditado ter salvo a vida a vários camaradas que,  se não fora os seus vastos conhecimentos de enfermagem (até de operações cirúrgicas de emergência não tinha medo), teriam perecido  ("lerpado") mesmo antes da chegada dos helicópteros. 

Como homem,  era muito calmo, sem grandes exuberâncias, aparentemente introvertido, mas sempre amigo de toda a gente e, como tal,  respeitado por todos. Nunca da sua boca se ouvia uma palavra menos respeitosa.

No Enxalé havia um terreno onde se cultivavam vegetais para suprir a sua muita falta na cozinha. Outras faltas tentavam-se solucionar, comprando galinhas e mesmo vacas nas tabancas vizinhas.

 O nosso capitão Pires fazia questão de ser ele a  negociociar quando se tratava de comprar vacas, ou bezerras, que geralmente eram compradas na tabanca dos balantas na região de Bissá. E nestas ocasiões fazia-se acompanhar pelo furriel enfermeiro. Não sei se este era o encarregado do tal terreno para cultivo de vegetais e do cuidado das vacas por nomeação ou se ele mesmo se tinha oferecido para essa tarefa. 

A verdade é que se notava que o fazia com prazer, com todos os cuidados para que as suas vacas pudessem pastar à vontade e até fossem protegidas do calor e outras intempéries quando elas sucediam.

Depois da "ida à feira",    por vezes sucedia haver 3 ou mais vacas no Enxalé ao nosso cuidado. E era frequente ver o nosso enfermeiro tratando as suas vacas,  parecia mesmo  com compaixão, sobretudo para com as mais jovens, sabendo do destino que as esperava.

Para isso ele tinha como ajudante um rapaz dos seus 14 ou 15 anos que havia sido capturado aos "turras" e agora “pertencia” à nossa companhia.

Lembro uma dessas ocasiões em que haviam duas vacas na altura,  no Enxalé. Um dia, não me lembro quantos éramos , mas sei que eu e o tal furriel enfermeiro fazíamos parte dos muitos, próximos ou junto ao bar , uns fumando e cavaqueando, outros, como eu, bebendo a nossa cerveja Cristal ou outras libações. 

 E como sucedia frequentemente veio à baila, na conversa entre o pessoal, o assunto  das bajudas, lavadeiras, e suas relações com o pessoal.  E foi então que um soldado que acabara de fazer o seu turno de sentinela,   se saiu com o inesperado: que "o rapaz,  o ajudante na lida e cuidado das vacas, com certeza ainda não tinha conseguido bajuda própria, pois ele o tinha visto a descarregar a sua tensão de jovem frustrado, montado num das vacas ao seu cuidado.”

A reação foi uma risada pela maior parte dos que ouviram o acontecido. Outros pareceram prestar pouca atenção; entre estes o nosso enfermeiro, mas, que de repente, como que a despertar dum sonho, perguntou num súbito berro : 

  Qual delas , qual delas ?!...

E ao ouvir que a sua bezerrinha de estimação tinha perdido a virgindade e sido ela o objeto da predileção do seu ajudante, o nosso pacato enfermeiro, correndo e rugindo de raiva, gritava : 

– Ai seu filho da p*ta, seu grandessíssino c*br*o,  que te vou matar!!!...

João Crisóstomo

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título: LG)

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7 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26357: Humor de caserna (92): "Então a senhora não me conhece ?!...Foi-me buscar a Bambadinca quando eu fui ferido!"... (Maria Arminda Santos, ex-ten grad enfermeira paraquedista, FAP, 1961/70)

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26178: Humor de caserna (82): "Anestesiado... com uísque" (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68)


António Reis

António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68; natural de Avintes, V. N. Gaia, é membro da nossa Tabanca Grande, nº 882; é autor de dois livros de memórias da Guiné; tem página no Facebook.


1. Gosto de ler ou reler histórias dos nossos camaradas que pertenceram aos serviços de saúde miilitar, dos médicos aos enfermeiros, sem esquecer as nossas enfermeiras paraquedistas, as únicas mulheres que foram, em boa verdade, nossas camaradas de armas.

Mas esta "cena" que selecionei (*),  passa-se no HM 241, o hospital militar de Bissau,  onde o nosso já conhecido António Reis fez a sua comissão de serviço e conheceu a guerra, ou melhor, as vítimas da guerra. 



Vem contada, de maneira singela e despretensiosa (mas com a sua habitual pontinha de bom humor e empatia, ingredientes afinal fundamentais para quem cuida dos outros e salva vidas, seja na guerra ou na paz), no seu livrinho de memórias do HM 241, "A minha jornada em África".  Coim a devida vénia... e apreço.



Humor de caserna (82) > Anestesiado com... uísque 

por António Reis


Não ter cão e caçar com gato era o que acontecia em situações adversas. As dificuldades eram muitas das vezes tremendas.

Um dia, chegou um, como normalmente, de helicóptero. Aparentemente os ferimentos não eram graves, mas o nosso homem vinha num estado que os ferimentos não justificavam: não dava acordo de si.

Era uma moço ainda com a cor da metrópole, devia pertencer a alguma companhia ainda recém-chegada, de "periquitos" (como lhe chamávamos). Daqueles a quem o sr. Amíklcar Cabral gostava logo de lhes fazer o batismo de fogo, pois companhias havia que ainda não tinham oito dias de Guiné e já tinham baixas, feridos e mortos.

Foi então que se reparou num papelucho que vinha por baixo dos pés, e onde lia: "Anestesiado com uísque"...

Era assim; quem náo tinha cão, caça com gato.

Fonte: António Reis, "Quem não tinha cão caçava com gato". In: A minha jornada de África, 1ª ed., s/l, Palavras e Rimas, Lda, 2015, pág. 71

(Revisão/ fixação de texto, título: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26143: Humor de caserna (81): "Há ouro em Bafatá ?!"... A imaginação febril dos serôdios "garimpeiros" coloniais... (Excerto do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951, suplemento especial dedicado às províncias ultramarinas que, em revisão constitucional, tinham acabado de deixar de ser colónias)

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26094: Estórias do Zé Teixeira (65): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (2) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem de 28 de Outubro de 2028, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos o relato da aventura do seu amigo Sáculo que ambicionava a qualquer custo vir fazer a sua vida em Portugal. Hoje publicamos a segunda e última parte


Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará
O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (2)



– Pois é! Talvez não soubesses que quando se caminha sem orientação, sobretudo no deserto, temos tendência a andar em círculo  
–  disse-lhe eu.

– Andar em círculo porquê? Nós seguimos em frente, sempre em frente 
– esclareceu o Sáculo.

– Só consegues andar em linha reta, quando te orientas pelo sol, ou pela lua. As pessoas, normalmente, têm uma perna mais comprida que a outra e por consequência o tamanho do seu passo, não é igual, ou seja, a perna mais comprida dá um passa mais largo, o que leva a pessoa a fazer um desvio sistemático nessa direção. Este andar em círculo, que pode ser maior ou menor, em função da diferença na altura da perna. Eu, por exemplo, tenho uma diferença de cerca de meio centímetro. Talvez o meu círculo seja grande, e também temos de considerar a possibilidade de termos uma perna mais forte que a outra, o que também pode afetar a direção, quando não temos referências, porquanto a perna mais forte tem tendência a ser mais rápida.

– Desconhecia esses fenómenos. O certo, é que, sem querer, estávamos de regresso ao Senegal. Talvez tenha sido a nossa salvação. A polícia de fronteira prendeu-nos de imediato. Ali ficámos dois dias, mas como não tínhamos nem dinheiro nem comida, éramos um problema para a polícia. Quando passou o primeiro camião, o comandante mandou-nos subir e ordenou ao motorista que nos levasse para Linguère e nós lá fomos.

E prosseguindo:

–  Só que o camião não ia para esta cidade e o motorista deixou-nos num cruzamento, a meio do caminho. Tentámos arranjar trabalho, mas fomos apanhados pela polícia que nos voltou a prender. Eram muitas bocas a pedir pão e a polícia não tinha dinheiro, nem soluções. Eu era o único que sabia falar francês e ia-me desenrascando. Ao fim de dois dias, por ordem da polícia, voltamos a subir para outro camião que passava, que nos levou até Dacar. Procurei o meu primo que era pescador, fomos à Embaixada da Guiné-Bissau regularizar a minha situação e fui para pescador com o meu primo.

– Regressado à tua terra acabou-se a aventura, e que grande aventura!

– Já tinha outro plano em mente. Eu continuava a sonhar com Lisboa. Se não podia ir por terra, tinha de ir por mar. Fiquei em Dacar e fui à pesca na canoa do meu primo, para ganhar algum dinheiro e para me habituar a andar de barco. Nos primeiros dias não pesquei nada. Passei o tempo a vomitar estendido no fundo da canoa. Com o tempo fui-me habituando e até cheguei a apanhar um susto. Valeu-me a forma como os pescadores estavam organizados para sua segurança, ou seja, cada canoa tinha quatro horas para andar no mar, e só podia ir para determinada área. Se ao fim de quatro horas não regressasse, os pescadores que estavam em terra iam à sua procura.

Continuando, diz o Sáculo:

– Eu fui pescar com dois amigos para uma área que já conhecia. Num momento, sem contar, a canoa virou-se e foi ao fundo. Conseguimos ficar agarrados a umas tábuas e ficamos a boiar. Aguentamos, uma hora ou mais, até vermos ao longe duas canoas que vinham em nosso socorro. Safamo-nos.... Eu tinha um tio em Lisboa que tu deves ter conhecido, mas já morreu. Era filho do Samba e estava na milícia no tempo da guerra. Soube que ele estava em Bissau, fui ao encontro dele e pedi para me trazer para Lisboa. Ele era embarcadiço num barco de carga, era o que eu precisava, mas ele esqueceu-se. Escrevi-lhe várias vezes para Lisboa, pedi à minha mãe para o chatear. Eu até já estava zangado com ele, quando recebo uma mensagem para ir falar com um sujeito que estava num cargueiro ao largo de Bissau. Escondi-me no cargueiro e vim parar a Tanger. Já estava perto de Lisboa. Depois foi fácil. E já lá vão trinta anos.

– Entraste em Portugal no ano de… deixa-me fazer as contas…

– Ano de 1994, quando cá cheguei. Ainda me lembro que estava muito frio e eu andei uns dias à procura da casa do meu tio. Depois fui para as obras e nunca mais parei.

– Bateste o recorde. Dez anos para chegar de Bissau a Lisboa. Foste um homem corajoso. Parabéns!

– Era um sonho que nasceu em mim, quando os militares vieram embora, em 1974. Agora é tempo de me reformar, mas não quero voltar para a Guiné. Gosto muito de Lisboa. Tenho cá a minha família, a mulher e os filhos, imãs e sobrinhos. Toda a gente está cá, está na Suíça, está na Alemanha… e sabes quem está nos Estados Unidos a trabalhar numa empresa de segurança privada? O Iero, o meu primo, que casou com a minha sobrinha, a Djuvae, filha da Auá, a minha irmã, tua amiga.

– O quê? O sacaninha do Iero está na América?

… … … ... ... ...

A conversa não ficou por aqui. Quis que eu e minha mulher, mais a Auá e a Djubae entrássemos para o seu carro, creio que um Fiat Punto, e fossemos dar uma volta por Lisboa. Foi tempo para eu e ele voltarmos à Guiné, aos meus tempos de enfermeiro militar e ele uma criança de seis anos que todos os dias me vinha dar os bons dias e ficava à espera de um naco de casqueiro.

A Auá teria uns vinte anos e estava casada com um soldado da milícia.

Nas minhas idas à Guiné reconheceu-me, chamou-me pelo nome, reavivamos bons momentos e reativamos a amizade. O Bemba, seu marido está na Guiné. Foi ferido em combate e conseguiu, muito mais tarde, com ajuda do seu antigo comandante, a cidadania portuguesa. Ela veio a Lisboa visitar a irmã e tratar a saúde.

Sempre que eu vou à Guiné, vou a casa deles comer cabrito. O Bemba já ca esteve e fui visitá-lo a Lisboa. Agora veio a Auá e fui almoçar a casa dela, um petisco à moda da Guiné.

Ela está de regresso à sua terra. O Sáculo fica por cá. Um dia vou trazê-lo a minha casa para fazermos umas contas. Quero saber quem se apossou da minha marmita com um saboroso naco de vitela assada na brasa, naquele dia 14 de novembro de 1968 em que fomos atacados à hora do almoço. Eu pousei a marmita para me proteger e fiquei sem almoço, eu e os meus colegas, que foram a correr defender as suas posições e afastar os intrusos que queriam almoçar connosco, o rancho melhorado ganho através de um tiro de G3 perdido na noite anterior que matou uma vaca do Régulo.

José Teixeira
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Nota do editor

Vd. post de 29 de Outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26091: Estórias do Zé Teixeira (64): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26091: Estórias do Zé Teixeira (64): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem de 28 de Outubro de 2028, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos o relato da aventura do seu amigo Sáculo que ambicionava a qualquer custo vir fazer a sua vida em Portugal.


Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará
O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1)


Eram dois “putos reguilas”, o Sáculo e o Iero, que todas as manhãs, mal sentiam a minha chegada ao barraco da cozinha para “matar o bicho”, corriam alegremente ao meu encontro, e me saudavam de mão estendida e sorriso aberto: “ocurame casqueiro”! Era o mesmo que dizer, numa mistura linguista de dialeto étnico Fula e Português de quartel 

– Dá- me um bocadinho do teu pão!

Já passaram cinquenta e seis anos.

Teriam uns cinco, seis anos, quando nos despedimos, numa manhã de sol bem quente, no mês de fevereiro de 1969. Continua a bailar-me na mente essa manhã em que chorei de alegria e tristeza, enquanto recebia os abraços de despedida daquela gente, humilde, alegre, comunicativa e sobretudo sedenta de paz, e que me ensinou tanta coisa para a vida.

Continua no meu coração a imagem daquela mãe, cujo nome jaz debaixo do pó, que com o tempo sombreou a minha mente. Naquela manhã, da minha partida, depositou a criança nos meus braços, e com os olhos rasos de lágrimas disse num tom suave e firme: 

–  A tua mulher quer ir contigo!

Trouxera-me, uns tempos antes, a bebé, uma menina linda como o sol, ferida pelo paludismo que a minara em tão grande profundidade que a temperatura corporal rondava os 42º C. Já nem força tinha para gemer. Ao fim de dois dias de luta e as dores da incerteza, consegui voltar a ver o seu sorriso. O seu palrar de bebé feliz encheu de novo a casa de sua mãe, e eu tive de a receber como minha mulher. Tão pequenina e tão linda!

Pensava eu que a minha despedida seria para sempre, mas não foi.
Mampatá 2008 > A mãe da Maimuna, a minha bebé
Foto: © José Teixeira

Podia escrever sobre os acontecimentos, que pela vida fora, nos foram aproximando, mas vou apenas escrever sobre a aventura do Sáculo.

Era um dos muitos filhos do Régulo local. Ainda criança foi para a escola corânica. Segundo me disse, há dias, quando nos reencontrámos, passados cinquenta e seis anos. O pai enviava os filhos machos alternadamente para a escola portuguesa e para a escola corânica. A ele tocou-lhe a escola corânica. Com a morte do pai e pouco depois, a independência da Guiné, muita coisa mudou, e o Sáculo partiu à aventura para Bissau, sempre a alimentar o sonho que lhe enchia a alma – vir para Lisboa.

Dias duros e difíceis se seguiram, mas o sonho perseguia-o.

Estávamos em meados dos anos oitenta. Na sequência da mudança política que se operara na Guiné, com o golpe do Nino Vieira para afastar do poder os líderes do PAIGC de origem cabo-verdiana, a vida tornou-se ainda mais difícil. Era tempo de tentar a sua sorte. Era tempo de dar vida ao sonho que o perseguia há dez anos – vir para Lisboa à procura de uma vida melhor. Junta-se a um grupo de jovens quem como ele, alimentavam o mesmo sonho, sabe-se lá porquê.

Paga 2.500 USD a um engajador que lhe garantia a chegada por terra a Portugal, faz uma trouxa e parte à aventura.

Logo se apercebe que o cansaço, mais a fome, a sede e o calor iriam ser os grandes inimigos. O frio à noite também era insuportável, mas nada o fazia desanimar. Lisboa estava a dois passos, para quem tinha tanta vontade de lá chegar. Talvez desconhecesse que havia mais de seis mil quilómetros de terra para palmilhar, um mortífero deserto para atravessar, muitas matreirices dos engajadores para combater.

– Até à fronteira com o Senegal, foi fácil. Estava na minha terra. O grupo estava animado e cheio de coragem. Os pés voavam, tal era a ansiedade e a vontade de chegar ao fim da viagem. Quando entrei em Dakar no Senegal, olhei para trás e senti que não havia retorno.

Seguimos, até à fronteira com o Mali. Ao chegar à fronteira, o guia a quem tinha pagado 2.500 USD,  entregou-nos a outro guia e desapareceu. O novo guia exigiu mais 2.500 USD para nos acompanhar e indicar o melhor caminho. A primeira grande surpresa foi a traição do guia, que nos abandonou. Outras se seguiram, mas, uma coisa era certa, chegar a Lisboa não seria assim tão fácil como sonhara.

Talvez os engajadores, na sua ânsia de “ganhar dinheiro”,  me tivessem induzido em erro.

Até chegarmos à fronteira tudo nos parecera fácil. Conseguimos trabalho pelo caminho para arranjarmos dinheiro ou comida. Agora, sentíamo-nos inseguros pelo abandono do guia e só víamos areia à nossa frente. Era o deserto maliano, arenoso e seco, com um calor insuportável durante o dia, e um frio noturno de bradar aos céus, que tínhamos de atravessar. Os que tinham dinheiro continuaram em frente, os outros desejaram-nos boa viagem e voltaram para trás. Talvez se tenham perdido no caminho. Nunca mais os vi, e já lã vão cerca de quarenta anos.

O tempo passava a correr. Dia após dia, a andar sem descanso. Semanas terríveis, em que o cansaço físico que se apossou de mim. A sede atormentava-me, e a comida escasseava, mas a força anímica tudo superava.

Seguiram-se muitos dias de caminhada até à fronteira com a Argélia em pleno deserto do Saará.
Um aspecto do deserto do Saara
Foto com a devida vénia a BBC News Brasil

– Não entendo porque tiveste de atravessar o Mali e a Argélia se o caminho pela Mauritânia era mais direto 
– disse-lhe eu. –   Já fiz esse caminho duas vezes, por ser o mais curto. É um caminho seguro, em estrada com grandes retas. Já devia existir nesse tempo, com ligação entre a fronteira de Marrocos com a fronteira do Senegal. Nesse tempo o povo saarauí, liderado pela Frente Polisário estava em luta aberta com Marrocos pela sua independência do Saara Ocidental e talvez o percurso não fosse seguro...

– Não te sei responder. Eu estava a pisar terreno desconhecido. Para mim tudo era novo. O deserto, os oásis onde nos recolhíamos, as aldeias no meio do deserto, as cáfilas de camelos a “pastar”, tudo era novidade.

E o Sáculo prosseguiu a sua narrativa;

–  Chegados a um local desértico que o “passador” disse ser a fronteira argelina, apontou-nos a direção em que devíamos seguir, até encontrar uma cidade e desapareceu como por encanto. Ali ficamos cinco jovens com uma vontade danada de chegar a Portugal, perdidos no deserto, com poucos alimentos, alguma água e muita areia para pisar, sem um caminho, uma pista a seguir.
Fomos deixando pelo caminho tudo o que era empecilho, menos o garrafão de água que cada um tinha consigo e a parca comida ressequida. Seguimos na direção que nos fora indicada pelo bandido que nos traiu. Pensamos em voltar para trás, mas não sabíamos como encontrar o caminho de regresso. Era seguir em frente ou morrer. O que mais víamos eram ossos de pessoas, crânios, braços pernas… Eu pensava: 'Não me vai acontecer a mim o que aconteceu a esta gente. Eu vou seguir em frente!'... Mas quanto mais andávamos mais o desânimo se apoderava de nós.

E confessa o meu amigo:

–  Imagina a alegria que sentimos, quando ao longe surge uma bandeira no cimo de mastro, que nos fez apressarmos o passo. Não tínhamos forças para correr.

Quando lá cheguei fiquei abismado, estava na fronteira com o Senegal.

(Continua)

José Teixeira

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Nota do editor

Último post da série de 8 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25494: Estórias do Zé Teixeira (63): O “Diário” do José Cuidado da Silva (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26024: Facebook...ando (64): Nunca me esqueci nem esquecerei por muitos anos que viva (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68; natural de Avintes)





António Reis, hoje e ontem: ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68;  natural de Avintes, V. N. Gaia, senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 882; é autor de dois livros de memórias da Guiné; tem página no Facebook.



Espinho > 20.º Encontro do Pessoal do HM 241 (Bissau) > 7 de Outubro de 2023 >  O António Reis e a esposa, Rosa, na convívio anual do pessoal do HM 241 (Bissau)


Fotos (e legendas): © António Reis (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro de  António Reis, "A minha jornada de África", 1ª ed., s/l, Palavras e Rimas, Lda, 2015, 111 pp. 



1. Da página do Facebook do António Reis,  nosso tababqueiro nº 882, reproduzimos, com a devida vénia, a seguinte postagem de 27 de junho de 2024, 11h24:


Nunca me esqueci nem esquecerei 
por muitos anos que viva

por António Reis


Era uma enfermaria de três camas; passou por ela desde o general Arnaldo Schulz, o "governador", aos turras. Esteve sempre aos nossos cuidados. Depois passou para reanimação e aos cuidados do sargento Alves.

E foi neste tempo e espaço que o dr. Machado lamentava a morte de um alferes que acabava de morrer, ainda na maca, com um estilhaço na cabeça. Era o sétimo desde que lá chegou, dizia ele. E foi o sargento Alves, da reanimação, a entrar na minha enfermaria e a dizer para o sargento Claro, meu chefe, com ar pesaroso e lágrimas nos olhos: «Não tenho sorte nenhuma, os doentes morrem-me todos!».

Era na verdade uma dor de alma ver aqueles moços com 20 anos morrerem, mas a culpa não era da sua sorte, sargento Alves, era do estado em que eles lá chegavam, e o dr. Fernando Garcia não os conseguia salvar a todos.

A culpa também não era tua, Zé do Mato - a ti mandaram-te para lá, que ias defender a Pátria. Tu, Zé do Mato, que eras o que mais sofrias e mais morrias, que quando te obrigavam cumprias, quando te pediam, cedias. Tudo em nome da Pátria! 

O que tu não sabias é que a Pátria te ia ser tão ingrata. Usou-nos e deitou-nos fora. Nunca mais quis saber de nós. Mas louvou os desertores, os delatores e muitos mais, e ainda com direito a insultar-nos. Mas disto não me atrevo a falar do que li.

Agora fala-se em indemnizações. As primeiras a serem indemnizadas seriam as nossas mães, que foram as que mais sofreram, os deficientes, os espoliados que deixaram lá uma vida de trabalho e aqueles que ficaram marcados, o que lhes dificultou o resto da vida. Estes sim, era em nome da Pátria, já que a nós não nos contemplou como prometeu!

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P25999: Facebok...ando (63): "A Última Ceia", por Manuel Serôdio, desenho (ou pintura ?) deixado na messe de sargentos em Empada, ao tempo da CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (1967/69)

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26020: Timor Leste: Passado e presente (24): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo III: a situação sanitária em 1943: de 52 profissionais de saúde, 34 (c. de dois terços) tinham falecido, ou desaparecido, ou estavam ausentes



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 16690 > Ambulància



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 16949 > Tecelão



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto  16927 > Vida social e familiar  > Mulheres, jovens e crianças



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 17047 > Uma escola em Balibó



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto  16994 > O farol de Díli

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo coma Wikimefdia Commons. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)


O Álbum «Colónia Portuguesa de Timor», mais conhecido por «Álbum Fontoura», nome do governador que o mandou elaborar em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho, contém 549 fotografias relativas a:~

  •  «grupos étnico-linguísticos e tipos em geral», 
  • «trajos, ornamentos, pertences e armas», 
  • «vida familiar e social», 
  • «formas de trabalho (…), arte indígena e instrumentos musicais» 
  • e «acção civilizadora e colonizadora». 

O exemplar do álbum, recuperado após Abril de 1974 pelo antropólogo, professor António de Almeida, foi depositado no AHS (Arquivo Histório Social, ISC/UL), pela «Família Almeida», através do Doutor Pedro Cardim. (Fonte: AHS/Album Fontoura)

 
O coronel Álvaro Fontoura (Bragança, 1891 - Lisboa, 1975), foi "governador de Timor entre 1936 a 1940 e é-lhe atribuída a ideia de organizar o Álbum Fontoura". 

Era então major de infantaria. Licenciou-se em engenharia civil na Universidade do Porto e foi professor do Colégio Militar entre os anos de 1925 a 1937, da Escola Superior Colonial entre 1932 a 1947 e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas (ISCSPU) / Universidade Técnica de Lisboa entre os anos de 1939 e 1961.

Será depois chefe de gabinete do Ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado, de 1940 a 1944, presidente da Junta Central de Trabalho e Emigração do Ministério do Ultramar de 1937 a 1960 e Diretor dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Como parlamentar participou como deputado da IV Legislatura (1945 - 1949) pelo círculo eleitoral de Macau.


1. José dos Santos Carvalho (de quem não temos uma única foto) foi médico de saúde pública, no território português de Timor, ao tempo da ocupação estrangeira da ilha (primeiro, da parte dos australianos e holandeses, e, depois,  dos japoneses). Médico,  exerceu as funções de chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, desde meados de 1943.

Fora colocado, em  meados de 1940, em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".  Devido à guerra, levou alguns meses a chegar ao território. Desembarcou em Díli nas vésperas do ano novo de 1943.

O livro que escreveu sobre Timor durante a ocupação japonesa,  baseia-se nas suas recordações e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio.   .

Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde relativos a 1943, 1944 e 1945  (pp. 142-194), que têm igualmente interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor, relatórios esses que ele nunca deixou de fazer,  apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico e  chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. Não sabemos se chegaram, na altura, ao conhecimento de quem de direito, para além  do governador da colónia (que esteve, na prática, durante os três  anos de ocupação, na situação de refém dos japoneses e sem comunicações com Lisboa).

O livro, de 208 pp.,  ilustrado com algumas fotografias, foi escrito, em 1970, quando passavam  já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe. 

O livro e o autor merecem não ser esquecidos. 

Imagem à direita: Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp. , il... Livro raro, só possível de encontrar em alfarrabistas, ou então no Internet Archive, em formato digital; está registado na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, podendo ser encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal e no Instituto Científico de Investigação Tropical.

Sobre a situação da saúde da população nessa época e naquele território, bem como sobre a organização e funcionamento dos serviços de saúde naquela longínqua colónia portuguesa do sudeste da Ásia, vamos reproduzir aqui alguns excertos e apontamentos. A sua leitura ajuda-nos a perceber até que ponto a saúde e os serviços de saúde são vulneráveis em situações-limite como a guerra com todo o seu cortejo de horrores.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo III:  Relatório dos Serviços de Saúde 
(Ano de 1943) (pp. 142-148)

 
(i) Como bom funcionário público e representante da autoridade de saúde, no apogeu do Estado Novo, o dr. José dos Santos Carvalho, médico de 2ª classe, não deixou de cumprir os seus deveres, apesar da ocupação do território por forças estrangeiras, e nomeadamente japonesas (entre 20 de fevereiro de 1943 e 2 de setembro de 1945). 

Recorde-se que dos quatro médicos existentes no território, dois morreram. alegadamente por suicídio: o dr.  Diniz Ângelo de Arriartre Pedroso (Aileu, 1 de outubro de 1942), e o dr. José Aníbal Torres Correia Teles (algures na região de Viqueque, em fevereiro de 1943).

O dr. José dos Santos Carvalho, chefe interino da repartição de saúde e higiene  (desde 2 de agosto de 1943) foi louvado, em 10 de outubro de 1945, pelo governador cessante, Manuel  de Abreu  Ferreira de Carvalho, "pela forma  como soube sempre cumprir os seus deveres, não abandonando, mesmo em circunstâncias muito difíceis, o seu posto e procurando, apesar de todas as deficiências materiais com que sempre lutou, dar a maior eficiência possível aos serviços de saúde, cuja chefia lhe foi confiada, e ainda pelos trabalhos de  investigação e de estudo, a que se dedicou e que procurou sempre orientar num sentido de utilidade imediata para a população" 
(pág. 135/136).



 (...) "As circunstâncias extraordinárias e completamente anormais em que nos encontramos, sujeitos a todos os perigos e consequências da guerra, e guerra a valer, impõem ao fiel servidor muito maiores deveres, grande paciência, abnegação, sacrifícios sem conta e muitas vezes dificuldades insuperáveis, que a história mal virá a conhecer, sendo dificílimo destrinçar e avaliar com inteira justiça os serviços prestados à Pátria, quer colectiva quer individualmente. 

 "A crítica histórica tem de ser feita passados os acontecimentos, com calma e sem paixões. Não é, pois, ocasião para a fazer. Porém os factos devem ser registados, embora, por enquanto, não possam ser comentados, nem se possa também investigar a sua razão de ser, o que deverá ser feito mais tarde, recompensando-se os que cumpriram e castigando-se os prevaricadores se os houver. 

"É por ter considerado estas proposições que me julgo na obrigação de juntar a este relatório uma resenha dos factos principais respeitante ao serviço, dos quais tive conhecimento, a qual será completada ou mesmo corrigida com o testemunhe dos funcionários da Repartição que agora não posso obter. 

 "Apresento assim um esboço de história (...).

"Também, sem dúvida, interessará sobremaneira, saber das condições de vida dos portugueses durante o período de guerra. Por esse motivo incluo neste relatório (que obviamente deveria começar na data da minha posse, em 2 de agosto de 1943) a descrição das circunstâncias de interesse para a Saúde Pública, desde o ajuntamento dos portugueses na zona de concentração (Novembro de 1942), tanto mais que o estado de guerra, as ansiedades e incertezas do futuro e mesmo a falta de expediente impediram que fossem elaborados os variados documentos da estatística normal. 

"Feitas estas ligeiríssimas considerações, preâmbulo que me parece necessário, entro agora no relatório propriamente dito." (...)


Medicamentos, Material Cirúrgico, Utensílios, Roupas, etc.

(...) "Foi com a maior tristeza e quase com desespero que os dois médicos a quem coube prestar assistência aos portugueses, verificaram que, além dos seus esforços e boa vontade de bem servir, com pouco mais poderiam contar para cumprirem a sua humanitária missão.

"Praticamente todo o recheio do hospital Dr. Carvalho, transferido para Quelicai, aí se perdeu; e o mesmo aconteceu nas sedes de delegação (Aileu e Baucau) a não ser uma malinha de mão, em que o signatário tinha juntado alguns medicamentos de urgência e instrumentos de pequena cirurgia para o caso, que se deu, de ser impossível empacotar para transporte, pelo menos o mais útil. 

"Em suma, ficamos reduzidos às existências das ambulâncias de Lahane e Liquiçá, as quais eram muito pobres, salvando-se todavia alguns utensílios de valor (autoclaves, mesa de operações, aparelho de Clayton), livros técnicos, etc, assim como bastantes frascos com medicamentos (infelizmente de pouco valor terapêutico por serem muito antigos) (...)-

"Feito o inventário, encontram-se ainda, em barricas e latas, razoáveis quantidades de: 

  • sulfato de sódio,
  •  borato de sódio, 
  •  ácido bórico, 
  • sulfato de cobre, 
  • enxofre, 
  • vaselina 
  • e permanganato de potássio. 

"Têm sido estes medicamentos, generosa dádiva da Providência, largamente empregados. 

"O material de penso existia em quantidade mínima, e temo-nos aguentado, poupando-o com a mais profunda avareza; hoje está reduzido praticamente a zero com exceção de uma quantidade mínima guardada para ferimentos graves, sempre prováveis. 

"Operações cirúrgicas, em condições de sucesso, são impossíveis. Falta o material cirúrgico e de penso, luvas, batas, toalhas, etc; e todo o material de anestesia, além dos medicamentos  necessários para acudir prontamente aos acidentados. Esterilizações perfeitas também não podem ser efectuadas por não termos petróleo para aquecer os autoclaves.

"Foi devido a estes factos que foi solicitado, que os quatro timorenses, auxiliares dos europeus, gravemente feridos por estilhaços de bomba (que ficaram profundamente situados nos tecidos), a quando do bombardeamento das vizinhanças do hospital, fossem operados no hospital nipónico. Os curativos consecutivos foram feitos por mim e enfermeiros em serviço no hospital, transferindo-se mais tarde os feridos: para a ambulância de Liquiçá, onde parecia não haver perigo de bombardeamentos. 

"As operações de pequena cirurgia e os curativos de feridas e úlceras têm-se feito todavia, utilizando-se os mais diversos recursos como, pano de roupa muito usada (a substituir a gaze). sumaúma (para almofadar as lesões da pele), ataduras de qualquer pano e mesmo de folhas de palmeira (servindo-nos as folhas verdes de palmeira esterilizadas à chama do álcool indígena, para tornar impermeáveis certos pensos) e tantas improvisações a que a penúria obriga. 

"Foram cedidos alguns medicamentos pelas forças nipónicas. Assim receberam-se em dezembro de 1942, dois mil e quinhentos comprimidos de quinino, e em maio de 1943 uma pequena quantidade de medicamentos, entre os quais havia 170 gramas de euquinina, que muito jeito fizeram para o tratamento do sezonismo das crianças.

"Em 18 de maio do mesmo ano foi entregue,  ao senhor Cônsul do Japão, uma lista dos medicamentos, material de penso e utensílios, essenciais para os portugueses. 

"Em 10 de setembro foram internados no hospital Dr. Carvalho dois timorenses com várias lesões traumáticas, tendo o médico nipónico, que os acompanhou, enviado algum material de penso para o seu tratamento. 

"Em novembro, ainda no mesmo ano de 1943, registaram-se casos de varicela tendo-se pedido, e obtido, alguns medicamentos, embora em pequeníssima quantidade. Em outubro, recebemos 400 tablóides de quinino a 0,10 g." (...)


Estado sanitário da população

(...) "Não nos afligiu, até agora, o cataclismo das grandes e mortíferas epidemias que tão facilmente se instalam nos aglomerados humanos em que o ajuntamento de várias famílias sob o mesmo teto, sem qualquer espécie de conforto, com falta de quase tudo, desde as roupas e material doméstico até à alimentação, que por ser pouco variada e reduzida (devido à sua dificílima aquisição, visto aparecer nos mercados em pouca quantidade e com custo incrível) não corresponde às normais necessidades da fisiologia nutritiva, por lhe faltarem quantidades suficientes de gorduras, proteínas e  os princípios vitamínicos essenciais à manutenção da vida sã. 

"A alimentação é pouquíssimo variada e é quase exclusivamente constituída por feculentos (milho assado, cozido ou em papa, arroz, mandioca, batata doce e inhames, sendo raras as batatas); fazem muita falta os ovos, carne e peixe em quantidade suficiente, os variados legumes, fruta, hortaliças e gorduras animais ou vegetais, pois não havendo há muito tempo o azeite de oliveira, são quase impossíveis de obter a banha e os produtos vegetais oleosos (óleos de amendoim e de coco, e amêndoas de "quiar"— 'Canarium molucannum', Blume — ). O leite é tão pouco que teve de ser racionado pelos doentes e crianças, exclusivamente. 

"Se acrescentarmos as preocupações diárias, o quase invencível desânimo, a vida sedentária, ou para muitos os rudes trabalhos das «hortas» a céu descoberto em clima tropical (ótimas ajudas para a acção dos agentes microbianos), facilmente concluiremos que fatalmente seríamos presa de doença, se não fora a sorte, segundo alguns, ou a ajuda Divina conforme a maioria crê. 

"Também não apareceram moléstias que, não existindo até agora em Timor,r  poderiam ter sido veiculadas pelos soldados (dengue, cólera, febre amarela, tifo exantemático, bilharzíase, per exemplo). 

"Durante o mês de dezembro registou-se em Liquiçá e Maubara o aparecimento de gripe com laringite e angina com carácter bastante transmissível, doenças que o sr. Delegado de Saúde de Liquiçá conseguiu tratar e evitar a sua difusão, lamentando-se o falecimento de duas crianças (filhas de europeus), uma de dois anos e outra de cinco anos de idade." (...) 


(ii) Eis a listagem alguns casos benignos de doenças ocorridos em 1943, 
segundo o relatório da autoridade de saúde:

  • sezonismo; 
  • disenteria bacilar e alguns casos de disenteria amibiana crónica; 
  • gripe; 
  • reumatismo; 
  • anginas; 
  • sarna (devido à falta de sabão) ; 
  • úlceras tropicais; 
  • corizas banais; 
  • parotidites; 
  •  varicela; 
  • alastrim; 
  • cáries dentárias, com ou sem abcesso; 
  • boubas (entre os timorenses); 
  • cólicas hepáticas; e várias neurastenias e histerismos próprios das circunstâncias. 

 (...) "Alguns portugueses que foram forçados a viver no mato durante meses, apresentaram sinais de beribéri:  paresias e insensibilidade ligeiras dos membros inferiores, astenia cardíaca e edemas na face e nos pés (dorso e à roda dos maléolos). Estes sintomas curaram facilmente com o tratamento baseado em alimentação rica em vitamina B1.

"Infelizmente já se registaram óbitos entre a população europeia. Os dois primeiros deram-se em Liquiçá no mês de novembro de 1943: um, devido a tuberculose pulmonar crónica (...); e outro  devido a angina de Ludwig (...), ambos em adultos. 

"Em dezembro faleceram duas crianças, na epidemia de gripe com laringite  e angina, de que acima falei." (...)

   Direcção dos serviços 

 (...)  "Também tive a honra de obter o assentimento de V Exª para a minha proposta da abertura imediata de um curso de enfermagem. Esse curso tem funcionado com bastante regularidade, tendo eu escrito as lições para os alunos a meu cargo,   circunstância bastante útil pois até agora não existia um guia para o estudo dos alunos. Também, acabadas as lições, cada futuro enfermeiro terá um formulário com os medicamentos usuais e já conhecidos por ele o que será de grande vantagem atendendo a que o enfermeiro isolado tem de atuar como clínico 

 "Em Liquiça, o senhor Delegado de Saúde [ dr. Francisco Rodrigues]  faz também um curso semelhante, devendo os exames ser feitos em abril do ano de 1944, no  Hospital Dr. Carvalho 

" Os doentes internados têm sido poucos pelo motivo de os timorenses terem receio dos bombardeamentos, preferindo viver e... morrer no mato. 

"Ao contrário, o posto médico é relativamente bastante frequentado para consulta, curativos e tratamentos ambulatórios dos quais se tem obtido resultados que satisfazem, embora não possuamos o material de penso e desinfetantes convenientes; como felizmente nos restava um pouco de salicilato de bismuto pudemos tratar boubas do pessoal timorense, preparando uma suspensão a 10% em óleo de coco, com magníficos resultados, como há muito tempo foi verificado pelos médicos desta Colónia, " (...)


(iii) O dr. José dos Santos Carvalho diz que, nesse ano de 1943,  foram hospitalizados "44 doentes sendo a média diária de 7", 
 por doenças tais como: 

  • varicela, 
  • parotidite, 
  • sarna, 
  • feridas, 
  • gripe, 
  • úlceras, 
  • blenorragia 
  • e tuberculose pulmonar. 

(...) "Faleceram 3 timorenses (parotidite complicada, 1; gangrena, 1; úlcera crónica, 1); e um chinês (tuberculose pulmonar crónica) . 

"Foi também internada uma mulher em estado de parto que verifiquei ser distócico; por felicidade existia no hospital um fórceps de modelo arcaico, o qual, todavia, não me deixou ficar mal. " (...)

 Secretaria da Repartição 

 
(...) "O arquivo da Repartição perdeu-se em Quelicai. Tendo sido feita, por ordem de V. Ex. a , uma escolha de documentos nos montes de livros e papelada constituídos por arquivos de várias repartições, resultou encontrarem-se alguns respeitantes a esta repartição (pouco importantes), várias revistas médicas e a colecção quase completa do Boletim Sanitário da Colónia que guardei e ordenei. 

"Assim consegui juntar os elementos suficientes para a preparação consciente de um projecto minucioso de remodelação dos Serviços de Saúde em que trabalho há tempos. Também foram encontrados estudos botânicos sobre a Colónia de Timor, que me facilitaram extraordinariamente a elaboração de um trabalho sobre medicamentos vegetais provenientes de plantas de Timor, nativas ou já aclimadas, com o fim de divulgar propriedades terapêuticas dessas plantas, pouco conhecidas, visto que poucas drogas farmacêuticas possuímos." (..,)

 Funcionários 


 (iv) Sobre o comportamento e o movimento dos seus funcionários,  o chefe (interino) da repartição técnica de higiene e saúde, faz o ponto da situação em 31 de dezembro de 1943 (pp. 155/156).  
Resumindo:

  • Dos 4 médicos, 2 tinham morrido;
  • O farmacêutico estava ausente;
  • Dos 16 enfermeiros, 2 tinham falecido, 1 estava desaparecido e 7 estavam ausentes;
  • Dos 31 auxiliares de enfermagem,  19 estavam ausentes,
  • Dos 4 enfermeiros estagiários, 1 estava ausente e outro pedira a exoneração.
Ou seja,  de um total de 52 profissionais de saúde, 34 (c. de dois terços) tinham falecido, ou desaparecido, ou estavam ausentes.

 Conclusões

(...) "O estado sanitário da população é razoável, porém, é muito de temer, por possível e provável, a irrupção de moléstias graves que levem à morte muitos portugueses, se as condições de vida não se modificarem, nomeadamente no respeitante à alimentação e aos meios de combater as doenças. 

"O pessoal dos Serviços de Saúde é suficiente e cumpridor pelo que é de prever que, quando possuir os meios necessários,  deve satisfazer." (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas, título: LG)
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Nota do editor: