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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27397: Notas de leitura (1860): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2025:

Queridos amigos,
A itinerância começa na Praça do Império, espaço onde tem havido controvérsia que não se confina só à toponímia, tem a ver com brasões, não foi por puro acaso que aqui incluí uma entrevista a quem sabe da poda, a professora Isabel Castro Henriques, afinal não se pode viver sem passado, aquela Praça foi urbanizada aquando da Exposição do Mundo Português, guarda aqueles cavalos marinhos colossais de uma escultura que fez parte da época, como há um conjunto de bustos desse evento que podem ser vistos no Jardim Botânico Tropical. É de questionar se o dever de memória não deve estar exposto sem retoques ou disfarces, é duvidoso que este espaço público e outros ainda estimulem o sentimento de nostalgia em relação a um passado glorioso. As novas gerações não guardam nenhum travo amargo de um império que se tornou lusofonia. Indo por aí fora fomos até à Rua do Poço dos Negros, tudo indica que aí houve um influente bairro africano, e sob a expressão Poço dos Negros também há debate dos especialistas. É a penúltima viagem, tudo terminará a falar das Ruas Gilberto Freyre e Viriato da Cruz e do acervo monumental que está guardado na Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 5

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A Praça do Império, tal como a conhecemos hoje, foi construída em 1940, para a Exposição do Mundo Português. O projeto do jardim na Praça foi desenhado pelos arquitetos Cottinelli Telmo e Vasco Lacerda Marques, bem como as esculturas de cavalos-marinhos. A escolha deste local não foi arbitrária, fazia parte do projeto de simbiose entre a memória do Estado Novo e a memória dos grandes feitos portugueses, estão ali o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, bem como o Padrão dos Descobrimentos, construído com materiais perecíveis no tempo da Exposição e reconstruído em 1961.

Quando ocorreu a renovação da Praça do Império no âmbito da reurbanização da zona de Belém estalou a controvérsia, houve quem propusesse um restauro arquitetónico para retornar ao projeto original de 1940, o que impunha a retirada dos brasões florais colocados em 1961; houve igualmente quem defendeu a manutenção dos brasões florais, para a continuidade do conhecimento acerca da história do Império Português. Um ponto curioso deste debate é que nenhuma das posições pôs em discussão a denominação da Praça do Império, atualizada em 2021. Não é despiciendo recordar que na Exposição do Mundo Português, a Praça do Império era um centro articulador do evento que tinha nas proximidades “aldeias indígenas”. Ali estavam 138 “indígenas” provenientes do mundo colonial, Fulas e Bijagós da Guiné, Muchopes e Macondes, de Moçambique, havia mesmo uma aldeia de moleques para que as crianças indígenas pudessem brincar.

Passando à atualidade, os brasões florais da Praça do Império contribuíram para a renovação da imagem do Império. A questão está longe de ser pacífica, e deixamos ao leitor o teor de uma entrevista a Isabel Castro Henriques, uma historiadora que conhece bem a presença africana em Lisboa (https://amensagem.pt/2021/08/11/entrevista-isabel-castro-henriques-historia-colonial-roteiro-lisboa-africana-destruicao-simbolos-coloniais-padrao-descobrimentos/).

Mudamos agora de percurso, da Praça Luís de Camões vamos pelo Loreto até ao Calhariz e descemos a Calçada do Combro, lá em baixo está a Rua do Poço dos Negros que cruza com a Travessa do Poço dos Negros. O autor do artigo referente a este lugar dá-nos informação:
“Em finais do século XIX, descrevendo a cidade de Lisboa que debruçava sobre o rio Tejo, Júlio de Castilho publicou uma carta escrita por D. Manuel I ao Senado de Lisboa, em 13 de novembro de 1515, dedicada explicitamente ao problema da sepultura dos escravizados. Quando faleciam eram atirados em lugares próximos do centro da cidade. Eles não eram bem soterrados, os cães podiam comê-los; e que a maior parte destes escravos se lança no alto que está junto da Cruz de Pau, localizada no caminho que vai da porta de Santa Catarina para Santos. E que posto que nisso tenham previsto penas, e promulgado tudo o possível, não se remediou como deve.”

Assim sendo o Rei decidiu que o melhor remédio seria fazer um poço no qual se lançariam os ditos cadáveres; para acelerar o processo da decomposição decretou que se deitasse de quando em quando uma certa quantidade de cal virgem. Júlio de Castilho reconhecia, na descrição topográfica do documento quinhentista, as encostas de Santa Catarina, que atualmente coincidem com o trajeto do Elevador da Bica com o Miradouro do Adamastor e interrogava-se se estaria nisto a origem do Poço dos Negros. Isabel Castro Henriques e José Sarmento de Matos chegaram a duas conclusões divergentes. Ela reforçou a hipótese proposta por Júlio de Castilho. Fora das portas de Santa Catarina, localizadas no atual largo do Chiado, estendia-se o bairro do Mocambo, ocupava uma área que incluía o bairro que atualmente é conhecido por Madragoa. O termo africano mocambo, da língua umbundo e corresponde ao termo quilombo, da língua quimbundo. O facto da Rua e a Travessa do Poço dos Negros se encontrarem nesta superfície contribui para corroborar a hipótese de uma alta concentração de população negra nesta parte da cidade (mocambo ou quilombo significava nas citadas línguas africanas pequena aldeia ou refúgio).

Sarmento de Matos contrariou a hipótese de Júlio de Castilho e a investigação de Isabel Castro Henriques, oferecendo outra explicação ligada à presença, na mesma área, do Mosteiro de S. Bento. Ele fundamenta-se na instalação na cidade dos beneditinos cluniacenses, que se diferenciavam dos beneditinos cistercienses, vestidos de branco, por levarem uma capa de cor negra, razão pela qual seriam chamados Padres Negros. No limite sul da propriedade do Mosteiro encontrava-se um poço de água que os religiosos deixavam a população utilizar. Por isso, em sua opinião os topónimos da Rua e da Travessa subentendem o significado do poço de água dos Padres Negros. Na atualidade, a Rua do Poço dos Negros integra os circuitos do turismo histórico organizado por Associações de afrodescendentes, como um dos marcos da presença africana na cidade de Lisboa.

A dificuldade em assumir radicalmente este passado traumático levou Sarmento de Matos a afirmar que estes escravos, por serem batizados, não havia legitimidade na prática de atirar corpos de cristãos para poços. Porém, o documento de 1515 revela um pormenor muito interessante. Os escravizados que, falecidos, não eram sepultados na maneira devida para evitar pestilências, eram dos tratadores da Guiné. Esses corpos pertenciam, provavelmente, aos escravizados que ainda não tinham sido vendidos ou que tinham falecido no mercado da Casa da Guiné e Mina. Os escravos eram vendidos no mercado próximo da praça do Pelourinho Velho (hoje em frente à Igreja de Santa Madalena, a caminho da Igreja de Santo António e da Sé de Lisboa). Assegurar uma sepultura digna constituía uma das principais finalidades das confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Os escravizados recém-chegados, ainda propriedade dos comerciantes escravistas, não beneficiavam destas formas de proteção, e o abandono dos seus corpos representava, provavelmente, a principal causa da prática que vem no documento de D. Manuel I.

O Poço do Negros de Lisboa inseria-se numa área que se tornou zona habitacional da população africana ou afrodescendente na cidade. O bairro do Mocambo é descrito como o segundo dos seis bairros em que Lisboa estava organizada, e incluía as freguesias de Santos-o-Velho, Santa Catarina, São Paulo, Nossa Senhora do Loreto e Chagas, isto é, a vasta faixa da parte ocidental da cidade que ficava fora das muralhas da época fernandina.

A Rua do Poço dos Negros faz parte do debate público, em que é dado destaque aos descobridores portugueses e à epopeia marítima sem nenhuma denúncia das implicações do tráfego negreiro transatlântico. Observa o autor que são postas placas que assinalam a história dos lugares conexos com a vivências das pessoas negras, crê-se ser inevitável que a Rua do Poço dos Negros seja um desses lugares contemplados.

Deixamos para uma última intervenção as ruas Gilberto Freyre e Viriato da Cruz, detendo-nos com mais detalhe na Sociedade de Geografia de Lisboa, por razões óbvias.
Padrão dos Descobrimentos, escultura de Leopoldo de Almeida
A Cruz de Cristo no jardim em frente aos Jerónimos, a Praça do Império tem recordações coloniais que ainda dão controvérsia
Perto da Praça do Império temos o Jardim Botânico Tropical, ali aparecem esculturas do tempo da Exposição do Mundo Português, 1940
Rua do Poço dos Negros na atualidade

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27370: Notas de leitura (1857): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (4) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27395: Notas de leitura (1859): "Amok", por Stefan Zweig; Lisboa: Relógio D'Água, 2022 (Jaime Bonifácio da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"A Cruz de Cristo no jardim em frente aos Jerónimos, a Praça do Império tem recordações coloniais que ainda dão controvérsia."

Ora, maior recordação colonial que afrodescendentes de cruz de cristo ao peito e cantando os herois do mar por esse mundo fora não serão recordações coloniais?

É um fartote! que a nossa geração se mantenha mais uns bons anos para gozar o pratinho!