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quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27466: A Nossa Marinha (4): Reserva Naval : uma elite ? Era, pelo menos, mais apelativa para os jovens com formação universitária, de classe média e média-alta, do que o Exército e a Força Aérea e por ela passaram alguns dos melhores quadros da nossa geração



Escola Naval >  O curso de Marinha que frequentou o 16º CFORN, no verão de 1970. O curso teve início em 22 de janeiro e concluiu-se em 19 de setembro de 1970, com a promoção dos 63 cadetes que o haviam frequentado: 35 da classe de Marinha (55,6%); e 25 da classe de Fuzileiros (39,7%); 
 1 da classe de Engenheiros Construtores Navais mais 2 da clssse de Farmacêuticos Navais (0,7%).

Fonte: cortesia de "O Anuário da Reserva Naval: 1958-1975", da autoria dos comandantes A. B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado (edição de autor, Lisboa, 1992) pág. 51.





Além de um exemplar de "O Anuário da Reserva Naval: 1958-1974",  da autoria dos comandantes A. B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado (edição de autor, Lisboa, 1992), o Manuel Lema Santos (1942-2025) também nos ofereceu um exemplar do "Anuário da Reserva Naval: 1976-1992", da sua autoria (Lisboa, AORN, 2011, 113 pp). 

Dedicatória: 

"Para todos os antigos combatentes, tertulianos, camaradas, companheiros e amigpos do 'Blogue Luís  Graça & Camaradas da Guiné'...

"Guiné uma vez, Guiné para toda a vida!

"Com um abraçio Reserva Naval e Marinha do Amigo (assinatura), 2012-04-21"



1. A Reserva Naval, durante a guerra do ultramar / guerra colonial / guerra de África (1961/74), foi uma alternativa para, não direi os filhoas da elite portuguesa, mas para os jovens, mais qualificados, da classe média, média-alta e  alta, cumprirem o  serviço militar obrigatório.

Futuros altos quadros do País, nas mais diversas áreas (economia, finanças, gestão, banca, política, governação, justiça, saúde, ensino, investigação, etc.), fizeram o serviço militar na Reserva Naval, entre 1958 e 1974... Alguns deles, eram da classe de Administração Naval... Ou da classe de Técnicos Especialistas.  (São as duas classes a que demos mais atenção, na leitura da lista do "Anuário da Reserva Naval: 1958-1974", da autoria de  A. B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, AORN, 1992.)

Futuros banqueiros como Artur Santos Silva (n, 1941) ou Ricardo Espírito Santo Salgado (n. 1944)  ou o professor,  dirigente politicob e ministro  Diogo Freitas do Amaral (1941-2019) ou o engenheiro e ministro  Adelino Amaro da Costa (1943-1980) (ambos cofundadores do CDS) ou ainda  os economista, políticos e professores Ernâni Lopes (1942-2010) e Alexandre Azeredo Vaz Pinto, são alguns exemplos. (Estes últimos também tiveram funções governativas)

"Au voil d'oiseau", e folheando o "anuário da Reserva Naval: 1958-1974", reconheço nomes de figuras públicas (e entre eles vários académicos) como:
  • Alexandre Vaz Pinto (3º CEORN, 1960); 
  • o médico e psicólogo Orlindo Gouveia Pereira (foi professor na Escola Naval, na área da psicossociologia / gestão do comportamento organizacional, juntamente o cmdt  Correia Jesuino), António José Avelãs Nunes,  José Manuel Merêa Pizarro Beleza ( todos do 6º CEORN, 1963);
  • Artur Santos Silva, Ernâni Lopes, Rui Machete (todos do 7º CEORN, 1964); 
  • Alípio Dias, António Soares Pinto Barbosa, Manuel Soares Pinto Barbosa, Vitor Constâncio (todos do 9º CFORN, 1966); 
  • Adelino Amaro da Costa e Diogo Freitas do Amaral (ambos do 11º CFORN, 1967)(cofunmdadores do CDS);
  • Ricardo Salgado e Manuel Valentim Franco Alexandre (ambos do 15º CFORN, 1969); 
  • António Bagão Félix (17º CFORN, 1970);
  • Marinus Pires de Lima (18º CFORN, 1971) (um dos pioneiros da sociologia do trabalho, professor no ISCTE, no meu tempo); 
  • António Henriques Rodrigues Maximiano (20º CFORN, 1972) (futuro magistrado);
  • Luís Salgado Matos (22º CFORN, 1973);
  • Luís Valadares Tavares e José  António Sarsfield Cabral (24º CFORN, 1974)...

Fonte: "O Anuário da Reserva Naval, 1958-1974".


Eram jovens com cursos (ou frequência de cursos) universitários em áreas específicas, que iam ao encontro das necessidades da marinha (engenharia electrotécnica, mecânica, civil, química industrial, máquinas; construção naval; medicina e farmácia; administração; marinha, fuzileiros, etc.).

Mas estamos a falar de um pequena amostra do Portugal de então, que tinha menos de 9 milhões de habitantes...

De qualquer modo, em 25 cursos de formação de oficiais da Reserva Naval (CFORN), de 1958 a 1974, a Marinha irá beneficiar do concurso de 1712 oficiais, dos quais cerca de um milhar (segundo o.nosso saudoso Manuel Lema Santos) terá sido mobilizado para a guerra do ultramar / guerra colonial / guerra de África (cerca de 58%).

Acrescente-se, como curiosidade, que apenas uma pequena minoria (menos de 5%) seguiu depois a carreira militar. Os restantes passaram à "peluda", como todos nós.
 
2. Naturalmente, também passaram pelas fileiras do Exército e da Força Aérea milhares de oficiais, milicianos (sem falar nos do Quadro Permanente), que  tiveram igualmente brilhantes carreiras, em funções públicas,  civis ou militares, na academia,  em empresas privadas, em profissões liberais, nos mais diversos setores, etc. 

Mas há (ou havia) diferenças entre os três ramos das Forças Armadas, no período em apreço (1958-1974), no que diz respeito  a motivações, estatuto, contexto social, funções, riscos para a vida, a saúde e segurança, etc.   
 
 Afinal, o que tornava a RN tão apelativa? (Faltam-nos estudos sociológicos sobre a composição sociodemográfica dos CFORN,  os apontamentos apresentados a seguir são meras pistas de reflexão, baseadas em "evidências de senso comum".)

É sabido que os oficiais da Marinha (uma instituição que preservava uma cultura mais tecnocrática, estruturada e prestigiada),  incluindo os da RN, tinham melhor estatuto (socioprofissional), apoio logístico, condições de vida e de trabalho, do que os do Exército e até da Força Aérea. E também tiveram proporcionalmente muito menos baixas (por ferimentos em combate, acidente ou doença).

Vejamos melhor a  RN no contexto da  guerra colonial:

 (i) Enquadramento histórico:
 
Durante a guerra golonial / guerra do utramar  / guerra de África (1961–1974), Portugal enfrentou a necessidade de mobilizar centenas de milhares de militares para três teatros de operações longínquos (Angola, Guiné e Moçambique), operacionais e pessoal de apoio.

A Marinha, embora muito menos numerosa que o Exército, desempenhava funções essenciais no controlo de vias fluviais, logística costeira,  transporte de tropas e equipamentos,  segurança marítima, operações ( como a Op Mar Verde, em 22 de novembro de 1970, ou Op Tridenmte, jan-mar 1964), etc. 

Para reforçar os seus quadros, a Marinha utilizou a Reserva Naval (RN), um corpo composto por jovens licenciados ou estudantes universitários, geralmente provenientes da classe média e média-alta urbana. 

O acesso era competitivo e exigia habilitações académicas mais elevadas do que o comum dos oficiais do Exército e da Força Aérea.

A RN assumiu funções de elevada responsabilidade e que deixou uma marca singular na memória do conflito. Constituiu-se, de facto, como uma alternativa particularmente procurada por jovens  licenciados ou com frequência universitária, de estratos sociais que na  época eram privilegiados.

Na época a RN especificamente o corpo de oficiais da Reserva Naval (ORN), era amplamente considerado  como um grupo de elite em termos sociais e académicos.

O estatuto de "elite" da RN resultará de uma combinação de fatores relacionados com o seu processo de recrutamento, o perfil exigido e o contexto social e educacional de Portugal na época da guerra colonial (1961/74).

Recorde-se alguns números sobre a população que frequentava a universidade / ensino superior nestes últimos 75 anos:

  • em 1950, o acesso ao ensino superior era muito limitado,  apenas cerca de 16 mil (!) alunos frequentavam a universidade;
  • nos anos 70 (especialmente por volta de 1974, após as transformações políticas e sociais em Portugal), esse número aumentou para cerca de 56/57 mil;
  • por volta de 1978 havia já algo em torno de 80/82 mil estudantes de ensino superior;
  • hoje, o número de inscritos no ensino superior é quase 30 vezes superior ao de  1950:  perto de 446 mil estudantes.

(ii) Recrutamento baseado em habilitações académicas

A principal razão para o seu caráter de elite residia no facto do acesso ser altamente seletivo e condicionado pela formação universitária:

  • critério de preferência: a legislação da época (vd. Portaria nº 18710, de 4 de setembro de 1961) estabelecia que uma das condições de preferência para servir na Reserva Naval (através dos CEORN . Cursos Especiais de Oficiais da Reserva Naval, mais tarde CFORN - Cursos de Formação de Oficiais da Reserva Naval) era possuir as "melhores habilitações escolares";
  • destino de universitários: a Marinha precisava de quadros especializados (engenheiros, economistas, advogados, construtores navais, gestores, médicos, fuzileros, oficiais de marinha, etc.) e recrutava a sua reserva de oficiais quase exclusivamente entre os diplomados ou estudantes das principais universidades e escolas superiores do país, com destaque para as faculdades de ciências, faculdade  de engenharia, Instituto Superior Técnico, faculdades de medicina, escolas de farmácia, ISEF, faculdade de economia, faculdades de direito... (Decreto-lei nº 41399, 26 de novembro de 1957).

  • voluntários e oferecidos: os voluntários (os que se apresentavam por iniciativa própria) tinham preferência; este grupo era composto, em grande parte, por universitários que procuravam uma modalidade de serviço militar que utilizasse a sua formação, e que, em alguns casos, era vista como uma alternativa mais "qualificada" ou mais apelativa em comparação com o serviço no Exército.

A diferença entre "voluntários" e "oferecidos" (sic)  para efeitos de acesso à RN da Marinha de Guerra Portuguesa, no contexto da guerra colonial (em vigor, por exemplo, na Portaria n.º 18710 de 1961), residia na forma como se apresentavam para o serviço militar na RN.

Essencialmente, ambos eram considerados condições de preferência para o ingresso, em comparação com os indivíduos que eram simplesmente chamados, mas a distinção era a seguinte:

  • voluntários: eram os cidadãos que se apresentavam espontaneamente para a prestação do serviço militar na RN sem terem sido previamente chamados; o  ato era totalmente por iniciativa própria;
  • oferecidos: eram os indivíduos que, embora talvez ainda não tivessem sido chamados ou tivessem outras obrigações, ofereciam-se para o serviço na Reserva Naval, em vez de cumprirem o serviço militar obrigatório noutro ramo ou modalidade. 

O termo pode ser interpretado como uma manifestação de desejo de servir na Marinha em particular, após terem sido incluídos no sorteio ou no processo de recrutamento, ou de terem sido destacados de outro ramo das Forças Armadas para a RN.

Ser "voluntário ou oferecido" era a primeira condição de preferência para servir na RN,  demonstrando um grau de iniciativa superior ao do contingente geral.

Outras condições de preferência incluíam possuir conhecimentos náuticos (como carta de patrão de costa ou alto mar) e melhores habilitações escolares.

Em suma, ambos os termos ("voluntários" ou "oferecidos") indicavam uma predisposição e proatividade para servir na RN, o que lhes dava preferência no acesso aos  CEORN /  CFORN.

(iii) o Contexto sociopolítico da época

No Portugal do Estado Novo, nas décadas de 1960 e 1970, o acesso ao ensino universitário era ainda  bastante restrito:

  • privilégio social: a frequência universitária era, por si só, um forte indicador de pertença a classes sociais mais abastadas ou com maior capital cultural (classes média,. média-alta e alta):

  •  "viveiro" de líderes: O grupo de jovens que frequentava as universidades de prestígio (como o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras - ISCEF, que formou muitos economistas e futuros banqueiros; ou o IST -  Instituto Superior Técnico) era, inevitavelmente, o grupo que viria a ocupar os mais altos cargos na economia, na política e na academia: ao recrutar este universo, a RN tornou-se um ponto de passagem obrigatório para a futura classe dirigente do país.

A RN não era uma elite no sentido de ser uma força especial de combate (esse papel era desempenhado pelos Fuzileiros Especiais, por exemplo), mas sim uma elite social, cultural, intelectual e profissional.

Os oficiais da RN  eram jovens com elevada formação civil que cumpriam o seu serviço militar, muitas vezes em funções administrativas, logísticas,  técnicas ou de comando a bordo de navios, utilizando os seus conhecimentos académicos. 

O facto de alguns deles terem alcançado notoriedade pública pode ser visto como uma consequência direta de terem pertencido a esse grupo social e educacional altamente privilegiado e selecionado.

Há quem não gosto do termo, “elite”. No mínimo, os oficiais da RN formavam um grupo socialmente mais qualificado e diversificado da juventude portuguesa, em tempo de guerra, que via na Marinha uma via mais segura e confortável de serviço militar, mas também  mais compatível com o seu perfil académico, técnico ou profissional, as suas necessidades e expetativas, os seus projetos de vida, etc.  

Entre estes, encontram-se vários nomes  que mais tarde viriam a assumir papéis de destaque na vida económica, académica e política do país — como Artur Santos Silva ou Ricardo Salgado,  duas figuras de proa da banca portuguesa, ou Diogo Freitas do Amaral, fundador do CDS, professor universitário;  ou  Adelino Amaro da Costa, antigo Ministro da Defesa Nacional. Mas também Vitor Constâncio e outros.

(iv)  Motivações dos jovens que escolhiam a Reserva Naval

A opção pela RN surgia por vários motivos:

a) Menor risco e melhores condições

A Marinha, incluindo os oficiais da Reserva Naval, registou índices de baixas muito inferiores aos do Exército, particularmente em zonas de guerra intensa como a Guiné ou Moçambique. As missões navais eram geralmente:
  • em  navios (fragatas, navios hidrográficos, navios de transporte, LFG, LDG);
  • em bases costeiras ou fluviais mais organizadas e seguras; 
  • com melhor capacidade de evacuação, apoio médico,  alimentação, lazer, etc.
b) Estatuto social e prestígio

A figura do “oficial da Marinha”, impecável na sua "farda do botão de âncora",   tinha, tradicionalmente, maior prestígio social do que o oficial do exército; a  instituição mantinha uma cultura mais elitizada e tecnocrática, preservando modelos de carreira próximos dos padrões europeus.

c) Evitar condições mais duras do Exército

A tropa terrestre enfrentava nos TO ultramarinos:

  • condições de campanha mais precárias, 
  • maior exposição ao combate, 
  • baixas mais elevadas sobretudo em operações do mato, ataques e flagelações aos aquartelamentos e destacamentos, minas e armadilhas, emboscadas, 
  • instalações precárias, insalubres e inseguras, 
  • isolamento, 
  • dificuldades de abastecimento, etc..

Comparativamente, a Força Aérea também oferecia boas condições, mas dispunha de bem menos vagas e exigia aptidões muito específicas.


(v) Composição social e formação

Entre 1958 e 1974, os 25 cursos da Reserva Naval formaram 1712 oficiais, dos quais cerca de mil foram mobilizados. O seu número de candidatos foi sempre crescendo a apartir do 9º CFORN (1965), atingindo o valor mais expressivo no final da guerra.

Estes cursos atraíam:

  • universitários de direito, economia, engenharia,  educação física, farmácia, medicina;
  • jovens de famílias ligadas ao funcionalismo qualificado, indústria, banca e profissões liberais, etc.. (famílias que, além do poder económico, tinham também um importante capital de relações sociais);
  • futuros quadros políticos e económicos do Portugal democrático (como Artur Santos Silva,  Freitas do Amaral, Vitor Constâncio, Rui Machete, Ernâni  Lopes, Bagão Félix,, etc.).

A Marinha proporcionava-lhes uma formação disciplinada, tecnicamente exigente e socialmente valorizada, além de viagens (20 dias, a viagem de instrução). 

E também facilitava (mais do que o Exército e FAP) uma curta licença para efeitos de congressos e seminários, concursos académicos, actividades docentes, competições desportivas, etc.

(vi) Funções operacionais da Marinha e da Reserva Naval

Os oficiais da Reserva Naval desempenhavam funções em:

  • navios de patrulha e escolta: controlo das costas africanas; inspeção de embarcações; transporte de tropas e abastecimentos.
  • unidades de fuzileiros; 
  • hidrografia e vigilância fluvial: em Angola e Moçambique, a Marinha operava nas zonas ribeirinhas e lacustres, essenciais para garantir mobilidade estratégica; na Guiné, circulava sobretudo nos rios e braços de mar;
  • administração e logística: atividades menos expostas ao combate direto, mas fundamentais para o esforço de guerra.

(vii) Comparação com o Exército e Força Aérea

a) Estatuto

  • Marinha: tradicionalmente mais prestigiante, com cultura mais próxima das marinhas europeias (a Royal Navy, por exemplo);
  • Exército: mais massificado, com maior presença de mobilizados (contingente geral e milicianos) e menor distinção social;
  • Força Aérea: tecnocrática e profissionalizada, mas com menor dimensão e capacidade de absorver quadros da Reserva; mas incluia os batalhões de caçadores paraquedistas;

b) Condições de vida e de trabalho
  • Marinha: melhores quartéis/destacamentos/bases, alimentação, condições sanitárias e descanso (a bordo, de navios);
  • Exército: operações prolongadas no mato, maior desgaste físico e psicológico;piores instalações no mato (em geral);
  • Força Aérea: boas bases, mas frequentemente o pessoal era colocada em zonas de risco mais elevado.

c) Baixas

  • Exército: a esmagadora maioria das baixas portuguesas (mas também era o grosso dos efetivos militares: 6,7 vezes mais do que a FA (em 1973); 29,2 vezes mais do que a Marina (em 1973);
  • Marinha: reduzidas (maior risco para fuzileiros e guarnições das lanchas de desembarque; operações mais controladas e com evacuação mais rápida; 
  • Força Aérea: baixas sobretudo entre os pilotos e mecânicos, e os paquedistas.

(viii) Síntese

A Reserva Naval (RN)  era mais apelativa. E, de facto, funcionou como uma alternativa preferencial para jovens qualificados,  de formação universitária, oferecendo:
  • melhor estatuto social,
  • melhores condições de vida e trabalho,
  • talvez menor risco operacional (à parte os fuzileiros e as guarnições das LGF e LDG, nas LDM e LDP não havia oficiais)
  • e formação de qualidade, tecnicamente exigente.

Isto explica porque muitos futuros líderes políticos, académicos e económicos passaram por esta via durante o conflito. Parte deles não terão sido sequer mobilizados para o ultramar.
 
Entre 1961 e 1974, Portugal viveu um dos períodos mais marcantes da sua história recente: a Guerra Colonial. 

  • em primeiro lugar, o estatuto social associado ao oficial da Marinha (uma instituição que preservava uma cultura mais tecnocrática, estruturada e prestigiada);
  • em segundo lugar, as condições de vida, apoio logístico e organização interna eram, em regra, mais favoráveis do que as enfrentadas pelas tropas terrestres; a bordo, havia melhores condições sanitárias, maior acesso a cuidados médicos, melhor alimentação e períodos mais regulares de descanso e  oportunidades de aventura, "escape" e lazer;
  • finalmente, a Marinha, embora exposta a perigos significativos, sobretudo em operações fluviais e costeiras bem como no corpo de fuzileiros,  terá registado proporcionalmente um número de baixas muito inferior ao do Exército.

As funções desempenhadas pelos oficiais da RN eram variadas: desde o serviço em navios de patrulha e transporte, à fiscalização costeira, hidrografia, vigilância fluvial, logística e apoio administrativo. Outros integraram também unidades de fuzileiros, assumindo papéis de combate direto. No conjunto, tratava-se de um corpo técnico e operacional que contribuiu de forma essencial para manter a presença portuguesa nos territórios ultramarinos, e que prestigiou as nossas Forças Armadas.

Como notam os autores de "O Anuário da Reserva Naval: 1958-1975" (Lisboa, 1992, pág. 657), "em 1974 a Marinha tinha mais Oficiais Subalternos oriundos da comunidade universitária (412) do que aqueles que ela própria formara na sua Escola Naval (355).

(...) "Por outro lado, dentre os 655 Oficiais Subalternos  do QP apenas pouco mais de 400 tinham formação de nível superior e somente 355, ou seja, 33%,,  eram oriundos da Escola Naval".

Hoje, ao olhar para a história da Reserva Naval, percebemos que ela reflecte não apenas a estratégia militar portuguesa, mas também a realidade social do país nessa época: as oportunidades desiguais, o valor atribuído à formação académica, e as diferentes formas de viver  (e sobreviver)  numa guerra que marcou profundamente  toda uma geração (a nossa,  nascida entre finais de 1930 e princípios de 1950)
.

De qualquer modo pode concluir-se, citando os autores do citado anuário, os comandantes A. B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado:

"Foram 1712 cidadãos que a Marinha teve o privilégio de caolhger e de com eles conviver. Foram 1712 marinheiros que,  à margem do sextante ou do fuzil, a Marinha ajudou a preparar para uma vida diferente.

"A Marinha recordo-os e este trabalho é também uma homenagem que os seus autores lhe prestam" (op.cit., pág. 67).

Pesquisa: LG + Net - Assistentes de IA (Gemini / Google, ChatGPT)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor LG:

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27150: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (43): Oficial e cavalheiro


Contos com mural ao fundo (43) > Oficial e cavalheiro


por Luís Graça


Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.

Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro na costa cantábrica. Limpavas a merda toda. A alma. A culpa. A dúvida. O nojo. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico. Torturados.

Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.  

Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu,  todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.

Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino,  seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele. 

As imagens do mato perseguiam-te. Mesmo de férias. A milhares de quilómetros de distância... "Há quanto tempo, Malan ?".. Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão".  A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta,nalu, mandinga, biafada, manjaco, Mancanha, papel...

Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".

Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes.  Dos "tugas".

"Certo ou errado, Malan" ? 

Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Como tu, afinal. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, caluda" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão. "Sim, alfero, Malan já pode falar". 

Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda". E ria-se.

O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele.  Mas a verdade é que  eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o difícil território do subsetor que fora atribuído à companhia.

Mas sabias que no passado  eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã seriam  outros,  que a história é o soma-e-segue -come-e-cala-te. Ele era um obscuro biafada. Um "cão rafeiro". Sabia lá o que era a história.  E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos "cães  dos colonialistas" e julgamentos populares...

Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas quanto dececionantes  férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão.  Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo na memória. Ainda hoje. Não foram as férias que tanto idealizaste.

Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".

Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos.  Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias  vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra,  para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval.  E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, gasto,  arrumado, acabado".  Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.

Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho na messe quando regressares ao quartel ?"... Ou: "quantas semanas faltavam para as férias ?"... Gajas não havia... "Sim, meu capitão.  Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe"... Ou ainda: "Vamos a eles, rapazes!"

Com um jeitinho do 1º sargento (um homem velhaco e temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971,  obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te. 

Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas  imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.

País em guerra ? Quando chegaste  ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).

O teu mano tinha ido,  pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira.   A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal  notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.

E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar. 

À despedida para Lisboa onde foste embarcar, ele não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se uma coisa banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial. 

Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homens. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem  aos amores.  Ias tendo sorte na guerra, vá lá . Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas.  Nisso, eras um tosco. 

No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste  sempre a remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM  ?  Foste para o COM por mérito.  E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco".  O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.

Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de "tropa- fandanga". Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.

Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães.   E depois não entendias a política de gestão de pessoal. "Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra?"... A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.

Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não, não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância e a frontalidade. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava. 

Férias, disseste tu ?!...    

Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.

Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra.  Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a  cena.

Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo.   Vagamente. Sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem poderia, se quisesse,  ter-te escondido  no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda. " Um ranger não é fujão".

 Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros. Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço. Tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.

Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ?  Sabias pouco, mas tinha havido ou havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado. 

Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas não era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.

"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ? De resto, fala as mal o francês. E do  inglês, sabias uns palavrões das docas.

"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido, quando lhe foste dar um abraço à chegada, de férias. 

Foras incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa. Um gajo morto cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher e do filho, documentos  de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...

O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa, e bastava.  E para mais de cavalaria.  Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger".  

− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...

Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:

 − ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?

− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.

− Mas..., qual é então a minha missão ?

 − Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro,  apresentas as minhas condolências pessoais à viúva e aos pais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.

O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança".  Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".

O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias  como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com a malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.

Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.

Ainda hesitaste:

− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou.  Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...

− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.

E prosseguiu:

 − Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.

Não tiveste coragem de  discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte. 

 Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara  com a viagem no "Uíge". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar. 

Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. Mas não de relações públicas. Eras um operacional. O comandante do A..., mais do que isso,  o segundo comandante, o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado do velho.

Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros,  era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. Nem ajudas de custo. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra.  

Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia.  Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido antes.

Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses.  Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo mesmo. Pouco sociável. Chamavam-lhe o "Chaparro". Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.

O que lhes irias dizer, à viúva e aos pais  ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os pormenores macabros.

Felizmente, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraras, que o acidente tivesse sido considerado em serviço. A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias-lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria a pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época.  "Porca miséria!", pensas tu hoje. Septuagenário.

Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho, no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares.  O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis.  Os dados estavam lançados.

Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... Para mais uma rodada de uísque!

Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana. 

Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto:  com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga alegre e vistosa. Algarvia do Barrocal.)

As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.

O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.

O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria" ( sic), numa festa da vila... O que era de todo inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.

Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ? Cio e luta de machos lol?

O B... era de uma freguesia vizinha do A... Os dois eram conterrâneos. E já se conheciam quando foram formar companhia em Estremoz. O B... jurou-te a chorar, que nem uma Madalena, que era amigo do peito do A...:

 − Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cabeça, desde que o filhinho lhe morrera... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.

A verdade é que acabou tudo em tragédia. Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas próprias mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.

E acabaste, em 1970, na tua vinda à metrópole por assumir, "por piedade e, vá lá, por camaradagem", a ingrata missão de levar o espólio (ou a parte mais íntima do espólio)  do A... à família. Mais uma carta do capitão.

Desconhecias o conteúdo da carta do comandante da companhia. Ficaste "entalado", quando deste com o envelope fechado. E se as duas versões, a tua e a do capitão, não batessem certo ? O capitão certamente por lapso não te chegou a falar sobre o que devias dizer à família e, em especial, à viúva.

O que iriam pensar aquelas pobres criaturas ? Ficaria a dúvida, a suspeição, quiçá o ódio contra a tropa, ainda a latejar  no coração daquela pobre gente que há três meses acabara de receber um telegrama seco, desumano, a dar a notícia  da morte do seu ente querido, lá longe, na Guiné ?!... Que eles nem sabiam onde ficava.

Tiveste que abrir, com muitas cautelas, o envelope  e inteirar-te do conteúdo da carta. Afinal, o que o capitão escrevera, era lacónico, banal e sobretudo impessoal. Era apenas o elogio do "homem íntegro", do "militar brioso" e do "grande português", não respondendo a eventuais e legítimas dúvidas dos familiares sobre as trágicas circunstâncias do acidente. 

Por certo que a jovem viúva iria querer saber como tinha morrido o marido. E onde, e quando, e porquê. E mais: queria saber se tinha murmurado o seu nome e o do seu filho, antes de dar o último suspiro. E se tinha sofrido muito antes de morrer... Enfim, tinhas que estar preparado para todas as possíveis perguntas da viúva e dos pais. Iriam perguntar pela certidão de óbito, de que tu não trazias cópia nem estavas autorizado a dar pormenores. Iriam inundar-te de perguntas sobre o comportamento dele naqueles escassos seis meses de permanência na Guiné. Se estava magro ou gordo, se passava mal ou comia bem, se andava triste ou alegre...

Embora fosse gente pouco letrada (os pais do A... nem sequer sabiam ler nem escrever), a viúva pelo menos teria a 4ª classe e  achar-se-ia no direito de saber tudo sobre a morte do marido. 

Estavas com receio de não estar à altura de  desempenhar esta delicada tarefa... Reconhecias que o Exército era "parco" na comunicação com os familiares, em casos de morte ou ferimento grave de um militar. "Parco" ? Avarento nas palavras, frio nos gestos.

E depois tu não sabias se, eventualmente, por intermédio de amigos, conhecidos ou conterrâneos, eles não estariam  já de posse de mais pormenores sobre o acidente... As más notícias chegavam sempre depressa. Farias figura de parvo. Tinhas que estar preparado para todas as hipóteses, perguntas, cenários...

No final da carta, o capitão depois de reforçar os seus "sentidos pêsames pessoais", transmitia também os do exército, do comandante do batalhão e até do próprio general António Spínola, "governador e comandante-chefe do CTIG", isto é, da Guiné. 

No último parágrafo, manifestava a sua intenção de louvar o 1º cabo A..., a título póstumo, por feitos em combate na Operação X...

Não deixaste a "ingrata tarefa" para o fim das tuas férias. O "berbicacho", como disseste lá em casa aos teus pais, intrigados com a tua agitação.

Logo no primeiro fim de semana, a seguir à tua chegada, decidiste levar a "carta a Garcia".  A morada era a que constava no processo do A... Não era muito precisa, estaria incompleta. Tiveste que passar, sábado, ainda de manhã, pelos correios da vila. O carteiro fez-te um croqui do monte onde a família do A... vivia. Não era longe, mas a estrada era péssima e poeirenta. Era terra batida, como nas picadas da Guiné. Não foi bom para a suspensão do teu pobre Mini.

Bateste à porta. Mas já os cães haviam dado conta da presença do intruso. Sempre odiaste cães. Felizmente não andavam à solta. Alguém, de súbito, espreitou  pelas cortinas da portinhola. Dois olhos negros e grandes como tições, fotografaram-te. Uma jovem mulher, vestida de preto, entreabriu a porta. Tinha traços típicos das mulheres do povo da região. Olheiras fundas. Pareceu-te curiosa e assustada ao mesmo tempo. 

Vinhas... fardado!... O boné com pala. Os óculos escuros,  Ray-Ban, devem tê-la intimidada!... Claro, era a viúva. Só podia ser. E tu eras o "mensageiro da morte"... Ela percebeu logo que era alguém da tropa. Que vinha por causa do marido. Abriu a porta devagar, cautelosa...

Casa rural. Modesta. Limpa. Um centenário pinheiro manso dava-lhe sombra. E era uma das referências que te dera o carteiro...
 
Oficial e cavalheiro, estendeste-lhe a mão depois de, estupidamente, lhe teres batido a pala. Não correspondeu ao teu gesto. Mais por timidez do que por descortesia. Mandou-te sentar numa cadeira de verga. Só havia uma. E ela mesmo sentou-se numa banqueta, junto à  lareira, a dois metros de distância. Recatada. E ligeiramente ofegante. Reparaste que era bonita.

Sem grande palavras, deste-lhe a pequena caixa de cartão com os objetos pessoais do defunto. Os de mais valor... Entre eles  um aerograma que o A... não chegara a ter tempo  de pôr no correio. (E que tu devias ter lido antes de lho entregar, mas achaste que não tinhas esse de direito; nem sequer constava do auto.)

Leste a carta, seca, do capitão... O rosto dela, impassível. Nem uma lágrima. O silêncio estava, porém, a tornar-se pesado e intolerável. Não havia mais ningém na casa. Os sogros estavam fora, voltavam na segunda feira seguinte. 

A desgraçada não conseguiu acabar de ler o rascunho do aerograma do marido. Deu um grito lancinante de dor. Começou a chorar, sufocada. Acabou num pranto, arranhando a cara e puxando os cabelos.

Ficaste sem pinga de sangue. Não sabias como agir. Pegaste no aerograma que ela deixara cair no chão.  Num ápice deste conta que o A... tinha sido  cruel e injusto, no que escrevera... O marido, numa crise de ciúme patológico, declarava, preto no branco, que ela lhe era infiel. E acusava-a da morte do filho. 

De repente pareceu-te que ela ia desfalecer Fizeste um gesto para a amparar. Foi então que ela se agarrou a ti como uma lapa à rocha, na iminência da tempestade.

 − Cabrão...ão...ão...!!!... Eu aqui que nem uma monja à espera dele!...  E ele a dar ouvidos àquela gente bera, que só nos queria mal!

Tiraste um lenço do bolso para lhe enxugar as lágrimas... Não sem algum esforço, conseguiste sentá-la na cadeira de verga. Desapertaste-lhe a blusa de flanela no colarinho. Correste à cozinha para lhe arranjar um copo de água.  Havia uma pequena bilha de barro com cocharro em cortiça. Amparaste-a sob as tuas pernas.  Deste-lhe de beber. 

 − Por favor, agarre-me, abrace-me, beije-me...que eu vou morrer!... 

Puxou-te com toda a força bruta de uma jovem mulher, viúva de vinte anos. As unhas cravadas nos teus braços. Procurava  desesperadamemte os teus lábios.  Era de pequena estatura, só te chegava ao peito. 

 ... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido  inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português. Numa missão humanitária. 

Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Embarcaste no avião. Tentando não pensar em nada. Numa noite de verão. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.

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Nota do editor:

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26969: Notas de leitura (1815): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
Não devemos esquecer que a cada um que aqui vem testemunhar a sua participação no MFA Guiné foi pedido um relato pessoal e daí parecer por vezes que se repetem as memórias de como todos eles se foram encontrando e atuando, como se institucionalizou o MAPOS, logo em 4 de maio, exigindo negociações com o PAIGC, a efervescência do ambiente social em Bissau depois do 25 de Abril, o papel da Voz da Guiné, a vida no mato, seja em Empada seja em Caboxanque, trata-se de um documento que se poderá classificar como de referência, na justa medida em que complementa tudo quanto já está escrito pelo lado de oficiais do quadro permanente e até de investigadores deste período, como é o caso dos trabalhos de António Duarte Silva. É pois de leitura obrigatória para quem pretende estudar quem foi quem no final do Império, no território da Guiné.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Na sequência do texto dado à estampa na semana anterior e referente ao livro recentemente publicado e intitulado "Guiné, Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", Âncora Editora, 2024, onde se dá voz a um conjunto de depoimentos de milicianos, alguns deles ligados à crise académica de 1969 e a Coimbra, já deu para entender que por um feliz acaso ocorreu uma gradual convergência entre estes oficiais milicianos sediados em Bissau e o núcleo de oficiais do quadro permanente onde, entre outros, estavam ativos Sales Golias, Duran Clemente e Carlos de Matos Gomes e estreitamente relacionados com o capitão miliciano José Manuel Barroso.

Dada a diversidade de olhares, deu-se a palavra a um acervo de intervenientes como Álvaro Marques, Amaro Jorge, Canhoto Antunes, Celso Cruzeiro, Eduardo Maia Costa, João Teixeira, José Manuel Barroso e J. M. Correia Pinto. Põe-se termo a esta digressão pelos testemunhos destes oficiais milicianos, começa-se por José Pratas e Sousa, alferes-miliciano da CCAV n.º 8352, SRI e secretariado do MFA. Como outros intervenientes, Pratas e Sousa logo alude à derrota das tentativas de desenvolvimentos de soluções neocolonialistas, como foi repudiado o projeto de Spínola de manter a Guiné numa comunidade lusíada. Faz menção de que o que procura relatar é a sua experiência pessoal, como viveu e sentiu acontecimentos do período de abril a setembro de 1974. Mafra, a Escola Prática de Cavalaria, o Regimento de Cavalaria n.º 3 onde se formou a sua companhia, chegaram à Guiné em 4 de novembro de 1972, o destino era Caboxanque, na região do Cantanhez. “Tinha cerca de 800 habitantes e a nossa tropa instalou-se dentro da povoação que era habitada por velhos, mulheres e crianças. Não havia jovens. Estavam no mato com o PAIGC, que até então tinha controlado todo o Cantanhez. Esta situação contribuiu para acentuar a sensação de sermos ocupantes ilegítimos de uma terra que não era nossa.” Fazem patrulhamentos intensivos, são flagelados, normalmente sem consequências maior, terão dois mortos. Frutificaram amizades, que permanecem, refere Rui Silva, o capitão miliciano que comandava a companhia, com quem mais tarde se encontrará no secretariado do MFA em Bissau.

Deixa a companhia em agosto de 1973 (esta ir-se-á manter em Caboxanque até junho de 1974), foi transferido para Bissau, irá dirigir o Programa de Línguas Nativas, um programa de rádio militar integrado no Serviço de Rádio e Difusão de Imprensa. O noticiário oficial procurava iludir o agravamento da situação militar: os aviões derrubados pelo PAIGC eram noticiados em Lisboa como alvos de mísseis disparados a partir da Guiné-Conacri ou quedas devidas a acidentes. Dá-nos conta de como viveu o 25 de Abril, como foi determinante o papel do capitão Jorge Golias, era o oficial de maior prestígio dentro do MFA, não esquece o papel importante do capitão miliciano José Manuel Barroso, que desempenhou funções de adjunto de Carlos Fabião, Barroso foi o único miliciano que esteve desde o início envolvido nas reuniões conspirativas do Movimento dos Capitães da Guiné. Não esquece a referência ao MAPOS, o Movimento pela Paz que agregou oficiais, sargentos e praças, constituído em 4 de maio.

Observa que a guerra da Guiné acabou no dia 26 de abril. “É certo que ainda houve alguns combates, havendo a lamentar, nos cinco meses seguintes, cinco mortos entre os militares portugueses. Sem querer desvalorizar o significado destas mortes, ainda mais absurdas num tempo em que estavam abertos os caminhos da paz, é de lembrar que nos onze anos de guerra na Guiné morreram em média cinco militares portugueses em cada dez dias. O que houve foi o resultado de alguns incidentes provocados na sua maioria por comandantes do PAIGC, que no mato tomaram iniciativas individuais, que foram logo reprimidas pela direção do partido.” E lembra o papel que tiveram as sessões de esclarecimento em muitas unidades do interior.

Tem agora a palavra Luís Araújo, da Repartição da ACAP do Comando-Chefe em Bissau. Desembarcou em Bissau em março de 1973, engenheiro de formação, regista as primeiras impressões, a atuação dos oficiais milicianos, os acontecimentos do 25 de Abril e dias imediatamente posteriores. “A minha função era a recolha e processamento de informação que permitisse ao Comando-Chefe acompanhar a opinião da evolução pública, quer nacional, quer internacional, sobre a situação da Guiné. Produzia relatórios periódicos de divulgação interna reservada, baseados em fontes de informação internas do território e em posições expressas na imprensa portuguesa e nacional.” Irá colaborar depois com comissões de apoio às funções de Carlos Fabião.

O último depoimento pertence a Rui Pedro Silva, nome já mencionado por José Pratas e Sousa. Ele comandava a companhia de Caboxanque, pela rádio ouviu falar no golpe de Estado. Vem de férias em março de 1974, no regresso é confrontado com a notícia da morte de dois soldados. Fazendo um balanço desse mês de março, observa que no Cantanhez houvera uma forte manifestação na capacidade do PAIGC. Faz uma alargada digressão sobre os acontecimentos políticos em Portugal, como correu a sua mobilização, foi enviado para Angola em 1971 e 1972, esteve nos Dembos, volta a Mafra para o curso de comandante de Companhia, como se processou em termos efetivos a operação Grande Empresa, encetada em 6 de dezembro de 1972. Tem importância o que escreve a seguir sobre a quadricula para Cafal, Jemberem, Cobumba e Chugué, lembrando que o relato detalhado desta operação é da lavra do Coronel Moura Calheiro no seu livro "A última Missão", ele foi o coordenador da operação desde o seu início. Em 27 de setembro de 1972, a CCAV n.º 8352 é transferida para Caboxanque. “Nos primeiros cinco meses em Caboxanque, a maioria dos militares dormia em valas, a comida era distribuída por uma viatura que percorria o limite do aquartelamento por onde estavam distribuídas as três secções de cada um dos quatro pelotões, cerca de quilómetro e meio, chegando já fria à últimas secções, utilizavam uma vala como latrina, partilhavam sem privacidade.”

Conta várias peripécias, até de um estranho acidente com uma arma de fogo, como se procedia a ação psicológica, desde a melhoria das habitações da população local à assistência de enfermagem. Também escreve a sua versão sobre os acontecimentos de 1973, e assim chegamos ao encontro com o PAIGC em maio de 1974, que ele descreve assim:
“Reuni os chefes da tabanca, poucos dias após os 25 de Abril, informei-os que íamos cessar as patrulhas na zona operacional, mas que queríamos manter contacto com a população que vivia fora de Caboxanque e pedimos que disso dessem infomação a essas populações. Cerca de duas semanas após o 25 de Abril, fomos visitados por um comissário do PAIGC, vinha fardado e naturalmente desarmado. Apresentou-se em Cufar e depois, a seu pedido, transportado em escolta até Caboxanque. O encontro foi muito cordial. Primeiro, pediu autorização para visitar a família que vivia em Caboxanque e que não via há bastante tempo. Depois dessa visita realizámos uma longa conversa, partilharam das dificuldades vividas. Concordámos que não haveria lugar a emboscadas, ataques ou minhas em toda a zona operacional. Para nós, a guerra tinha terminado. Na despedida, demos um abraço”.
A companhia é transferida para Bissau em junho, Rui Pedro Silva fica a trabalhar no secretariado do MFA.

O anexo inclui imagens da Voz da Guiné, de encontros entre as nossas tropas e as do PAIGC.

Obra de referência para o estudo das relações entre os oficiais do quadro permanente e milicianos na génese, organização do MFA Guiné e das ações posteriormente desenvolvidas em conjunto.


Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação
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Notas do editor

Vd. post de 23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26950: Notas de leitura (1812): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26962: Notas de leitura (1814): O fotógrafo Alfredo Cunha, a Guiné, o 25 de Abril no mais antigo museu português (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26950: Notas de leitura (1812): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
O mínimo que se pode dizer deste conjunto de testemunhos é que pela primeira vez acorrem ao palco oficiais de milicianos que participaram de um modo ou do outro no MFA da Guiné, gente que tinha estado nas lutas estudantis, algum deles já tinha iniciado a sua vida profissional, coube-lhes relevantes funções desde o comando das forças militares até à coordenação dos serviços de comunicação e mesmo na direção de serviços da própria administração colonial. Contam como atuaram, formaram o núcleo inicial e este se desenvolveu, como tudo se estava a modificar depois da perda da supremacia aérea, como contribuíram para o 25 de abril. Fica demonstrado como todo este grupo de milicianos teve um papel marcante no fim do Império, como decorreram as negociações com o PAIGC, e todos são unânimes que Spínola era portador de um sonho anacrónico neocolonial que felizmente não houve condições para pôr em prática.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Na sequência do texto dado à estampa na semana anterior e referente ao livro recentemente publicado e intitulado Guiné, Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril, Âncora Editora, 2024, onde se dá voz a um conjunto de depoimentos de milicianos, alguns deles ligados à crise académica de 1969 e a Coimbra, já deu para entender que por um feliz acaso ocorreu uma gradual convergência entre estes oficiais milicianos sediados em Bissau e o núcleo de oficiais do quadro permanente onde, entre outros, estavam ativos Sales Golias, Duran Clemente e Carlos de Matos Gomes e estreitamente relacionados com o capitão miliciano José Manuel Barroso.

Dá-se a palavra a Eduardo Maia Costa, alferes miliciano do Serviço Geral da Força Aérea, colocado em Bissalanca. Chegou a Bissau no dia 20 de janeiro de 1973, dia do assassinato de Amílcar Cabral. Foi colocado no serviço de Justiça. A Força Aérea, no início desse ano, assegurava a superioridade da tropa portuguesa na guerra, tinha o domínio absoluto dos ares, cumpria sem sobressaltos a rotina que ia desde o apoio às operações, à evacuação dos feridos, ao transporte de pessoas, de géneros e materiais, até aos bombardeamentos.

Depois veio o abalo dado pelo uso dos mísseis terra-ar. Ponto importante para a ligação entre os milicianos foi a oferta feita por Barros Moura ao Major Coutinho e Lima de ser seu defensor, Spínola não gostou deste tipo de intervenção, Barros Moura foi empandeirado para S. Domingos. Em Portugal fermentava o MFA, na Guiné ele surge em agosto de 1973, implanta-se em Bissau, na Força Aérea aderem Jorge Alves e Faria Paulino. Sucedem-se os acontecimentos que outros autores já referenciaram, dá a sua nota pessoal:
“Realizaram-se na Força Aérea eleições para a escolha dos representantes do MFA das diversas categorias, tendo eu sido um dos eleitos dos oficiais milicianos. No dia seguinte apresentámo-nos ao comandante da Base. Ele recebeu-nos um pouco amedrontado, possivelmente pensando que o íamos prender. Foram-nos atribuídas tarefas específicas: substituir, com outros oficiais milicianos, os funcionários dos serviços de trabalho. Os funcionários coloniais receberam-nos de bom grado, eles não se entendiam com os novos tempos, queriam era regressar à metrópole, e logo desapareceram.” Vai passar férias e regressa a Bissau em 10 de agosto, aqui o ambiente era de fim do império, Portugal iria reconhecer no dia 26 a independência da Guiné.

Segue-se o depoimento de João Ferreira do Amaral, que chegou a Bissau em março de 1973, comenta a situação político-militar a partir dessa data. Ele está nos serviços de economia, recorda o aumento do preço de arroz, procurava-se a todo o transe garantir o abastecimento deste alimento básico; continuará nestes serviços até ao princípio de outubro. “Tive a oportunidade de transferir a administração dos serviços de economia para as novas autoridades, acompanhando o ministro Dr. Vasco Cabral, numa visita a uns serviços que estavam então a meu cargo, economia, estatística e planeamento.”

Dá-se agora a palavra a João Teixeira, alferes-miliciano com a especialidade de Engenharia, colocado na Base Aérea n.º 12. Chega a Bissau a 21 de janeiro de 1973, é esperado no aeroporto por José Manuel Barroso, especula-se sobre quem mandou matar Amílcar Cabral. Descreve a sua vida em Bissau, os acontecimentos posteriores aos abates dos aviões com os mísseis terra-ar, a adaptação dos voos à nova realidade, os apelos urgentes a Lisboa para se encontrar a competente defesa aérea para a Guiné. João Teixeira discorre amplamente sobre a evolução do MFA na Guiné, a tentativa neocolonial perpetrada por Spínola, e como foi derrotada, dá-nos um quadro do que foi a Assembleia Geral na Guiné em 1 de junho, e regressa a Lisboa em meados de setembro.

É o momento de ouvirmos José Manuel Barroso, capitão miliciano, parecia que ia para o mato, mas é nomeado para trabalhar com Spínola, a sua missão era acompanhar a atividade militar e governativa, e transformá-la em notícias a fornecer para o exterior, para os média nacionais e para as agências noticiosas internacionais, recorda algo que se ia aprofundando entre ele, Sales Golias e Matos Gomes. “A minha mais profunda surpresa inicial foi a descoberta no mundo da oficialidade que servia no Comando Chefe, na fortaleza de Amura. Uma boa parte dos oficiais falava abertamente da questão política da guerra, questionando-a, ouvi mesmo dizer a um dos meninos queridos de Spínola que aquilo só iria à força.” Viveu os acontecimentos ligados ao assassinato de Amílcar Cabral e pareceu-lhe sincera a atitude de Spínola, reagiu desalentado com esta perda.

Descreve a atitude de um punhado de oficiais do quadro permanente quando se souber da realização de um Congresso de Combatentes. “Quase a totalidade dos capitães do quadro permanente assinaram protesto dirigidos ao Governo central – e dezenas de milicianos também. Mas o episódio criou um clima de contestação aberta, que não pararia. Antes do Movimento dos Capitães, a Guiné era cabeça da contestação. O núcleo do que seria a comissão de militares do MFA estava constituído e preparado para qualquer ação. O nosso agora alargado grupo chegou a discutir uma hipotética ação militar contra Lisboa, sem sequer saber que algo idêntico, mas mais forte ainda, havia sido discutido por oficiais afetos a Spínola, como o Major Fabião revelaria depois. Estive no grupo que, na Guiné, ligado a Otelo e ao Movimento dos Capitães apoiou ativamente o golpe em Lisboa, despediu a 26 de abril as autoridades militares em Bissau que se não manifestaram favoráveis à Junta de Salvação Nacional. Depois, fui chamado, com o Tenente-Coronel Mateus da Silva para, em representação do MFA/Guiné, acompanhar o Ministro dos Negócios Estrangeiros no seu primeiro contacto com o presidente do PAIGC, Aristides Pereira, em Dacar. Dias depois de chegar a Bissau, fui chamado a Lisboa por Spínola, que me proibiu de regressar à Guiné. Fui o primeiro capitão do MFA saneado".

J. M. Correia Pinto era Segundo-Tenente do Comando de Defesa Marítima da Guiné, desembarcou em Bissau em 24 de maio de 1972. Faz um enquadramento do início da guerra colonial, do curso de oficial da Defesa Naval, acompanhou a evolução da situação da Guiné, ali chegara e ainda os ecos da operação Mar Verde estavam longe de estarem extintos, fora-lhe testemunhado por um oficial do quadro permanente ter participado na Mar Verde que o objetivo primordial era assassinar Sékou Touré, promover um golpe de Estado, sequestrar ou assassinar Amílcar Cabral mais dirigentes do PAIGC, destruir material bélico da República da Guiné, caso dos aviões MiG, quase tudo correu mal. E em 1973, a roda da fortuna desandou em favor do PAIGC, volta a falar na defesa do Major Coutinho e Lima, no significado do Congresso dos Combatentes, como se processou a ação do PAIGC no primeiro trimestre de 1974, o significado que se atribuiu ao livro de Spínola e descreve minuciosamente os acontecimentos do 25 de abril. “Chegado a Lisboa no dia 4 de maio, deparei-me com um convite de uns camaradas da Marinha, ir a Caxias ver os pides presos. Recordo que as primeiras pessoas que vi em Caxias, a consultar os arquivos, foram o Zé Manel Tengarrinha, o Oneto e o Jean Jacques Valente.”

Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação

(continua)

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Notas do editor

Vd. post de 16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26949: Notas de leitura (1811): O livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (2025) (235 pp.) - Parte I: apresentação de Luís Graça