"Da janela do meu quarto, na madrugada do dia 28 de setembro de 2015, por volta das 4h20, o firmamento celeste apresentava o tão esperado acontecimento astronómico do ano, a ocorrência de Super Lua em simultâneo com um Eclipse Total da Lua...
Peguei na máquina e obtive esta e outras imagens, que quis partilhar com os nossos leitores... Já estava a meio o eclipse, eu devia ter-me levantado mais cedo...
Dizem que os lobisomens é que uivam à lua cheia, mas também em luas negras, e provavelmente em noites de eclipse... Quando eu era puto, acreditava em lobisomens... Se acreditava!... E até me diziam que tinha um tio-avô que era lobisomem... Metiam-nos medo, aos putos, os safados dos graúdos, com essas histórias de lobisomens, bruxas, almas penadas e espíritos maus que cochichavam por detrás das paredes, portas e armários... Havia amuletos, gestos, rezas e mezinhas para nos defendermos do mau olhado e dos encontros funestos com estes seres do mundo das trevas."
"Nascer com o cu virado para a lua" é uma expressáo da chamada sabedoria popular, aplicada a quem tem muita sorte na vida, traduzida em geral pelos sinais do sucesso, do amor ao dinheiro, da saúde aos negócios. Sucesso obtido de maneira aparentemente natural, fácil, quando não mesmo inesperada... Claro, as histórias de sucesso causam sempre inveja aos outros que se queixam de não ter tido sorte na vida.
− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua… Como o teu cunhado, por exemplo…
− Quem, o Ulisses?
− Sim, Jorge, só tens um, que eu saiba.
− Já agora retifica: ex-cunhado, senão te importas... E, se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.
O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril…
Mal saiu a amnistia, da Junta de Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.
Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso, Ulisses C...
Foi um "puto mimado", confirmavam os dois interlocutores. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. Ou rica e importante, como se queira .
Na escola, o Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (que eram à compita, para ver quem dava menos erros)... Mas também no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.
− Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola – acrescentou o Jorge.
− Foi um sortudo, o Ulisses!..,
− Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha pobre mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!... Eu nasci de cu para o ar."
− A dona Natércia?!... – exclamou o Nando. − A parteira que nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso velho mestre-escola, ou o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.
− Há, sim. Nasceu, de facto, de cu para o ar. Podia não ter-se safado. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...
A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara, a ela e ao seu menino…
− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!
− A minha ex e as suas duas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele − confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando.
Nascera prematuro, e numa posição difícil... Mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto, um sortudo...
− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).
Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Alfredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital. Estamos em plena II Guerra Mundial, em 1943, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa, como o Jorge, o Nando e todos os demais da sua geração...
− Lembrava o pai que foi em plena batalha de Leninegrado, quando o Exército Vermelho conseguiu, pela primeira vez, abrir um corredor que levou a esperança aos sitiados − acrescentou o Jorge.
− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.
De facto, o doente (sobretudo quem tinha algo de seu) ficava acamado em casa, era tratado pelo João Semana ou por alguma "curiosa" e, se era caso para morrer, morria em casa, rodeado de filhos e netos... , depois de receber a extrema-unção pelo padre da paróquia.
Em amena cavaqueira com o Jorge, o "historiador da terra", o homem que mais sabia sobre as misérias e as grandezas das famílias tradicionais da vila, o Fernando veio a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…
− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que se sempre achei uma ingratidão − comentava o Jorge.− No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado.
− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.
Claro, o paizinho, o senhor Anselmo, visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade, até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas descobriram que o pai tinha arranjado... uma amante!
− Vinte e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho − confidenciou o Jorge.
− A "Anselma", como diziam as más - línguas. Não a conheci...Mas era assim que os "industriais" faziam... para salvar as aparências...
− A "Anselma"!... Cheia de mordomias... A minha ex-mulher, que Deus também já lá tem, tinha-lhe um ódio de morte...
− Mas... exilado, o Ulisses, dizes tu?!
− É uma figura de estilo. Não foi por razões políticas. Como sabes, ele fugiu à tropa. Tão simples quanto isso.
Não, não era um desertor, mas um refratário... Não era a mesma coisa: legal e tecnicamente, o Ulisses não foi um "fujão", como se costumava dizer na época em relação aos desertores. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou desertor era, no entanto, bem mais grave do que faltoso na época, em que o país estava em guerra.
Aqui o Jorge gracejou com o Fernando, dizendo:
− Eras ainda um puto, não te deves lembrar... Mas em 1961, e eu já em Angola, não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:
− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano, vai ocupar e usurpar descaradamente...
− ... a nossa jóia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a frase do seu amigo.
E depois elucidou-o:
− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota do seu sangue contra as tropas do 'Pandita' Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o mais profundo rancor e desprezo…
− Só soube isso muito mais tarde... Mas também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares, na nossa história.
− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais da vila, que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos pelos vizinhos... por não terem morrido pela Pátria...
− Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"...
− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela. E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital das doenças infectocontagiosas, em Belém.
Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.
Das suas origens do senhor Anselmo, sabia-se muito pouco ou nada. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sorte, isto é, sucesso, em termos pessoais, familiares e profissionais.
Tinha a vantagem de não ter passado. Não se lhe conheciam os "podres", como diziam as alcoviteiras da terra. Mas também ninguém sabia se tinha nascido com o cu virado para a lua, como o filho...
A verdade é que aqui casou, aqui teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...
− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte... − observou, com sarcasmo, o Jorge.
Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos palermas dos putos da escola)…
Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e sobretudo promissores, com países da Europa do Norte e Centro. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.
Começara no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias...
O Jorge ainda era do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital, e que parava em todas as terras... E a maior parte das estradas do concelho ainda não eram alcatroadas.
− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos na Palestina − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.
Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).
Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos, portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. E calou de vez o coro das mulheres que, no lavadouro público, também lavavam a "roupa suja" dos ricos da terra...− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história da Marinha Grande).
− Sim, mas ele recusava-se terminantemente falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a casa da família, depois de casado.
O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que parecia mais verossímil, aos olhos do dr. Fernando ...
A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Estava na mesa do escritório onde ninguém entrava a não ser a criada para a limpeza semanal do pó...
Sabe-se que o Anselmo só conheceu a futura terra dos seus filhos depois do casamento, na véspera da II Guerra Mundial. Conheceram-se, ele e a futura esposa, ao que parece, num cruzeiro da Cunard-White Star. Ele fazia parte da tripulação do navio. E ela acompanhava a tia e madrinha que, além de viúva e sem filhos, era rica e tinha o bom gosto de viajar.
O Anselmo era um sedutor e um "gentleman": depressa caiu nas boas graças da tia e da sobrinha. O copo de água foi na Figueira da Foz. A madrinha morreria no pós-guerra e deixaria o palacete à sobrinha e afilhada.
Lá em casa, garantia o Jorge, também nunca se falava do passado, não havendo por isso grande curiosidade em saber mais sobre a vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados do papá Anselmo. Afinal, todo a gente de bem tinha um ramo pobretana na família.
Das poucas vezes que ele, a mulher e os filhos foram a Vieira de Leiria, em passeio, aproveitando para "revisitar o passado", deu para perceber melhor a sua origem: os seus "parentes afastados" ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.
− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, quanto mais fosse, alegadamente, só para assistir ao espetáculo da arte xávega ( com "os bois a lavrar o mar")... No fundo, um pretexto para passar uns dias na "terra da sua querida mãe"...
Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos, o Ulisses e as manas, detestavam, que horror!, preferindo de longe São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as poucas famílias burguesas, abastadas, da região...
Estamos, entretanto, a falar de uma época em que o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público. O Salazar era um "rural". O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.
Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores, reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional...
A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França e a Alemanha, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.
Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamente as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público (quando começaram a aparecer os planos de urbanização), ou vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"...
Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. As máquinas já não vieram a tempo de suprir a falta de braços, Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".
Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra, assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.
O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas".
Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. Os democratas do 26 de Abril, nascidos como cogumelos.
Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República. E "morreu republicano", garantiu o Ulisses, num "in memoriam" que escreveu sobre o pai, e publicado no jornal da terra.
O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...
− Três anos nos separavam (o que era muito naquele tempo!)...Eu sou da colheita de 1946. Além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico", o primeiro a ter uma "vespa".
Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila. De bibe, impecável, engomado e passado a ferro pela criada. Na altura juntavam-se os putos das várias classes. E ninguém entrava descalço.
Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro).
Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai, por ocasião da Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras.
− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge.− Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 15 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.
Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas (seguramente por conselho ou imposição do pai)... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, pondo-o a salvo, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Nunca apanhou o "vírus" das greves estudantis...
Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1943. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear.
Vinha munido de uma valente cunha e de um extenso relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar, que por sinal era de Leiria e seu conhecido.
O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos papás.
Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa, mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios.
− Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato. − adiantou o Jorge. − Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios.
Mas a vida (ou a guerra de África) trocou-lhe as voltas. De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de hereges, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores, mesmo sabendo que ia para o céu".
− A mãe, a minha ex-sogra, era uma boa senhora, esbelta, viajada, culta, mas conservadora, beata, benfeitora e amiga dos pobres. Fundou uma creche que o Anselmo doaria mais tarde â santa casa da misericórdia local e que hoje tem o nome da esposa.
E o Anselmo não autorizava que se falasse de política à hora das refeições. De resto, não era hábito falar-se da "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.
A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, logo em 1961. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras".
A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Doze contos de réis era muito dinheiro naquele tempo de incerteza. Ele já tinha interesses no ultramar (em Angola, mais concretamente). E alguém tinha que os defender... Os filhos dos outros, devia ele pensar.
A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.
− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado.
Segundo ele, passou a ter uma reforma dourada e um vasto capital de relações sociais... Era agora livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vivia entre o Algarve e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não se falavam desde que o Jorge se divorciara da irmã. Nem nunca mais aparecera pela santa terrinha.
− Nunca morremos de amores um pelo outro...Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...
− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim, mas esse nem nome de beco tem...
− De qualquer modo, ele é mais holandês do que português! − arrematou o Jorge. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.
E concluiu:
− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.
− Neerlandês, como se diz agora... Mas eu diria antes: melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um bom paizinho − comentou, irónico, o Fernando.
− Foi tudo junto... Cumpriu-se, afinal, a profecia da parteira, quem nasce de cu virado para a lua tem sempre sorte na puta da vida...
PS - O Ulisses C... morreu uns tempos depois desta conversa. De qualquer modo, o nome é fictício, mas a sua história de vida é real.
© Luís Graça (2022). Última revisão: 14 de julho de 2025.
________________________Nota do editor LG:
24 comentários:
Uma história do antes com coisas do depois, de agora.
Muito bem contada como é usual no autor. Garanto-vos que no início da década de 50 nenhum cavador de enxada ganhava um conto de réis. Metade ou menos sim
Abraço
Eduardo Estrela
Obrigado, Eduardo. Um conto de reis era um mês de jornas. O cavador de enxada era pago ao dia. 20 escudos e um "garrafão de água pe podre"...Umas sardinhas grelhadas, em dia de festa.
Sou filho do Portugal profundo.
Muitas vezes não comi o pão que o diabo amassou, porque não o tinha
Um tio meu, irmão do meu pai, trabalhou como assalariado agrícola na década de 60 para um cunhado casado com uma tia minha, ganhando 20 escudos diários, de sol a sol, . Quando descansava ao domingo, jorna Ka tem.
Abraço
Eduardo Estrela
Eduardo, perguntei ao assistente de IA / Gemini / Google:
"Quanto é que ganhava ao dia um jornaleiro, um "cavador de enxada", na região da Estemadura, Oeste, Portugal, nos anos 50 do séc. XX ?"
Resposta:
Encontrar um valor exato para o salário diário de um "jornaleiro" ou "cavador de enxada" na Estremadura Oeste de Portugal nos anos 50 do século XX é bastante desafiador, pois a documentação sobre salários de trabalhadores rurais era, muitas vezes, informal ou escassa e variava bastante consoante a região, o tipo de trabalho agrícola, a época do ano (se era época de colheitas, por exemplo) e até mesmo a generosidade do proprietário da terra.
No entanto, podemos ter uma ideia geral com base em informações sobre o custo de vida e salários de outros trabalhadores da época:
Valores de referência de 1939 (dando uma perspetiva): Um registo de 1939 mencionado nas pesquisas indica que "um dia de carreiro custava 35$00".Para contextualizar, o ordenado de um criado era de 100$00/mês, subindo para 120$00/mês em julho.O de uma cozinheira era de100$00/mês, e criadas de casa ganhavam 85$00/mês. Embora sejam de 1939, estes valores dão uma ordem de grandeza de como eram os pagamentos diários e mensais no setor rural e doméstico.
Contexto dos anos 50:
Nos anos 50, Portugal era um país predominantemente agrário, com uma grande parte da população a viver e trabalhar no campo. Os salários eram, geralmente, baixos e a vida era dura, especialmente para os trabalhadores rurais.
Variação sazonal e regional: É crucial lembrar que os "jornaleiros" (trabalhadores que ganhavam à jorna, ou seja, ao dia) tinham rendimentos muito instáveis, dependendo da disponibilidade de trabalho. Em épocas de maior labor (como vindimas, colheitas, sementeiras), podiam ganhar um pouco mais, mas em épocas de menor atividade, o trabalho e, consequentemente, o rendimento, eram escassos. A Estremadura, sendo uma região com alguma atividade agrícola, teria necessidades de mão-de-obra, mas os valores podiam variar entre concelhos e até entre freguesias.
Estimativa:
Com base na escassez de dados específicos e nos valores de referência da época, é provável que um "cavador de enxada" na região da Estremadura Oeste, nos anos 50, ganhasse entre 20$00 a 40$00 por dia de trabalho. Este valor seria suficiente para o sustento básico, mas indicaria uma vida de grandes dificuldades e privações, dado o custo de bens essenciais na época.
Para uma análise mais precisa, seria necessário consultar arquivos locais (câmaras municipais, juntas de freguesia, arquivos de empresas agrícolas), relatos orais de pessoas que viveram e trabalharam nessa época na região, ou estudos socioeconómicos específicos sobre a agricultura em Portugal no período em questão.
O ChatPGT é mais preciso e faz comparação com o custo de vida, e com fontes diversas, não académicas (sindicatos, PCP, Agroportal...)
Encontrar um valor diário exato de um jornaleiro (ou "cavador de enxada") na Estremadura/Oeste nos anos 50 é realmente difícil, pois os dados são escassos e varia bastante. Mas há algumas referências que ajudam a retratar a realidade:
(i) Referências de valores médios
Baixo Alentejo, fim dos anos 50 – o salário diário médio de um assalariado rural, fora da época de ceifa, rondava os 26 escudos por dia
. Com a inflação baixa e dificuldades económicas, esse valor mal cobria bens básicos (1 l azeite a 14:80 esc., 12 ovos a 9:28 esc., etc.)
Movimento reivindicativo 1947–60 – por ocasião de vindimas/ceifas, os jornaleiros conseguiam aumentar para 30–40 escudos/dia, embora fora dessas épocas o valor mantivesse-se mais baixo, na casa dos 25 escudos/dia para homens, e menos para mulheres (13–17 escudos/dia) .
(ii) Contexto na Estremadura/Oeste
Apesar dessas referências serem de zonas como Alentejo e Ribatejo, a Estremadura (Oeste) estava integrada em condições económicas semelhantes, sobretudo em contextos agrícolas de menor mecanização. Portanto, é razoável supor:
No “vazio anual”: cerca de 25–30 escudos por dia de trabalho.
Em épocas de maior procura de mão-de-obra (vindima, ceifa, monda): entre 30 e 40 escudos por dia.
(iii) O que dava para comprar com 30 escudos?
1 litro de azeite: ~15 escudos
12 ovos: ~9 escudos
1 litro de feijão: ~5 escudos
Ou seja, um dia de trabalho cobrindo apenas o necessário para o dia seguinte, sem sobras.
(iV) Resumo estimado (Estremadura – anos 50)
Período | Salário diário estimado |
Épocas normais ~25 – 30 escudos
Vindimas / colheitas ~30 – 40 escudos
(v) Nota importante
Estes valores são estimativas com base em médias regionais e referências de investigação histórica. A grande variação local/regional é relevante — estes são dados para uma estimativa panorâmica, não valores absolutos.
Perplexity IA, citando já fontes académicas, mas também a Assembleia da República:
Salário Diário de um Jornaleiro ("Cavador de Enxada") na Estremadura, Oeste, Portugal, anos 50 do século XX
A informação específica e detalhada sobre o salário diário de um jornaleiro rural, especialmente um "cavador de enxada", na região da Estremadura (Oeste), durante os anos 1950, é escassa e dispersa. No entanto, com base em estudos históricos e relatos de época, é possível apresentar uma estimativa fundamentada:
(i) Estimativas de Salário Diário
Década de 1950:
Os salários dos trabalhadores rurais variavam consoante a região, a sazonalidade e o tipo de tarefa. Para o Alentejo e Ribatejo, há registos de lutas sindicais por salários mínimos de 30$00 a 40$00 escudos por dia para jornadas de 8 horas, já no final da década de 1950 e início dos anos 60.
Na Estremadura e Oeste, região de agricultura familiar e minifúndio, os salários eram geralmente mais baixos do que nas grandes herdades do sul.
(ii) Comparação Histórica:
No início dos anos 40, o salário médio diário de trabalhadores fabris era de cerca de 15$00 a 17$00 escudos.
Um estudo de 1944 aponta para salários rurais mensais, nas regiões mais pobres, de cerca de 216$00 escudos, o que corresponde a aproximadamente 7$00 a 8$00 escudos por dia (considerando 27-30 dias de trabalho).
O custo de vida e os salários aumentaram gradualmente ao longo da década de 1950, mas os aumentos reais foram lentos.
(iii) Valor Aproximado para Jornaleiro/Cavador de Enxada na Estremadura, anos 50
Ano | Salário Diário Estimado (escudos) | Observações
1940-45 7$00 – 10$00 Regiões rurais pobres
1950 10$00 – 15$00 Estimativa para Estremadura
1955 15$00 – 20$00 Alguns aumentos registados
1960 20$00 – 30$00 Lutas por salário mínimo agrícola
Nota: Estes valores são estimativas médias e podem variar consoante a localidade, época do ano (época alta de trabalho agrícola, como ceifa, podia pagar um pouco mais), e género do trabalhador (as mulheres recebiam menos).
Considerações
O trabalho era quase sempre pago à jorna (dia), sem contrato fixo.
O poder de compra destes salários era muito baixo: a maior parte era gasta em alimentação básica.
O acesso a bens de consumo era limitado e as condições de vida eram precárias para a maioria dos trabalhadores rurais.
(iv) Conclusão
Um jornaleiro ou cavador de enxada na região da Estremadura, Oeste, nos anos 50 do século XX, ganhava entre 10$00 e 20$00 escudos por dia, sendo mais comum valores próximos do limite inferior na primeira metade da década, com ligeira subida até ao final dos anos 50.
Quanto é que ganhava, em média, por dia um "ramadeiro" (construtor de ramadas), na Região do Vinho Verde e na Região do Douro, Norte de Portugal, anos 50 e 60, do século XX ?
O assistente de IA (Perplexity), citando sobretudo o meu blogue "A Nossa Quinta de Candoz", responde do seguinte modo à pergunta:
Remuneração Média Diária de um Ramadeiro (Anos 50 e 60)
(i) Contexto da Profissão
O "ramadeiro" era o trabalhador especializado na construção de ramadas (estruturas para condução de videiras), uma prática tradicional nas regiões do Vinho Verde e do Douro, no Norte de Portugal. Esta atividade era sazonal e exigia destreza, sendo normalmente realizada por equipas pequenas, lideradas por um mestre ramadeiro.
(ii) Valores Médios Diários
Com base em registos documentais e memórias de trabalhadores da época:
Construtor de ramadas (mestre ramadeiro)> ganhava entre 30$00 e 50$00 escudos por dia nos anos 50 e 60, dependendo do cliente e da distância da obra. O valor mais comum situava-se em torno dos 40$00 a 45$00 escudos diários. O mestre ramadeiro ganhava tipicamente o dobro dos seus oficiais.
Oficiais ramadeiros (ajudantes):
Recebiam entre 15$00 e 25$00 escudos por dia. Trabalhadores mais experientes ou de confiança podiam ganhar 5 a 10 escudos a mais do que os restantes colegas.
(iii) Observações Regionais
Estes valores aplicavam-se tanto à Região do Vinho Verde como ao Douro, com pequenas variações locais, mas a estrutura salarial era semelhante devido à proximidade geográfica e à tradição comum da construção de ramadas.
O pagamento podia variar ligeiramente conforme a experiência do trabalhador e a complexidade da obra, mas os valores acima refletem a média praticada.
(iv) Tabela Resumo
Função | Valor Diário Médio (escudos) | Notas
Mestre Ramadeiro 30$00 – 50$00 Normalmente 40$00–45$00
Oficial Ramadeiro 15$00 – 25$00 Diferença de 5–10 escudos entre oficiais, conforme experiência
Estes valores representam o rendimento bruto diário, sem descontos, e não incluem eventuais refeições ou alojamento, que por vezes eram fornecidos pelo proprietário da vinha.
(v) Nota Histórica
Para referência, o salário mínimo nacional só foi instituído em Portugal em 1974. Na década de 1950 e 1960, os valores pagos aos trabalhadores rurais eram definidos localmente e variavam conforme a procura e a oferta de mão-de-obra. O trabalho do ramadeiro era considerado relativamente especializado dentro do contexto agrícola da época.
Li atentamente . A conclusão é clara e ilustra na perfeição a desenvolvida economia de enxada do Portugal do António e seus quejandos.
No Algarve, era tanta a miséria, que os trabalhadores agrícolas iam para a ceifa no Alentejo de modo a ganharem mais 3 ou 4 escudos à jorna.
Viva Portugal.
Abraço
Eduardo Estrela
Um conto verdadeiro em que contas como eram as relações entre as pessoas e entre estas e as instituições. Em que contas como cada um era e de como fingia ser. Da importância do parecer, dos beneméritos sabujos e do seu relevo social. Quem me dera escrever assim!...
Um grande abraço, Luís.
Carvalho de Mampatá
Os sortudos costumam dizer que a sorte dá muito trabalho... Será ?
Sobre a Revolta da Marinha Grande, em 18 de janeiro de 1934, vd. RTP Ensina .
Às primeiras horas do dia 18 de janeiro de 1934, centenas de operários e trabalhadores da Marinha Grande, sob a coordenação de um núcleo da CIS, a Confederação Inter Sindical, cortaram as estradas de acesso à vila, as linhas telefónicas e o caminho-de-ferro. De seguida, avançaram para o centro e ocuparam os correios, a Câmara Municipal e o posto da GNR, sem depararem com resistência.
A população aderiu à insurreição e a Marinha Grande ficou sob o completo controlo dos revoltosos. Foi neste local que a greve geral convocada pelos sindicatos teve maior impacto, uma vez que não ocorreu a esperada adesão de outros núcleos operários e cidades do país.
Foi, no entanto, um sucesso efémero. Os operários não dispunham de armamento nem de recursos para se oporem à polícia e ao exército. Às 9 horas da manhã, a vila estava cercada e a revolta foi rapidamente dominada após alguma troca de tiros.Pelo meio-dia estava tudo terminado, com a prisão dos últimos grupos que tinham fugido para os pinhais das redondezas. (...)
Os refratários nossos contemporâneos que neste verão estão vindo da França com os seus netos para as festas tradicionais de verão da sua aldeia,
Em geral todos têm casa na terra.
A enorme maioria não foram "doutores", estes não voltam à terrinha.
Um ou outro refratário já reside há algum tempo, veio com os pés para a frente, os anos não perdoam.
Fica a ideia que os refratários da França, têm proles mais numerosas que os mancebos que não deram de frosques.
Pena que já poucos sabem português.
Rosinha, temos os faltosos (que não compareceram à inspeção militar), os refratários (os aupurados, que não se apresentaram nos quartéis para fazer a recruta) e os desertores (os que, depois de jurarem bandeira, abandonaram as fileiras).
Sabemos que, no período de 1961/74, um 1/5 dos mancebos em idade militar, em todo o país, não se apresentaram para cumprir o serviço militar. Estamos a falar de um total de mais 220 mil.
Os números podem discriminar-se do seguinte modo: faltosos (c. 202 mil), refratários (c. 20 mil), desertores (c. 9 mil) (neste último valor incluem-se muitos "ultramarinos").
Em França e noutros países para onde houve forte emigração, muitos jovens acompanharam as famílias e jã não estavam no país quando foram chamados à inspeção militar... São os tais "faltosos"...
Resumindo (e seguindo o assistenete de IA, o Perplexity):
Categoria | Definição | Número Estimado
Faltosos | Não compareceram à inspeção militar> | c. 200.000
Refratários | Fugiram após inspeção, antes da incorporação | c. 10.000–20.000
Desertores | Abandonaram as Forças Armadas após a incorporação | c. 9.000
As motivações (familiares, económicas, disciplinares, políticas, etc.) variavam conforme os casos e as categorias...
Segundo o Código de Justiça Militar, mais de 8 dias de ausência das fileiras do exército, e já eras considerado desertor, não interessando o motivo da ausência...
O Ulisses deste conto foi refratário, não desertor...
Virgilio Teixeira (by email)
15 julho 2025 00:34
Boa noite.
Luís, estive a ler esse conto ou história verdadeira, que hoje publicaste.
Quem me dera escrever assim, nunca parava e lá entrava na vida privada. Assim escrevo coisas que podem ou não ter nexo [de causa - efeito].
Durante mais de 50 anos escrevi milhares de relatórios técnicos, estudos e projetos, sobre áreas de Economia, Finanças. Contabilidade, Gestão de Empresas, gestor e administrador judicial de processos de insolvência ou de recuperação, trabalhei para centenas de empresas, devo ter feito, até arriscava em falar de milhões mas é exagero.
A minha linguagem é técnica na sua globalidade, nunca me dediquei a poemas, prosas, literaturas, histórias etc, embora tenha os conhecimentos básicos.
Sei algo de Ulisses e outros mas na vertente escolar, mas estou a ficar desactualizado, sei melhor transformar um balanço falido em empresa próspera, como aumentar produtividade em vez de combates e picadas.
Sei estar à frente num Tribunal a tentar recuperar tantas empresas do que falar de política.
Cada macaco no seu galho!
Parabéns por esta obra prima a juntar a outras tantas da tua autoria. Tenho pouco tempo para me dedicar a tudo, percebo da diminuição das minhas capacidades, estou na 4a geração da velhice mesmo.
Vamos a outros temas.
Tinha um comentário feito ao nosso amigo Mário Beja Santos sobre o poste anterior a este, mas não seguiu. Os contos dele, mais acertadamente, as suas obras primas são na sua maioria engrandecedoras. Pouco comento porque é muita areia para a minha camioneta... Mas reconheço os conhecimentos que ele nos transmite, é um fora de série.
Não quero por ninguém de parte, pessoas que estimo sem haver conhecimento pessoal, mas relevo também o Patricio que nos põe a par das grandes mudanças da nossa Guiné.
O mesmo transmito ao Cherno Baldê que nos ensinou tanto da cultura e costumes da sua Guiné.
Podes por favor publicar isto e dizer que os aprecio muito.
Tinha mais mas estão fora de prazo, que me perdoem tantas coisas novas que têm saído e que eu gostaria tanto de mandar faladura.
Quando vi o Poste de hoje, vi logo na foto que faltava qualquer coisa!
Mas agora que li " your coments" era isso mesmo, não vou dizer porque posso ser acusado de pai de filho incógnito,
Luís é por causa deste excesso de linguagem, dos pormenores mais mesquinhos, 3000 páginas escritas e não posso deitar cá para fora, em especial pelo respeito a toda a minha família, e manter a nossa privacidade dentro da minha cabeça, e na PEN, que só eu sei o que lá está.
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Em parte são algumas divagações que por vezes faço e estão lá, nem preciso de consultar. Eu até teria facilidades de publicação. Tenho pessoas das minhas relações paralelas, que são os donos da maior editora nacional e poderia ter grande apoio sem nada pagar.
Mas ficavam a saber tanto como eu, que não é a minha intenção. Vou fazer de futuro, como dizes, resguardar mais a família. Tenho sido muito liberal a contar tudo, que na prática, e devido a más interpretações só serve para criticas. Além disso já não tenho a força que tinha antes da pandemia e das minhas operações cirúrgicas. Vou utilizando este meio e públicas o que achares interessante para toda a população de combatentes.
Um abraço e obrigado pela atenção que tenho tido.
Virgílio Teixeira
Em 2025 - 07 - 14
João Crisóstomo, Nova Iorque
Assim até dá gosto visitar o nosso blogue. Mais um grande artigo, e uma grande história. Mesmo que não tivesses o cuidado de esclarecer que é uma "história de vida real” creio que todos- ou a maior parte dos que a leram -- a teríamos compreendido como tal. Como se pode depreender pelo número de comentários. Comecei ontem a ler este post, ( os fusos horários possibilitam-me ler e até comentar com antecedência de cinco horas … e daí a razão porque quando envio um abraço de parabéns a aniversariantes sou geralmente primeiro a fazê-lo) ainda sem qualquer comentário. Tive de o interromper a leitura e agora vim ler o resto do post e deparo com 17 comentários. Este post dá pano para mangas. A mim transportou-me a várias etapas da minha vida: primeiro aos meus tempos de meninice quando tive ocasiões de ver os trabalhadores receberem a jorna: na Extremadura, nos anos cinquentas, na minha zona os trabalhadores de enxada a receberem 25$00 ( vinte e cinco escudos) “de sol a sol” ( a idéia de 8 horas de trabalho apareceu depois). Como “bonus" recordo que era enviado para o campo de trabalho um garrafão de cinco litros de "água-pé”. Sei que a "jorna “ não era sempre igual ; variava nos tempos de ceifa de trigo, na poda das vinhas e nas vindimas dependendo também da ‘oferta e procura” : umas vezes eram as as gentes que iam para o Alentejo ; outras vezes "não havia trabalho" e a “jorna “ subia ou descia…
E quanto de nós não sabemos de casos parecidos com a vida , fortunas e e desfortúnios do Ulisses? Cá e lá , podemos dizer ( pelo menos é essa a minha memória ) que era era o pão nosso de cada dia …
Este Post levou-me também a veviver momentos da minha juventude : foi na praia de Pedrogão, perto de São Pedro de Muel e de Vieira de Leiria que eu nem me recordo já se ainda era "seminarista franciscano ” ou se foi já depois de "ter saido” que eu passei um verão, partilhando a vida dura dos pescadores, chegando a ir com eles naqueles barcos pesados e compridos ,-- quatro homens para cada remo -- que ao voltar a terra eram puxados do mar com parelhas de bois que aí nos esperavam ; e logo o peixe era vendido aí mesmo na areia … Lembrando tudo isto sinto o mesmo que sinto sobre os tempos da Guiné: um misto de revolta e ao mesmo tempo de nostalgia e saudade. vá lá a gente compreender …
João Crisóstomo, Nova Iorque
Obrigado, João, pela atenção que quiseste dispensar a esta história, mais um dos meus "contos com mural ao fundo"...(mural com com "u", e não com "o"...).
É uma das "histórias de vida" que vou reunir, numa antologia, e que vou publicar em livro, para oferecer a familiares e amigos... Lá terás, espero bem, o teu exemplar, com dedicatória autografada e um alfabravo fraterno. Luis
João, as memórias de infância e adolescência são seguramente as mais impressivas, as mais marcantes. E vais levá-las para a cova... Não te largam, para o bem e para o mal. Mas à medida que a gente vai "envelhecendo", é que as vai, ao mesmo tempo, "desenterrando!... É um trabalho de "arqueólogo", de escavador de memórias...
Hoje fico fascinado a ouvir (e a reconstituir) histórias de vida de gente do meu tempo. Gente que conheci. E até com quem convivi, maiores ou da mesma idade... mas que desapareceram do meu radar.
Há dias conheci o neto, mais novo do que eu uns 8 anos, do meu vizinho da "rua do castelo", o Ti' Zé Mendes, segeiro, carpinteiro de carroças (ou simplesmente ferreiro), que tinha uma oficina, um antro escuro, com uma enorme forja, um fole e uma bigorna onde martelava o ferro em brasa para fazer o aro das rodas da carroça... Ele já não construía carroças, consertavas as rodas de madeira, reforçadas com um aro de ferrro...
O homem em tronco, suando por todo os poros, mais negro que um negro da Guiné, praguejando e rezando, é uma das figuras fantasmagóricas que povoam o "meu álgum de imagens" da infância...
A mecanização dos transportes e a modernização da agricultura, com o fim dos veículos de tração animal, ditou o fim do segeiro...É hoje uma profissão extinta.
Fiquei a saber que o Ti' Zé Mendes veio para a Lourinhã, por volta de 1920, oriundo de Pousos, Leiria. Veio trabalhar para a oficina de um segeiro. Por um triz não foi parar à Flandres, com o CEP - Corpo Expedicionário Português, porque "na véspera da partida o corpo todo ficou coberto de bolhas"... e acabou por ser dispensado por uma junta médica.
Só conheci um desertor na minha terra...E por sinal um oficial QP, oriundo da Academia Militar... Mas deve ter havido mais... Os refractários (c. 20 mil no total para um população metropolitana, em 1970, de 8,59 milhões), por uma regra de três simples, terão sido c. 46 (na população da Lourinhã. que era de 19,66 mil)... Os faltosos foram dez vezes mais: 462...
Os faltosos (c. meio milhar, na Lourinhã, no período da guerra colonial) eram putos que emigravam ,com as famílias, primeiro para as Américas (Brasil, EUA, Canadá...) e depois para a Europa: França, Alemanha... A Lourinhã não foi dos concelhos mais afetados pela emigração (interna e externa): mesmo assim, perdeu c. 15% da sua população (c. 3,3 mil), ao longo da década de 1960...
Brilhante este conto verdadeiro do Luís, à semelhança de outros que tem feito passar por aqui. Encanto-me com contos assim, que nos mostram como se engordava e emagrecia, como se subia e descia na escala social, no tempo da outra senhora. E ainda dizem alguns que no tempo do Salazar não havia corrupção! Certo que os jornais poucas notícias davam dela. Deixem-me dar conta de uma pequena amostra, de como se vivia em 1944 : Por uma Missa recebia o Pároco 20$00, mas um trabalhador à jorna recebia por um dia de trabalho apenas 15$00 + mata bicho , almoço e merenda. Um Kilo de carne de vaca custava entre 9 a 13$00 e uma arroba de milho entre 60 a 70$00.
Um grande abraço.
Carvalho de Mampatá
Num livrinho (que está inédito, com o título provisório " Viagem ao fundo da minha rua" (ou coisa parecida), visto e revisto (já deve ir na 100ª versão, desde 2004!) , escrevi no pictograma 39:
(...) "Da janela do teu quarto, contavas, um a um, os cinquenta homens que em fila, de enxada em riste, cavavam a vinha do Senhor, encosta a cima, até ao alto onde se erguia um moinho de vento.
Do outro lado, encosta abaixo, outros tantos cinquenta homens, de enxada em punho, cavavam outra vinha do Senhor, que tinha muitas vinhas e fazia muitas pipas de vinho!...
Nessa época a riqueza media-se em pipas de vinho e carros de bois de trigo e jeiras (que era a medida da terra). E não havia ainda motocultivadores e tratores." (...)
Quando voltei da Guiné, em 1971, já havia muitos motocultivadotres e tratores e os cavadores de enxada tinham emigrado para França...
quarta-feira, 16 de julho de 2025 às 23:43:11 WEST
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