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sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20505: Feliz Natal de 2019 e Bom Novo Ano de 2020 (21): Fez-me bem passar por Runa. O coração voltou a sentir "aquela" emoção. Talvez por ser Natal (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro)



1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 26 de Dezembro de 2019:

Passei ontem por Runa e a memória levou-me de volta aos dias em que, no Hospital Militar, fui enfermeiro "acidental".[1]

Era no Serviço 5, Medicina Geral, no Anexo da Artilharia 1, em que estava colocado, que se prestava assistência aos veteranos da I Guerra Mundial, recolhidos no Lar Militar, em Runa, Torres Vedras.
Iam para consultas médicas, e internamentos se caso fosse. Reclamei para mim a exclusividade do seu acompanhamento.

Era eu que me certificava das horas certas para os medicamentos, que lhes dava as refeições, que lhes dava banho.
A hora do banho era sempre um grande momento.
Passava horas a conversar com eles, a ouvir-lhes histórias antigas, da família e da guerra, mas a hora do banho é que era.

- Ó ti Chico, este... já não serve para nada, vamos mas é cortá-lo que só está aqui a atrapalhar.

Eles morriam de riso e eu de felicidade por os ver sorrir assim. - Talvez por ver neles os meus avós maternos que tanto adorava.

Acontece que fui de férias.
E na volta, falou-me o 1.º Sargento-Enfermeiro que chefiava o Serviço.
- Você arranjou aqui um bonito serviço. Vieram dois homens de Runa, perguntaram por si, disseram-lhes que você tinha ido de férias e eles queriam ir embora, que só vinham quando você cá estivesse.

Fez-me bem passar por Runa.
O coração voltou a sentir "aquela" emoção.
Talvez por ser Natal.
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

(...)
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.

Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.

Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.

Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.

Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3.ª e 5.ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.

Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.

À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.

Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.

E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
(...)

Último poste da série de 26 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20500: Feliz Natal de 2019 e Bom Novo Ano de 2020 (20): Mesmo cansados da guerra..., votos de que possamos continuar a partilhar memórias (e afetos)... Ah!, e obrigado por tudo: confiança, lealdade, apoio, "fair play", tolerância, cumplicidade, amizade, camaradagem... (Os editores)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16952: Banco do Afecto contra a Solidão (21): o lar onde estive... (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem do Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68

Data: 14 de setembro de 2016 às 02:28 

Assunto: O LAR ONDE ESTIVE

Camaradas

Estou em casa, portanto saí do Lar. Não era o local adequado para  acabar os meus dias. 

O livro que lancei, com o título "O Corredor da Morte", tem a ver com  este período que passei num local isolado. Longe da civilização, tive  saudades da barulhenta cidade.

Cheguei a levantar-me às 02H00, fazer a barba, tomar banho e vestir-me.  Dava umas voltas e tomava o pequeno-almoço às 09H00. Seguia para o Bar  e passados que eram 30 minutos desapareciam todos recolhendo aos seus  quartos – talvez para verem programas de TV. Eu aguentava até o almoço às 12H30.

Voltava ao Bar que fechava por não haver ninguém.  Lanche pelas 16H00 e era esperar pela hora de jantar, às 18H30. Todos  dispersavam, ficava no Bar que já estava fechado, ligava a TV e tinha de ir para o quarto para me darem os comprimidos de antes de  deitar-me.

Por vezes surgiam umas Senhoras que fui conhecendo. Com jogava às  cartas, bebíamos café da máquina. Ela adormecia com as cartas na mão.

Torres Vedras estava a uns 12/13 quilómetros e só via céu e montes. Como também nunca me entendi com o senhor com quem compartilhava o  quarto – um T1, mas tinha somente uma parte de um T0.

Tinha conversas interessantes com Senhoras viúvas de Oficiais  militares, simpáticas e com idades que andavam nos 90 anos.

Uma, a Senhora Fernanda – com a doença do Alzheimer – conversava  comigo perguntando constantemente como me chamava.  O marido um Capitão carrancudo… Vi que se ria vendo a paciência que tinha com a esposa. Professora Primária, Santa Catarina, Lisboa, declamava e bem, um poema  seu que falava do desgosto de nunca ter tido filhos.
Como gostavam de mim, quando disse à Assistente Social que decidira  regressar a casa, pediu-me que pensasse bem por achar que podia ajudar  Residentes do Lar. Estive lá, para lhe fazer a vontade, mais 5 dias.

E foi o que sucedeu, não esqueço os diálogos que tive com a Senhora  que escreveu um poema "Ao filho que nunca teve". Pedi-lhe que me desse  o poema escrito. Escrevo-lhe brevemente.

Agarrei-me ao computador, tudo errado.  Continuei a reescrever o livro, mas nada sai. Mas acabou por ser uma experiência positiva. Logo me arrependi daquilo que fizera. Terei de  dar-lhe a volta, ia sair asneira.

Poesias nascem e morrem… Escrevo esta experiência que tive no Lar.

Encontrei-me com camarada da minha Companhia, José Salvador Pinto  Aires que contactou o Blogue.

Abraço,
Mário.
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Nota do editor:

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16588: Banco do Afecto contra a Solidão (18): Regressei de Runa.. e velhos são os trapos !... (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem de Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659,Gadamael e Ganturé, 1967/68]


Data: 5 de outubro de 2016 às 23:48
Assunto: VELHOS SÃO OS TRAPOS
  
Caras Amigas, Amigos e Camaradas


Ignoro se sabem que regressei do Centro de Apoio Social de Runa – IASFA, Ministério da Defesa Nacional.

Houve informação para umas e uns e falhou para outras e outros. Inclusive fui chamado para entrar no Centro de Apoio Social do Porto. Visitei.

Escrever e passar o tempo… Mas como se o meu relógio biológico deixou de actuar. Perdi-me num vazio. Fico deveras danado por verificar que o ser humano não se prepara para atravessar o tal "corredor – o da morte", que vi bem ao vivo em Runa. Nem se fala lá em Lar. Talvez com
razão. Parece não fazer sentido discutir e falar da morte.

Ingmar Bergman, grande realizador sueco que ficará com o seu nome vincado na História, não só do Cinema como do Mundo, num dos seus filmes coloca na boca de uma sua personagem uma explicação para esse final de vida – antes e sabendo que vai morrer. Talvez depois de ver
bem nos seus olhos:
– A Morte é… – E cai em terra.

Pois ela é o fim. Antes dela? Velhice. Ser velho? Direi e convicto:
– Velhos são os trapos. Não sou velho!
– Mau agouro. Nem sequer vou pensar nisso! – Dizem por aí.

Pois esse período que a antecede. Nem sequer temos pesos e medidas – gosto muito desta afirmação: "Pesos e medidas" – nem sei o autor.

Queda!

Há, nos dias de hoje,  velhice? É uma doença! Só se for na província, lá para o interior! – Palavras ditas…

Mas é o ciclo natural da vida. Principalmente as mulheres disfarçam ao retirarem de um lado… Pondo noutro.

Bisturis retira anos. Matematicamente retiram uma, quem sabe… Duas décadas. Além de operações, tatuagens. Vestidos berrantes e largos, para esconderem a barriga e seios descaídos.

Julgo ter sido Cícero – se não foi ele fui eu ou alguém:
– Somente os idiotas se lamentam em envelhecer…

Destaco, para terminar por hoje algo escrito pelo Poeta do Mundo, é a minha enciclopédia:
– "O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela".

Um abraço

Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16446: Banco do Afecto contra a Solidão (17): Regressei do Lar de Runa... ap

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16564: Inquérito 'on line' (71): Os Filhos dos Ricos e Poderosos, incluindo os jogadores de futebol... (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Torres Vedras > Runa > Centro de Apoio Social (CAS) de Runa  >  Obra da Princesa Maria Francisca Benedita >  Instituto de Acção Social das Forças Armadas

Foto: © Mário Gaspar (2016). Todos os direitos reservados


1. Mensagem de Mário Gaspar [ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68]

Data: 5 de outubro de 2016 às 01:44
Assunto: Os Filhos dos Ricos e Poderosos


Caros camaradas


Sabem que regressei do Centro de Apoio Social de Runa – do Instituto Social das Forças Armas (IASFA), Ministério da Defesa Nacional. Em suma, regressei de um Lar de Idosos, no meu caso um Lar Militar das Forças Armadas Portuguesas. E "todos os Lares civis ou militares", não são os nossos lares, nestes em princípio, temos a Família presente.

Mas não vou falar de lares…

Discute-se um facto, e é a verdade que flui da minha boca, e os filhos dos ricos e poderosos e então – do nosso tempo de guerra, que não é nunca foi uma brincadeira de criança – falo por mim como Miliciano, esses filhos de ricos e poderosos que andaram na Escola da Câmara e mais tarde num Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira estiveram na Recruta na "minha tropa", mas na Especialidade de Atirador não vi nenhum.

Dei os meus primeiros passos no Serviço Militar no dia 3 de Maio de 1965 no Curso de Sargentos Milicianos (CSM), no RI 5, em Caldas da Rainha.

No mesmo Curso estiveram Rui Rodrigues e  Gervásio,  entre outros, jogadores da Académica de Coimbra. E Peres, este julgo também ser já jogador do Sporting Clube de Portugal, e o "famoso", "poderoso" de facto, Simões do Benfica, Campeão Europeu,  e que fez parte dos heróis do Futebol na Seleção Portuguesa, terceira classificada no Campeonato do Mundo de Futebol, em 1966.

Este acontecimento se dá quando eu – nunca fui voluntário – tive de "prestar provas para o Curso de Rangers, em Lamego".

Muitos os Milicianos recusaram frequentar o mesmo, ainda fiz parte da Equipa de Natação que representava o RI 14, em Viseu, no Campeonato da Região Militar, na Piscina, em Tomar. O Comandante deste Regimento que chefiava os nadadores era o conhecido também ex.futebolista da Académica de Coimbra, que venceu uma Taça de Portugal, o então Tenente-Coronel Faustino.

Nadei contra "nadadores civis federados", militares que representavam as suas Unidades. Julgo que também esses estavam no grupo dos "poderosos". Continuei por não ser voluntário, e por sorteio da vida, saiu-me ir frequentar o XX Curso de Minas e Armadilhas, na Escola Prática de Engenharia, em Tancos. 

Aí há a excepção, encontra-se o Aspirante Miliciano Oliveira Duarte, outro dos "poderosos". No meu conceito incluo estes que falei, nunca os culpando por estarem no grupo. Oliveira Duarte, jogador já do Sporting Clube de Portugal,  foi vítima de um jogo de "poderosos", estes sim "poderosos e «cunhas»", destes mesmos Militares que se livraram da guerra. 

Oliveira Duarte teve de partir para Angola, mas sendo "poderoso", frequentou o Curso de MA e lá foi para o grupo de futebol, livrou-se da guerra – perdeu, como nós todos,  tempo – e nós não só tempo – lembrar que nos ofertavam por estarmos em zonas de guerra. 

Ainda outros Desportistas, e não só do Futebol, caiu-lhes na sorte terem frequentado outras Especialidades, e atractivas e não foram à guerra.

Curioso, e é bom lembrar que os Milicianos na Guiné recebiam, julgo que ate fins de 1968 ou 1969 inclusive, menos verba mensal que os dos mesmos postos em Angola e Moçambique. Dizem estarmos mais junto à metrópole.

Estive na frente de um outro grupo que lutou para que o aumento de tempo que consta nas Cadernetas Militares ou Documentos que referissem o mesmo. E esse aumento é de 100%. Considerando que as horas de trabalho normal é de 8 horas, se nos encontrávamos de Serviço 24 horas, seriam 400%. Pois eu nem me contaram os 100%.

Nós somos, neste caso os não poderosos. Senhores com o nome de baptismo Cunha conheço… Mas esses "poderosos cunhas", vi por aí. Até na entrada em alguns "lares" e incluo todos, os "poderosos cunhas" estão presentes.

Quero lembrar um outro grupo que bem podia servir para dar a opinião, desconheço se foi ou não analisado: O Caso dos Nossos Capitães Milicianos que após terem cumprido o Serviço Militar e terem regressado a casa e frequentarem finais de Cursos Académicos são chamados e foram Camaradas não só, como nós na Guiné como noutras frentes de guerra.

Abraço a todos

Mário Vitorino Gaspar

NOTA: Em breve enviarei um texto - com fotos da minha autoria - sobre este Centro de Acção Social de Runa - CAS de Runa. Lembro, por curiosidade que fui chamado, e para entrar num outro "corredor da morte", este o "Centro de Acção Social do Porto", mas recusei, embora considere ter outras condições, muito embora numa zona dentro do Porto um pouco abandonada. Comércio fechado e casas abandonadas. Com outra qualidade de vida. Regressarei logo que tratar de uma infecção na boca.

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domingo, 4 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16446: Banco do Afecto contra a Solidão (17): Regressei do Lar de Runa... Um lar é um lar, por muito bom que seja... Aquilo para mim era já Gadamael (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Instituto de Ação Social das Forças Armadas > Centro de Apoio Social de Runa (CASR), Runa, Torres Vedras


Foto: © Mário Gaspar  (2016). Todos os direitos reservados



1. Duas mensagens de hoje, do Mário Gaspra, enviadas às 3 e tal da manhã:

[foto à esquerda, Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68]


(i) Assunto - Regressei do lar de Runa

Caros Camaradas

Mário Vitorino Gaspar regressou de Runa. Estou em Lisboa,  o Lar Militar em Runa fazia-me lembrar a Guiné.

Julgo estarem a confundir tudo. Sempre julguei que todos fossemos capazes de fazer um pouco de História – neste caso da guerra na Guiné – mas é mentira.

Cada um conta a sua verdade, parece mais que o Blogue não é necessário. Tenho a certeza que todos temos necessidade da importância do mesmo. Não pode ser um meio de se entreterem. Estive no Lar em Runa, sem computador e praticamente sem  contactos.

Quando uma parte se afasta há uma “história” ou “estória” mais, e cometem-se erros, para não dizer que se deturpa a verdade. O Camarada Coutinho e Lima tem razão, em Gadamael antes da CART 1659 tiveram a sua História a CART 494 e CCAÇ 798.

A CART 1659 era comandada pelo Capitão de Infantaria – e não de Artilharia, como alguém afirmou – Manuel F. F. de Mansilha.

A foto que consta do mesmo a cortar o bolo no Almoço de Confraternização na Batalha foi por mim enviada. Assim como o emblema da CART 1659 também fui eu que o fiz chegar ao Blogue.

Para saberem algo mais sobre o período de Janeiro de 1967 a Outubro de 1968, podem ler o meu livro “O Corredor da Morte”, estou a tratar de terminar uma 2.ª  edição, onde não vão existir omissões – omitir é mentir – não sou mentiroso…

Voltarei… Cumprimentos


(ii) Assunto: Um lar é... para além de tudo, um lar  – ou devia ser


Caros Camaradas e Amigos

Decerto não interessa a ninguém o que se passa num Lar. Eu estaria sempre interessado, sou curioso.

Podem crer ser pior um Lar – seja ele o melhor, tenha tudo aquilo que julgamos ser do melhor – só o sabemos quando lá estivemos.

O pessoal, todo ele compreensível, educado, trabalhador, simpático… Não tenho adjectivos para descrever, não existem palavras, mas é um Lar. Um Lar não pode ser isolado e afastado. Tem de possuir movimento de pessoas e movimentação.

Runa para mim já era Gadamael, na Guiné, no mato. Até os amigos se esquecem que existimos.

Falarei do assunto noutra altura.

Um abraço

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor: 

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16211: Banco do Afecto contra a Solidão (16): Destino marcado: camaradas, sucede que, tendo sido um combatente e depois um grande lapidador de diamantes, esgotei as minhas baterias... Estou doente... Aguardo a guia de marcha para o Lar de Runa!... (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem,  de 11 do corrente, enviada, por Mário Gaspar (ex-Fur Mil At Art,  Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68),  e que estranhamente nos soou a "despedida"...  

O Mário arranjou, ao fim de vários anos de espera, uma vaga no Lar dos Veteranos Militares de Runa, mais conhecido por Asilo de Inválidos Militares de Runa.no concelho de Torres Vedras: 

Caros Camaradas da Tabanca

Após a ter partido para aquelas terras, lá no fundo do horizonte, tive de caminhar para a outra linha. Com a mão estendida consigo alcançá-la. Mas é guerra, o único tremor de terra que me quebrou. Parti… Feito em cacos. Com arame e cola pensei vir a ficar... como era… Estúpido que fui.

No dia 6 de novembro de 1968, acendi um fósforo, outro de seguida e queimei os sonhos. A nuvem parecia inicialmente ser cor-de-rosa, ficou como alcatrão, e foi nessa escuridão que permaneci. Atravessei o mundo, de uma ponta a outra. Eu que lera bibliotecas, nem uma linha de escrita a uma amiga ou amigo. 1969… 70… 71… 72… 73, e… alegria das alegrias: – O meu filho Carlos Pedro já não vai para a guerra.

Nunca desistira da luta. Já em janeiro de 74 havia estado numa greve. Escrito no Caderno Reivindicativo: – Considerando que o preço das batatas é de 4$00, valor igual para a Empregada de Limpeza; para o Serralheiro; Escriturário; Lapidador de Diamantes ou mesmo Director da Empresa. Primeiro: 2.500$00 de aumento “per capita”!

Escrever; ler; ir ao Cinema e Teatro? Nada disso, estava dedicado somente ao trabalho. Não havia tempo a perder. Era o carrossel. “Olha aquela menina de amarelo… Mais uma volta, outra ainda”. Sem atropelos atinjo o topo da pirâmide em meros 2/3 anos. “Entrava mudo e saía calado. Parei quando o meu amigo Jorge Manuel Alves dos Santos, Presidente da Associação APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra – ambos fundadores, era eu Secretário da Direcção Nacional, me diz: – Vamos fundar um Jornal e vais ser o Director!
Respondi que não, como nunca fui pessoa de desistir, nem de oferecer como voluntário… Aceitei. E fui Director. Deixara de escrever “na queima dos sonhos – em novembro de 1968, estávamos em dezembro de 1995. Vinte e oito anos (28). E não parei de escrever… Até a exaustão e os leitores ficarem fartos… Fartos mas de mim.

E as frases que alguém escrevera: – “Se não fosse eu… Enfim, o que seria de mim” – “A guerra continua dentro de mim” ou, entre outras: – “Uso-me… Mas não sou para usar”!

Já entretanto comprara um novo traje… Não o de luzes, mas o mesmo que ainda visto. Com um sorriso no colarinho, com um nó da teia de aranha no lugar da gravata, aliás esse nojento bicharoco – animal de estimação do futuro – que em garoto me habituei a adorar. E as baratas? Um pontapé e o bicho virado ao contrário – não de avesso – esse é outro bicho. Mas a barata fica assim, dando à perna e…

Mas recordo também outro, o percevejo – para não falar do “chato”. O camarada coronel Matos Gomes deve recordar, julho de 1966 em Lamego, nos Rangers: – “É chato, é chato... Sambinha chato, mas é... chato o sambinha que é mesmo chato.

Não havia quem desse a volta, mesmo que Oficiais e Sargentos Milicianos, dessem com todas as botas e partissem todos os apetrechos que repeliam tais vómitos… Chamavam àquele barulho ensurdecedor de música.

Pois e os “corredores da morte”; “corredor de Guileje”; o outro “corredor que atravessava, também da morte, quando manuseava minas e armadilhas”; o “corredor da morte do meu coma” e este último “corredor da morte – o Lar de Runa”.
Este último não vou perdoar aos Dirigentes Associativos de Combatentes, por não ser local no País onde se coloque alguém, depois de tanto Quartel ao abandono, nunca pediram para acabarem com o Lar de Runa. Fica longe do nada… Mais perto Torres Vedras e são 6/7 quilómetros. Vou acabar por morrer num local bem semelhante a Gadamael Porto… E não há bajudas. Muito teria a acrescentar.

Não falo das condições, mas da localização.

Tinha tanto a acrescentar no Blogue àquele novo desafio que só tardiamente tive conhecimento, do tempo perdido naquela inglória zona de Cacine a Mejo e Guileje – julgo pertencerem ao Sector 2, com sede em Buba.

Não são horas para estar acordado. Estou no final de uma Operação… E estou deveras cansado. Como dizia o meu amigo Raul Solnado:
– “Senhor, estou farto”.
E outra dele: – “Sejam felizes”!

Um abraço para a Tabanca Grande.
Mário Vitorino Gaspar

PS - Ainda não estou em Runa. Aguardo a Guia de Marcha.

Envio um poema meu declamado pelo amigo João Moutinho Soares. [, ficheiro áudio em formato não compatível; terá que ser oportunamente convertido para vídeo;  optamos por reproduzir apenas a letra do poema, que o autor nos mandou, ontem, com uma explicação adicional,  de uma cruel lucidez, sobre as circunstâncias (dolorosas) em que decidiu aceitar a vaga que obteve no Lar de Runa],


Nu

por Mário Vitorino Gaspar

Se ficar nu… Despido.
Tirar a máscara.
Ser rosto esculpido
Na estátua… Que se encara;
Se for diamante polido
E jóia ou moeda rara,
Ser estátua ou diamante
Melhor seria… Amante.

E se for um livro perdido
E a página toda riscada,
A história não faz sentido
E acaba por não ser nada.
Se for sopro de ar vertido.
Vento ou sonora trovoada,
Se for o nu da lágrima só
Caída na gravata com pó
 

E se for o riso da criança
Ou mesmo se for… O choro
Será o sinal da confiança.
Se for lágrima? Eu decoro
Por acaso for… A fiança.
Nota musical solta do coro.
Criança e lágrima é riso,
E neste mundo é preciso
Bebés… 
Nus e choramos
Crescemos… E amamos.



Lar dos Veteranos Militares, Runa, Torres Vedras (foto gentilmente cedida por Mário Gaspar)
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Nota do editor:

Útimo poste da série > 18 de outubro 2011  >  Guiné 63/74 - P8920: Banco do Afecto contra a Solidão (15): O caso do José António Almeida Rodrigues, ex-prisioneiro de guerra (entre Junho de de 1971 e Março de 1974): uma história de coragem e de abandono (José Manuel Lopes)