Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.
1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)
Meu Caro Luís Graça, Camarada:
Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.
1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)
Meu Caro Luís Graça, Camarada:
Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.
2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.
“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.”
Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]
“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.”
Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]
- Então doutor, o puto safa-se?
Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.
Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.
A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.
Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.
Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.
O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado. Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.
Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.
Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.
Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.
Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.
Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.
Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.
À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.
Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.
E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.
Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?
O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.
Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.
Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.
De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava. O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei. Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele? Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?
Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa. Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.
Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.
Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida. Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.
(Continua)
_______________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge
Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.
Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.
A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.
Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.
Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.
O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado. Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.
Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.
Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.
Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.
Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.
Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.
Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.
À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.
Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.
E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.
Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?
O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.
Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.
Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.
De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava. O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei. Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele? Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?
Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa. Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.
Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.
Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida. Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.
(Continua)
_______________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge
8 comentários:
Uma "personagem" este Armando ribatejano e fadista (eh pá, ainda te não ouvi cantar!).
Parabéns, amigo, por conservares este espírito jovem, irrequieto, atento e humanista tão vincadamente expresso nesta memória descritiva do teu lançamento na enfermagem militar, memória redigida em tom sério mas bem regada com humor. Essa do fígado a sair por um buraquinho da barriga é de gargalhar!
Mas lá estavam as sementes que deram o homem que hoje tenho o prazer de conhecer, lá estavam elas no rapazito cheio de inconsciência(?)virtuosa, uma inconsciente promessa de enfermeiro, razão e sonho em conflito, assumindo o "desafio tonto, arriscado e insensato" de bem cumprir a sua missão militar. "Porreiro, pá!"
Um grande abraço, meu amigo
Manuel Joaquim
(...) "Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele? Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?" (...)
Benditas palavras do médico, que calaram fundo no nosso Armando e reforçaram a sua vontade de aprender, de ser competente, de salvar vidas... Como se chamava esse homem que foi teu mestre ?
E já agora deixa-me perguntar-te outra coisa que está relacionada com esta: Qual era a receita para se formar um bom "furriel enfermeiro" ? Qual era a sua formação teórica e prática ? Com quantas "horas" de prática hospitalar é que se ia para o TO da Guiné ? Ainda te lembras das "matérias" ministradas durante a especialidade ?
Atenção, não penso que muitos dos alferes milicianos médicos fossem melhor preparados, para o TO da Guiné, do que a generalidade dos furriéis milicianos enfermeiros...
Na época era voluntário e muito deficiente o "internato"... Só com a criação das carreiras médicas, em 1971, é que se começou a melhorar a formação especializada dos nossos médicos e cirurgiãos... Para muitos camaradas médicos, o HM 231 (Bissau) e o "tirocínio" no mato forma uma "grande escola"...
Um abraço. Luis Graça
... Também não me parece que muitos furriéis milicianos enfermeiros tenham aproveitada a sua formação militar e seguido a carreira de enfermagem (criada em 1971) no âmbito do Ministério da Saúde... A profissão ainda era (mais do que hoje) fortemente feminizada, e pouco aliciante...
A partir de 1952, passou a haver em Portugal, três cursos distintos de enfermagem, a ministrar em Escolas de Enfermagem, públicas ou privadas, dotadas de autonomia técnica e administrativa:
(i)Curso geral (Habitações mínimas: 1º ciclo liceal; duração: 3 anos);
(2) Curso de auxiliares (Habilitações mínimas: instrução primária; duração: 1 ano, mais seis meses de estágio);
(iii) Curso complementar (Habitações mínimas: 2º ciclo liceal, além do Curso de Enfermagem Geral e prática profissional; duração: 1 ano).
Além da idade mínima (18 anos) e das habilitações mínimas (conforme o curso), eram requisitos de admissão ter "robustez física" e "comportamento moral irrepreensível" (sic).
No final do curso, os alunos deviam submeter-se a um exame de Estado, a realizar em escola oficial.
Só em 1979 é que passou a ser exigida, como habilitação mínima para a admissão ao curso de enfermagem, o 3º ciclo ou curso complementar dos liceus (ou seja, onze anos de escolaridade) (D.L. nº 98/79, de 6 de Setembro).
Facto de maior relavância do ensino da enfermagem em Portugal, é a sua integração no ensino superior politécnico, sob a dupla tutela do Ministérios da Educação e da Saúde (D.L. nº 490/88, de 23 de Dezembro, regulamentado pela Portaria nº 65-A/90, de 26 de Janeiro).
Quanto à carreira profissional de enfermagem, ela só existe desde 1971, criada juntamente com a carreira médica de saúde pública e a carreira médica hospitalar (D.L. nº 414/71, de 27 de Setembro). Sofreria depois profundas alterações até aos nossos dias, que seria ocioso pormenorizar aqui.
Em Portugal, entre 1965 e 1974, o número de auxiliares de enfermagem que se formavam anualmente era cinco vezes superior (cerca de mil) ao número de enfermeiros com o curso geral (cerca de 200)...
Luis Graça
Caro Armando
Gostei de ler a tua narrativa.
A tua maneira de ser, tem o condão
de ver a vida com optimismo.
Ainda havemos de "conversar" muito, quem sabe se no teu Ribatejo,no Couço, onde tenho um refúgio.
Até dia 15, na Tabanca da Linha.
Um abraço e boas pescarias no Raso.
Jorge Rosales
Aproveitando a "deixa" do nosso camarada Armando Pires ao nos lembrar esse trabalho espetacular que desenvolviam na "nossa guerra".E o qual era na maior parte das vezes executado com grande sabedoria e até algum "carinho",pois que na primeira emboscada que caí uma das coisas que a mim me tranqualizou foi vêr o nosso enfermeiro cheio de calma a tratar dos feridos em pleno mato e depois no relacionamento com as enfermeiras paraquedistas no momento da evacuação.
E aqui presto sincera Homenagem a todos os enfermeiros de campanha não só aos Furrieis ,mas, tambem e muito em especial aos 1ºCabos Enfermeiros que normalmente e pela minha experiência eram sempre eles que acompanhavam os grupos de combate nas missões.Mas tambem os Furrieis as executavam.
Envio aqui neste comentário um grande abraço ao meu Furriel enfermeiro do Biambe 3ªCompanhia do Bat.4610/72 "TÁ NO PAPO"este alinhava sempre.E ainda ao "grade Maluco" Cabo engermeiro que foi para INQUIDA.
Lembro ainda aqui os fur.mil Enfermeiros da CCAÇ13 Bissorã.
Desculpa lá Armando Pires mas aqui és tu o protagonista ,daí um grande abraço para ti.
Henrique Cerqueira
Camaradas.
Cometi a imprudência de não ter indicado ao Luís Graça o número de páginas que o meu texto, escrito e enviado em Word, comportava.
Induzi o Luís em erro e acabei por tirar sentido, porque amputada da sua compreensão, ao acontecimento que quis relatar.
Já escrevi ao nosso Editor-Chefe, a quem aqui, publicamente, apresento as minhas desculpas, dizendo-lho o que se passou.
Peço-vos que estejam atentos à publicação integral o parcial do texto para que possa saber o que aconteceu com aquele rapaz, lá em Bula.
As minhas desculpas e um grande abraço.
armando pires
Caro camarada Armando Pires
Grande e bendita 'rabecada' que levaste. Mas a vida é assim mesmo, às vezes é preciso um 'clic' qualquer para se encontrar um novo ou melhor rumo.
Ainda bem que tal te sucedeu.
Eras furriel, eras (e és) ribatejano, eras fadista e ficaste também enfermeiro. É obra.
Pelo que li, só não foste forcado por causa dumas vertebasitas que ficaram incomodadas por causa dumas marraditas...
Ora bem, este teu amigo não era fadista nem enfermeiro, mas também é ribatejano, também foi furriel e também não foi forcado porque foi presenteado numa largada de toiros em Vila Franca, em Outubro de 1965, no seu 17º aniversário, com uma valente cornada (tarrascada) na perna esquerda que lhe fez perder as 'intenções' e que ainda hoje sabe sempre quando o tempo vai mudar...
Como escreveria o Torcato... "coisas".
Abraço
Hélder S.
Camarada Helder.
Nessa época, em Vila Franca, o que me costumava acontecer era ir preso. Mas isso é história que te contarei pessoalmente.
Fora isso, Vila Franca deu-me a mãe do meu filho.
Quanto ao enfermeiro.
Esse gajo morreu no dia 9 de janeiro de 1971, quando passou à peluda.
E nesse dia prosseguiu o sonho de roda a minha vida.
Trabalhar na rádio.
abraços.
(não te esqueças que dia 15 é o almoço da tabanca da linha)
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