1. Vigésimo quinto episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
Do Ninho D'Águia até África (25)
O comboio das seis e meia
O Setúbal, cujo verdadeiro nome era Jeremias, como devem de
estar recordados, e o Curvas, o tal soldado alto e refilão,
que não acatava ordens e gostava de mandar, e que todos diziam devia de ser general, estes dois militares, por actos
de coragem e bravura em zonas de combate, foram louvados
pelo comando, em cerimónia a preceito, no centro do
aquartelamento, debaixo da enorme mangueira, que por sinal tinha
sido baptizada com o nome de “Mangueira do Setúbal”, a tal
árvore de grande porte, onde existem as tais gaiolas de macacos
e periquitos.
Isto tudo na presença de todos os militares, seus
companheiros.
O Setúbal foi só louvado, mas o Curvas, alto e refilão, foi louvado e agraciado com
uma medalha cruz de guerra, que o comandante do comando a que o
Cifra pertencia, lhe propôs e que devia de ter vindo receber a Lisboa, por altura do dia 10 de Junho, mas o
Curvas, alto e refilão, recusou-se a vir a Portugal, dizendo:
- Não, vou a Portugal, pois não tenho lá família, nem
amigos, nem ninguém, toda a minha família e os meus amigos
estão aqui, comigo, e quando eles forem, eu também vou.
Era assim o homem.
Nesta cerimónia, o comandante falou durante algum tempo,
com elogios constantes ao Curvas, alto e refilão, que o
escutava, contrariado, e sempre a falar baixinho, e mais tarde,
questionado pelo Cifra, sobre a expressão do seu rosto, e o que
estava a pensar e a murmurar, ele disse-lhe que era qualquer
coisa como isto:
- Deixa-te lá de merdas e dá-me lá isso, que para mim não
adianta nem atrasa, se fosse de ouro e a pudesse vender, ou se
me arranjasses mas era um
bom emprego, quando deixasse
esta guerra, e que pudesse
criar uma família, é que me
ajudavas, pois eu sei que
quando daqui sair, se sair
vivo, vou continuar a ser um
desgraçado, a carregar a
caixa de engraxar sapatos, e
enquanto limpo os sapatos,
com o estômago quase sempre
vazio, alguns pensando que
são pessoas importantes, com
o estômago cheio de bifes e
outra iguarias, arrotam e
cospem para o chão, e às
vezes até me acertam, mas se
isso voltar a acontecer, vou
matar um, lá isso vou, e sei
que vou parar à cadeia e continuar sem família, desprezado
por todos. A única família que vou ter, vai ser a caixa de
engraxar sapatos.
E o Cifra viu-o fechar os olhos um pouco, abrindo-os de
novo, pestanejando, pois o sol batia-lhe na face, e ele disse
que o seu pensamento não parava, quase que falava alto e
murmurava qualquer coisa como isto:
- Anda lá comandante, dá-me lá isso, que estou cheio de
sede, pois estou aqui a apanhar sol, sem necessidade.
O comandante, quando acabou os elogios, coloca-lhe a
medalha, no peito, que o Curvas recebeu, mas sempre a falar
baixinho, com uma cara de quem queria matar alguém.
Só se riu um pouco quando viu o Trinta e Seis a chegar
junto dele e abraçá-lo, e logo lhe disse:
- Estou cheio de sede, temos que ir beber qualquer coisa,
deixa eles continuarem, enquanto estão aqui todos reunidos,
vamos à enfermaria roubar o frasco do álcool ao “Pastilhas”,
para mais tarde misturamos com água e gelo e uma azeitona
salgada, que o Cifra vai trazer da messe dos sargentos.
Em seguida o comandante voltou de novo aos elogios, mas
desta vez, ao Setúbal, e
entre outras coisas diz:
- Homem bravo e com
coragem, arriscou a vida
para salvar os seus
companheiros, debaixo de
fogo, lutou, sem virar a
cara às balas, bendita a
nação que tem filhos destes,
blá, blá, blá.
O Setúbal, envergonhado com tantos elogios, olhava o Cifra,
tentando piscar o olho e abanar a cabeça, em sinal de
desconforto, ao mesmo tempo que pensava, pelo menos foi o que
disse depois ao Cifra, qualquer coisa como isto:
- Nação que tem filhos destes, alto lá, pára lá com isso,
eu sou filho da minha mãe, pelo menos era ela que me dava de
comer e me criou, quando era pequeno.
Afinal o Cifra tem razão
quando diz que disseram à mãe dele que ele já não era seu
filho, mas sim filho da nação.
Quando o comandante acabou de falar, todos bateram palmas
e, já com a cerimónia acabada, o Setúbal, tal como tinha antes
combinado com o Cifra, depois de fazer a respectiva continência,
pondo-se em posição de sentido, dirigiu-se ao comandante, na
frente de todos, mais ou menos com estas palavras.
- Meu comandante, se me dá licença, com todo o respeito,
queria pedir-lhe se podia ter como prémio, além de todos estes
elogios, uma pequena licença de umas semanas e uma possível
viagem a Portugal, nos aviões da Força Aérea. Esses aviões por sinal andavam sempre cheios com as
famílias de militares importantes, principalmente esposas.
Era isto que interessava ao Setúbal, pois queria pedir a
namorada em casamento, estar com ela e com os pais.
O comandante, na frente de todos, acedeu. E disse que ia
pedir à Força Aérea um lugar e que quando houvesse vaga, lhe
comunicaria.
Que alegria! Passadas umas semanas, o Setúbal pede ao Cifra
para lhe cuidar do seu macaco e do periquito, pede-lhe umas
calças e uma camisa, de roupa civil, que lhe ficavam a matar e
que ao Cifra eram largas, com umas botas nos pés, que já conheciam
o som do rebentamento de granadas de morteiro e de uma
metralhadora, e tinham visto por diversas vezes a cor do sangue, alguns mortos em combate, vem para Portugal.
Quando regressou, em conversa normal, pois por muito tempo
a conversa entre os dois era só a sua viagem a Portugal, que
por vezes chegava a pormenores, em que o Cifra lhe dizia:
- Isso são coisas que só tu e a tua noiva devem saber,
portanto cala-te.
Mas ele às vezes insistia e talvez querendo desabafar,
dizia:
- Mas a minha mãe desconfia, eu conheço-a e sei ler o seu
pensamento, pelo menos na despedida no aeroporto, ela percebeu
tudo.
Mas continuando com a história, disse ao Cifra que foi o
último a entrar no avião e que viajou com o saco do exército,
com alguns trapos, sempre em cima dos joelhos, pois o avião ia
cheio com as tais pessoas importantes, principalmente senhoras,
ia quase urinando nas calças, pois só teve oportunidade de ir
uma vez ao quarto de banho, pois ia nos últimos lugares, e as
senhoras, parece que combinadas, iam fumar, algumas, fumavam
cigarros de cheiro agradável, arranjar o cabelo e as pinturas, e
entregavam o quarto de banho, umas às outras.
Em Portugal, entre outras coisas, pediu a mão da namorada
em casamento aos pais e talvez mais qualquer coisa, que ele às
vezes queria confessar, mas o Cifra não lhe dava oportunidade de
falar nesse assunto, fizeram uma grande festa, mostrou algumas
fotografias, convive com a família e amigos, anda durante esse
tempo, numa vida de herói e depois de fazer tudo o que entendia
que devia de ser feito, vem para o aeroporto, com a namorada,
que nessa altura já era noiva, a abraçá-lo, não o largando,
beijando-o em tudo o que era face, e não só, chorando e sempre
que o beijava nos lábios, fazia-o comer alguma baba e ranho, mas
era baba e ranho, com sabor a sal e de amor, disso tinha ele a
certeza, prometendo-lhe sempre que o esperava, que não só
ela, nas suas orações, também a Nossa Senhora de Fátima o iam
proteger, pois o senhor Prior todos os domingos iria mencionar o
seu nome e de outros combatentes na missa, na altura do Espírito
Santo. Quando ele já ia a caminho do avião, ela olha-o e num
último suspiro, quase que grita:
- Até breve meu amor, já sou tua e continuarei a ser.
A mãe do Setúbal, ao ouvir isto, não conteve um desabafo e
quase em surdina, diz:
- Eu já sabia, minha grande p..., ai, que nem quero
mencionar o nome que ia para dizer, que o Santíssimo que está no
céu me perdoe e salve a minha alma.
Mas logo em seguida, pega num lenço, que também servia de
porta moedas, pois era lá que enrolava os seus míseros trocados, limpando os olhos chorosos, o nariz e a boca, retoma o seu
pensamento e diz baixinho:
- Meu Deus, o que eu ia para dizer, pois ela vai ser a minha
nora, mas a verdade é que é uma grande descarada, a mãe nunca
teve mão nela, era só bailes e festas, e o meu filho todo
contente atrás dela nem teve tempo para mim, pois na companhia
dela sentia-se livre e andava sempre contente, porque lá na
África andou sempre a dar o corpo às balas. Andavam sempre
juntos, oxalá não esteja prenha, mas se estiver, logo que a
criança venha perfeita, é meio caminho andado, e logo que o meu
filho, regresse vivo.
Bem, mas continuando, a mãe, deu-lhe uma saca com alguma
coisa para comer, do que ele guardou parte, para dar ao Cifra e
regressa ao cenário de guerra, com uns quilos a mais, uma cor de
pele diferente, cheio de boas maneiras. O Curvas, alto e
refilão, na sua reles linguagem, dizia:
- O Setúbal, regressou um pouco “amaricado”.
A primeira pessoa que vai ver é sem dúvida o seu amigo
Cifra. Dá-lhe um forte abraço, e puxando do jornal, que trazia
consigo, diz:
- Oh pá, o teu comboio descarrilou, lê este jornal.
No “Primeiro de Janeiro” vinha tudo explicado, com
fotografia e tudo. O Cifra, imediatamente reconheceu a
locomotiva, ao fundo da encosta. Era a 1135, estava de lado, e duas carruagens a acompanharem-na pela
encosta a cima. O seu pai e alguns vizinhos, seus conhecidos,
também estavam na fotografia.
O Cifra, passou a mão pela fotografia do jornal, com os
olhos fechados e o pensamento bem longe, pois o acidente ocorreu
a umas centenas de metros da casa onde nasceu o Cifra, que nessa
altura se chamava To d’Agar, na aldeia do vale do Ninho d’Aguia, quando o comboio das seis e meia descia, apitando aflito, em
direcção ao mar.
Naquela encosta, quando criança, o Cifra, que naquela
altura se chamava To d’Agar, andava por ali na companhia dos
seus irmãos e alguns amigos, que entre outras coisas procuravam
ninhos de melro e rouxinol, nas silvas e arbustos em volta do
ribeiro que passava ao fundo do vale, e de rola e perdiz, nas
terras mais altas.
OBS: - Ilustrações de Tony Borié
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10627: Do Ninho D'Águia até África (24): O nosso Cabo Reis (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Parabéns ao Tony,
De facto os seus relatos relativos a uma comunidade de camaradas na guerra, traduzem, não só a simplicidade de jovens agremeados pela tropa, como as motivações e insuficiências de cada um, as iniciativas do grupo, a capacidade de ultrapassarem as diferentes dificuldades, a partilha das alegrias e tristezas.
E tudo numa linguagem singela e que reproduz diálogos com grande fidelidade
Mas o Tony ainda revela o talento para desenhar, e as suas gravuras são excelentes complementos aos textos.
JD
A
Amigo Tony
De facto tens sido grande na escrita, devido à sua simplicidade e fácil entendimento. Ainda fico mais admirado pela facilidade no desenho que é bem elucidativo.
Quanto á história do avião da FAP e dos lugares serem ocupados pelas senhoras, vou-te contar o que se passou comigo, que confirma isso mesmo.
Fui ferido a 27 de Outubro/65 e dois dias depois, porque o ferimento era grave, estava pronto para evacuação.A 16 de Novembro, eu cada vez mais inquieto porque já tinha uma infecção de tal ordem, que se via o femur e deitava um cheiro nauseabundo, fui visitado pelo meu Com.Cor.Brancamp Sobral. Depois de ele me perguntar como estava, disparei e disse que concerteza iria ficar sem a perna (o que foi por pouco)por culpa dos militares de alta patente, cujas mulheres e empregadas viajavam para Lisboa, para irem ás compras ao Chiado e regressarem uns dias depois, e nós à espera a apodreçer.
Tem calma e espera um pouco, disse ele, e uma hora depois fui levado para o bloco para ser engessado até ao peito, para ser transportado, e horas depois (dia 17) pelas 9,00 h. embarquei no avião que vinha de Luanda, via S.Tomé, Bissau, Canárias, chegando ao HMP pela meia noite. E lá vinham as tais senhoras todas contentes, feridos só vinha eu e um nativo, em macas penduradas no teto. No fim a guerra, para muita gente foi uma maravilha, bom salário, as mulheres arranjavam quase sempre um tacho, como professoras, etc, alojamento, as tais viagens regulares, enfim até dizem que foram os melhores tempos da vida, o que acredito.
Um abraço do teu amigo Roger
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