segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10621: Notas de leitura (426): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à narrativa do meu serviço cívico na Guiné, nos idos de 1991.
Ao acabar este relato sinto que o meu entusiasmo não foi em vão, mesmo com resultados totalmente inúteis. A ascensão do multipartidarismo parecia uma embriaguez social, refazia-se o imaginário dos dias melhores à volta de slogans; muitos daqueles técnicos e dirigentes com quem eu privava, anunciavam a saída do PAIGC, na esperança de que novas propostas trouxessem paz e dignidade à Guiné. A visita a Bolama encheu-me de uma tristeza sem limites, com a agravante de estar ali bem registada a presença portuguesa, mas era como esta acompanhasse a derrocada da velha capital.

Agora rasgo os últimos papéis desse serviço cívico, o filtro da memória foi passado a escrito, aqui no blogue.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) 

Beja Santos 

As últimas três semanas deste serviço cívico irão estender-se até 21 de Dezembro, o projeto da criação da unidade de defesa do consumidor foi debatido a nível de vários ministérios, todos concordaram com o esquema proposto. Havia que tomar decisões quanto à coordenadora, a minha escolha recaiu em definitivo na Dr.ª Ana Pereira. Fui apresentá-la aos diferentes serviços, na maioria dos casos, fosse de manhã fosse de tarde, não era possível encontrar o técnico ou o dirigente em apreço porque não estava e não se sabia a hora que vinha, porque tinha seguido em viagem, e não se sabia a dimensão da viagem, ausentara-se para ir a um choro, ou fora às finanças, esteja descansado que ele entra em contacto consigo imediatamente… e o imediatamente eternizava-se, seja como for, deixavam-se os documentos para a análise do técnico ou dirigente e pedia-se a sua tramitação para o decisor político. No papel e nas intenções, em meados de Dezembro, quando chegou o ministro do Ambiente de Portugal, já existia a defesa do consumidor da Guiné. O ministro chegou e teve a deferência de me ouvir ou particular. Depois partiu para Bubaque mas com encontro marcado para no dia do regresso, ao fim da tarde, ajustar com o ministro do Ambiente e dos Recursos Naturais e da Indústria a oferta de cooperação: o governo da Guiné-Bissau daria um sinal de querer ver institucionalizada uma política defesa do consumidor, bastava um despacho governamental; em segundo lugar, havia que mostrar interesse pela legislação elementar, o controlo e inspeção de alimentos era um bom pretexto, era mesmo uma exigência da FAO que subordinava tal medida à continuação de apoios; subscrever-se-ia até final de Janeiro um protocolo de cooperação com financiamento garantido para o funcionamento da Comissão Interministerial de Defesa do Consumidor, duas bolsas de estudo para investigadores do INEP terem condições de estudarem a fundo duas problemáticas com interesse relevante para o consumidor guineense; e abria-se os cordões à bolsa para apoiar uma campanha na comunicação social, contribuir para os programas televisivos e, não menos importante, a realização de dois seminários em Bissau, para formadores. Quando a reunião acabou entre os dois ministros, a que também assisti, havia um estado de anuência absoluta ao que a parte portuguesa sugeria, o senhor ministro de Portugal que não tivesse mais cuidados. Eu desconfiava da fartura, havia para ali descontração a mais. Numa reunião com a representante da FAO vi esta esbaforida a gritar com o diretor com o Laboratório Nacional de Saúde Pública, há dois anos que estava prometido um projeto-lei para o controlo e inspeção dos géneros alimentícios, a representante parecia apoplética, ameaçava mesmo em ir-se embora e pedir à FAO para negar doravante qualquer tipo de apoio. Outro sinal lastimável foi da suspensão do programa televisivo, o senhor secretário de Estado dos Recursos Naturais prometera à tv local um qualquer patrocínio para “1 Milhão de Consumidores”, os programas eram exibidos e o patrocínio não chegava, a tv local não esteve para meias medidas, suspendeu o programa até haver apoio financeiro, este nunca mais apareceu, morria à nascença este projeto que eu tanto acalentara.

O tempo estava mais ameno, chegara a época seca com um calor de 26 a 27 graus, com uma aragem benfazeja ao fim da tarde. Os meus serões eram passados invariavelmente à secretária, no espaço que a CICER me reservara, a papelada lá seguia meticulosamente para o trabalho e para os jornais onde eu colaborava. Já tinha na cabeça os voos, para orientar o meu correio: os voos Bissau – Lisboa partiam na manhã de terça-feira e na madrugada de sábado, portanto, e a título exemplificativo eu metia a carta no correio, durante a manhã de sábado com a quase garantia de que as cartas podiam chegar ao destinatário a partir de quarta-feira à tarde. Eu dependia, em termos logísticos de uma unidade denominada CITA – Centro de Investigação e Tecnologia Aplicada, um serviço realista que respondia pelos pesos e medidas, pela normalização e outras áreas de grande importância, passeava-me por aquelas salas, tudo me parecia surrealista, não havia instrumentos, não havia laboratórios, ou o que havia eram equipamentos do tempo da Maria Cachucha, os próprios técnicos se queixavam amargamente daquele logro, o pior de tudo eram os salários permanentemente em atraso.

É também um tempo de recordações indeléveis. Benício Costa tinha conseguido que um dirigente me desse guarida em Bolama, na ausência de qualquer unidade hoteleira, nem uma pensão existia. Parti sexta-feira ao fim da manhã, a aproximação à ilha de Bolama permite ver toda a sua beleza, pus pé em terra e dei com aquele pedregulho monumental que Benito Mussolini ofereceu à cidade de Bolama em memória de uns pilotos que ali morreram num acidente aéreo; era já uma cidade em escombros, parei em frente do Hotel do Turismo, já só restava parte da fachada, vai-se deambulando por um cenário fantasmagórico, fica a percepção que terá sido uma capital com certo espírito cosmopolita, mas a indiferença levara à ruína de tudo, mesmo assim era o Palácio do Governador o edifício mais apresentável. Só tinha direito a guarida, andei errante à procura de um local onde pudesse comer, tive sorte com uma organização que andava a fazer reparações navais, propuseram-me que eu fizesse ali as refeições, incluindo o pequeno-almoço. Aliviado por ter resolvido esta necessidade fundamental, pedi ajuda para percorrer Bolama. Encontrei um voluntário que de bom grado tudo me mostrou: as antigas praias onde os equipamentos jaziam desfeitos; visitei a tipografia de Bolama que tanto me comoveu, tanto ou mais que calcorrear aquelas ruas com nomes sonantes da I República. Regressei domingo à tarde, fomo-nos afastando lentamente porque toda a baia está assoreada, a embarcação anda por ali a vaguear para evitar ficar metida na areia, é uma vista esplêndida, Bolama à distância tem imponência em todas aquelas manchas esbranquiçadas, últimos vestígios da velha capital que nunca mais recuperou do abandono, quando em 1941 Bissau se tornou na metrópole.

Fui visitado na CICER por um jovem que tinha uma juba como cabeleira e me chamou paizinho, era tão hermético no seu crioulo que precisei de ir chamar um intérprete. Fiquei siderado, era Abudu Cassamá, o menino que conheci em Finete, em 1968, tinha as costas retalhadas devido à explosão de uma granada de fósforo. Tratei-o sempre com muito afeto, no meu tempo nunca se conseguiu fazer reparação aos danos que sofria no seu físico, tanto ele como a mãe. O intérprete disse-me que o Abudu vinha ali buscar um saco de arroz, um relógio e um rádio, era o mínimo que esperava do paizinho. É verdade que em Bissau, sempre que encontrava alguém do Cuor eu perguntava por Abudu, ele vinha cobrar tanta pergunta que eu andava a fazer. Encontrei igualmente no bairro de Missirá Mufali Iafai, o nosso canoeiro no rio Geba, foi uma grande alegria. Cherno Suane também aparecia regularmente era o meu companheiro de canja de ostra numa locanda onde me levou, o aparato higiénico era intimidador mas o que caiu no estômago era mesmo manjar de deuses.

Nos últimos dias, conversei longamente com a senhora coordenadora em expectativa: falámos das obras naquele 1º andar do Quartel-General, nas campanhas de sensibilização, nas reuniões com os juristas para o mais rapidamente possível os projetos de diploma irem a conselho de ministros. Embarquei na madruga de 21 com negros presságios. Nenhum despacho fora assinado pelo presidente do Conselho de Estado, tudo se movia em areias movediças. Cheguei, elaborei relatório, enviei cópia ao ministro dos Recursos Naturais e Indústria. E caiu um silêncio espesso, parece que não tinha havido qualquer missão. Em Fevereiro, fui alertado que ou se cabimentava as verbas para o projeto de cooperação até ao final do mês ou o dinheiro seria transferido para outra rubrica. Alertei Bissau, os membros do Governo e a senhora coordenadora em expectativa. E caiu o pano, entreguei-me às minhas obrigações profissionais, a Guiné ficou no fundo do túnel. Aí para Setembro ou Outubro de 1992, a Dr.ª Ana Pereira informou-me num tom como se eu soubesse de tudo, que já havia despacho governamental e que pretendia receber instruções. O desleixo de alguém em Bissau não mereceu qualquer complementação em Lisboa. O meu serviço cívico terminara ingloriamente.

O Pidjiquiti, local mágico de todo o antigo combatente. Era por aquele cais de cimento que, regra-geral, chegávamos a terra firme. As palmeiras da Marginal estavam cuidadas e era agradável estar sentado a ver o porto e o Ilhéu do Rei ao fundo. Está tudo escalavrado, o cimento esfarela-se com a falta de manutenção. Mas é o nosso Pidjiquiiti, ninguém esqueceu a alegria na hora do embarque.

A Associação Comercial e Industrial de Bissau era um edifício com algum arrojo arquitectónico, era uma estrutura moderna que contrastava da imponência do Palácio do Governador e da estrutura ao nível do rés-do-chão do museu da Guiné, com o seu lanternim peculiar. Em 1991, era a sede do PAIGC. Continua a ser, mas não esconde os maus tratos da falta de manutenção. 
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)
e
2 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)

2 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10609: Notas de leitura (425): A Guiné na História de Portugal, de Rui Ramos (António Graça de Abreu)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

"O meu serviço cívico terminara ingloriamente~".

Mário é caso para perguntar-te se o teu "serviço cívico" foi menos ou mais inglório que o teu "serviço militar".

Em 1991/2 e 3, também lá andei a ajudar a gastar laterite e dólares pelas Obras Públicas, mas o serviço não era "nem meu, nem cívico", eu já tinha perdido qualquer ilusão.

Nesse tempo, os mais "reaccionários" como eu, já dizíamos que era a Guiné e Portugal as duas colónias que iam ter mais dificuldades para se desenrascarem.

Mas ouvi falar muito na tua presença, ( o teu nome era já figura pública para muita gente) sem adivinhar que te ia encontrar aqui.

Mas que vida!!!!

Um abraço

JD disse...

Camaradas,
Este texto do Mário, mais o que o Cherno tem escrito explicita ou implicitamente, dão ideia de impreparação fatalista para o desenvolvimento da nação. De facto, não me parece que alguém solidário, arrisque em investimentos que só servem para satisfazer interesses particulares.
Um problema com que também convivemos, pois muitas das verbas solidariamente enviadas para Portugal com vista ao desenvolvimento e à formação, tiveram como destino satisfazer a ganância de quem decidia.
Como diz o Rosinha: "mas que vida!!!!"
JD

tony Borie disse...

Olá Mário.

Gostei, mas é pouco, quero ler mais. Como recordas os lugares e os nomes das pessoas naturais!. Fantástico. Um camarada, que fez o serviço militar comigo em Mansoa, e era a sua segunda comissão militar, que fazia na Guiné, dizia-me que Bolama, para ele era o local mais lindo do mundo!.

Um abraço, Tony Borie.

Unknown disse...

Peço desculpa por tentar esta correcção, mas onde diz Pidjiquiti, acho o que se avista é o " Porto Cais.
Se estiver errado peço desde já as minhas desculpas.
Cumprimentos

Fernando Franco