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terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23875: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IX - Bissau à vista e Agora sim, era verdade



1. IX e última parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


Bissau à vista…

Neste momento já creditávamos que era chegada a hora do regresso ao nosso ‘ninho’, à nossa família e amigos, o que nos deixava algo excitados.

Instalados no COMBIS, restava-nos descansar um pouco, relaxar e viver os últimos dias de ansiedade…
Ali perto, no Depósito de Adidos, estava um amigo meu do Porto, também já em fim de comissão, com quem me encontrava de vez em quando.
Ele queixava-se do mesmo que nós, saturação, cansaço, saudades da Metrópole.

Uma das vezes, estávamos a conversar sobre a vida, quando um outro graduado da companhia dele se lembra de fazer um cocktail, convidando-nos para o brinde.
Pegou numa cafeteira de cinco litros, de alumínio, e meteu para lá de tudo o que encontrou nas prateleiras que tinham acabado de ser abastecidas, desde whisky, brandy, gin, coca-cola, pasta de dentes, sabonete, creme da barba, leite com chocolate…, sempre a mexer com uma colher de pau, a transbordar de espuma.

Éramos quatro e foram servidos quatro copos altos, para o brinde à Metrópole.
A seguir, rebolar com dores e má disposição!...
Realmente, já não conseguíamos responder com bom senso e até a razão parecia ter sido penhorada…

Enquanto havia pesos, íamos dando um saltinho à cidade, de táxi ou em viatura militar, para uma lufada de alguma civilização, pois sempre apareciam caras novas, chegadas da Metrópole, para as respectivas comissões. Compras, já não era possível, pois estávamos sem cheta!
Limitávamo-nos a uns copos na Solmar, no Pelicano, no Bento, conhecido como a 5ª Rep.

Todos os dias nos diziam que o nosso avião estava reservado e era no dia seguinte!
Foram dois meses assim, com a impaciência e ansiedade que era difícil dominar.

Durante uma das visitas à cidade, sentado na esplanada do café Pelicano, perto do cais, um indivíduo sai do grupo de amigos, senta-se à minha mesa e, falando em inglês, identifica-se como ligado a uma legião estrangeira, residente na África do Sul e membro de uma equipa de instrutores.
Faz-me algumas perguntas, a minha especialidade, o meu curriculum militar, se era solteiro e sem filhos, se estava em fim de comissão e se tencionava regressar ao meu país.

Logo lhe respondi a tudo, claro, sem reticências ou receios, e frisei o meu interesse em regressar ao meu país, Portugal.
Já com um certo à vontade, propõe-me uma estadia na África do Sul, por um período a combinar, mínimo um ano, para dar instrução militar a voluntários africanos.
Como torci o nariz e não mostrei interesse, completou a proposta com as condições: apartamento com segurança, viatura militar ou deslocações em táxi, acompanhamento médico assegurado, cerca de 1.000 dólares americanos mensais, colocados onde eu quisesse, enfim, uma tentação, de certo modo.

Tudo isto me deu uma ideia da organização de que se tratava, embora com todas as dúvidas, mas devia ter mão dos américas… ou dos… soviéticos…
Tentador, claro, mas eu queria ver-me livre de tudo o que se relacionasse com âmbito militar, com guerras, com estar longe do meu cantinho português.
Apresentei as minhas razões e reforcei a minha decisão, como irreversível, agradecendo a proposta e desejando-lhe muita sorte.

Eu acabava de sair de uma experiência que desejava ver riscada da minha memória.
Mas tinha uma certeza: não esqueceria realidades que me acompanharam durante dois anos, embora com facetas algo diferentes, pelas circunstâncias de cada local por onde passei.
Gentes humildes e sérias dos ‘buracos do mato’, principalmente, Gadamael Porto, cujas coordenadas não mais esqueceria: Sul da Guiné-Bissau, fronteira com a República da Guiné-Conacry, sede do PAIGC, do presidente Sekou Toré e do mentor Amílcar Cabral, com grandes comandantes, como o Nino Vieira, e profissionais mercenários, como cubanos e russos…

Pureza e ingenuidade, a par do instinto de sobrevivência, da luta pela defesa dos seus e pela continuidade dos seus costumes, dos seus hábitos, da sua cultura, mesmo sabendo-se que agarrados a tradições por nós consideradas horríveis, pré-históricas.

O presidente Sekou Toré foi o líder do movimento para a libertação e independência da Guiné-Conacry, ex-colónia francesa, como o Daniel sabe.
Mas as etnias não conseguem esconder um objectivo comum: poder, liderança, por vezes, anulando os seus ideais.
Lamento recordar imagens que me ficaram gravadas de lutas quase selvagens entre gente de diferentes etnias, mas da mesma condição, com os mesmos problemas que, em vez de se unirem para conseguirem o objectivo comum, se digladiam até à morte.
Independente das etnias, têm a mesma raça, mas o racismo está presente, com evidência.

Aparentemente, as populações nativas lutavam pelos mesmos objectivos mas, quando se tratava de definirem e atribuírem poderes, lá vinha o ‘instinto’ marcado no sangue que ultrapassava o sentido da união e gerava conflito, luta pela afirmação, pelo poder, mesmo que isso pudesse pôr em causa esses objectivos.
Isto via-se nas mais pequenas atitudes e confirmou-se, mais tarde, quando da libertação do domínio português.

E lá estávamos nós, aguardando algum sinal que nos fizesse acreditar que era amanhã, o dia da nossa partida, mas sempre amanhã, amanhã.

"Após o 25 de Abril e logo a seguir à descolonização, realmente, começaram os conflitos, como o Adolfo diz, mas nós desconhecíamos o grau de ambição das etnias pelo poder, e sempre ouvíamos falar em união, no sentido da autodeterminação dos povos africanos, o que supunha a tal união…"

Pois, pois, Daniel, tanta coisa veio a descobrir-se, com o tempo, desde as manobras do processo de descolonização até às guerras internas de cada uma das ex-colónias, dando o que todos nós sabemos…
Aliás, ainda hoje se põe em dúvida a existência real das nações, angolana, moçambicana e guineense…
O que alguns políticos pensadores ou historiadores defendem é que existem, sim, diversos povos dentro de cada um daqueles territórios.

Também poderemos defender a ideia de que qualquer dos movimentos de guerrilha foi criado e financiado por outros países, outros interesses.

Em Angola, a UPA e a FNLA, criados e financiados pelos americanos, apoiados pela CIA, a que se seguiu o MPLA, criado e financiado pela União Soviética, primeiro, com Agostinho Neto, depois, com José Eduardo dos Santos, de maior confiança.
A UNITA, com o Jonas Savimbi, criada e financiada pela China e, depois, pela África do Sul, e o Jonas Savimbi chegou a mostrar interesse em negociar connosco, mas não chegou a resultar, pois deram cabo dele, como se recorda.

Em Moçambique, a FRELIMO criada pelos americanos, apoiada na CIA, em que o líder era casado com uma americana que, segundo diziam, o controlava e fornecia informações aos americanos.
Aquele líder foi morto e a liderança passou para o Samora Machel, simpatizante das linhas políticas da Tanzânia, país que lhe deu apoio, depois da saída de Portugal.

Na Guiné, o PAIGC deveu-se a Amílcar Cabral, com apoio da União Soviética, claro, e a organização era baseada em cabo-verdianos, conseguindo o apoio de Sékou Touré, líder da Guiné-Konakry, que ambicionava absorver a Guiné-Bissau.

Engraçado: em Cabo Verde, não houve guerrilha nem manifestações revoltosas - dá que pensar, não é, Daniel?..
No fundo, conclui-se que a nossa guerra de treze anos foi travada contra forças estrangeiras e não contra os muitos povos daquelas ex-colónias, mas nada podemos dar como certezas e a história contará, embora saibamos que as versões abundarão e continuarão a deixar todos confusos…
Aqui para nós, Daniel, se os quatro principais países das Nações Unidas são os principais fabricantes de material de guerra, porque apregoam pr’aí que as Nações Unidas são uma entidade séria e que promove a paz?!...
Os motivos existem, as razões existem, mas ficam guardadas fora do alcance do povo, pelo menos, dissimuladas…

Já está, acabou, embora nunca devamos esquecer o que nos custou, a todos nós, aquele período duro de treze anos!
E as feridas só passarão quando as próximas gerações nos substituírem e deixarem de ouvir falar nos capítulos que abrangerem esta parte da nossa história, seja ela contada de que forma for…
Como é costume dizer-se, ‘o tempo tudo cura’…

E lembrei-me, agora, das notícias que davam conta de um massacre ocorrido na aldeia olímpica de Munique, protagonizado por um grupo palestiniano, cujo objectivo era chamar a atenção do mundo para a causa da independência da Palestina, cujo território se mantinha ocupado por militares israelitas.
Este grupo infiltrou-se na aldeia olímpica e fez reféns alguns atletas olímpicos israelitas, segundo diziam, devido ao deficiente sistema de segurança da organização dos jogos, que pretendiam evitar que a cidade apresentasse um cenário militarizado, como tinha acontecido nos jogos olímpicos de 1936, tempo de Adolf Hitler.
Logo a seguir ao atentado, a primeira-ministra Golda Meir propôs ao então primeiro-ministro Willy Brandt a intervenção de uma equipa de operações especiais, mas foi recusada por aquele primeiro-ministro alemão.

"Sim, um acontecimento polémico, que fez correr muita tinta e levou tempo a esquecer…"


Agora, sim, era verdade…

O tão ansiado e desejado dia da partida, finalmente, chegou!

Dia 5 de Outubro de 1972, uma data que ficaria bem marcada, como outras, mas de forma mais intensa!
Preparar as coisinhas para o caminho até ao aeroporto, ali perto, em viaturas militares.

Antes disso, o desfile da praxe, numa das artérias do COMBIS, em frente à tribuna de honra, onde estavam, perfilados, o Governador Spínola e outros oficiais superiores.
À frente, o capitão, todo emproado, como lhe era habitual…

Na primeira fila da companhia, eu fiquei à direita, logo, todos deviam perfilar por mim.
Aproveitei para retardar o passo, dando como que meios passos, obrigando a companhia a guiar-se por mim, o que significou o capitão ir avançando até ficar bem longe de nós.
Quando terminou o desfile, os olhos vidrados em mim e as veias marcadas no rosto dele, donde poderiam sair raiva e fogo, se rebentassem!

Avião no ar, sobre aquela paisagem de mata, o serpentear dos rios, a bolanha, pensando que talvez fosse bom começar a arquitectar uma ideia que pudesse ficar, na minha mente, como um sonho ou pesadelo, e nunca uma realidade.

Quatro horas depois, estávamos, em Lisboa!
Infelizmente, nem todos os que partiram a 31 de Outubro de 1970 tiveram a nossa sorte!
Durante a viagem, recordo-me de olhares que trocávamos, uns com os outros, como que buscando uma cumplicidade, uma confirmação de que estávamos a regressar a casa.

No aeroporto, as nossas gentes aguardavam que saíssemos do avião, ansiosos por um abraço forte e de alívio!

Como as viaturas militares nos apanharam à saída do avião, dentro da pista, e nos levaram para o RALIS, ali na zona do Bairro da Encarnação, que o Daniel conhece, as nossas gentes tiveram de lá ir ter, onde aguardariam a nossa saída.

O ‘espólio’ era um ritual e obrigação, principalmente, pelas ‘peças’ que deixariam de estar ao nosso dispor, assim como alguns papéis de última hora, e a lembrança de que manteríamos o nosso estatuto, por mais uns dias, até à disponibilidade, a ‘peluda’.
Só conseguimos estar despachados por volta da dez da noite!

A despedida dos homens que nos acompanharam, durante tanto tempo, comungando de realidades e criando cumplicidades, por força das circunstâncias, requeria uma certa frieza, pelo momento difícil que era.
Sabíamos que todos tínhamos deixado uma vida, uma realidade que conhecíamos, para enfrentarmos o desconhecido, por mais informação que tivéssemos, levados por uma boa dose de ingenuidade, quer queiramos, quer não.

E também sabíamos que a separação, neste dia, seria temporária, pois alguém pegaria na tarefa de nos fazer juntar, de vez em quando, para um convívio, reviver os bons momentos, sem deixar de recordar os maus momentos, próprios de cenários como o que nos aguardava, quando saímos dos nossos cantinhos de conforto, naquele dia 31 de Outubro de 1970.
E estes maus momentos estariam, sempre, ligados a quem não mais poderia concretizar projectos de vida, os que poderíamos lembrar e homenagear nestes convívios.
E aquela vida, aquela realidade, voltava às nossas mãos, agora, com os ensinamentos que ganhámos nesse tempo e nesse espaço, mas nunca suficientes para nos compensarem três anos de algo pouco parecido com vida…

FIM

_____________

Nota do editor:

Postes anteriores de:

24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"

27 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria

29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha

1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné

4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

8 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias
e
11 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22721: Notas de leitura (1393): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Pode não ser o que se chama uma lança em África, um olhar refrescado sobre tudo o que aconteceu das vésperas da II Guerra Mundial até o continente africano ter ficado praticamente independente, com exceção de algumas poderosas parcelas da África Austral; mas é um documento de trabalho muito útil que permite ao leitor olhar a evolução do continente passo a passo desde o início da descolonização até ao seu termo, entender o contexto internacional completamente alterado depois da vitória dos Aliados, depois da criação das Nações Unidas e de soprarem os ventos anticoloniais, sobre o comando das superpotências. Temos aqui essa marcha imparável com todas as suas etapas após a independência da Índia e a Conferência de Bandung. Um documento que assegura ao leitor os porquês de uma cavalgada da História onde a exceção esteve nas renitências do Estado Novo e no regime do Apartheid.

Um abraço do
Mário



O continente africano no limiar da II Guerra Mundial e depois (2)

Beja Santos

A obra de Marianne Cornevin foi no seu tempo uma iniciativa singular, pela quantidade de informação oferecida sobre a situação política no continente africano antes da II Guerra Mundial, as operações militares que aqui decorreram, as repercussões económicas que o conflito acarretou, os acontecimentos imediatos a que não faltou o grande impulso da independência da Índia e da África inglesa, a marcha para a independência desde a década de 1950 até junho de 1977, dia da independência de Djibuti. Trata-se de uma informação rigorosa que contextualiza o que de primordial ocorreu e que veio justificar a onda descolonizadora: “História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias”, por Marianne Cornevin, I Volume, Edições Sociais, 1979.

Já se aludiu à situação política no continente nas vésperas da II Guerra Mundial, viu-se como África pesou nas operações militares que levaram às perdas do Eixo e prepararam o assalto ao sul de Itália, muitos africanos combateram em diferentes teatros de operações, não só a sua vida mudou como descobriram que tinham direitos à liberdade, à autodeterminação, e daí o conjunto de movimentações no imediato pós-guerra que a autora regista. A segunda parte deste volume vai da independência da Índia e da Conferência de Bandung até às mudanças que se operaram na África Austral, com as independências de Moçambique e Angola.

Essa década de 1950 traz independências em África e aproximam este continente da Ásia, houvera a emancipação do Sudeste Asiático e a proclamação da República Popular da China, a Grã-Bretanha concedeu independência ao Império das Índias, ou seja, quatro quintos da população do Império Britânico; a mesma década vai trazer calafrios à política francesa por causa da Indochina, como observa a autora, um salto terrível: “Os números oficiais indicam 15 mil africanos mortos na Indochina, ao lado de 11 600 legionários, 26 mil e 600 franceses da metrópole, 26 mil indochineses do exército francês, 17 mil e 600 soldados dos estados associados”. Uma década em que houve mudanças na Palestina e no Egito e a Conferência de Bandung (1950) não foi meramente simbólica. As superpotências, já em confronto, deram conta de que os países afro-asiáticos tinham querer. Depois da Conferência espalhou-se no mundo que a África colonizada iria fatalmente seguir o destino da Ásia. Aos olhos de muitos autores, Bandung apareceu como o pendente exato do Congresso de Berlim, em 1885, a África fora colonizada porque era colonizável, em 1955 a África iria ser descolonizada porque se tornara descolonizável. Como aconteceu: Líbia, Egito e Sudão; os combates sanguinários na Argélia que levarão à sua independência em 1962; a emergência de uma literatura negra sobretudo de expressão francesa e inglesa; Nkrumah é quase visto como um Messias, ele lança ideias de federação e de unidade entre Estados, uma fórmula de exponenciar potencialidades dos recursos; haverá mudanças no Togo, na Costa do Marfim, nos Camarões, no Senegal, no Quénia, no Uganda.

E a autora escreve:
“Os dez anos que se seguem à Conferência de Bandung vão assistir a um refazer total do mapa político da África. De quatro em 1955 (Egipto, Etiópia, Libéria, Líbia) e cinco se contarmos com a União Sul-Africana, o número de Estados soberanos passará a 36 em 1965, 38 se contarmos com a República da África do Sul e a Rodésia. Dos quatro grandes conjuntos coloniais africanos em 1955, apenas restará em 1965 o português. A África belga já não existira, da África francesa restarão os minúsculos territórios de Djibuti e das Comores; da África inglesa apenas subsistirão os três territórios do Lesotho, Botswana e Suazilândia”.
A previsão dos novos ventos da História concretizou-se, com muitas dores de renúncia, como a Argélia, com atribulações sangrentas, como o Congo e com os holofotes apontados aos resquícios do colonialismo, nomeadamente a África austral. O trabalho de Marianne Cornevin discreteia sobre as independências proclamadas antes de 1960 e as posteriores: as catorze independências da África francesa, o Congo belga, a Somália; mas também outras independências como a Nigéria, a Serra Leoa, o Tanganica, Ruanda e Burundi, Argélia, Uganda, Quénia, Zanzibar, Niassalândia-Malawi, Rodésia do Norte – Zâmbia, Gâmbia, Rodésia do Sul – Rodésia.

Inevitavelmente, o termo da obra foca-se na África a sul do Zambeze até à independência de Moçambique e de Angola, dando atenção aos acontecimentos da África do Sul, da Namíbia, do Lesotho, Botswana, Suazilândia, o que se passou na Rodésia entre 1965 e 1975.

Falando de Moçambique e dos dez anos de guerra, a autora observa que não foi nada de surpreendente a guerra de libertação se ter iniciado quinze dias após a independência do Malawi, como nada tem de espantoso o facto de ser essencialmente entre os Macondes que a guerra se tenha desenvolvido. Depois do morticínio de 1960, os Macondes tinham passado em massa o rio Rovuma e juntaram-se na Tanzânia, a Frelimo era produto da união de vários movimentos e tinha como líder Eduardo Mondlane assassinado em 1969. O 25 de abril de 1974 coincide com um período de intensa atividade da Frelimo, atacando as vias férreas que partem da Beira para a Rodésia e para o Malawi. Ao contrário de Moçambique, onde foi a Frelimo que combateu sem nenhum outro apoio interno, e que se apresentava como o partido “único, supratribal e nacional”, a questão angolana foi mais complexa pelo facto de existirem três movimentos que se guerreavam entre si, tendo havido a habilidade das autoridades portuguesas em explorar tais dissensões. A autora enumera os acontecimentos a partir de 4 de fevereiro de 1961, quem era quem no MPLA, na FNLA e na UNITA. E tece o seguinte comentário: “Do ponto de vista militar, é incontestavelmente o FNLA que apresenta em 1974 as perspetivas mais favoráveis. O FNLA dispõe de três campos de treino situados no Zaire que pertencem, na sua quase totalidade, à etnia Kongo. A UNITA é certamente o mais fraco dos três movimentos. Os efetivos do exército do MPLA ou FAPLA são nitidamente inferiores aos do FNLA”. Refere igualmente o espetacular desenvolvimento de Angola no final do período colonial, graças ao petróleo, a riquíssima jazida de minério de ferro de Cassinga e os diamantes. O livro termina com a II Guerra em Angola em 1976, com a vitória do MPLA, a sua admissão como membro da OUA e o seu reconhecimento a partir de 17 de fevereiro pela CEE e Portugal.

Mapa político de África depois da descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22697: Notas de leitura (1392): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22323: Notas de leitura (1363): “As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins; Edições Tinta-da-China, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Trata-se de um projeto científico pertinente e não hesito em dizê-lo original, pelas opções temáticas que foram tidas em conta: a partir das datas marcantes da luta anticolonial, dezenas de autores de diferentes áreas de conhecimento puseram-se a questionar a História e o legado desses tempos de mudança. Denunciam-se mitologias e o mais importante é que aqui se esboça um outro modo de contar a memória de uma guerra que se viveu em muitos teatros e que ainda hoje nos contagia pelo cotejo de críticas ideológicas. É por isso uma leitura a que não nos devemos furtar.

Um abraço do
Mário



As voltas do passado, a guerra colonial e as lutas de libertação

Beja Santos


“As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins, Edições Tinta-da-China, 2018, é uma detalhada evocação, em voz plural, de acontecimentos influentes, eventos selecionados que, como justificam os coordenadores, “têm em comum o facto de terem produzido um lastro memorial presente em discursos e monumentos públicos, em mobilizações sociais, em apropriações políticas. Escolhemos 47 eventos que, tomados em conjunto, podem ser vistos como partes de um caleidoscópio ainda vivo”

É uma tentativa historiográfica para ler um outro modo de contar Portugal e as diferentes nações africanas emergentes da luta anticolonial. Daí o leitor ter oportunidade de recordar em sequência cronológica eventos como o Massacre de Batepá, em São Tomé e Príncipe (1953), o início da vaga de prisões de militantes nacionalistas em Angola e o Massacre do Pidjiquiti, em Bissau (1959), o Massacre do Mueda, Moçambique (1960), a revolta camponesa na baixa de Kasanje, Angola (1961), até ao 25 de Abril, onde terão peso acontecimentos como a libertação dos presos políticos do Tarrafal, a fundação da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, o fim do exercício Alcora, as independências de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola e a ponte aérea da TAP, em 1975. 

Obviamente que há textos de bom quilate e outros que não deixarão memória, escritos em água chilra, acontece. Michel Cahen deixa-nos um texto muitíssimo bem elaborado sobre o Massacre do Mueda, em 16 de junho de 1960. É cortante e denunciador da muita mistificação sobre a propaganda de Mueda. O governador de Cabo Delgado não atinou com as razões de fundo que traziam de volta os Macondes à região, eles voltavam para Moçambique porque a independência do Tanganhica os inquietava, na medida em que os fazendeiros europeus do sisal, sob pressão dos sindicatos, tinham aumentado os salários e já não necessitavam de mão-de-obra estrangeira. E escreve Michel Cahen: 

“Não vinham para pedir com clareza a independência, e ainda menos a independência de Moçambique, mas a liberdade para voltarem livremente à sua terra. Pode-se perfeitamente chamar a isto nacionalismo, mas não era nacionalismo moçambicano”

Referindo-se à tese de outra investigação baseada na memória oral, ele trabalhou principalmente com fontes arquivistas coloniais e fontes orais portuguesas. E termina o seu texto de forma primorosa, lembrando que há equívocos que bem retorcidos ganham foro de lenda ao serviço dos poderes do dia:

“Os arquivos coloniais veiculam a narrativa do colonizador. Mas têm uma vantagem: não mudam. Além disso, os atores coloniais que entrevistei nos anos 1980, um após outro, nunca mais tinham vivido em Mueda. Encontrei obviamente várias contradições nas suas narrativas, mas pude confrontá-las. E também utilizei fontes orais africanas.

Não é uma questão de saber ‘quem tem razão’. Este debate é muitíssimo interessante e deverá ser aprofundado. Trata-se, no fundo, de conhecer as condições de produção da memória. Condensarei essas linhas citando este pequeno debate que tive, em 2000, com uma testemunha africana da tragédia de 16 de junho de 1960:
- Houve muitos mortos?
- Sim, muitos! Foram 16!
- Ah! Pensava que eram 600…
- Sim, depois recebemos a orientação de que eram 600.


Marcelo Bittencourt, relativamente aos ataques em Luanda, em 4 de fevereiro de 1961, também adota uma versão que procura remover a poalha da propaganda e a apropriação da aura dourada de quem vem invocar que é o personificador do evento:

“O fator mais importante na vinculação do 4 de fevereiro ao MPLA é o ingresso dos principais protagonistas da ação na legenda, após a detenção destes, como consequência da contraofensiva colonial que se instala em Luanda. Não tiveram de fazê-lo antes da ação que inaugura a luta de libertação angolana. O MPLA havia começado o processo de estruturação da sua rede clandestina em Luanda, no início do ano de 1960, mas passados alguns meses uma nova onda de prisões iria encarcerar seus líderes, como Agostinho Neto e Joaquim Pinto de Andrade.

Desta forma, o 4 de fevereiro é o primeiro e último ato insurrecional, violento e anticolonial a refletir essa constelação de organizações clandestinas ainda muito ligadas aos seus vínculos elementares de solidariedade, fossem eles o bairro, a profissão, a família, a escola ou a associação cultural aos quais estavam ligados. Ou seja, a luta no terreno da história e da memória entre as duas principais forças políticas do nacionalismo angolano nos anos de 1960 parece ser o melhor caminho para entender a gestação e o posterior embate pela paternidade do 4 de fevereiro”
.

O leitor passa a dispor de um conjunto de referências sequencialmente cronológicas, conhecer a criação do Movimento Nacional Feminino, a fuga de cem estudantes das colónias, a revogação do Estatuto do Indigenato, a criação dos Comandos, a Operação Tridente, o início da luta armada em Moçambique, o encerramento em Lisboa da Casa dos Estudantes do Império, Cabral na Conferência da Tricontinental em Havana, em janeiro de 1966, o I Congresso da UNITA, a criação em Cuba das Forças Armadas de Cabo-Verde, que acabarão por ser desviadas para a luta armada na Guiné, o assassinato de Eduardo Mondlane, a Operação Mar Verde, a morte de Josina Machel, o Massacre de Wiriamu, o assassinato de Amílcar Cabral (que o autor erradamente fixa pelas 20h30 de 20 de janeiro), a tomada do quartel de Guilege, a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, o fim do exercício Alcora, a independência de Moçambique, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe e depois de Angola.

De leitura obrigatória para quem pretenda aprofundar o conhecimento do período correspondente à guerra colonial. Haverá textos que vão ficar como referência.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22303: Notas de leitura (1362): “Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto; Rosa de Porcelana Editora, 2018 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20284: Notas de leitura (1231): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,

A comissão de Eduardo começa em Quipedro e tem o seu término em Barraca. O imprevisto de toda esta narrativa é, como se observou anteriormente, haver uma descrição oficinal a ritmo moderado, o que começa por se contar parece um fotomaton que cabe no currículo de muitos de nós, e de chofre, depois de uma estadia em Quipedro, numa tensão habitual de guerrilha, chega-se ao Leste e é uma autêntica descida aos infernos, daí não hesitar em dizer que nada de mais explosivo se escreveu sobre os horrores da nossa última guerra em África.

E termina-se com uma citação um tanto cabalística do autor na apresentação do seu livro:

"Um forte sentimento de culpa, aliado a laços de camaradagem e de cumplicidade, tem levado os ex-combatentes ainda vivos a silenciarem acontecimentos dramáticos que protagonizaram de modo ativo ou passivo. Esse é um dos grandes óbices a que se escreva a verdadeira história da guerra colonial".

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial: “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (3)

Beja Santos

A obra “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes, Círculo de Leitores, 2000, centrada em acontecimentos ocorridos na guerra de Angola, é um documento com imenso significado. A roda da fortuna lançou um jovem alferes em Quipedro, no Norte, tudo parece levar a crer que é uma guerra de guerrilhas que opõe as forças portuguesas e as surtidas rebeldes, é certo que há população afetada, mas muitíssimo menos grave do que ele vai presenciar no Leste.

Ele escreve em 17 de setembro de 1967, no Alto Cuíto:

“O Alto Cuíto era um simples morro que dominava uma extensa chana onde corria o rio Cuíto, de águas cristalinas. Dentro do espaço protegido por arame farpado, no topo da colina, existiam improvisadas barracas de madeira para utilização da tropa. Contrastavam com a confortável casa de alvenaria do Administrador de Posto.

O Administrador Raposo tinha sob as suas ordens cerca de duas dúzias de milícias mal vestidas e de pés descalços, armadas de velhas espingardas de repetição. Mantinham a sua própria segurança, com um sentinela permanente num torreão de madeira.

Sendo aquela uma zona de guerra, onde as populações haviam abandonado as suas sanzalas e passado para o controlo da UNITA ou do MPLA, não fazia sentido continuar a existir no Alto Cuíto uma autoridade administrativa, pensava o Alferes. Mas o certo é que o Raposo mantinha-se no seu posto como se tivesse sido esquecido pelos seus superiores hierárquicos ou como se estes ignorassem a situação de guerra no terreno.

O administrador convidou o alferes a deslocar-se à secretaria do seu posto administrativo, para participar num interrogatório de negros suspeitos de ligações com a UNITA.

O primeiro detido, ao ser perguntado sobre a localização dos guerrilheiros, nada disse. Os cassetetes dos dois sipaios de serviço funcionaram então implacavelmente, tal como as mãos e os pés do administrador. O interrogado rebolou no chão como se de um objecto qualquer se tratasse.

O segundo detido enfrentou o Raposo com uma aparente serenidade. Também parecia mostrar-se decidido a não declarar nada. E nem sequer reagia às violentas pancadas que um dos sipaios lhe infligia. Poucos saíam dali vivos”.

Mais tarde, o alferes avistou duas vítimas no chão, uma delas com um lago de sangue à sua volta. À noite, os milícias deitaram os corpos num rio.

E comenta-se:

“No Leste, a vida dos adversários ou dos meros suspeitos não tinha significado algum para cada uma das partes do conflito. Assassinava-se a sangue frio, sem dó nem piedade, por tudo e por nada”.

A tropa de Eduardo dá proteção à Junta Autónoma das Estradas, prepara-se uma ponte numa área de intervenção do MPLA, protegem-se serrações de madeiras a 75 e a 95 quilómetros do Alto Cuíto. Ocorrem emboscadas, morre o 1.º Cabo Costa, vítima de uma emboscada próximo da serração do Nhonga. Faz a contabilidade, com apenas um terço da comissão tinham sido feridos e mortos em combate nove soldados. O contexto do terrífico e do horror não abranda.

Ele escreve a 26 de outubro:  

“De manhã saiu, em missão de patrulhamento, uma secção comandada pelo Furriel Marta. Ao cruzar-se com dois negros desarmados, deteve-os e não tardou a eliminá-los, utilizando um processo cruel. Amarrou-os um ao outro, costas com costas. Depois colocou uma granada defensiva despoletada entre os corpos e afastou-se. À distância, gozou o espectáculo macabro dos dois condenados a serem despedaçados pelos estilhaços do engenho explosivo”.

Sucedem-se os patrulhamentos, numa sanzala controlada pela UNITA, os habitantes mostravam-se aterrorizados, nada lhes aconteceu. No regresso de um outro patrulhamento, já perto do Alto Cuíto, “viu o jipe do administrador carregado com cinco negros de mãos atadas atrás das costas, escoltados por sipaios. Não duvidou do destino que os desgraçados teriam mais tarde”.

Os interrogatórios em casa do administrador Raposo não param, Eduardo está enojado, pensou mesmo em prendê-lo mas temeu as consequências. Termina as observações desse dia escrevendo:  

“O morro do Alto Cuíto era um barril de pólvora que mais tarde ou mais cedo teria de explodir”.

Prossegue a atividade operacional, a guerrilha estende-se como mancha de azeite. Os acidentes também não param, caso de um soldado que caiu numa armadilha e ficou espetado num pau aguçado, que lhe entrou na virilha e avançou até perto do pescoço.

Eduardo regressa a Munhango, tinham sido distribuídas armas a uns tantos homens numa sanzala próxima, esses homens passaram-se com armas e bagagens para a UNITA. Já estamos em 1968, os patrulhamentos não abrandam. O relacionamento entre Eduardo e outro alferes é cada vez mais tenso, e o relacionamento com o Capitão Francisco já teve melhores dias. O alferes volta a Cangonga, vem com a missão de penetrar em zonas “libertadas” e surpreender gentes da UNITA, os resultados são magros.

Descreve a 29 de janeiro:

“Verificou que as sanzalas, tempos antes habitadas, iam sendo progressivamente abandonadas pelas populações, entaladas entre as pressões da UNITA e as das tropas portuguesas. Quando se aproximou para cumprimentá-lo, o Sr. Vilaça, madeireiro em Cangonga, insinuou de modo crítico que o alferes era excessivamente brando para com os negros. Defendia que deveria, no mínimo, ser tão duro como o seu antecessor Barradas. A população branca que ainda permanecia no Leste exigia sangue. Queria acções de represália contra os suspeitos. E por ali toda a gente negra era suspeita. Muitos acreditavam que aquela guerra só poderia resolver-se com o terror do branco contra o terror do negro".

Este jogo do gato e do rato com a UNITA, o convite a que as populações se apresentassem frutifica, vão-se apresentando pessoas num pinga a pinga que vai aumentando, vão ser necessárias obras de construção para albergar alguns daqueles que haviam participado em atos cruéis de terrorismo. Melhoram as relações entre os oficiais da companhia, o sofrimento das populações é inesgotável, os episódios de horror repetem-se, como se exemplifica:

“Sentado junto de uma tenda de campanha, vi um negro cambaleante e esfarrapado aproximar-se da porta de armas do quartel de Munhango. Desatou o cordão que trazia amarrado à cabeça e o maxilar inferior caiu-lhe de imediato, deixando-lhe a boca escancarada.

Segurou o queixo com uma das mãos e, quase imperceptivelmente, foi balbuciando o seu drama.
Residia na sanzala de Magimbo quando uma bala lhe destroçou a face. Refugiara-se na floresta, receoso de ser apanhado pela tropa ou pela UNITA. Mas a fome e o medo acabaram por obrigá-lo a apresentar-se às autoridades portuguesas. Ali estava ele em busca de paz e de alimento”.

Os episódios sangrentos avantajam-se, houvera uma emboscada e a tropa reagiu, dois grupos de combate foram tentar a sua captura e fazer justiça.

E repete-se o horror:

“O jovem oficial levava consigo farinha e peixe, a servir de isco. Era um artifício destinado a incutir nos aldeões a ideia de amistosidade. As pessoas, embora desconfiadas inicialmente, quando viram a comida aproximaram-se, na expectativa de alcançarem a sua quota-parte.

Depois dos habitantes estarem reunidos, apareceu o guia denunciante, incumbido de identificar os elementos hostis. Foi nesse momento que compreenderam a intenção da tropa. Assustadas, procuraram fugir em todas as direcções. Eram centenas de negros em fuga precipitada. O alferes não hesitou. Ordenou aos militares que atirassem impiedosamente. Homens, mulheres e crianças tombavam como animais no matadouro”.

Em março, a CCAÇ 1638 viaja para Barraca, um lugar situado a cerca de cem quilómetros a sudeste da capital, junto da estrada que ligava Luanda ao Dondo. A corrente de alta voltagem que se vivera na região Leste vai-se diluindo, regressa-se ao trivial, às situações corriqueiras, fazem-se férias e em fevereiro de 1969 retoma-se a viagem para Luanda, é o regresso.

“Quando chegou à Covilhã, olhou o recorte noturno da montanha sob o céu escuro. A mesma que via desde a sua infância. Os pais acharam-no pouco falador, muito menos do que outrora. Nunca fora expansivo. Mas parecia-lhes claro que ele não desejava falar sobre a sua vivência em Angola. Antes de deitar-se tomou um Vesparax completo. E adormeceu. Não ouviu nem sentiu o forte tremor de terra dessa noite de 27 para 28 de fevereiro de 1969. O maior das últimas décadas em Portugal”.

E assim se chega ao termo de uma obra avassaladora, onde as descrições no Leste de Angola atingem o pico do horror, do medo, da existência sem sentido, como se sobreviver fosse o santo-e-senha.
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Notas do editor

Vd. postes de:

14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)
e
21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20276: Notas de leitura (1230): "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012): excerto do capítulo 11, "Mina na Companhia 305", evocação, pungente, da morte do cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes, vítima de mina A/C, na estrada Buela-Pangala, Norte de Angola, em 10/7/1962

segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18381: Notas de leitura (1046): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Continuo sem compreender como é que este livro não teve editor em Portugal ou Brasil em 2002, atendendo à investigação original e ao ineditismo do seu esquema básico: uma abordagem abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África.
Acresce que se juntou um naipe de oiro de grandes investigadores: Patrick Chabal, ao tempo professor do King's College em Londres, deve-se-lhe àquela que porventura é a melhor biografia internacional de Amílcar Cabral; David Birmingham, da Universidade de Kent; Joshua Forrest, professor da Universidade de Vermont e que deixa aqui um ensaio notável sobre a Guiné-Bissau; e também Malyn Newitt da Universidade de Londres e Gerard Seibert e Elisa Silva Andrade, investigadores com créditos firmados.
Sem hesitação, leitura recomendada para conhecer no grande ecrã 30 aos de história pós-colonial das cinco colónias portuguesas em África.

Um abraço do
Mário


A História da África Lusófona Pós-colonial: 
Uma investigação de leitura obrigatória (1)

Beja Santos

O livro intitula-se “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, o autor principal é Patrick Chabal, nome cimeiro da investigação dos movimentos revolucionários e das repúblicas africanas lusófonas, aparece neste livro com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company, Londres, 2002.

Logo nos agradecimentos, Chabal recorda a evolução positiva da historiografia sobre os países africanos lusófonos e apresenta este volume que coordena como uma tentativa de fornecer uma visão abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África, e confessa que se utilizou uma abordagem iconoclástica: apresentação da história dos cinco países a partir de dois anos complementares, o que têm de comum e de divergente da restante África, seguindo-se uma enunciação sistemática dos eventos que ocorreram depois da independência com a utilização de fontes de investigadores, oficiais, semioficiais e até jornalísticas; a procura de um contexto histórico rigoroso articulando o período pré-colonial com o pós-colonial; numa tentativa de ultrapassagem de uma visão estreita do foco lusófono, apresenta-se a evolução comparada e igualmente contrastada dos cinco países. O âmbito do estudo centra-se no período entre 1975 e 2000.

Temos em primeiro lugar o fim do Império e chama-se a atenção para uma declaração do MFA feita em 5 de Maio de 1974 em que é proposta uma nova e fraternal cooperação entre Portugal e Guiné, o que parece ilustrar a contradição entre um regime que existia numa solução militar e um estado de espírito dos sublevados que ofereciam uma colaboração desinteressada como forma de reparar os crimes do fascismo e do colonialismo. Recorda-se que o regime de Salazar e de Caetano recusou sempre negociações com os movimentos independentistas, estas só apareceram de forma muito dissimulada no estertor do regime. Estes movimentos anticolonialistas são encarados em três categorias: os vanguardistas, os tradicionalistas e os etno-nacionalistas. Como vanguardistas são invocados o MPLA, o PAIGC e a FRELIMO, não terá sido por acaso que eram todos provenientes de uma geração jovem, de um modo geral com formação universitária ou bases culturais e com uma preparação ideológica da Esquerda do seu tempo. Entre os movimentos tradicionalistas aparecem agrupamentos com brancos, pretos mestiços e indianos e o exemplo escolhido para movimentos etno-nacionalistas são apresentados a FNLA e a UNITA. Estas guerras foram sempre conflitos políticos, resultantes de uma total incapacidade de o regime de Salazar e Caetano se aperceber da insustentabilidade para as razões da potência colonial teimar em ficar em África. O PAIGC aparece como um movimento mais bem-sucedido quanto aos critérios da eficácia da luta anticolonial: preservação da unidade nacional, a despeito do mosaico étnico; enorme capacidade para a mobilização política das populações rurais; submissão da luta armada a objetivos políticos; eficácia para apresentar na cena internacional as chamadas áreas libertadas graças a um bom uso diplomático. É também observado que o espírito de a missão colonial se foi desgastando ao longo dos anos e no fim da guerra o moral das tropas dava sinais de ser crítico.

O estudo prossegue com uma perspetiva histórica da descolonização a partir do momento em que os movimentos de libertação conseguiram uma plataforma de entendimento, a CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas que gerou um elevado espírito de solidariedade e que permitiu a Amílcar Cabral encontrar formas de comunicação verdadeiramente criativas para sensibilizar a opinião pública em muitos países onde dava entrevistas, fazia conferências, distribuía documentos, conversava e justificava a guerrilha dada a inflexibilidade do regime de Salazar e Caetano. Na hora da descolonização, os políticos portugueses foram confrontados com movimentos nacionalistas influenciados pelo marxismo. Todos eles enveredaram, na fase de arranque da vida independente, por nacionalizações, estatização económica, monopólio de comércio externo, contando com a ajuda dos países da Europa Oriental, Cuba, URSS e China.

Pôs-se, obviamente, o problema da unidade nacional e do Estado-Nação, com disparidade de respostas. No que toca à Guiné-Bissau, a unidade Guiné-Cabo Verde resistiu até 1980, Cabo Verde enveredou pela sua via específica de identidade nacional, no caso vertente da Guiné-Bissau nem o tremendo conflito político-militar de 1998-1999 fez minimamente questionar a afloração de conflitos étnicos, nunca se questionou em propriedade nacional mas também nunca se iludiu a fragilidade do Estado, logo patente nos primeiros anos da era de Luís Cabral em que o PAIGC se desentendeu com a questão rural e as expetativas dos agricultores que recusaram sistematicamente vender ao Estado as suas produções, transferindo-as em muitos casos para os países limítrofes. O livro estuda os efeitos da guerra, as especificidades do nacionalismo revolucionário e dedica um importante estudo à construção do Estado-Nação. Nesta aceção, é sequenciada a história da África portuguesa e as sequelas que deixou nos Estados pós-coloniais, comparando-os com os países vizinhos. A construção do socialismo é igualmente analisada com a deteção dos pontos frágeis e dos obstáculos para os quais os partidos vitoriosos se revelaram incapazes de ultrapassar. Esta construção do socialismo tem uma importante análise do contexto histórico nos cinco países. Chama-se à atenção para a inviabilidade de seguir políticas similares em Cabo Verde e na Guiné: Cabo Verde não podia hostilizar as comunidades sediadas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, para já não esquecer a comunidade cabo-verdiana residente no Senegal; na Guiné-Bissau ensaiou-se um apelo à ajuda internacional dos países socialistas e acenou-se a uma ajuda dos países ocidentais, com os escandinavos e os Países Baixos à frente. Mas é uma leitura estimulante ler toda esta construção da Nação-Estado no xadrez africano, no permanente relacionamento entre os fatores internacionais e as políticas domésticas. Até porque os limites destes nacionalismos surgiram muito cedo quando se verificou que os partidos únicos se revelavam incapazes de conciliar o todo nacional.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17965: Notas de leitura (1014): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Aqui se põe termo às considerações sobre uma obra de leitura obrigatória para quem pretenda conhecer a montagem e o funcionamento das redes de informações a cargo da PIDE/DGS em Angola, nos países limítrofes, entre 1963 e 1970, e na Guiné, entre 1971 e 1973, 

Fragoso Allas foi protagonista cimeiro de tais atividades. Vemo-lo como alferes e tenente miliciano na Guiné, mais de quatro anos. Em 1962 ingressa na PIDE, depois de lhe ter sido recusada a carreira militar. A convite do inspetor São José Lopes vai para Angola, instala nova cifra e dá vida a um sistema de informações que envolve os dois Congos e a Zâmbia. É nessa fase de notoriedade que lhe determinam que deve ir para a Guiné, Spínola é muito insistente.

Renova a rede de informações, aproveita os comerciantes que se deslocam pelo Senegal e pela Guiné Conacri. Diz categoricamente que a PIDE na Guiné não foi minimamente havida e achada no assassinato de Cabral. Finda a sua comissão, vê as suas férias interrompidas, precisam do seu talento em Moçambique. Segue-se o 25 de Abril e mais tarde a fuga para a África do Sul.
Livro de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (3)[1]

Beja Santos

António Fragoso Allas permanece na Guiné de meados de 1971 a Setembro de 1973, Spínola regressa em Agosto, Allas não aceita o convite de Bettencourt para ficar, diz-se exausto, fizera uma longa comissão na Guiné no período que antecede a eclosão da guerrilha, ingressa na PIDE, segue para Angola e daqui para a Guiné. Supusera vir desfrutar de uns meses de descanso. Mas em Março de 1974 é-lhe comunicado que devia assumir imediatamente o seu novo posto, Moçambique.

Todo este percurso consta do livro “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 2017.

A sua presença na Guiné foi aqui observada com detalhe. Não é despiciendo tudo quanto ele vai fazer em Angola, logo em 1963, a convite do inspetor São José Lopes. Aqui se inicia uma longa conversa sobre a reorganização da rede de informações, em postos de fronteiras cruciais, com a colaboração de alguns comerciantes e explica porquê:  

“Os guerrilheiros vindos dos países vizinhos entravam no território nacional e, mais tarde ou mais cedo, precisavam de comprar coisas, desde uns fósforos até mercurocromo para as feridas. Se o comerciante era pessoa que estava atenta e quando alguém lhe dizia isto é para os que estão lá, logo se começava a saber algo. Esse próprio comerciante podia chegar a tornar-se a cabeça de uma rede de informadores, dado que ele estava em condições de fazer favores ou fornecer qualquer coisa aos guerrilheiros, que depois nós compensávamos, pagando as coisas fornecidas ou patrocinando-lhe algum favor. No Leste de Angola, os madeireiros sabiam muita coisa. Eles tinham as serrações instaladas no mato. O importante é que eles tinham assalariados africanos e estes, mais tarde ou mais cedo, quando se estabelecia alguma confiança, falavam e começavam a ser ponto de ligação com o outro lado”.

Allas recebera uma importantíssima missão: melhorar a qualidade das informações, intensificar as relações com as autoridades dos países vizinhos onde isto podia ser feito, caso do Congo-Kinshasa ou na Zâmbia. O entrevistado detalha o seu trabalho, o trabalho com a rede de Léopoldville, a criação de corpos auxiliares (o antecedente dos “Flechas”), o que se sabia sobre a FNLA, o MPLA e a UNITA, as operações para intimidar a Zâmbia, grande apoiante do MPLA. E depois Kinshasa, havia que dividir para reinar, estimular o ódio de Mobutu pelo Congo-Brazzaville, deixá-lo intimidado com os catangueses instalados em Angola.

Mesmo depois de Mobutu ter cortado relações com as autoridades portuguesas, as coisas mudaram a partir de 1969, o tirano de Kinshasa propunha às autoridades portuguesas de Angola que convidassem Holden Roberto para visitar Angola e negociar com ele o pagamento a fazer pelos portugueses de todas as contas decorrentes da guerra conduzida pela FNLA contra o MPLA. E Fragoso Allas observa: “Se tivesse sido aceite o plano de Mobutu não teria sobrado um MPLA vivo”.

As autoridades portuguesas rejeitam, o circuito informações em Kinshasa não perdeu importância, a PIDE colaborou nas operações em Brazzaville, era imprescindível desestabilizar o regime de esquerda, chegou mesmo a propor-se a operação Bikini, o Governo de Caetano rejeitou a participação portuguesa, havia o receio de que Mobutu pretendesse ocupar Cabinda. Com minúcia, Allas expõe o seu relacionamento com as figuras gradas as informações zairenses, como se constituíra a rede de espiões em Brazzaville, dá conta do relacionamento entre as autoridades portuguesas e a UNITA, contactos que se estabeleceram na zona Leste, em 1972 e explica:  

“Os aspetos mais importantes, para os interesses portugueses, em todo este processo de conversações resume-se em três pontos: Em primeiro lugar, a obtenção de informações sobre a atividade do MPLA e da FNLA na zona militar Leste e dados referentes às bases e meios do MPLA na Zâmbia. Em segundo lugar, conseguir que a UNITA atue contra o MPLA e a FNLA, sobre coordenação do comando militar português e nas áreas determinadas por este. Esta coordenação conduziu a resultados dignos de menção. Em terceiro lugar, a não intervenção das forças da UNITA contra as tropas portuguesas, as quais, por sua vez não interfeririam com os guerrilheiros daquele movimento quando atuavam nas zonas que tinham atribuídas para a execução de ações devidamente autorizadas para comando português. Em troca desta colaboração por parte da UNITA, as autoridades portuguesas comprometiam-se a satisfazer duas solicitações de Savimbi: o fornecimento de diverso material (medicamentos, sementes, material escolar básico, animais de raça caprina) e, além disso, a assistência de um médico militar português a Savimbi, doente na mata, o que foi concretizado em 2 de Dezembro de 1972”.

É este o inspetor da PIDE a gozar de prestigioso currículo que é chamado para a Guiné, pelo seu trabalho receberá um prestigiante louvor.

Já vimos que as suas férias foram interrompidas, é enviado para Moçambique em 1974. Fala-se do apoio discreto dado por Baltazar Rebelo de Sousa à GUMO (Grupo Unido de Moçambique), cuja figura de proa era Joana Simeão, havia que cooperar no estreitamente de relações entre Portugal e a República da África do Sul e fala-se no plano ALCORA, Allas apresenta-o:  

“O plano ALCORA tinha interesse porque permitia a compra de importante material de guerra. Estão a dizer que era muito importante mas só o era por este lado. Nós comprávamos aviões C-130 e T-6 de treino à República da África do Sul que ali tinham chegado ao fim da vida e nós transformávamo-los em aviões de combate”.

Fala-se a seguir na operação Coliflower, organizada por militares rodesianos. Quando detetavam um grupo da ZANU registavam nos mapas da grande sala de operações e enviavam os helicópteros Alouette III. A seguir iam no seu encalço, dividindo-os em pequenos grupos até os exterminar completamente.

Era previsível que Fragoso Allas assumisse o cargo de diretor da DGS em Moçambique, entretanto dá-se o 25 de Abril, em Maio o General Costa Gomes manda-o prender Jorge Jardim na Beira, aqui descobriu que Jardim nada tinha a ver como fomentador das manifestações contra os militares, além disso não estava na Beira, encontrava-se em Lisboa.

A conversa deriva para o desmantelamento da PIDE, inicialmente supusera-se o aproveitamento da PIDE em África como polícia de informações militar, mas tudo estava em derrisão, os Flechas já tinham fugido para a Rodésia. Segue-se a operação Zebra que tinha finalidade de deter na sua quase totalidade os quadros da direção e investigação da extinta DGS. Allas recebe guia de marcha para Angola, descreve o clima convulsivo que se vive em Luanda. Spínola demite-se após os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, Fragoso Allas, via Madrid, ruma para a África do Sul, dedicou-se a negócios. Anos mais tarde, passou a visitar Portugal.

O livro inclui um anexo fotográfico e um anexo documental bastante interessante. Doravante, não se pode estudar as redes de informações instituídas pela polícia política do antigo regime sem consultar este imprescindível trabalho.
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Nota do editor

[1] - Vd. postes de:

30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
6 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17956: Notas de leitura (1013): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8) (Mário Beja Santos)

domingo, 24 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17794: Bibliografia de uma guerra (81): “A Guerra Civil em Angola - 1975-2002”, por Justin Pearce; Tinta da China, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Em mensagem do dia 18 de Setembro de 2017, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), fala-nos do livro "A Guerra Civil em Angola", um período conturbado que aquele país viveu entre 1975 e 2002.


A guerra civil em Angola, por Justin Pearce

Beja Santos

Como soe hoje dizer-se, é muito provavelmente o livro mais rigoroso, mais documentado e que melhor retrata algo que até agora a historiografia da guerra civil não considerava como matéria essencial: como viveu a população angolana a guerra civil, como definiu a sua identidade política com os dois poderosos contendores, o MPLA e a UNITA?

Até agora as investigações partiam do entendimento de que o conflito angolano não passava de um produto da Guerra Fria, os acordos de Bicesse não tinham surgido por iniciativa da sociedade angolana, era uma solução desenhada por atores políticos exteriores a Angola. Logo em 1993 a guerra civil eclodiu com um fragor mais destrutivo do que nunca, os estudos minimizam as continuidades ideológicas e de identidade em que passou a contextualizar-se um MPLA entendido como um partido urbano e a UNITA olhada como o partido das matas. Eram duas forças frontalmente antagónicas, o MPLA liderado por intelectuais, a UNITA comandada por um chefe absoluto e indiscutível. O investigador britânico preambula o seu trabalho falando sobre Angola e a natureza da pretensa política e aborda a questão da identidade. Será um trabalho permanentemente atravessado por depoimentos de pessoas que viveram os transes da guerra civil.

A intervenção externa foi o gatilho que levou à declaração do conflito, os contendores escolheram apoios declarados: a UNITA recebeu algum armamento de África do Sul, vieram depois instrutores; o MPLA recebeu apoio cubano e soviético. “A supremacia da UNITA na região do Planalto Central, em Agosto de 1975, e o controlo de Luanda por parte do MPLA, na mesma data, ficaram sobretudo a dever-se à mobilização local apoiada pela aprovação ativa ou tácita do Estado português. Em Agosto de 1975, estava definido o caráter territorial do conflito angolano”. A FNLA, terceiro movimento, foi sol de pouca dura, rapidamente esmagado pelas tropas do MPLA. Onde o MPLA controlava era violento e procurava a imagem de ser o único grupo de libertação capaz de coordenar um governo; a UNITA, nos territórios onde era preponderante, sem se subtrair a que vivia em guerrilha contínua e sempre dominada por uma ideologia flutuante, onde não estava excluída uma certa simpatia maoísta, privilegiava a educação e a saúde, eram estes os eixos das respetivas propagandas. Liquefeito o diálogo, Agostinho Neto a independência em Luanda e Savimbi anunciava a criação da República Democrática de Angola no Huambo.

Com detalhe, o investigador debruça-se sobre a UNITA, como esta se vai retirando das cidades e lança-se no novo tipo de guerrilha, assentava o seu poder em comunidade camponeses, muitas vezes sujeitas a uma vida ditatorial. O MPLA assentou raízes na construção de um estado urbano e dentro de uma certa lógica: “Consolidou o seu poder nas zonas de Angola por si controladas durante a guerra civil através da instauração de uma visão de desenvolvimento orientada pelo Estado, e da definição do discurso público sobre o papel do Estado e do partido na concretização dessa visão”. A questão da identidade e do sentido de pertença a um movimento é escalpelizada no importante capítulo sobre a migração e identidade, ilumina-se ao pormenor as complexidades da identidade política e a sua relação com o controlo político, no contexto de uma estratégia governamental assente na deslocação de populações como forma de cortar o fornecimento de apoio material à UNITA. Analisa-se, em sequência o desempenho da UNITA no Planalto Central, entre 1976 e 1991. É tempo de responder ao modo como o povo interpretou e reagiu à disputa pelo poder, nos anos que se seguiram às eleições de 1992, são fatores interligados: as anteriores filiações no plano individual; a proximidade ou envolvimento das populações no processo de construção do Estado liderado pelo MPLA; o grau de dependência dessas populações em relação à economia urbana; a dicotomia entre cidade e campo, que se exprimia na ideia do partido urbano ou do partido das matas. “Os entrevistados quando se referiram a questões de legitimidade política e filiação depois de 1992, as considerações ideológicas estavam praticamente ausentes do seu discurso, já que todos avaliaram o MPLA e a UNITA com base no tipo de condições de vida proporcionadas por cada um”.

E no rescaldo da morte de Savimbi, primou o discurso dos vendedores. Como lembra o autor, o MPLA mantém uma ideologia que dificilmente se coaduna com as ideias de reconciliação. No 20.º aniversário da batalha de Cuíto Cuanavale, José Eduardo dos Santos apelou à propaganda, dizendo que a batalha dera origem a mudança profundas na África Austral, abrindo perspetivas para a queda do regime Apartheid, é um discurso que não menciona a existência de angolanos nos dois campos do conflito e a importância decisiva do apoio militar cubano ao MPLA. Este partido, sempre que necessário, convoca as memórias da luta anticolonial e repudia as diferentes oposições dizendo-se do lado da paz e da tranquilidade e que os críticos mais não oferecem que desacato, destruição e desordem. Quando se chegou à paz, depois da morte de Savimbi, desarticularam-se os núcleos populacionais da UNITA, o Estado/MPLA arvorou-se na legitimidade política sem limites. Sobre a trajetória e a organização do seu trabalho, Justin Pearce também dá explicações: “O que estava em causa era saber qual das duas elites era a herdeira legítima da autoridade conferida pelo conceito de Estado, uma questão que foi elidida por outra: qual das duas elites estava mais habilitada a transformar o Estado enquanto conceito teórico numa realidade. A melhor forma de compreender as mudanças verificadas na adesão política ao longo da guerra é vê-las como uma reação a circunstâncias e realidades em constante mudança. Embora durante a guerra, o controlo do território pendesse ora para o MPLA ora para a UNITA, no que diz respeito à identidade política o movimento foi, em larga medida, unidirecional”. E a concluir: “O MPLA venceu a guerra graças ao seu poderia militar. O fim da guerra, porém, foi o culminar de um processo no qual o potencial de fogo, o derramamento de sangue e a fome foram utilizados para transformar as possibilidades do que era imaginável”.

De leitura obrigatória.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17789: Bibliografia de uma guerra (80): “Changing the history of Africa”, por Gabriel García Marquéz, Jorge Risquet e Fidel Castro; Ocean Press, Austrália, 1989 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17378: Notas de leitura (958): “Portugal e as Guerrilhas de África”, por Al J. Venter, Clube do Leitor, 2015, prefácio de John P. Cann (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,

O melhor é lerem o livro de fio a pavio. É uma poderosa reportagem, não contesto, não conheço investigação tão minuciosa. Não se entende, no entanto, como é que o jornalista e escritor não procurou a confirmação de dados que ele expõe com a ar mais diáfano deste mundo. 

Quanto à Guiné, vê-se que o impressionou o patrulhamento que fez em Tite junto do capitão João Bacar Djaló. Não esconde que a Guiné era o teatro de operações mais atribulado e que a retirada de Spínola, em Agosto de 1973, prenunciava os tempos dolorosos que todos experimentaram. E confrange-se como um movimento de libertação com créditos tão firmados até na arena internacional mal chegou ao poder em Bissau parece que apostou na fragilidade do Estado e em desconjuntar o equilíbrio social, nunca lhe ocorrendo que a reconciliação de todos seria o primado da reconstrução nacional.

Um abraço do
Mário



Portugal e as guerrilhas de África (2), por Al J. Venter(*)

Beja Santos

“Portugal e as Guerrilhas de África”, por Al J. Venter, Clube do Leitor, 2015, é uma coletânea de reportagens de alguém que se perfila como o “único jornalista estrangeiro presente nas três frentes da guerra colonial”

Ao longo de cerca de 500 páginas, o jornalista e escritor colhe testemunhos, na verdade, nas três frentes. A sua investigação contempla a natureza das guerras de Portugal em África, dedica a segunda parte da obra por inteiro à guerra da Guiné e a terceira à evolução das operações no Leste de Angola e Moçambique, este último teatro de operações leva-o a proferir juízos muito cáusticos sobre o comportamento dos militares portugueses.

Na Guiné, destaca a Operação Tridente, não esconde a profunda admiração pelo herói militar João Bacar Djaló. Esteve na Guiné durante a guerra e muito depois. Nesse depois, visitou a Fortaleza de Cacheu e a suas velhas relíquias coloniais, fala mesmo em Vasco da Gama (!?) o primeiro homem a dobrar o Cabo da Boa Esperança e refere as canhoneiras portuguesas ali deixadas e tece o seguinte comentário: 

“Estas outrora orgulhosas embarcações de combate foram entregues intactas ao novo regime. Ao fim do ano tinham sido postas em seco e abandonadas para a sucata. Os seus motores foram vendidos ao um barco de pesca chinês de passagem”.

Em Nova Lamego foi recebido pelo Administrador, Dr. Aguinaldo Spencer Salomão. 

“Foi educado em Cantuária e era um anglófilo assumido. Se o enfadonho chefe de posto de Tite tinha sido um desapontamento, Aguinaldo era um sopro de vitalidade no preconceituoso reino da burocracia portuguesa na Guiné. Os seus livros em inglês, francês e português abrangiam quase todos os assuntos. A sua discoteca era vasta. Preferia Vivaldi a Schoenberg, mas era suficientemente eclético para ouvir um disco dos Beatles”

Viaja até Bambadinca, conversa com o comandante do BART 2917 e dá-nos a seguinte informação: 

“O último ataque ocorrera exatamente um ano antes de eu chegar: um grupo infiltrado tinha-se dirigido para Norte do outro lado da fronteira a partir de Kandiafara para tentar cortar a estrada de Bafatá. Num final da tarde, os guerrilheiros atacaram Bambadinca a partir do outro lado do rio, retirando-se depois para uma posição pré-determinada, onde esperaram pelo dia seguinte antes de se juntarem a outros dois grupos. Esta força combinada iria então atacar outras posições durante o assalto. Foi então que algo correu mal. Um grupo de pisteiros da força atacante colidiu com uma patrulha de Bambadinca e foi capturada intacta, sem ter sido disparado um único tiro. Um dos homens era um alto oficial do PAIGC. Os quatro homens foram levados de helicóptero para Bambadinca onde foi oferecida ao oficial a opção de contar tudo ou aceitar as consequências. Era uma situação sem saída, e o rebelde foi suficientemente inteligente para aceitar”

Sentiu-se impressionado com Bissau, encontrou-lhe semelhanças com Banjul. Considera que o PAIGC, ao agir despoticamente, provocou um dos mais trágicos desastres políticos de África. Faz uma menção a outros grupos pró-independentistas, caso da FLING. Aborda a formação de Amílcar Cabral e como organizou a orgânica do PAIGC. Não sabemos bem onde é que ele foi buscar aqueles dados, mas achou que ele tinha quatro filhos do primeiro casamento. De igual modo atribui aos soviéticos a instrução pessoal de Cabral, dado não comprovado.

De repente, introduz o tema da aviação nas guerras coloniais portuguesas, e logo a seguir vamos até ao Leste da Angola, a N’Riquinha, onde Al Venter conversa com o capitão Vítor Alves. Tudo somado, em Angola a guerra de guerrilhas estava a ser um sucesso para as Forças Armadas portuguesas, o MPLA desfazia-se em intrigas, tornara-se pouco atuante, a UNITA estava aberta à cooperação e a FNLA era uma sombra do passado. Estamos agora em Moçambique, cita várias fontes sul-africanas e rodesianas, era inconcebível como as forças armadas portuguesas destruíam tudo e mal tratavam as populações, e escreve: 

“Nas condições atuais de combate, os sul-africanos e os rodesianos consideravam os militares portugueses em Moçambique desastrados e ineptos”

Era patente que tinha havido uma deterioração no relacionamento entre os oficiais os homens sobre o seu comando, era quase uma repetição da síndrome vietnamita e tece nova consideração ácida: 

“A verdade era que em quase todo o Exército português em Moçambique tanto os oficiais como os homens mal conseguiam aguentar até ao fim as suas comissões de serviço. Na sua maioria, acabaram por desprezar o mato africano e as condições primitivas sobre as quais eram obrigados a operar”

Tanta neglicência, diz Al Venter, favoreceu a capacidade da FRELIMO em se movimentar livremente à noite. Durante as marchas operacionais, viu colunas barulhentas e desgarradas, o Estado-Maior era extremamente burocrático, impedia as respostas prontas. Tece as suas considerações sobre a natureza das baixas sofridas pelas Forças Armadas portuguesas e enaltece o papel das enfermeiras paraquedistas.

O papel documental destes relatos esbarra com imprecisões incompreensíveis para um investigador como Al Venter, serve de exemplo mostrar o jornal Avante! e dizer que é um jornal de Luanda. Os apêndices têm maior utilidade: ficamos com um escorço das tropas africanas no exército colonial português, trabalho de João Paulo Borges Coelho, como as forças especiais rodesianas contribuíram em Angola e Moçambique para ajudar os portugueses, travando nomeadamente ações de retaguarda. E, por último, repesca as operações costeiras na Guiné extraídas do livro do capitão John Cann, recentemente traduzido pela Academia da Marinha.

Em 22 de Novembro último, Al Venter concedeu uma entrevista ao Diário de Notícias, onde foi questionado se Portugal tinha perdido a guerra colonial, fugiu a uma resposta clara, não deixando de observar, porém, que o país estava a ficar exangue. Perguntado se tinha havido massacres na nossa guerra, respondeu: 

“Houve alguns massacres como My Lai nas guerras coloniais portuguesas? Diria que sim, mas apenas nos primeiros dias das mutilações em Angola. Foi um período lunático de trocas excessivamente violentas entre os dois lados e durou menos de um ano. Nada de comparável aconteceu em Moçambique ou na Guiné. No conjunto, Lisboa conduziu os últimos conflitos coloniais by the book. Isto não agradou a todos e não impediu a PIDE e outros serviços secretos de segurança de ultrapassarem as marcas”.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17094: Notas de leitura (933): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (4) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Nesta gigantesca biblioteca da literatura de guerra há momentos muito compensadores quando pegamos em obras de qualidade irrefutável. É o prazer da descoberta, o ultrapassar pelos próprios meios este espesso território de nevoeiro em que andamos às apalpadelas a descobrir gemas literárias.
Foi consolador encontrar por puro acaso esta obra-prima de Pedro Rosa Mendes, uma peregrinação centrada no drama da guerra civil angolana. Penso que o autor fez bem em não nos relatar toda a sua viagem socorrendo-nos de um mapa, dá-nos a imagem de vários países da África Austral, por lá terá andado, mas é impossível que qualquer leitor português ou angolano não se tenha arrepiado com o que ele descreve acerca do Huambo ou do Cuíto, dos mutilados, dos que vivem vida dúplice, dos que perderam a esperança e até os ideais.
Por favor, logo que possam procurem ler "Baía dos Tigres" e depois conversamos mais a preceito.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (4)

Beja Santos

Neste livro prodigioso de nome “Baía dos Tigres”, das Publicações Dom Quixote, Pedro Rosa Mendes pega por vezes num protagonista que vai acompanhar uma narrativa dramática, onde não falta o horror e as situações delirantes. É o caso de Maria Alexandre Dáskalos que disse a um embaixador em Luanda acerca da guerra que ia voltar pior do que antes e que recebeu uma resposta vexatória:
“Estou aqui para lidar com negros. Os brancos de Angola são filhos de emigrantes miseráveis”. E o pior veio mesmo, em Huambo. Depois da ocupação da cidade pela UNITA, o MPLA regressou em Fevereiro de 1976, enviando a pior espécie de gente. Quando Maria Alexandra voltou a Luanda, alertou os militares e civis que iriam aparecer mais vítimas. “No quartel-general das FAPLA disseram-lhe que o Huambo era um caso perdido e que já tinham consciência disso há seis meses atrás. Não fizeram nada para salvar a vida dos seus militantes. No estado-maior das FAPLA ouviu também uma frase que lhe ficou para sempre: a revolução precisa de heróis. Foi a definitiva machada enquanto militante do MPLA”.

E há as descrições apocalíticas dos dramas vividos nas regiões transfronteiras. O viajante pretende atravessar de Kanyemba para o Zumbo. Vê o sol a desaparecer vermelhão na cordilheira do Zambeze. E chegaram ao Zumbo, onde não há comida, nem eletricidade, telefone, água ou estrada, ouve-se o resfolegar dos hipopótamos no rio. A descrição que se segue é inesquecível:
“Zimbabueanos, zambianos e moçambicanos sobem as escadas do terraço, como se subissem da água, e entram na casa da imigração para carimbar passaportes – bocados de papel amarrotados que inventam três países diferentes nesta corrente igualmente leitosa. Há uma fronteira tripla onde o Zambeze entra em Moçambique: Moçambique é aqui e do outro lado, o Zimbabué é do outro lado mas mais a montante, a Zâmbia é deste lado mas também a montante, com outro rio entre nós e ela, o Luangwa, afluente do Zambeze. Zumbo, Kanyamba e Feira (o posto zambiano) são uma encruzilhada do nada, pontos cortados dos respetivos centros. Pesca-se muito e o peixe circula em quantidade – come-se em Harare, Lusaca e até Lubumbashi. A água é, portanto, a única nacionalidade.
Os pescadores sobem as escadas dos escravos, as escadas onde estou há horas agrilhoado ao flutuar dos hipopótamos. O posto tem uma bandeira no mastro ao fundo do terraço e posso quase fingir, neste ponto alto, que é a Emigração é um barco de pavilhão FRELIMO a quem proibiram o rio”.

As histórias prosseguem, há crianças em permanente risco de vida, e há crianças que aprendem as regras mais elementares da sobrevivência, um exemplo:
“Os putos do Lobito Velho inventaram uma armadilha para apanhar gaivotas na baía. Espetam dois pauzinhos verticais na areia, à beira da água, de forma a aguentarem-se sozinhos, e atam um fio entre os pauzinhos. Deixam um laço bem largo, com uma ponta ligada a uma pedra. Colocam um isco entre os paus. As gaivotas apanham o isco entre voo, passando pelo meio dos paus e enfiando o bico no laço. O nó aperta-se com o próprio impulso do pássaro, asfixiando-o em poucos segundos. A pedra não deixa as gaivotas levantar voo. Os putos precipitam-se sobre as aves, partem-lhes uma asa e começam a depená-las ainda vivas”.

Isso tudo já é pungente, o mais horrível está por chegar, o massacre em Wiriyamu:
“Ao meio-dia, 13 horas, começou. A 6.ª Companhia de Comandos fez o assalto praticamente em simultâneo em Wiriyamu, Juwau, Chaola e Jimusse. O massacre foi em todos os sítios com um sistema igual. Eles faziam o seguinte: foi um sábado, as pessoas estavam a beber pombe, a conviver, havia portanto aglomerados nos sítios de bebida tradicional. Os Comandos pegavam, metiam as pessoas nas casas maiores e incendiavam-nas e elas morriam queimadas lá dentro. Algumas que tentavam fugir eles matavam a tiro e outras até à baioneta. Até às crianças, pegavam e atiravam-nas para cima das palhotas em fogo. No Jimusse foi onde morreu mais gente mas puseram o local do monumento aqui porque era melhor. No Jimusse juntaram as crianças e as mulheres num sítio e os homens noutro. Punham os homens em fila indiana e três militares armados mandavam-nos correr para ver quem acertava primeiro. Alguns conseguiram fugir aos ziguezagues e a correr. Houve mulheres e crianças que assistiram à morte dos pais e maridos, mesmo em frente deles. No fim, pegavam em granadas e atiravam para os aglomerados de mulheres e crianças”.

Todas as digressões têm imensos riscos, mas há pontos onde se deve esperar sempre uma tragédia, assim:
“De Benguela ao Lubango corre uma das estradas mais perigosas de Angola, das mais riscas em histórias de sangue: as perseguições, os combates, as emboscadas, as serras onde se perderam guarnições das FAPLA, campos das FALA, bases da SWAPO. A viagem é longa e penosa. Tem que ser feita em dois dias porque o piso está péssimo – só os 80 quilómetros finais, a partir de Cacula, demoram 4 horas. Normalmente não se viaja depois do sol-pôr. Em guerra, é um paraíso da guerrilha. Na bizarra paz angolana, é território para os bandos armados. Os camionistas de Benguela avançam para a Huíla armados e em comboio”.
É perto do fim de toda esta dolorosa narrativa que se fala na baía dos tigres:  
“Os cães na Baía dos Tigres eram apanhados da seguinte maneira: os colonos arranjavam uma gaiola muito grande e punham um angolano lá dentro, ou um gajo que aparecesse a querer ganhar dinheiro. Metiam o gajo numa jaula dentro da outra, depois de o fazerem correr um bocado para ele ficar a pingar suor. E ele ficava a ali. Os cães vinham de noite, Sentiam o cheiro do tipo. Mas ele já tinha um atilho na porta e quando os cães entravam ele puxava e os cães ficavam enjaulados. O homem passava lá a noite com o cão a babar-se de ladrar. Os colonos vendiam os cães. Cães bravos. Atacavam tudo o que viam”.

E findamos este horror de dramas com Domingos, a quem 14 anos em combate ensinaram que o pior da guerra são os heróis. “Domingos Pedro, 31 anos, angolano é refugiado em Mongu, capital da Zâmbia Ocidental. Estava no Rivungo (Cuando Cubango) quando o conflito recomeçou em 1992. Resolveu fugir, atravessando o rio Cuando. Salvou-se de morrer na guerra para viver na miséria. É natural do Bié. A família ficou para trás, como é também normal entre grande parte da população angolana afetada pela guerra – os parentes mais queridos desapareceram algures num pontão, ataque, emboscada, evacuação, num desadeus traumático. Uma espécie de morte sem a perfeição do luto que liberta os sobreviventes”. Em criança, Domingos já estava incorporado nas FAPLA, anos depois mudou para a UNITA. “Por duas razões de convicção: uma, foi capturado; duas, MPLA e UNITA há muito que deixaram de precisar de um ideal nos seus soldados – basta-lhes o sacrifício e as disciplina”.
E ficamos a saber como vive Domingos:
“Domingos atravessa o Cuando a salto, contratado por traficantes interessados em entrar-se em perigo e sair com diamantes. Sete anos de Luanda, sete anos de Jamba. Domingos tem uma lucidez privilegiada”.
A sua conclusão aproxima-se da tragédia desta empolgante literatura de viagens que é a Baía dos Tigres:
“Já não há mais nada a libertar. O quê? É negócio, no fim. Um é o petróleo, o outro é os diamantes e o mercúrio. O povo não recebe. Não tem parte. O povo morre. O Santos começou a divergir depois da morte do Neto. E o Savimbi diz-se que nunca teve governo mas um chefe deve tratar bem os empregados”.

Incontestavelmente, uma obra-prima que ultrapassa as dimensões de todos os dramas vividos na descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17088: Notas de leitura (932): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (3) (Mário Beja Santos)