segunda-feira, 21 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22303: Notas de leitura (1362): “Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto; Rosa de Porcelana Editora, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Em 2016, aqui se fez menção ao livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem", um conjunto de mais de 50 cartas que versam a relação entre Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, um arco de missivas que vão desde a aproximação amorosa até aos preparativos da partida de Maria Helena para acompanhar o líder do PAIGC no exílio. Iva Cabral, a filha mais velha do casal, era a depositária deste valioso espólio. Agora a investigadora Aurora Almada e Santos, de colaboração com a segunda mulher de Amílcar Cabral, Ana Maria Cabral, que vive em Cabo Verde e é membro-dirigente da Fundação Amílcar Cabral, coligiu e contextualizou com rigor este acervo de bilhetes-postais que o líder revolucionário endereçou à mulher entre 1966 e 1972. Um documento indispensável para conhecer melhor o homem e a causa pela qual deu a sua vida.

Um abraço do Mário



Postais de viagens de Amílcar Cabral, cânticos de amor e saudade

Beja Santos

“Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto, Rosa de Porcelana Editora, 2018, é uma reunião de postais de Amílcar Cabral endereçados à sua segunda mulher, Ana Maria Sá Cabral e aos filhos, da Escandinávia à África Ocidental, de Marrocos ao Médio Oriente, ficou-nos o legado de bilhetes-postais vintage onde se fala da saudade, dos cuidados, dão-se informações ligeiras sobre congressos e meetings, é permanente a preocupação com o estado de saúde da mulher amada. Esta é credora de todo o seu afeto.

Logo no postal de 10 de dezembro de 1966, de Genebra: “Ana, Sem ti, as maravilhosas entrecôtes do café de Paris não valem nada”. A Suíça era uma plataforma para se alcançar outros países e Cabral mantinha contactos regulares com organizações de solidariedade no país. No ano seguinte, expede do Cairo outro postal onde se vê mar, rochas e palmeiras: “Olha bem para este postal: a ânsia de vida dos rochedos espelhada no verde das palmeiras, da esperança no isolamento do mar. Do infinito também, porque o dever fecunda a certeza – e a saudade, amor”. Cabral ia assistir à conferência da Organização de Solidariedade com os Povos Afro-asiáticos, com sede no Cairo. E escreve ao filho: “Querido Raúl, o papá tem pena de estar fora de casa no dia dos teus anos. Mas pensa muito em ti, faz votos para que cresças bem e sejas um grande militante do nosso Partido, para servires bem o nosso povo. Que a mamã não se esqueça de te fazer um bolo bonito”

Em julho do ano seguinte, escreve da Argélia: “O Osvaldo (talvez Osvaldo Vieira) trouxe-me um raio de sol: a tua carta. Acho que em vez de te resignares a viver só, deves decidir-te a acompanhar-me, que sou o teu companheiro”. Ainda em Argélia, nessa viagem, escreve à mulher: “Ana querida, Um dia será erigido um monumento ao camelo, pilar silencioso da presença do homem na aridez do mundo. Eu admiro os camelos na sua elegância própria, mas sobretudo na altivez do seu olhar”

Em outubro desse ano escreve de Dacar para a RDA, envia um postal como a imagem de uma aldeia africana: “A beleza de uma paisagem pobre está mais no sonho do seu progresso do que no equilíbrio dinâmico do seu espaço, humano ou físico. O sonho só é realizável no conhecimento: assimilar o essencial da realidade para transformá-la. Esta é a nossa luta: conhecer para transformar no sentido do progresso, a realidade física e humana da nossa terra. Nela, estou convencido dar mais do que tenho ou posso. Não, porque tu existes como minha companheira”

No ano seguinte, novamente do Cairo: “Espero que estejas já menos triste ou só com a tristeza da minha ausência. Eu estou triste porque não estás comigo, mas me alegra imenso o crer que cada dia estarás mais ao meu lado mesmo quando não estou. E eu ao teu lado também”. Recorde-se que o Cairo, tal como a Argélia, tornara-se num centro de apoio à luta contra o colonialismo. Nasser entendia que a República Árabe Unida não poderia ficar indiferente perante a persistência do colonialismo. Em 1970, de Túnis, envia um postal com a vista portentosa de Monastir: “Quando estou ao pé de ti – e estás bem-disposta, sorridente – a vida brilha como este dia de sol azul nos desertos da Tunísia. Que sejas o meu oásis – e eu o teu – nos vendavais desta luta gloriosa”

No ano seguinte, em Addis Abeba: “Ana querida, Apesar das pobrezas, das misérias e grandezas de um ‘império’, a Etiópia é rica de cores humanas e naturais. Espero que um dia, que não tarda muito, tu virás aqui para, juntos, admirarmos e aprendermos. Tenho muitas saudades tuas e penso nos dias que vais ter com o tratamento, porque os ouvidos são muito delicados”

Dias depois, ainda no decurso da sessão da Organização da Unidade Africana, envia à mulher um postal com uma jovem etíope, num quase perfil e com uma cabaça na cabeça: “Esta deve ser uma das expressões de mulher das mais belas do mundo. Mas será de certeza a segunda, porque, para mim, a primeira és tu, meu amor”

Tempos depois, em Estocolmo, a imagem do bilhete-postal é uma tulipa: “Aqui está uma tulipa: bela, altiva, rica de silêncios e de mistério. Como tu, companheira. Que tenhamos longa vida na luta difícil mas gloriosa pela libertação e progresso do nosso povo: para que à luz da tua beleza, na altivez cada dia mais construtiva dos teus gestos, transformemos os silêncios em alegria de viver e o mistério na força da nossa vida: o amor pela justiça”

Em março de 1972, envia de Trípoli um postal com a imagem do mercado de Leptis para o filho: “Raúl, Um dia, que não tarda muito, tu serás um homem, viajarás pelo mundo e conhecerás as maravilhas que o Homem criou. E saberás que a melhor maravilha que o Homem criou é o próprio homem de que as crianças como tu, são as flores.
Beijos do papá”.

Trata-se de uma edição cuidadosíssima, a contextualização histórica coube a Aurora Almada e Santos, insere textos de António Guterres, Guilherme D’Oliveira Martins, Jorge Carlos Fonseca e José Maria Neves. Márcia Souto e Filinto Elísio já nos tinham brindado com outro livro igualmente de Amílcar Cabral, “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: A Outra Face do Homem”, Rosa de Porcelana Editora, 2016, versa um conjunto de 53 cartas que o líder do PAIGC enviou à colega, namorada e primeira mulher, é um documento relevante na justa medida em que permite aquilatar a dimensão afetiva do estudante de agronomia até à partida para o exílio do líder revolucionário. 

Voltando aos itinerários de Amílcar Cabral, eles poderão ser muito importantes dado o facto de cartografar e calendarizar o percurso de um dos mais reconhecidos dirigentes da luta pela autodeterminação, são testemunhos de um desvelo amoroso, de uma presença constante a pedir ajuda para a sua causa, fala insistentemente na saudade, esteja em Moscovo, Nova Iorque ou Estocolmo, permitem conhecer o estado de espírito do lutador, ir sentindo a palpitação pela credibilidade e aceitação do líder do PAIGC na cena mundial.

António Guterres refere o livro de memórias de Gérard Chaliand, “A Ponta da Navalha”, onde o intelectual conta que quando disseram a Nelson Mandela “Tu és o maior”, este terá replicado: “Não, o maior é Cabral”.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22279: Notas de leitura (1361): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima; Março de 2020, Edição de Autor (Mário Beja Santos)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

O panegírico exaltante, o elogio apaixonado, a crença na utopia e no irrealizável. Infelizmente para os povos nossos amigos da Guiné-Bissau.
Leio em, escrito por guineenses:

https://www.buala.org/pt/mukanda/a-presenca-de-amilcar-cabral-na-musica-rap-na-guine-bissau-e-em-cabo-verde

Cabral afirma no seu “testamento político” (Janeiro de 1973):

“(..) o que quer o Homem africano é ter a sua própria

expressão política e social – independência. Quer dizer, a

soberania total do nosso povo no plano nacional e

internacional, para construir ele mesmo, na paz e na

dignidade, à custa dos seus próprios esforços e sacrifícios,

marchando com os seus próprios pés e guiado pela sua

própria cabeça o progresso que tem direito como qualquer

povo do mundo!”

Acontece que:

“(…) País sta desorganizadu / Korupson sta jeneralizadu / Aparelhu di no stadu aos torna un sistema di korupson / Dinheru ku no djunta pasa na sbanjadu a toa i grande orgulho / fama(! ) / Guiné-Bissau i narkotráfiku / Djintis di stadu na prátika di negósius ilegais / E na fasi krimes organizadu ma faladu na nomi di stadu / Es tudu anós i kontra (…) Povu inosenti ku fomi na paga kulpa di dirijentes / Sorti ka ten, Cabral muri i ka ten kin ku na lebanu pa dianti / Tchur di Cabral tem ku tokadu pa es tera pudi bai pa dianti / Até aós Guiné-Bissau nada i ka tchiga di konkista, purblema d’es tera n ta pensal tok n ta disgostaaa”8 (CIENTISTAS REALISTAS, Contra, 2009)



(…) país está desorganizado / corrupção está generalizada/ o nosso aparelho do estado tornou-se num sistema de corrupção / o nosso dinheiro é esbanjado à toa e com grande orgulho-fama / Guiné-Bissau é narcotráfico / servidores do estado praticam negócios ilegais / praticam crime organizado mas dizem em nome do estado / somos contra isso tudo (…) povo inocente com fome é quem paga a culpa dos dirigentes / não há sorte, Cabral morreu e não existe quem nos possa levar à frente / até hoje Guiné-Bissau não conquistou nada, problema desta terra penso-o e me dá desgosto”.

Abraço,

António Graça de Abreu

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Eu concordo plenamente com o nosso amigo AGA.

Tenho um irmao mais velho que fez o curso de farmacia, acho que na faculdade da Nova de Lisboa, aquela situada na rua das forças armadas, ao lado do ISCTE-UL. Um homem que sempre foi muito organizado e inteligente para as nossas condiçoes e época, mas que também, é muito sensivel e discreto. Apos a sua formaçao em 1989, voltou ao pais e trabalhou no nosso Ministério da saude, encontrando-se hoje na reforma. Ele sempre foi o exemplo na familia e na nossa comunidade de origem, a quem nos tentavamos imitar.

Sempre que vou a sua casa para uma visita de cortesia, a primeira coisa que me chama a atençao é uma frase escrita a mao num papel simples A4, que ele mantem ha mais de 30 anos e que, por respeito e medo do seu silencio tumular, nunca perguntei quem era o autor e diz assim: "A realidade é o cemitério da utopia".

Acho que esta frase serve muito bem para ilustrar, de facto, o que foi a campanha da luta de "libertaçao nacional" e consequente independencia da GBIssau em 1974. Uma utopia que nao resistiu a dura realidade do mundo.

Eu, um tanto distraido e cabeça de vento como sempre fui, demorei muito tempo para entender o amor que ele nutria por esta frase escrita a mao num vulgar papel A4 que sempre via pendurada na parede da sua sala de estar. Felizmente, hoje ja sei e na verdade, nao ha nada mais verdadeiro do que esta simples frase.

Mas, todavia e enquanto o mundo existir, vamos continuar a sonhar e alimentar a nossa propria utopia na esperança de a poder transformar numa realidade proxima dos nossos sonhos e desejos. Esta foi e continua a ser a realiade do todos os povos do mundo e nao ha uma terceira via.

Afinal a cidade de Roma nao foi construida num dia, nem a travessia portuguesa da monarquia a III republica foi tao pacifica e isenta de desaires como seria de desejar.

Cordialmente,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Por muito mal que se pense do estado da Guiné, não é tão pessimista como o estado do Estado de Moçambique por exemplo.

Os sonhos de Amílcar Cabral e de todos os antigos "estudantes do império", que não eram apenas os que vinham para a metrópole estudar, mas os de todos os estudantes de liceu, seminários e das missões estrangeiras em geral, que proliferavam pelas colónias portuguesas, não passavam mesmo de sonhos.

Por muitas razões, uma dessas razões e a principal, é que eles estudavam tudo o que o "branco" lhes ensinava, e que pouco tinha a ver com a terra deles, que a maioria mal conheciam.

Outra razão do falhanço inevitável (caso de Angola com aquela(s) guerra(s) que se seguiram) por exemplo, é que os principais dirigentes dos vencedores, MPLA, FRELIMO, PAIGC, não eram nem conhecidos nem da simpatia nem empatia das diversas tribos.

Os fulas, balantas e bijagós, sem petróleos e ouros, vivem mais felizes que muitos quiocos, com diamantes, fiotes com petróleo ou macuas com gaz natural.

Claro que os guineenses vivem com o "pesadelo" dos "sonhos" de Amílcar Cabral, mas isso tem sido mais uma guerra entre os grandes que se chegam a matar uns aos outros, mas o povo vive alguma paz, o que para África, não é mau.

Desde que não apareçam movimentos extremistas, os considerados paises pobres em África é um indício de paz.

Antº Rosinha disse...

Como conheci muitos estudantes do império, os tais sonhadores que estudaram muitos no Liceu enorme de Luanda, escola Industrial de Luanda, liceu do Lubango, de Nova Lisboa etc. e depois muitos nas universidades de Luanda e Nova Lisboa, quero dizer que muitos, a maioria vieram de "frosques", tipo retornados como eu para a minha terra, ou mesmo já cá estavam para fugir à guerra colonial.

E alguns conseguiram continuar a "sonhar", agora com um portugal melhor.

E não é que mesmo agora, passados tantos anos, ainda continuam a vir, vez por outra, novos estudantes do velho império com ideias e sonhos para esta pobre metrópole?

E até com sotaque de Luanda.

Anónimo disse...

Caro Luis,

Como complemento de informaçao sobre o meu irmao a que fiz referencia, foi colega de escola do Prof. Joaquim Silva Tavares (Djoca), actualmente a trabalhar nos EUA para onde seguiu depois de completar o seu curso de medicina em Portugal. Os dois fizeram parte do grupo chamado "geraçao de ouro" do Liceu Honorio Barreto (baptizado Liceu Nacional Kwame N'krumah apos a independencia) e viajaram juntos para Portugal em 1980 para continuaçao de estudos. O Djoca fala dele numa das suas cronicas no Blogue do Didinho.

Abraço,

Cherno Baldé