sexta-feira, 25 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22315: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (58): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Se é lícito recapitular o que se vai passando na vida deste Paulo Guilherme, ele tem um ganha-pão como técnico, é professor contratado, colabora com a imprensa, nunca o vemos gemer sob o peso das obrigações diárias, tem várias bocas a ajudar, são riscos que corre por conta própria, aceitou vários tipos de representação, a que mais lhe apraz é representar a Confederação Europeia dos Sindicatos nas políticas de Saúde e do Consumo junto das instituições europeias. Vai cimentando amizades, e daí pedir conselho a quem coliga uma estima fraternal, é o caso de Gilles Jacquemain, começaram por aceitar conjuntamente elaborarem documentos para o Conselho Consultivo de Consumidores, encontram-se regularmente em Bruxelas, e Paulo começa a viver situações tempestuosas com os seus colegas europeus, a Comissão Europeia torce o nariz, é preciso manobrar com delicadeza em várias direções. Mas Gilles não só conhece o romance amoroso de Paulo com Annette Cantinaux como ele próprio deve saber mais coisas sobre a Guiné, esta carta é uma entre muitas demonstrações em que Paulo pede conselho e satisfaz a curiosidade desse belga que de guerra colonial só retém na memória a saída precipitada do Congo e a catástrofe subsequente, pois congoleses e descendência é coisa que não falta na Bélgica, em pleno século XXI.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (58): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Gilles, mon frère en Bruxelles, dentro de dias tens-me aí, organizei com Annette uma viagem a Ypres e a Pas de Calais, imagina tu para visitar sobretudo cemitérios. Já estive em Ypres e confesso-te que aquele cenário alegórico das batalhas me quebrou o coração, aquelas centenas de milhares de mortos para coisa nenhuma. Não esperava integrar nestes dias motivos de trabalho, mas algo de surpreendente aconteceu e tenho que te contar, pois há que agir prontamente.

Mal chegado daquela viagem relâmpago em que fui fazer a conferência no Espaço Senghor, e onde tive o prazer de te rever, recebi um telefonema de um funcionário superior do Serviço de Política de Consumidores, Jean-Marie Courtois. Deixou-me alarmado. Começou por me informar que se tratava de matéria delicada e dava a seguinte informação em privado. Como tu te recordas, o meu colega catalão da Associação Europeia de Consumidores, Javier Pardos Guzmán, comprometera-se a fazer para a Comissão um trabalho sobre o impacto nos consumidores dos dois primeiros anos do Euro. O trabalho foi entregue e pago. Acontece que Javier fez chegar à Associação um trabalho que era dado como original e que fazia parte do contrato que assumíramos com a Comissão Europeia no âmbito do nosso programa de atividades por ela financiada. Obviamente que a Françoise Maniet, a nossa secretária e representante permanente, nos enviou cópia para lermos antes de seguir aos serviços da Comissão, pareceu-me trabalho decente, telefonei a Bengt Ingerstam para Estocolmo, concordou comigo. Acontece, disse-me Courtois, que este trabalho já fora divulgado no Ministério de Saúde e Consumo de Espanha como original, como original chegou à Comissão Europeia, a título de encomenda aos catalães, e tínhamos agora um texto mal maquilhado em nome da Associação de Consumidores, pedia-me insistentemente que descalçássemos a bota um quanto antes. Podes imaginar o estado de espírito com que telefonei a Javier, começou por negar perentoriamente qualquer mixórdia, seguramente era um problema de má tradução, às tantas confessou que havia repetição de capítulos em ambos os trabalhos e mais adiante pediu-me para eu mandar retirar o trabalho atribuído à associação, seria em dois meses substituído por um estudo original referente à evolução do crédito hipotecário na Catalunha nos últimos cinco anos.

Sei muito bem que estes assuntos te escapam, não tens nenhum envolvimento com a nossa associação de consumidores, socorro-me da tua amizade e da tua competência para me dares conselho. Na próxima reunião da Direção o assunto tem que ser posto em cima da mesa, acresce que também temos alguns problemas de rebelião com os franceses que se recusam a subordinar o nosso programa de atividades financiado pela Comissão às matérias que esta propõe para estudo em função do seu próprio programa, acham tratar-se de uma ingerência, de uma maneira de nos dificultar a desenvolver a especificidade da nossa organização que se timbra por ser um associativismo da vida quotidiana, em estreita ligação com o consumo responsável e solidário, visando modos de consumo e de produção mais sustentáveis. Ora nós aceitámos apresentar uma radiografia das nossas 16 organizações sobre estudos efetuados quanto ao consumo responsável e solidário, eles teimam num programa diferenciado, não querem responder sem insistir que as associações de consumidores de caráter europeu não têm qualquer dever de subordinação às prioridades da Comissão, parece-me uma rematada agressividade com quem connosco contratualizou de boa fé e nos está a financiar o nosso trabalho coletivo. Perdoa-me o incómodo, preciso que reflitas sobre a situação em que estamos a viver, peço-te muito que conversemos em Bruxelas dentro em breve. Obrigado por tudo.

Agradeço-te igualmente a manifesta curiosidade com que tu acompanhas a história ficcionada da Rua do Eclipse. A Annette embrenhou-se de tal modo nesta minha comissão na Guiné que faz perguntas a toda a hora. Por exemplo, não percebe bem o quadro depressivo que eu descrevo naqueles meses em que transitei do Cuor para Bambadinca, acha surpreendente eu não me sentir melhor correndo menos riscos, eu e os meus homens. Consegui juntar algumas folhas sobre o meu dia-a-dia de autêntico distribuidor, pronto-socorro e vigilante. Descrevo-lhe que saio às seis da manhã e vou buscar população a Samba Juli, a última tabanca na estrada que leva de Bambadinca a Mansambo, população que vem ao médico, como a seguir marcho para ir buscar alimentos e correio a Bafatá, outro levará os doentes tratados a Samba Juli; regresso de Bafatá, a viatura segue com almoço para a Ponte Undunduma e cabe-me analisar correio e tratar de assuntos da justiça militar; depois de almoço na messe, tenho direito a uma pausa, pelas 15 horas, com outro pelotão, seguimos de Amedalai para Demba Paco, alguém já picou a estrada, seguimos com presteza para levar munições e sacos de arroz, trazendo eventualmente civis adoentados, estamos de regresso pelas 17 horas; tenho permissão para me refrescar e acompanhar as aulas dos meus soldados; pode acontecer que seja necessário jantar mais cedo para montar a emboscada ou seguir para os Nhabijões. Quando há folga, tudo pode acontecer desde leituras a jogos de cartas ou ir conversar com a professora primária, Dona Violete, ainda não tive oportunidade de te contar mas quando cheguei a Bambadinca, em novembro de 1969, resolveram praxar-me, isto é, inventaram uma responsabilidade totalmente inexistente, que eu ficaria como ajudante às ordens da professora, lá me apresentei, com cara de caso, quando lhe falei da missão ela desatou a rir, era uma senhora muito bem-disposta, de idade indefinida, com muito sangue cabo-verdiano e cabelo oxigenado, com uma maquilhagem muito contida e que recebia à inglesa, havia sempre na sala um bolo fumegante. Propusera-lhe inicialmente vários temas de conversa, já que ela tinha sido professora no Cuor: onde se teria situado Sambel Nhantá, que tipo de indústrias e empreendimentos agrícolas houvera no Cuor, como efetivamente se tinha desencadeado a subversão naquele regulado. Foram serões deliciosos, fiquei a saber que Sambel Nhantá fora nome de régulo e de uma povoação que mais tarde deu pelo nome de Sansão; falou-me daquela Sociedade Agrícola do Gambiel de que ainda restava uma formidável construção em pedra; que sempre viveu em Bambadinca e que um barco de manhãzinha cedo a deixava em Gã Gémeos, seguia de burro para Missirá, à tarde regressava; que a área mais próspera do Cuor era Canturé; a população, no passado, era maioritariamente islamizada, mas nunca puseram problemas a que as crianças fossem à escola. E dessas conversas retive o tom quase magoado como me foi referindo a chegada da luta armada, logo nos inícios de 1963, um verdadeiro tremor de terra que levou ao desaparecimento de todas as localidades com exceção de Missirá e Finete, esta parecia que ia morrer, mas em 1965 apareceram tropas de milícia e a bolanha é tão fértil que as populações se sentiram protegidas e regressaram, Mandingas e Balantas. Falava emotivamente das belezas do Cuor. Quando me despedia, dizia-me sempre: “Que tema quer tratar a seguir, senhor alferes?”. Eu dava uma sugestão, beijava-lhe a mão e agradecia-lhe sempre o saboroso chá preto, tudo isto decorria numa atmosfera que parecia completamente fora de um cenário bélico.

Não te incomodo mais, estou a trabalhar a mata-cavalos para deixar as avaliações dos meus alunos, ainda tenho que expedir uma carta para a Françoise Maniet, felizmente tu estás a preparar a tomada de posição do documento que nos pediram para o Conselho Consultivo de Consumidores, senão já nem tinha tempo para dormir. Esqueci-me de perguntar pela tua mulher e mais família, espero que todos estejam bem. Pensa no pedido que te fiz, quero procurar agir com o melhor bom-senso possível com estas situações do colega catalão e do grupo francês. Não te esqueças que te ofereci a minha casa em julho, quando estiver para passar férias em Bruxelas. Depois volto com a Annette para Lisboa. À bientôt, une énorme amitié, Mário
Alguém me sugerira que lesse cuidadosamente um famoso álbum de Schuiten e Peeters, uma crítica devastadora que faz destruições provocadas no centro da cidade pela ganância dos promotores e mobiliários: a destruição do centro medieval para canalizar e abobadar o rio Sena; o delírio do Palácio da Justiça, construção megalómana, sempre que sujeita a trabalhos intermináveis; a destruição da Casa do Povo, do arquiteto Victor Horta para dar lugar a uma insípida fachada encurvada, quase sem graça nenhuma; a Bruxelas que se transformou em Brüsel, o delírio do fachadismo, derruba-se o antigo mantendo a sua fachada, criando cenografia para construções que fingem o antigo.
A Cité du Logis, em Watermael-Boitsfort, é um caso ímpar de construção social entre as duas grandes guerras é de tal modo paradigmático este equipamento urbano que está classificado, deverá manter-se intocável. Aqui muito perto, Gilles Jacquemain encontrou um novo escritório para a Associação Europeia de Consumidores, melhor notícia eu não podia ter tido, a centenas de metros vivem queridos amigos, os transportes para o centro da cidade de Bruxelas são acessíveis e a floresta de Soignes, a deslumbrante floresta de Soignes faz fronteira.
Jamais em tempo algum regressei de Bruxelas sem vitualhas para a família. Eram os pedidos dos filhos pequenos, eram as novidades em queijaria e charcutaria, por vezes arranjando situações delicadas de fedor dentro do avião, quando me esquecia de pedir para que aqueles queijos de odor intenso fossem hermeticamente fechados. O que aqui se mostra é o mercado dominical em Boisfort, é aqui que eu compro uns pedacinhos de queijo. Especialidades que vêm de França, comos os queijos Comté du Jura, o Cantal, e outras sumidades. Madame Germaine recebe sempre com um belo sorriso o cliente português.
Sou um caçador que não resiste ao cheiro da pólvora – metáfora mal-amanhada para referir que assim que vejo uma banca com livros vou farejar caça. Inesperadamente, perto da Praça Real, em Bruxelas, dei com uma Feira do Livro da banda-desenhada, irresistível, os anos passam e cada vez mais gosto da BD francesa e belga.
Bozar é o diminutivo do Palácio das Belas-Artes, uma casa de cultura onde aconteceram exposições lendárias e funciona um auditório onde têm subido ao palco alguns dos maiores intérpretes mundiais. Aqui vi um recital memorável da Maria João Pires, selecionou sonatas de Mozart e Beethoven, concluiu retumbantemente com improvisos de Schubert. Esta porta é de uma grande beleza, todo o edifício mantém a traça Arte Deco, tudo bem dimensionado, sensibiliza-me esta ligação entre a estética e o funcional, entrosamento perfeito.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22294: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

Sem comentários: