domingo, 20 de junho de 2021

Guiné 61/74 – P22301: (Ex)citações (387): "Memórias da Minha Aldeia" (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

"Memórias da Minha Aldeia" 

Camaradas,  

É no silêncio dos meus 70 anos que os neurónios com os quais a minha saudosa mãe me trouxe ao mundo, e que continuam ativos no mundo da escrita, que persisto em trazer a público uma infinidade de lembranças que, caso não houvesse alguém que ousasse enveredar por tamanha aventura, muito do passado cairia no limbo do esquecimento. Sim, na verdade prometi, um dia, elaborar um livro sobre a terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. 

Confesso que produzir uma obra onde as imensidões de memórias das gentes da minha aldeia proliferam, investigando em “oceanos” profundos não foi, de facto, tarefa fácil. Nesta panóplia de sucessivas narrativas, procurei deixar os nomes de todos os meus conterrâneos que morreram na guerra colonial, ou se quiserem na guerra do Ultramar, designadamente na Guiné.  

O texto que aqui vos deixo é o tema com que abro e fecho o meu próximo livro: “Memórias da Minha Aldeia”. 

Introdução 

Nasci em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950 e sou filho de Francisco Saúde e de Ana dos Reis Romeiro, ambos naturais da povoação.   

Oriundo de uma família humilde, gente que “comeu o pão que o diabo amassou”, mas cujo princípio familiar passou por me colocarem a estudar num ensino secundário, ensino este que ia para além da então trivial quarta classe, foi, de facto, o literal propósito dos meus pais, aliás, pessoas simples, mas que oportunamente se identificaram com uma enorme solidez humana que motivou o homem que hoje sou. 

Neste contexto, e num desafio permanente às “Memórias da Minha Aldeia”, deixo escrito, neste livro, parte das raízes da minha infância e dalguns pormenores de profissões que marcaram, inequivocamente, épicas gerações, onde os “mestres” foram personalidades que inspiraram épocas inesquecíveis, sendo que o seu labor ficará eternamente contemplado. Para além dessas inequívocas lembranças, recordo ainda alguns dos nossos conterrâneos que ficarão perpetuamente expostos numa montra de eloquentes e requintadas individualidades.   

Mas, além de tudo o que aqui vos deixo escrito, o que é sempre muito pouco, preocupei-me em falar sobre a origem da nossa Aldeia, do seu Padroeiro São Bento, da Festa das Santas Cruzes, um dos nossos ícones anuais, assim como a envolvência da Procissão, do nosso fabuloso Cante Alentejano, do simbolismo das Santas Cruzes feitas em casas de devotos, enfim, uma panóplia de narrativas avulsas indiscriminadas no tempo e que dão maior força a esta obra trabalhada com imensa ternura e paixão.   

            É, ainda, plenamente crível que articulemos histórias genuínas da nossa terra e, obviamente, dos seus antigos usos e costumes. Recupero, também, narrativas inseridas num outro livro que em tempos lancei para os escaparates, mas que julgo apresentarem-se determinantes para a composição de recordações do antigamente e que jamais o esqueceremos.  

            Reconheço, porém, que muito mais haveria para expor nesta obra. Mas, neste mundo da escrita, sempre perplexo, o autor procura, neste caso, dar uma imagem do universo aldeão, embora o faça meticulosamente, sem preconceitos e isento de presumíveis susceptibilidades.   

            A todos um bem-haja!   

                                         Quando um homem se põe a recordar…  


É inevitável mergulhar nas profundezas das límpidas águas oceânicas que se apaziguam miraculosamente na costa alentejana, ou de viajar entre as searas loiras que rodeavam a aldeia, onde o cantar dos grilos na primavera entoava uma melodia encantadora, e trazer à estampa pequenas lembranças da nossa terra que orgulhosamente definem o que foram as vivências do passado.  

Procurei, embora sinteticamente, recordar os tempos antigos, os hábitos, as imagens que entretanto se foram diluindo com o suceder das épocas, as amizades, a pureza dos nossos costumes, de pessoas que deixaram vincadas os seus saberes, ou as suas artes, as fotos que escrupulosamente recolhi, algumas delas oferecidas, mas aonde fica o meu profundo agradecimentos a todos que comigo colaboraram, fornecendo-me essas imagens que trabalhei com um amplíssimo carinho, as suas identificações, ou tirando-me pontuais dúvidas em relação ao tema tratado, ou alertando-me para pequenas hesitações que oportunamente foram dizimadas, o profícuo carácter dos homens no seu trabalho quotidiano, enfim, uma panóplia imensa de narrativas a que me predispôs executar, ficando registada uma obra que eu próprio considero sempre inacabada. Outros, com engenho e arte, que lhe dêem continuidade.  

Aqui não ficam resquícios sobre a plenitude de pequenos teores feitos com base no bem-querer que nutro pela terra que um dia me viu nascer e que um dia me irá consumir. Aqui “não há filhos nem enteados”, todos foram tratados de igual modo. Reconheço que a narrativa exposta não é completa. Sim, porque “quem conta um conto acrescenta-lhe sempre mais um ponto”. É normal e fica a minha aceitação. Perduram, porém, as muitas horas, dias e meses dedicados a uma investigação que paulatinamente foi tomando corpo e que aqui vos deixo com muito amor. 

Quando um homem se põe a recordar, é perfeitamente admissível que nem tudo de momento lhe ocorra. Todos temos histórias guardadas e cada um de nós trabalhamo-las de acordo com o nosso pensar e vivência. 

Ainda assim, e não obstante as eventuais animosidades, procurei não desertar dos propósitos a que me lancei quando me iniciei nos trabalhos das “Memórias da Minha Aldeia”. Neste contexto, deixo-vos uma foto, eu sentado na bica de água já desativada no ano de 1969, e que serviu similarmente de inspiração para a execução desta longa maratona, tendo em linha de conta que o meu pensamento, naquele instante, parecia premeditar que o mundo da escrita faria parte do meu futuro. 

Obrigado aos meus caríssimos conterrâneos, em especial a todos que comigo colaboraram, e das fotos que despretensiosamente me enviaram, permitindo-me, com a devida vénia, ter conseguido levar “a carta a Garcia”!  

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 9 DE JUNHO DE 2021 Guiné 61/74 - P22267: (Ex)citações (386): Valeu a pena andarmos todos à porrada, nós, e os ingleses, e os bóeres, e os alemães, e os cuanhamas, e os hereros, naquele Cu de Judas que era o sul de Angola e o Sudoeste Africano? (António Rosinha / Valdemar Queiroz)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, conta com mais um fiel leitor das "Memórias da Minha Aldeia"... Recordar é preciso. E é um ato de grandeternura...

Quantos de nós (, a grande maioria!) não vão levar consigo, para a cova, as memórias da sua infância, da sua terra, da sua pequena cidade, vila, aldeia ?!...

Sorte tem a Aldeia Nova de São Bento, hoje vila, por ter um filho com o teu talento literário!...

Quando é que é o lançamento do livro ? Dá notícias, e convida também os vizinhos de Vila Verde de Ficalho, ou pelo menos o meu amigo dr. Edmundo Sá, diretor do centro de saúde de Serpa e teu vizinho de Beja...

Um abraço fraterno... Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Zé, a tua terra também faz parte do "martirológio" dessa guerra estúpida e inútil para a qual fomos mobilizados...

Recordo que em 34 mortos na guerra do ultramar / guerra colonial, naturais do concelho de Serpa, 10 eram oriundos da freguesia de Vila Nova de São Bento (, na altura Aldeia Nova de São Bento, tendo passado a vila em 1988)....

DEsgraçadamente, a tua terra também tem vindo a perder população como todas as terras do interior profundo do país: 8842 habitantes em 1950; 7678 (em 1960); 5406 (em 1970); e... 3072 (em 2011) (informação da Wikipédia).

Valdemar Silva disse...

Tanto quanto se sabe, e o Manuel Macias, meu amigo e camarada de Pelotão na guerra da Guiné, também em tempos me explicou, o povo resolveu juntar duas antigas aldeias numa só e nasceu uma aldeia nova apadrinhada por São Bento.
E assim apareceu a Aldeia Nova de São Bento.
Até no cante se arranjou/adaptou em vez 'à minha terra' passou a 'Aldeia Nova':
'Lá vai Serpa, lá vai Moura
As Pias ficam no meio
E quem for à Aldeia Nova
Não há que houvera receio'
E o gentílico passou a ser aldenovense ou aldeanovense.
Agora por razões autárquicas deixou de ser Aldeia e passou a Vila, até estará certo, mas porquê "Nova" se nem sequer existe uma "Velha".
Lá terá de se alterar o gentílico e letra do cante, e parece que a localidade está a perder população e não me faz pensar como seria passar a cidade.
Agora venha livro "Memórias da Minha Aldeia" do nosso camarada Zé Saúde, que pelos vistos tem muitas memórias da Aldeia que o viu nascer.

Abraços
Valdemar Queiroz

José Pedro Neves disse...

Ficamos a aguardar, as "Memórias da Minha Aldeia", grande Amigo e Ranger Saude. Forte Abraço.